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A PRESERVAO DO PATRIMNIO CULTURAL E SUATRAJETRIA NO BRASIL
Paulo Cesar TomazUniversidade Presbiteriana Mackenzie
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo discorrer sobre a preservao do patrimnio cultural,bem como refletir sobre sua trajetria de preservao em mbito nacional. O estudo do patrimniocultural promove a valorizao e a consagrao daquilo que comum a determinado grupo social notempo e no espao, visto o mesmo possuir significaes relevantes por ser parte de sua construohistrica. Busca-se nesse sentido compreender como a idia de preservao obteve seu desenvolvimentona esfera pblica do governo brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: Patrimnio cultural Preservao Memria nacional.
ABSTRACT: This present article aims to discuss the cultural heritage preservation and also to reflect onthe preservation trajectory of the whole country. The study of cultural heritage promotes appreciation andpraise of what is common for specific social groups in time and space and has relevant significance oncepart of historic construction. The quest is to comprehend how the idea of preservation was developedwithin the Brazilian government.
KEYWORDS: Cultural heritage Preservation National memory
Ao se tratar da preservao do patrimnio histrico e cultural torna-se
necessrio compreender conceitos relativos ao uso dos espaos e sua relevncia como
lugares de memria, expresso utilizada por Pierre Nora para descrever certos espaos ecertas temporalidades que acabam por ser sacralizados em determinados grupos nas
sociedades urbanas1. Esses lugares de memria assumem importante significado por
Esse artigo parte da Dissertao de Mestrado em Histria defendida na Universidade Estadual deMaring (UEM). O autor Doutorando em Ministrio (D. Min.) pelo Centro Presbiteriano de Ps-Graduao Andrew Jumper (CPAJ - Mackenzie) em convnio com o Reformed Theological Seminary(RTS), e membro do Centro de Estudos das Artes e do Patrimnio Cultural (CEAPAC/UEM), sobresponsabilidade da Profa. Dra. Sandra C. A. Pelegrini (UEM).
1 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Memria, histria e cidade: lugares no tempo, momentos no espao.ArtCultura, Uberlndia, vol. 4, n. 4, p. 29, 2002.
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fazerem parte da memria coletiva de determinado grupo, a memria de um passado
comum e de uma identidade social que faz com que o grupo se sinta parte daquele lugar,
do espao que traz a lume a histria de todos. Segundo Sandra J. Pesavento, memria,
nesse sentido, a presentificao de uma ausncia no tempo, que s se d pela fora do
pensamento capaz de trazer de volta aquilo que teve lugar no passado.2
Ao se contemplar um espao de relevncia histrica, esse espao evoca
lembranas de um passado que, mesmo remoto, capaz de produzir sentimentos e
sensaes que parecem fazer reviver momentos e fatos ali vividos que fundamentam e
explicam a realidade presente. Essa memria pode ser despertada atravs de lugares e
edificaes, e de monumentos que, em sua materialidade, so capazes de fazer
rememorar a forma de vida daqueles que no passado deles se utilizaram. Cada
edificao, portanto, carrega em si no apenas o material de que composto, mas toda
uma gama de significados e vivncias ali experimentados.
A memria comum a um grupo, entendida como memria coletiva, contribui,
como sugere Michael Pollak, para manter a coeso dos grupos e das instituies que
compe uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade.3
Nessa busca pela coeso, pelo passado comum e pelo sentimento de pertena, com vista
a traar uma trajetria comum, a cidade pode at escrever e reescrever seu passado,juntando fragmentos e reorganizando-os. Desse modo, cada gerao reconstri aquele
passado e o sistematiza em uma narrativa, como bem salienta Sandra Pesavento:
[...] uma cidade inventa seu passado, construindo um mito dasorigens, descobre pais ancestrais, elege seus heris fundadores,identifica um patrimnio, cataloga monumentos, transforma espaosem lugares com significados. Mais do que isso, tal processoimaginrio de inveno da cidade capaz de construir utopias,regressivas ou progressivas, atravs das quais a urbs sonha a simesma. 4 (Grifo do autor)
Essa histria comum passa a pertencer a cada gerao que se segue. As
memrias de cada indivduo esto fortemente ligadas s construes que sinalizam um
passado comum a todos. Ecla Bosi ressalta: [...] cada gerao tem, de sua cidade, a
2 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Memria, histria e cidade: lugares no tempo, momentos no espao.ArtCultura, Uberlndia, vol. 4, n. 4, p. 26, 2002.
3 POLLAK, Michael. Memria, esquecimento e silncio. Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n.
3, 1989.4 PESAVENTO, 2002, op. cit., p. 25.
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memria de acontecimentos que so pontos de amarrao de sua histria5; e
acrescenta: As lembranas se apiam nas pedras da cidade6. esse espao urbano de
ruas e edificaes de aspecto familiar a todos os cidados, aparentemente estvel, que
lhes d a impresso de que tudo est tranqilo, embora a agitao humana do dia-a-dia
continue ininterruptamente.
Nessa direo, vale destacar que o estudo do patrimnio cultural promove a
valorizao e consagrao daquilo que comum a determinado grupo social no tempo e
no espao. Esse patrimnio compreende trs grandes categorias: a primeira engloba os
elementos pertencentes natureza, ao meio ambiente; a segunda refere-se ao
conhecimento, s tcnicas, ao saber e ao saber-fazer; e a terceira trata mais
objetivamente do patrimnio histrico, que rene em si toda a sorte de coisas, artefatos
e construes resultantes da relao entre o homem e o meio ambiente e do saber-fazer
humano, ou seja, tudo aquilo que produzido pelo homem ao transformar os elementos
da natureza, adequando-os ao seu bem-estar. Franoise Choay, referindo-se ao
patrimnio histrico, salienta:
Patrimnio histrico. A expresso que designa um bem destinado aousufruto de uma comunidade que se ampliou a dimenses planetrias,constitudo pela acumulao contnua de uma diversidade de objetos
que se congregam por seu passado comum: obras e obras-primas dasbelas artes e das artes aplicadas, trabalhos e produtos de todos ossaberes dos seres humanos.7
Para a autora, a noo de patrimnio deve ir alm da mera concepo de ser
apenas uma coleo esttica de objetos, documentos e edificaes, visto estar embasada
em processos sociais mais amplos, envolvendo at mesmo a concepo de histria e a
antropologia. Nessa linha de abordagem, Mrcia Scholz de Andrade Kersten afirma que
a antropologia auxilia na percepo do outro e a histria permite vrias e diferentes
leituras de fatos e documentos. Como explica a sociloga, o patrimnio, dentro dos
processos sociais, pode ser definido como dinmicas da experincia coletiva, sobre a
qual cada grupo social manifesta o que deseja como perene e eterno.8
5 BOSI, Ecla. Memria da cidade: lembranas paulistanas. Instituto de Estudos Avanados. SoPaulo: USP, vol. 1, n. 1, p. 199-200, 1987.
6 Ibid., p. 200.7 CHOAY, Franoise. A alegoria do patrimnio. So Paulo: Unesp, 2001, p.11.
8 KERSTEN, Mrcia Scholz deAndrade. Os rituais de tombamento e a escrita da histria: benstombados no Paran entre 1938-1990. Curitiba: UFPR, 2000, p.15.
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A tendncia natural do homem moderno olhar com desprezo as construes
antigas, vendo-as como bens ultrapassados e desatualizados, os quais devem ser
demolidos e ceder lugar a edificaes mais modernas e arrojadas, mais teis ao
desenvolvimento da cidade. Esse tipo de pensamento impacta frontalmente a idia de
preservao, de valorizao do patrimnio como herana histrica a ser preservada. O
cuidado com os bens patrimoniais visa resguardar a memria, dando importncia ao
contexto e s relaes sociais existentes em qualquer ambiente. No possvel preservar
a memria de um povo sem, ao mesmo tempo, preservar os espaos por ele utilizados e
as manifestaes quotidianas de seu viver.
A noo de patrimnio histrico, como salienta Maria Clia Paoli,9 deveria
evocar as dimenses mltiplas da cultura como imagens de um passado vivo:
acontecimentos e coisas que merecem ser mantidos na memria e preservados porque
so coletivamente significativos em sua diversidade; porm o que ocorre, como observa
a mesma autora, no exatamente isso, pois quando se fala em patrimnio histrico,
pensa-se quase sempre em uma imagem congelada do passado, em algo como um
museu repleto de objetos antigos, que esto ali apenas para atestar uma herana coletiva.
Esse preservar da memria no est ligado apenas conservao de relquias antigas ou
edificaes, mas tambm preservao de toda uma histria, todo um caminhopercorrido pela sociedade, desde seus tempos mais remotos at aos dias de hoje,
interligando-os pela sua importncia nesse processo de contnuo movimento e constante
transformao.
possvel observar que muitas vezes, por motivos meramente comerciais,
prefere-se demolir o velho, por consider-lo imprprio, e substitu-lo pelo novo, mais
contemporneo e funcional, mais adequado s necessidades da vida moderna, sempre
exigente em suas demandas. Ao historiador cabe a tarefa de recuperar essa memria. Ahistria oficial lembra-se de preservar e cultuar apenas a memria do vencedor,
produzindo documentos e construindo monumentos relacionados apenas a
personalidades polticas de grande vulto cujos nomes so dados a ruas e praas, e desta
forma a memria do pas se torna a memria do dominador e de seus feitos. ofcio do
historiador dar voz aos vencidos, no admitindo que essa rica herana da diversidade
humana seja relegada ao esquecimento e silenciada pelo poder do vencedor.
9 CUNHA, Maria Clementina Pereira. (Org.) O Direito Memria: patrimnio histrico e cidadania.So Paulo: Departamento do Patrimnio Histrico, 1992, p. 25.
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A preservao de bens patrimoniais deve ter por finalidade conservar traos da
vida comum, quotidiana, e mostrar como vivia a sociedade em determinada poca, pois
o que tende a ser conservado sempre ser o objeto considerado valioso, seja pelo valor
do material de que composto, seja por uma herana histrica ligada a uma
personalidade ilustre e por isso mesmo dominadora. A conservao de bens
patrimoniais deve ter por objeto edificaes que tenham um significado coletivo para
determinada comunidade, pois se perpetua a memria de uma sociedade preservando-se
os espaos utilizados por ela na construo de sua histria.
Uma poltica de preservao no pode ter como objeto apenas a preservao
dos bens patrimoniais em si, embora as situaes em que essa poltica muitas vezes
estabelecida a forcem a isso. necessrio resistir s presses do momento, oriundas dos
proprietrios dos imveis e at mesmo do poder constitudo, bem como prevenir e/ou
corrigir a deteriorao do bem tombado provocada por agentes naturais ou humanos.
Uma poltica de preservao deve ir alm; conforme argumenta Maria C. L. Fonseca,
deve objetivar no apenas a proteo de bens, mas abarcar todo o universo que constitui
a preservao patrimonial, incluindo-se os critrios de seleo de bens, as razes que
justifiquem a proteo e os diversos atores envolvidos, tais como a sociedade e os
representantes do Estado:[...] uma poltica de preservao do patrimnio abrangenecessariamente um mbito maior que o de um conjunto de atividadesvisando proteo de bens. imprescindvel ir alm e questionar oprocesso de produo desse universo que constitui um patrimnio, oscritrios que regem a seleo de bens e justificam sua proteo;identificar os atores envolvidos nesse processo e os objetivos quealegam para legitimar o seu trabalho; definir a posio do Estadorelativamente a essa prtica social e investigar o grau deenvolvimento da sociedade. Trata-se de uma dimenso menos visvel,mas nem por isso menos significativa. 10
Ao se tratar da preservao do patrimnio histrico, tem-se em mente o
produto elaborado por dada sociedade, para a qual determinado monumento tem
significaes relevantes, por ser parte de sua construo histrica. No tocante ao termo
monumento, Cristina Freire destaca que um substantivo originado do verbo latino
monere, que significa fazer lembrar, e que remete ainda a mausolu11, termo designativo
10 FONSECA. Maria Ceclia Londres. O patrimnio em processo: trajetria da Poltica Federal depreservao no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/IPHAN, 1997, p. 36.
11 Do latim mausoleun, derivado do grego Mausolos, rei de Caria, cuja viva, Artemsia, mandouerigir-lhe um tmulo em Alicarnasso, em 353 a.C., o qual, mais tarde foi considerado uma das sete
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de sepulcro suntuoso. Jacques Le Goff, ao referir-se ao termo monumento em latim,
explica que:
[...] o monumentum um sinal do passado. Atendendo suas origens
filosficas, o monumento tudo aquilo que pode evocar o passado,perpetuar a recordao, por exemplo, os atos escritos. [...] Omonumento tem como caractersticas o ligar-se ao poder deperpetuao, voluntria ou involuntria, das sociedades histricas um legado a memria coletiva e o reenviar a testemunhos que snuma parcela mnima so testemunhos escritos.12
Destarte a definio dos monumentos se aproxima do conceito de documentos:
testemunhos de uma poca, mas testemunhos que pretendem perpetuar uma viso, uma
interpretao, uma memria.13 A preservao do patrimnio histrico deve-se ao fato de
que a vida de uma comunidade, de um povo, est relacionada ao seu passado, sua
vivncia, s transformaes ocorridas na sua histria. A preservao tem por objetivo
guardar a memria dos acontecimentos, suas origens, sua razo de ser. Torna-se
tambm imprescindvel relacionar os indivduos e a comunidade com o edifcio a ser
preservado, visto que uma cidade, no seu viver cotidiano, tem sua identidade refletida
nos lugares cuja memria os indivduos constroem no dia-a-dia. Preservar o patrimnio
histrico relacion-lo com as interaes humanas a ele ligadas.
O que torna um bem dotado de valor patrimonial a atribuio de sentidos ousignificados que tal bem possui para determinado grupo social, justificando assim sua
preservao. necessrio compreender que os mltiplos bens possuem significados
diferentes, dependendo do seu contexto histrico, do tempo e momento em que estejam
inseridos. Seus significados variam tambm de acordo com os diferentes grupos
econmicos, sociais e culturais, embora em muitos aspectos o contexto possa ser o
mesmo, pois, conforme assevera Roger Chartier, todo receptor , na verdade, um
produtor de sentido, e toda leitura um ato de apropriao.14
Uma questo importante a ser considerada no que se refere conceituao de
patrimnio que, segundo Choay, nos sculos XIX e XX o patrimnio compreendia os
maravilhas do mundo. Cf.: FREIRE, Cristina. Alm dos mapas: os monumentos no imaginriourbano contemporneo. So Paulo: Annablume/FAPESP/SESC, 1997, p. 94.
12 LE GOFF. J. Documento/monumento. In: ______. Memria-Histria. Lisboa: Imprensa Nacional,1985, p. 95.
13 ARRUDA, Gilmar. Monumentos, semiforos e natureza nas fronteiras. In: ARRUDA,Gilmar (Org.).
Natureza, fronteiras e territrios: imagens e narrativas. Londrina: Eduel, 2005, p. 5.14 CHARTIER, Roger. A histria cultural: entre prticas e representaes. Lisboa: Difel, 1990, p. 24.
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monumentos nacionais assim considerados por critrios estticos ou histricos15. Essa
conceituao de patrimnio privilegiava os monumentos, as edificaes, dando nfase
sua materialidade, destacando-os por seu valor histrico e artstico.
No Mundo Ocidental, o termo patrimnio histrico, cujo conceito focava o
monumento, a materialidade, aos poucos vem sendo substitudo por um termo mais
amplo, mais abrangente, o chamado patrimnio cultural, entendido como o conjunto
dos bens culturais, referente s identidades coletivas. Essa nova forma de abordar o
assunto enriqueceu a noo de patrimnio, englobando sob a mesma perspectiva as
mltiplas paisagens, arquiteturas, tradies, particularidades gastronmicas, expresses
de arte, documentos e stios arqueolgicos, os quais passaram, a partir da, a ser
valorizados pelas comunidades e organismos governamentais nas esferas local, estadual,
nacional e at mesmo internacional.
No Brasil, a preocupao com os bens culturais tem suas razes no perodo da
Revoluo Francesa. Esse perodo marca o momento em que o Estado francs se props
a conservar os bens potencialmente capazes de firm-lo enquanto instncia suprema:
A noo de patrimnio , portanto, datada, produzida, assim como aidia de nao, no final do sculo XVIII, durante a RevoluoFrancesa, e foi precedida, na civilizao ocidental, pela
autonomizao das noes de arte e de histria. O histrico e oartstico assumem, nesse caso, uma dimenso instrumental, e passam aser utilizados na construo de uma representao de nao.16
Ao voltar-se ateno para questes referentes preservao de determinados
bens de reconhecido valor nacional, possvel perceber que, no caso brasileiro, o
conceito de Patrimnio Histrico e Artstico Nacional tem o mesmo sentido enraizado
nos valores da Revoluo Francesa, isto , conferir identidade ao pas.
A preocupao com a preservao do patrimnio histrico nacional,
principalmente dos bens imveis fora do mbito dos museus, comea a ter um
significado mais relevante a partir da dcada de 1920, visto que a falta de preservao
destes bens estava comprometendo sua conservao, chamando assim a ateno de
intelectuais, que denunciavam o descaso com as cidades histricas e a dilapidao do
que seria um tesouro Nacional. Eles perceberam que a imobilidade das elites
nacionais e do Estado diante dessa questo poderia acabar por comprometer o prprio
15 CHOAY, Franoise. A alegoria do patrimnio. So Paulo: Editora Unesp, 2001, p.128-142.
16 FONSECA. Maria Ceclia Londres. O patrimnio em processo: trajetria da poltica federal depreservao no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/IPHAN, 1997, p. 37.
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pas diante das naes tidas como civilizadas, assunto esse que se tornou foco de
preocupao no Governo, no Congresso Nacional, nas instituies culturais e na
imprensa.17
Na Constituio de 1934, artigo 10, observa-se pela primeira vez no Brasil a
noo jurdica de Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Esse artigo tinha como
objetivo responsabilizar o poder pblico pela preservao dos monumentos de valor
histrico ou artstico de importncia nacional: Art 10 - Compete concorrentemente
Unio e aos Estados: III - proteger as belezas naturais e os monumentos de valor
histrico ou artstico, podendo impedir a evaso de obras de arte. 18
Com o Decreto-Lei n. 25, de 30 de novembro de 1937, do ento presidente
Getlio Vargas, tem-se a criao do SPHAN Servio do Patrimnio Histrico e
Artstico Nacional. O SPHAN foi estruturado por intelectuais e artistas brasileiros da
poca. A partir deste momento definiu-se Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
como:
O conjunto dos bens mveis e imveis existentes no pas e cujaconservao seja de interesse pblico, quer por sua vinculao a fatosmemorveis da histria do Brasil, quer por seu excepcional valorarqueolgico ou etnogrfico, bibliogrfico ou artstico.19
Somente a partir da se tem uma regulamentao adequada de proteo dos
bens culturais no Brasil. As constituies brasileiras posteriores a esse decreto tm
apenas ratificado a noo de patrimnio em termos de direitos e deveres envolvendo
tanto o Estado como os cidados.20
A possibilidade de perda irreparvel de monumentos no Brasil, principalmente
os relacionados arte colonial, j era objeto de alerta desde a segunda dcada do sculo
XX por parte de intelectuais que posteriormente se integraram ao modernismo. Como
resposta a essas reivindicaes dos intelectuais, inicialmente no nvel dos estados
17 FONSECA. Maria Ceclia Londres. O patrimnio em processo: trajetria da poltica federal depreservao no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/IPHAN, 1997, p. 81.
18 CONSTITUIO DE 1934. Disponvel em: . Acesso em maio 2007.19 DECRETO-LEI N. 25 DE 30 DE NOVEMBRO DE 1937. Artigo 1. Disponvel em:
. Acesso em: maio 2007.20 FONSECA, 1997, op cit., p. 52.
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detentores de significativos acervos de monumentos histricos e artsticos, foram
tomadas as primeiras medidas para sua preservao.21
A efetiva entrada do Governo Federal na questo da preservao do patrimnio
ocorreu quando o ministro Gustavo Capanema, do governo de Getlio Vargas, solicitou
ao poeta Mrio de Andrade que redigisse um anteprojeto para criao de um rgo
especificamente voltado preservao do patrimnio histrico e artstico nacional. Essa
iniciativa resultou na criao do Servio de Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
(SPHAN), que comeou a funcionar experimentalmente a partir de 1936, mas s foi
consolidado em 30 de novembro de 1937, por fora do Decreto-Lei n. 25. Nesse
perodo o SPHAN passou a integrar oficialmente a estrutura do Ministrio da Educao
e Sade (MES).22
O anteprojeto de Mrio de Andrade mostrou-se inovador, dando ateno s
manifestaes tanto eruditas como populares, algo incomum naquela poca, que
normalmente privilegiava o erudito em detrimento do popular. Outra caracterstica
importante era o fato de que, semelhante s experincias europias, esse anteprojeto se
diferenciava de muitos outros pases, onde iniciativas voltadas preservao de bens
culturais tinham por prtica contemplar, isoladamente, apenas alguns bens, como
monumentos, museus, etc. Na perspectiva de Mrio de Andrade, propunha-se uma nicainstituio para proteger todo o universo de bens culturais.
As primeiras tentativas reais de interveno do poder pblico no sentido de
preservar os bens de importncia para a histria e as artes nacionais tiveram incio em
1934, com a criao da Inspetoria de Monumentos Nacionais, que era resultado da
ampliao do Museu Histrico Nacional. Cabia Inspetoria fazer um catlogo dos
edifcios de valor e interesse artstico e histrico e propor ao Governo Federal torn-los
monumentos nacionais atravs de decreto. Igualmente se procurava uniformizar aslegislaes estaduais de proteo e conservao de monumentos nacionais, guardar e
fiscalizar os objetos histrico-artsticos.23
21 FONSECA. Maria Ceclia Londres. O patrimnio em processo: trajetria da poltica federal depreservao no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/IPHAN, 1997, p. 95.
22 Ibid., p. 97.23
RODRIGUES, Marly. Patrimnio, idia que nem sempre pratica. DEPARTAMENTO DEPATRIMNIO HISTRICO E ARTSTICO DO DISTRITO FEDERAL.AConstruo da cidade deBraslia. Braslia, 1998, p. 88.
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pertinente salientar que nos anos seguintes organizao SPHAN as
polticas de preservao do patrimnio no Brasil adotaram uma perspectiva
predominantemente esttica em detrimento do aspecto histrico, deixando assim de
incorporar conceitos da historiografia nacional e internacional to relevantes para um
alcance mais profundo no que diz respeito preservao do patrimnio, como salienta
Fonseca:
[...] se houve uma preocupao de elaborar critrios para a avaliaodo valor artstico dos bens, o mesmo no pode ser dito em relao aovalor histrico. [...] a constituio do patrimnio no Brasil foirealizada a partir de uma perspectiva predominante esttica. Inclusive,praticamente no havia historiadores no quadro de funcionrios doSphan, tendo ficado a Seo de Histria entregue a pessoas, como
Carlos Drummond de Andrade, que, apesar de seu inegvel valorintelectual, no era um especialista na matria.24
O conceito de patrimnio nacional, at o final da dcada de 1970, estava
firmemente voltado preservao de bens imveis. A essas unidades, consideradas a
princpio isoladamente, juntaram-se os conceitos de stios e conjuntos arquitetnicos
relevantes para a sociedade, sendo estes utilizados como relquias do passado histrico e
empregados pedagogicamente no ensino dos valores nacionais a fim de se firmar um
sentimento de nacionalidade comum a todo brasileiro:
Consagrados pelo poder pblico, estes bens ganhavam uma espcie deaura que os situava acima do presente, dos conflitos e diferenasmanifestos no cotidiano. Estavam ali preservados, apropriados, ainformar o passado como uma das instncias do conhecimento social,como jias culturais, para serem vistos com a reverncia prpria quemerecem os lugares fundadores; para serem estudados em sua forma etcnica construtiva; para ensinarem o que era brasileiro.25
Posteriormente, esse conceito voltado apenas preservao de bens imveis foi
repensado, sendo ento adotadas medidas de preservao referentes a outras reas da
dinmica cultural brasileira. Surgia assim a possibilidade de tombamento no s de bens
de natureza material, mas igualmente de bens de natureza imaterial, conforme dispe o
artigo 216 da Constituio Federal de 1988, que salienta:
Constituem patrimnio cultural brasileiro os bens de natureza materiale imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
24 FONSECA. Maria Ceclia Londres. O patrimnio em processo: trajetria da poltica federal depreservao no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/IPHAN, 1997, p.114.
25 RODRIGUES, Marly. Patrimnio, idia que nem sempre pratica. DEPARTAMENTO DE PATRIMNIOHISTRICO E ARTSTICO DO DISTRITO FEDERAL.A Construo da cidade de Braslia. Braslia, 1998, p.90.
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referncia identidade, ao, memria dos diferentes gruposformadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: as formas deexpresso; os modos de criar, fazer e viver; as criaes cientficas,artsticas e tecnolgicas; as obras, objetos, documentos, edificaes e
demais espaos destinados s manifestaes artstico-culturais; osconjuntos urbanos e stios de valor histrico, paisagstico, artstico,arqueolgico, paleontolgico, ecolgico e cientfico.26
Conforme atestam Funari e Pelegrini, adiciona-se a isso o fato de que a Carta
Constitucional promulgada em 1988 acabou por retomar alguns pressupostos
preservacionistas que j haviam sido sugeridos por Mrio de Andrade e Alosio
Magalhes, os quais reafirmavam que a ao em defesa do patrimnio devia se
desenvolver de forma independente da ao do tombamento, baseando-se na
referencialidade dos bens27. E acrescentam:[...] as disposies contidas no artigo 215 reiteram a proteo smanifestaes populares indgenas e afro-brasileiras ou de quaisqueroutros segmentos tnicos nacionais, propondo, inclusive, a fixao deefemrides ou datas comemorativas concernentes aos seus respectivosinteresses. A defesa do meio ambiente, da qualidade de vida noscentros urbanos e da pluralidade cultural representou avanos na lutapela cidadania e por polticas preservacionistas nos anos que seseguiram.28
Assim, como bem observam Funari e Pelegrini, a partir desse momento a
preocupao com a preservao do patrimnio deixa de ser uma questo voltada apenas
aos bens imveis - ligados, quase sempre, valorizao da cultura dominante -
passando a valorizar outras esferas da sociedade, como a defesa do meio ambiente e a
pluralidade cultural do povo brasileiro, tanto de origem material bem como imaterial.
CONSIDERAES FINAIS
Como foi possvel observar, a necessidade de preservao do patrimnio
cultural bem como seu devido reconhecimento possui uma longa trajetria, percorrida
desde seus primrdios at sua consagrao como de importncia salutar para a
sociedade brasileira. Com a alterao do conceito de patrimnio cultural para dimenses
mais amplas, surgiu necessidade de se preservar no apenas os monumentos tidos
26 CONSTITUIO FEDERAL DE 1988. Disponvel em: . Acesso emagosto de 2007.
27 FUNARI, Pedro Paulo; Pelegrini, Sandra C. A. Patrimnio Histrico e Cultural. Rio de Janeiro:
Zahar, 2006, p. 51.28 Ibid., p. 51.
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Fnix Revista de Histria e Estudos CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto de 2010 Vol. 7 Ano VII n 2
ISSN: 1807-6971Disponvel em: www.revistafenix.pro.br
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como de valor histrico, mas a diversidade de manifestaes culturais que se mostram
presentes em uma determinada sociedade. Essa nova forma de pensar a preservao do
patrimnio cultural e sua repercusso nos organismos nacionais possibilitaram uma
maior abrangncia em sua esfera de atuao, permitindo-se ampliar a valorizao e a
preservao das mais variadas manifestaes culturais to latentes em nossa sociedade.