PATRIMÓNIO SUBAQUÁTICO ANA CATARINA GARCIA © Direção Regional da Cultura
PATRIMÓNIO SUBAQUÁTICOANA CATARINA GARCIA
Por inerência de condições geográficas o arquipélago dos Açores, no quadro económico e expansionista europeu da modernidade, serviu de importante ponto de apoio às frotas em circulação no Atlântico.
72 73
Por inerência de condições geográficas o arquipélago dos
Açores, no quadro económico e expansionista europeu da
modernidade, serviu de importante ponto de apoio às frotas
em circulação no Atlântico. Estas ilhas encontravam-se preci-
samente no rumo da Europa, proporcionando abrigo, assis-
tência e defesa necessárias às frotas das grandes potências
europeias que faziam desta escala o ponto de partida para
a última etapa da viagem, rumo à Europa, garantindo assim
muitas vezes o êxito do seu empreendimento.
De entre todos os portos insulares o porto de Angra, entre
os séculos XV-XVII, na ilha Terceira, era o que melhores
condições apresentava para a escala de grandes navios.
Apesar de não ter um ancoradouro totalmente seguro, era
suficientemente bom para garantir o abrigo ao ataque da
pirataria, a reparação, abastecimento e refresco dos navios
necessitados. Esta função foi em muitas ocasiões essencial
e vital para o êxito de diversos empreendimentos militares e
mercantis, quer portugueses, quer estrangeiros. Apesar de o
porto de Angra ser considerado o melhor porto dos Açores
eram frequentes as referências ao perigo do seu ancora-
douro pois, ao encurralar as embarcações, sobretudo as de
grande porte movidas exclusivamente pela força do vento,
estas tinham dificuldade em fazer-se ao largo, a única pos-
sibilidade de escaparem à fúria do mar.
Nos Açores e especialmente em Angra escalaram embarca-
ções provindas das Índias Orientais, de S. Tomé, da Costa da
Malagueta, de Cabo Verde, da Guiné, da Madeira e da Mina.
A partir dos inícios do séc. XVI, também as embarcações espa-
nholas vindas do Novo Mundo, por solicitação da coroa de
Castela a Portugal, passam a escalar regularmente o porto
de Angra para protecção militar das armadas. Mas, além desta
carreira, escalavam também embarcações oriundas da Holanda,
França, Inglaterra, entre outros. Na segunda década do séc. XVI,
PATRIMÓNIO SUBAQUÁTICOANA CATARINA
GARCIA
passam também a escalar navios oriundos do Brasil, atingindo-
-se o apogeu em 1653, com a escala em Angra da frota grande do Brasil, num total de 107 embarcações.
As embarcações que demandavam os portos dos Açores
vinham muitas vezes “feridas” das longas viagens com pro-
blemas estruturais, tanto resultantes de ataques bélicos,
como resultantes da acção do “taredo navalis”, aos quais se
juntavam as limitações da navegação à vela, a lentidão e
fragilidade destas naves face à agitação marítima, originando
a sua tragédia.
O património subaquático localizado nos Açores, relaciona-
do com naufrágios, é um importante testemunho de todo o
desenvolvimento expansionista iniciado na centúria de qui-
nhentos. Estes testemunhos caracterizam realidades sociais
e económicas, políticas e tecnológicas de diferentes épocas
e de diferentes origens. São verdadeiras “cápsulas do tem-
po” detentoras de informação única sobre todo o fenómeno
mercantil de mais de 400 anos de história. Integra-se tam-
bém neste património outro tipo de elementos como são
os ancoradouros, locais de deposição de cargas perdidas ou
elementos dispersos como canhões, vestígios da actividade
portuária e seus sistemas defensivos.
O registo de naufrágios históricos nos Açores está contabili-
zado à data em 549 naufrágios2, sendo este arquipélago con-
siderado como um dos locais a nível mundial com uma maior
concentração de naufrágios dos sécs. XVI-XVII. O levanta-
mento nos arquivos históricos dos registos de naufrágios
nos Açores revelou a existência de 174 naufrágios ocorridos
entre 1526 e 1698, 75 dos quais tendo ocorrido na ilha Terceira.
Para os sécs. XVI-XVII verifica-se que cerca de 40% dos
casos de naufrágio se devem a causas desconhecidas, 16%
se devem à má navegação, 12,8% a tempestades3, 10,5% a
Canhão em ferro. Santa Cruz das Flores. 1997.
Amigos do Museu de MAH
ataques de inimigos, 10% ao mau estado da conservação
dos navios, 6,8% a incêndios e outros acidentes e 5,5% a
carga excessiva4.
Com o intuito de conhecer, classificar, gerir e proteger o
património dos Açores, os organismos relacionados com a
sua gestão, nacionais e regionais,5 têm levado a cabo desde
1996 trabalhos regulares de levantamento e estudo deste
património, que se têm traduzido num documento intitu-
lado Carta Arqueológica dos Açores6 e que contabiliza até à
data 19 sítios de naufrágios localizados7, estando 7 já devida-
mente identificados com nome de navio e data do naufrágio.
De entre os sítios localizados destacam-se os registados na
baía de Angra do Heroísmo, local onde tem incidido a grande
maioria dos estudos, dada a relevância histórica e patrimo-
Vestígios de frutos secos recuperados no naufrágio
Angra D. Baía de Angra do Heroísmo.1999
Conjunto de balas de mosquete recuperadas
na baía de Angra do Heroísmo. 1999.
Transporte de canhão em ferro. Sítio de naufrágio
HMS Pallas – 1783. Calheta. S. Jorge. 1999.
PATRIMÓNIO SUBAQUÁTICOANA CATARINA
GARCIA
© D
ireçã
o Re
gion
al d
a C
ultu
ra©
Dire
ção
Regi
onal
da
Cul
tura
7776
nial deste porto. A baía de Angra conta com 18 sítios identi-
ficados entre naufrágios e locais de deposição de materiais
não associados. Em 1998, na sequência da minimização de
impacte da obra de construção da marina de Angra foram
escavados integralmente dois importantes contextos de
naufrágio, denominados de Angra C e D8 que revelaram, res-
pectivamente, a presença de dois cascos únicos à escala inter-
nacional, um de um navio de construção de tradição norte-
-europeia, atribuído cronologicamente a meados/finais do
séc. XVII e outro de tradição ibero-atlântica com datação de
finais de séc. XVI/inícios de séc. XVII, este último preservado
em grande parte do seu casco, um exemplar único conhecido
ao nível da arqueologia subaquática. A Direcção Regional
da Cultura dos Açores, entre 2004 e 2008, levou a cabo in-
tervenções sistemáticas de levantamento do seu património
© D
ireçã
o Re
gion
al d
a C
ultu
ra
PATRIMÓNIO SUBAQUÁTICOANA CATARINA
GARCIA
© D
ireçã
o Re
gion
al d
a C
ultu
ra©
Dire
ção
Regi
onal
da
Cul
tura
78 79
subaquático9 com especial incidência para a costa sul da ilha
Terceira, Faial e Pico.
Reconhecendo a importância histórica e científica da baía
de Angra, em 200510 o Governo Regional classificou-a como
Parque Arqueológico, criando ao mesmo tempo dois sítios
visitáveis com o intuito de dinamizar e divulgar o património
e o turismo subaquático da Região.
Os trabalhos de pesquisa alargaram-se, apesar de em menor
escala, às restantes ilhas, incidindo sobretudo sobre o Pico
e Faial, onde se veio a verificar também um elevado poten-
cial patrimonial, oscilando maioritariamente entre a elevada
incidência de ocorrências de deposição de artefactos e a
localização de naufrágios isolados ou naufrágios em zonas
portuárias. Outro tipo de ocorrências verificou-se na Horta
e em Ponta Delgada, onde se localizaram naufrágios na se-
quência dos estudos prévios para os novos terminais marí-
timos, revelando testemunhos de períodos um pouco mais
tardios que os de Angra já que, a partir dos sécs. XVIII e XIX,
estes dois portos ganham progressivamente mais importância
em detrimento do porto de Angra11.
Pormenor de escavação de Angra D, zona de cadaste.1998
Pormenor do casco de Angra C um navio de construção nórdica datado de séc. VII.1998
PATRIMÓNIO SUBAQUÁTICOANA CATARINA
GARCIA
Notas de rodapé
Este verme atacava os cascos dos navios, alojando-se nas madeiras
desde as paragens tropicais, fragilizando as estruturas em silêncio,
podendo deixar uma embarcação completamente vulnerável, chegando
mesmo a perder-se.
MONTEIRO, P., “A Carta Arqueológica Subaquática dos Açores: meto-
dologia, resultados e a sua aplicação na gestão do património su-
baquático da Região Autónoma dos Açores” in ADECAP, Actas do
3º Congresso de Arqueologia Peninsular, “Terrenos” da Arqueologia
Peninsular, Setembro 1999, Vol. VIII, Porto, 2002: 497-524.
www.entrada.tv/DB/wrecks/Docs/Carta_Arqueologica_Subaquatica_
dos_Acores.pdf
Uma tempestade pode provocar a rotura dos elementos estruturais
de um navio, resultando de um modo geral a sua dispersão e da sua
carga por uma vasta área. O culminar de um naufrágio contra zonas
rochosas pela linha de costa origina um tipo de dispersão muito di-
ferente da de um afundamento numa zona de areia e seguramen-
te uma menor garantia de sobrevivência de elementos orgânicos
como sejam madeiras.
GODINHO, Rui, Naufrágios, http://cvc.instituto-camoes.pt/nave-
gaport/c21.html, Garcia, Catarina, “A arqueologia em contextos de
navios dos sécs. XVI-XVII, Testemunhos Açorianos” in Arquipéla-
go História, 2ª Série, IX-X, Universidade dos Açores, Ponta Delgada
2005-2006: 89-103.
Até Agosto de 2000 as competências da gestão do património arque-
ológico das Regiões Autónomas estavam a cargo do Ministério da
Cultura, situação que se altera com a publicação da Lei19/2000 de 10
de Agosto e que transfere para as Regiões Autónomas da Madeira e
dos Açores as competências para a gestão, salvaguarda e estudo do
seu património arqueológico. http://www.ipa.min-cultura.pt/pubs/
1
2
3
4
5
80 81
RPA/v2n1/folder/249.pdf; http://www.cham.fcsh.unl.pt/pias/pages/
enquadramento.htm.
http://pg.azores.gov.pt/drac/cca/;
http://nautarch.tamu.edu/shiplab/indexacores.htm;
dem.
www.ipa.min-cultura.pt/pubs/RPA/v2n2/folder/199_210.pdf;
www.ipa.min-cultura.pt/pubs/RPA/v2n2/folder/211_232.pdf;
www.ipa.min-cultura.pt/pubs/RPA/v2n2/folder/233_261.pdf;
GARCIA, Catarina, “Preliminary assessment of the daily life on board
of an Iberian ship from the beginning of the 17th century (Terceira,
Azores)” in Close Encounters: Sea- and River-borne Trade, Ports
and Hinterlands, Ship Construction and Navigation in Antiquity, the
Middle Ages and in Modern Time, BAR, 2004.
http://www.rebikoff.org/html/arqueologia.html
http://pg.azores.gov.pt/drac/cca/pasa/
Refira-se nestes dois contextos a escavação do vapor de carga in-
glês Oakfield, naufragado a 28 de Fevereiro de 1897 na Baía de Ponta
Delgada, identificado pelos vestígios recuperados como tratando-
-se de um importante testemunho da actividade portuária de Pon-
ta Delgada de finais de séc. XIX, http://pg.azores.gov.pt/drac/cca/
caa/ver.aspx?id=41. Igualmente no Porto da Horta os trabalhos de
estudo de impacte revelaram a presença de importantes vestígios
arqueológicos, neste caso de um naufrágio com datação atribuída
ao séc. XVIII de provável origem inglesa, http://pg.azores.gov.pt/
drac/cca/caa/ver.aspx?id=96.
6
7
8
9
10
11