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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais
PATRIMNIO CULTURAL E REVITALIZAO URBANA. Usos, apropriaes e
representaes da Rua dos Caets, Belo Horizonte.
Corina Maria Rodrigues Moreira
Belo Horizonte
2008
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Corina Maria Rodrigues Moreira
PATRIMNIO CULTURAL E REVITALIZAO URBANA. Usos, apropriaes e
representaes da Rua dos Caets, Belo Horizonte.
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias
Sociais/Gesto das Cidades, da Pontifcia Universidade Catlica de
Minas Gerais, como requisito parcial para a obteno do ttulo de
Mestre em Cincias Sociais.
rea de concentrao: Cidades: Cultura, Trabalho e Polticas
Pblicas
Orientador: Prof. Dr. Luciana Teixeira de Andrade
Belo Horizonte, 2008
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FOLHA DE APROVAO
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Para meus pais, Agapito (in memorian), e Yolanda, e para minha
irm, Lilla, amigos de sempre, esteio de todas as horas,
amorosamente presentes em
todos os momentos desta jornada.
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AGRADECIMENTOS
Este trabalho no estaria sendo apresentado aqui se no fosse a
presena de um grande nmero de pessoas que, de uma forma ou de
outra, contriburam para sua realizao, com amizade, apoio, idias. O
meu velho e querido amigo, Charles, o juca fogueteiro que me
incentivou a dar continuidade aos estudos e seduziu-me para este
Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais, curso no qual fui
acolhida em minhas inquietaes, dificuldades e experincias e que
contribuiu significativamente para minha formao acadmica. Os
professores, atentos e dedicados, esto presentes em todo esse
texto, que se apresenta como produto das reflexes e leituras
conjuntas que propiciaram: Lea, Luclia, Carlos Alberto, Magda,
Juliana, Tarcsio e, de forma especial, minha orientadora, Luciana,
que me auxiliou de forma firme, respeitosa e carinhosa a adentrar
uma nova rea do saber, dando-me sustentao para levar essa
empreitada a termo.
No posso deixar de expressar meu agradecimento, ainda, queles
que possibilitaram a realizao das pesquisas que fundamentam as
reflexes aqui apresentadas. Os servidores do Arquivo Pblico da
Cidade de Belo Horizonte, do Museu Histrico Ablio Barreto, da
Secretaria Municipal de Polticas Urbanas, da Gerncia de Patrimnio
Histrico Urbano foram auxiliares sempre atenciosos e disponveis na
intrincada trilha da pesquisa documental. Obrigada tambm
Coordenadora do Programa Centro Vivo, Maria Caldas, por to
gentilmente ter concedido uma entrevista que tanta valia teve para
que pudssemos nos aproximar dos olhares lanados pelo poder pblico
sobre a cidade.
Este trabalho no teria sido realizado no fosse a concesso de
bolsa de estudo pela Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel
Superior CAPES, e a compreenso e apoio das chefias e colegas da 13
Superintendncia Regional do IPHAN, que possibilitaram a
flexibilizao de horrios necessria queles que trabalham e
estudam.
Agradeo especialmente a todos os que, na Rua dos Caets,
dispuseram-se a conceder-me as entrevistas de campo. A
receptividade, o interesse, o desprendimento com que me receberam
foi essencial para que pudssemos dialogar com aquilo que pensam,
sentem e apreendem em suas relaes com aquele espao de vivncia
cotidiana, possibilitando-nos a criao de novas referncias para a
compreenso da dinamicidade e complexidade da vida na cidade.
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minha me, pela pacincia do acompanhamento de um cotidiano,
digamos, um pouco tumultuado, porto seguro nas tempestades que
surgiram nesse percurso, a minha profunda gratido e amor, sempre. E
Lilla, querida irm, amiga e companheira que to pacientemente
acompanhou no s boa parte da pesquisa de campo, auxiliando em seu
registro fotogrfico, como tambm em toda a elaborao deste texto,
revisando, trocando idias e impresses, dando sugestes, enfim,
apoiando-me incansavelmente nas tessituras da escrita, a certeza de
que ainda temos muitas leituras a trocar pela frente.
E, para finalizar, aos meus carssimos amigos do Mestrado, Mnica,
Andr, Ceclia, Pletz, Helen, Reinaldo, Andria. Sem nossas conversas,
risadas, cervejas eu tenho certeza que o caminho teria sido
insuportavelmente rido!
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RESUMO
Este trabalho aborda algumas questes atinentes s interfaces
existentes entre as polticas contemporneas de revitalizao urbana e
de patrimnio cultural, e s formas como as mesmas so apropriadas
pela populao que convive cotidianamente com esses espaos
transformados em patrimnio da cidade e foco de aes de significativo
impacto na vida da urbe. Para tanto, tomamos como objeto de anlise
a Rua dos Caets, conjunto urbano tombado pelo poder pblico
municipal e palco de uma srie de intervenes constantes do Programa
Centro Vivo, da Prefeitura de Belo Horizonte, lugar visto aqui como
um cenrio urbano conformado no contexto histrico-espacial do Centro
da cidade. Visando compreender em que medida as intervenes -
materiais e simblicas - a realizadas provocaram ou no transformaes
nas formas de apropriao desse espao e nas representaes que
trabalhadores, comerciantes e profissionais liberais elaboram nesse
e com esse lugar de vivncia cotidiana, procedemos tanto identificao
dos usos e configuraes scio-espaciais que o caracterizam e
problematizao das polticas de patrimnio cultural e de revitalizao
urbana executadas no Centro cidade quanto aproximao em relao aos
sujeitos que convivem diariamente com a Rua dos Caets, atravs de
pesquisas documentais, observaes e entrevistas realizadas no
decorrer de nossas investigaes. Percebemos, assim, que as maneiras
como os entrevistados se apropriam das intervenes efetivadas nesse
espao evidenciam no s uma estreita associao entre patrimnio
cultural e revitalizao urbana como tambm uma fraca ancoragem nas
memrias produzidas por aqueles que o vivenciam cotidianamente,
indicando a valorizao de um passado estetizado que acaba por
encobrir as tenses, acordos e conflitos, enfim, as dinmicas sociais
que conformam este como um lugar de significao para aqueles que ali
convivem cotidianamente e o distanciamento dessas pessoas frente s
memrias que essas aes pretendem afirmar como representantes
legtimas da histria da cidade.
Palavras-chave: patrimnio cultural, revitalizao urbana, memria,
histria, representaes sociais, estetizao do passado.
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ABSTRACT
This work deals with questions related to the interconnections
between contemporary policies of urban revitalization and cultural
heritage and the way they are appropriated by the population that
live daily in such spaces, which were transformed into heritage of
the city and became the focus of public actions that have
significative impact in the life of the urbe. Caets Street, in
downtown Belo Horizonte (Minas Gerais, Brazil), is taken as a case
study. Several of its buildings were transformed into cultural
heritage by the municipal authority and the street became the locus
of a series of interventions conducted by Programa Centro Vivo,
launched by Belo Horizonte Municipality. With the aim of
apprehending the impact of such interventions, both material and
symbolic, in the way this space is appropriated and in the
representations that workers, businessmen and liberal professionals
elaborate in and with such a place of daily existence, we try (a)
to identify the forms the space is used and the sociospatial
configurations that constitute its singularities; (b) to discuss
the problems associated with the cultural heritage policies and
urban revitalization programs implemented in the downtown area; and
(c) to study the perceptions of the individuals that interact daily
at Caets Street, through documental research, observations and
interviews. Such a method enables us to distinguish the ways the
interviewees appropriate themselves of the interventions made in
such a space by the municipal authority, which show both a close
connection between cultural heritage and urban revitalization and a
weak linkage with the memories produced by those who spend part of
their lives in the region. All this point: (a) to the recognition
and appreciation of a aestheticized past that partially veils the
tensions, agreements and conflicts, that is, the social dynamics
that conform such a place as a meaningful one; and (b) to the fact
that these individuals are kept away from the memories that the
public interventions intend to establish as the legitimate
representations of the citys history.
Kew words: cultural heritage; urban revitalization; memory;
history; social representations; aesthetization of the past; Caets
Street.
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LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 Mapa do Hipercentro de Belo Horizonte p.22 FIGURA 2
Galpes do Grande Emprio Central, do Conde de Santa Marinha, um dos
grandes empreiteiros da construo de Belo Horizonte. Regio da Praa
da Estao. Final do sculo
XIX.......................................................................................
p.26 FIGURA 3 - Recepo do presidente Silviano Brando na Praa Rui
Barbosa. 1898. p.26 FIGURA 4 - Vista da regio da Estao a partir do
bairro Floresta. 1900.................. p.27 FIGURA 5 - Vista da
regio da Estao a partir do bairro Floresta. 1910...................
p.27 FIGURA 6 - Antigo prdio da estao ferroviria. Entre 1902 e
1920........................ p.28 FIGURA 7 Estao Ferroviria, entre
1916 e 1920................................................... p.29
FIGURA 8 Pessoas esperando o trem na estao. Entre 1920 e
1930...................... p.29 FIGURA 9 Antigo mercado municipal.
Sem data.................................................... p.29
FIGURA 10 - Comcio da Aliana Liberal na Praa da Estao.
1930........................ p.30 FIGURA 11 - Rua dos Caets esquina
com Rua Esprito Santo, entre 1902 e 1910.... p.31 FIGURA 12 Avenida
do Commercio,
1911...............................................................
p.31 FIGURA 13 Panorama da Avenida dos Andradas, nas proximidades
da Praa da Estao, entre 1922 e
1930............................................................................................
p.31 FIGURA 14 - Vista area do centro de Belo Horizonte, 1954.
esquerda, margeia a foto a Rua da Bahia, a partir da Rua dos Caets,
at o bairro Santo Antnio............
p.34 FIGURA 15 - Rua dos Caets n 245 a 263. Estilo Ecltico 1
fase com influncia
neoclssica.....................................................................................................................
p.43 FIGURA 16 - Av. Amazonas, n 478. Estilo ecltico 1 fase com
influncia
neoclssica.....................................................................................................................
p.43 FIGURA 17 - Av. Augusto de Lima, n 104. Estilo ecltico 1
fase com influncia
neoclssica.....................................................................................................................
p.44 FIGURA 18 - Rua Esprito Santo n 284. Tomada a partir da Rua
dos Caets. Estilo Art
Dco..............................................................................................................
p.44 FIGURA 19 - Av. Afonso Pena, n 551/565. Estilo Art
Dco..................................... p.44 FIGURA 20 Av. Afonso
Pena, n 114. Palcio das Artes. Estilo Modernista.......... p.45
FIGURA 21 Av. Afonso Pena, n 1626. Estilo
Modernista...................................... p.45 FIGURA 22
Arranha-cu - Av. Amazonas, n 61.
1952-1962.................................. p.45 FIGURA 23
Arranha-cus Av. Afonso Pena com Rua Carijs. Sem data.............
p.46 FIGURA 24 Arranha-cu Av. Paran esquina com Rua
Carijs............................ p.46 FIGURA 25 Mapa da Rua dos
Caets
.......................................................................
p.47 FIGURA 26 Mapa do Conjunto Urbano da Rua dos Caets e
Adjacncias ............. p.48 FIGURA 27 - Fbrica de ladrilhos de
propriedade de Lunardi e Machado, localizada na Rua dos Caets.
Entre 1910 e
1925.........................................................................
p.49 FIGURA 28 - Fachada principal e lateral da Casa Comercial
Nogueira e Cia., antiga Casa Benjamin. As pessoas e carroas esto na
Rua dos Caets. 1904......................
p.49 FIGURA 29 - Funcionrios e componentes da orquestra do
Cinema Teatro Comrcio, que existiu na Rua dos Caets, esquina com
Rua So Paulo.....................
p.50 FIGURA 30 - Tomada da Rua dos Caets a partir da Rua Esprito
Santo, no sentido do Bairro da Floresta.
1930...........................................................................................
p.51 FIGURA 31 - Edificaes na Rua dos Caets esquina com a Rua
Rio de Janeiro.
1940...............................................................................................................................
p.51 FIGURA 32 - Esquina do Barulho. Rua dos Caets, n 300.
1947........................... p.52 FIGURA 33 Rua dos Caets em
1996........................................................................
p.54 FIGURA 34 Rua dos Caets em
1999........................................................................
p.55
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FIGURA 35 - Rua dos Caets, esquina com Rua Rio de Janeiro.
02/04/2007............ p.57 FIGURA 36 - Rua dos Caets, entre as
ruas Rio de Janeiro e So Paulo. 02/04/2007. p.57 FIGURA 37 Vendedor
de frutas ambulante, na Rua dos Caets esquina com Rua So Paulo.
08/06/2007..................................................................................................
p.58 FIGURA 38 V-se, atrs do poste, um carrinho de pipoca. Rua
dos Caets entre as ruas Rio de Janeiro e So Paulo.
02/04/2007...........................................................
p.59 FIGURA 39 Pontos de nibus na Rua dos Caets entre as ruas
Rio de Janeiro e So Paulo.
08/06/2007..................................................................................................
p.60 FIGURA 40 - Rua dos Caets esquina com Av. Amazonas.
02/04/2007.................... p.63 FIGURA 41 - Rua dos Caets entre
as ruas Esprito Santo e Rio de Janeiro.
08/06/2007.....................................................................................................................
p.63 FIGURA 42 - Rua dos Caets entre as ruas Rio de Janeiro e So
Paulo. 08/06/2007.. p.63 FIGURA 43 - Rua dos Caets entre as ruas
Esprito Santo e So Paulo. 02/04/2007. p.64 FIGURA 44 Frigorfico
Serrado. Rua dos Caets esquina com Rua So Paulo.
05/06/2007.....................................................................................................................
p.65 FIGURA 45 - Laboratrio Central do INSS. Rua dos Caets n
331. 02/04/2007..... p.67 FIGURA 46 - LACES JK.
02/04/2007........................................................................
p.68 FIGURA 47 - LACES
JK..............................................................................................
p.68 FIGURA 48 Casa Salles. Rua So Paulo n 331, esquina com Rua dos
Caets.
02/04/2007.....................................................................................................................
p.69 FIGURA 49 - Rua dos Caets n 603. Antes da
reforma............................................. p.70 FIGURA 50
- Rua dos Caets n 603. Depois da
reforma........................................... p.71 FIGURA 51
Rua dos Caets n 630. Antes da
reforma............................................ p.71 FIGURA 52
Rua dos Caets n 630. Depois da
reforma.......................................... p.71 FIGURA 53 -
Casa Sales antes da restaurao Rua dos Caets esquina com Rua So
Paulo,
02/04/2007...................................................................................................
p.109 FIGURA 54 Restaurao da Casa Sales Rua dos Caets esquina
com Rua So Paulo,
08/06/2007..........................................................................................................
p.109 FIGURA 55 Rua dos Caets entre Avenida Amazonas e Rua
Esprito Santo Edifcios restaurados, 02/04/2007
................................................................................
p.110 FIGURA 56 Rua dos Caets entre Avenida Amazonas e Rua
Esprito Santo Caladas ampliadas, 02/04/2007
..................................................................................
p.115 FIGURA 57 Rua dos Caets entre Rua Rio de Janeiro e Rua So
Paulo Caladas ampliadas, 02/04/2007
..................................................................................
p.116 FIGURA 58 Rua dos Caets esquina com Rua So Paulo Travessia
de pedestres e rampa para portadores de necessidades especiais,
02/04/2007 .................................
p.116 FIGURA 59 Entrada do Shopping Popular Tocantins,
08/06/2007 .......................... p.120 FIGURA 60 Entrada do
Shopping Popular Caets, 08/06/2007 ...............................
p.121 FIGURA 61 Shopping Popular Oiapoque
.................................................................
p.121
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LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 Verticalizao Rua dos
Caets......................................................... p.
52 QUADRO 2 Uso das edificaes Rua dos
Caets................................................ p. 66 QUADRO
3 Edifcios tombados e restaurados Rua dos Caets
.......................... p. 72
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LISTA DE SIGLAS
APCBH Arquivo Pblico da Cidade de Belo Horizonte BHTRANS Empresa
de Transportes e Trnsito de Belo Horizonte S/A CDPCM-BH Conselho
Deliberativo do Patrimnio Cultural do Municpio de Belo Horizonte
DER Departamento de Estradas de Rodagem FIT Festival Internacional
de Teatro IAB Instituto dos Arquitetos do Brasil IBPC Instituto
Brasileiro de Patrimnio Cultural IEPHA Instituto do Patrimnio
Histrico e Artstico Estadual INSS Instituto Nacional de Seguridade
Social IPHAN Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
IPTU Imposto Predial e Territorial Urbano LACES JK Liceu de Artes,
Cultura, Esporte e Sade Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira
MHAB Museu Histrico Ablio Barreto PACE - Plano da rea Central PAR
Programa de Arrendamento Residencial PBH Prefeitura Municipal de
Belo Horizonte RMBH Regio Metropolitana de Belo Horizonte SESC
Servio Social do Comrcio SPHAN Servio do Patrimnio Histrico e
Artstico Nacional TDC Transferncia do Direito de Construir UNESCO
Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura
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SUMRIO
INTRODUO
.......................................................................................................
13
CAPTULO 1 - CENRIO URBANO (I): CENTRO, BELO HORIZONTE..... 20
1.1 Diversidade, passagem e
permanncia..............................................................
25 1.2 Diferenciaes scio-espaciais
...........................................................................
32 1.3 Vida cotidiana, lazer e arquitetura
...................................................................
38
CAPTULO 2 - CENRIO URBANO (II): RUA DOS CAETS, CENTRO, BAIXO
CENTRO......................................................................................................
47 2.1 Movimentos
.........................................................................................................
56 2.2 Usos e apropriaes
............................................................................................
62 2.3 Edificaes restauradas e tombadas
.................................................................
69
CAPTULO 3 - PATRIMNIO CULTURAL E REVITALIZAO URBANA: INTERFACES
DO PROGRAMA CENTRO VIVO, BELO
HORIZONTE...........................................................................................................
73 3.1 A preservao do patrimnio cultural em Belo Horizonte e o
tombamento do Conjunto Urbano da Rua dos Caets e
Adjacncias........................................
78 3.1.1 Rua dos Caets, patrimnio de Belo
Horizonte................................................. 82 3.2 O
Programa Centro
Vivo...................................................................................
86 3.2.1 O eixo da requalificao urbanstica e
ambiental............................................. 92
CAPTULO 4 UM LUGAR, MUITOS LUGARES: APROPRIAES E REPRESENTAES DA
POPULAO SOBRE UM ESPAO DE VIVNCIA
COTIDIANA........................................................................................
98 4.1 Os entrevistados e a Rua dos
Caets..................................................................
101 4.2 As intervenes urbanas na representao dos
entrevistados......................... 106 4.2.1 Rua dos Caets,
patrimnio cultural da
cidade................................................. 107 4.2.2 A
revitalizao da Rua das
Caets.....................................................................
114
CONSIDERAES
FINAIS....................................................................................
123
REFERNCIAS........................................................................................................
126
ANEXOS....................................................................................................................
141
-
13
INTRODUO
No decorrer das duas ltimas dcadas as reas centrais das grandes
cidades tm sido objeto de uma srie de intervenes urbansticas,
geralmente pautadas em diagnsticos que indicam a perda da
vitalidade e da referncia material e simblica que caracterizavam
estas regies no contexto urbano. Diversificadas em seus objetivos,
perspectivas e aes, estas intervenes tm em comum, no entanto, o
fato de visarem chamada dinamizao econmica dessas regies e
pautarem-se na valorizao simblica e esttica da paisagem urbana,
especialmente no que diz respeito ao seu patrimnio arquitetnico e
urbanstico muitas vezes designado como histrico e cultural e
utilizado como referncia para a produo de uma dada memria e
identidade da/para a cidade.
Um grande nmero de pesquisadores de diversas reas de
conhecimento gegrafos, arquitetos, cientistas sociais,
historiadores, economistas, urbanistas, por exemplo vm se dedicando
compreenso desta que se tem mostrado uma tendncia nas aes do
planejamento urbano contemporneo. No campo das cincias sociais,
especificamente, as investigaes em torno desta temtica apresentam
reflexes que vo desde as razes estruturais desta dinmica e sua
insero no contexto da chamada globalizao at os arranjos polticos e
institucionais locais que as efetivam, os conflitos que provocam e
as
transformaes que geram na ocupao e usos dessas regies. No
entanto estas pesquisas, ainda que quantitativa e qualitativamente
diversas, no
tm se voltado, de forma geral1, anlise das representaes que a
populao elabora a respeito destas intervenes e de como estas
pessoas se apropriam, cotidianamente, desses espaos
patrimonializados2 e revitalizados. Nesse sentido, nos propusemos
inquerir em que medida a vivncia cotidiana da populao nesses espaos
e as representaes que engendra dialogam com as aes de
patrimonializao e revitalizao nele implementadas, reelaborando-as e
indicando novas formas de apropriao de um espao urbano transformado
em patrimnio cultural da cidade e em representante legtimo de sua
memria e identidade.
Para tanto, tomamos por objeto de pesquisa um espao especfico de
Belo Horizonte: a Rua dos Caets, que d nome a um conjunto urbano
tombado pelo poder pblico municipal,
1 Com honrosas excees, como Botelho (2005, 2006), Leite (2001,
2002, 2006, 2006a), Arroyo (2004),
referncias significativas para algumas das reflexes que
apresentaremos neste trabalho. 2 O termo patrimonializao refere-se,
neste trabalho, ao ato de nomear um bem como patrimnio
histrico/cultural de uma determinada localidade, e no s aes de
interveno fsica nos bens protegidos as aes de preservao
propriamente ditas.
-
14
em 1994, como patrimnio histrico e cultural da cidade, e foco de
aes de revitalizao urbana a partir de 20033. Inserida no
Hipercentro da cidade, a Rua dos Caets classificada como um dos
poucos espaos representantes da arquitetura da poca da construo de
Belo Horizonte, tendo sido considerada at a dcada de 1930, junto
Avenida do Commrcio (atual Avenida Santos Dumont), a artria
comercial da cidade. Situada na parte mais baixa do centro, esta
rua um dos trajetos de ligao entre a estao ferroviria e a
rodoviria, inserindo-se em histrica regio hoteleira e bomia
conhecida tambm como quadriltero da zona em razo da concentrao de
estabelecimentos de prostituio a encontrada - fatores que fazem com
que a regio no seja considerada, portanto, rea das mais nobres do
centro da cidade4. Tendo sua imagem historicamente relacionada ao
comrcio ligado ao armarinho e ao vesturio, a Rua dos Caets, hoje,
mantm sua caracterstica de espao preponderantemente destinado ao
comrcio, ainda que mais diversificado, e tambm prestao de servios,
marcadamente aqueles comrcio e servios - nominados como
populares.
A percepo da dinmica cotidiana desse espao e das relaes que nele
e com ele so estabelecidas, com vistas compreenso de como as
pessoas se apropriam tanto desse lugar de vivncia quanto das
intervenes nele realizadas5, indicaram a necessidade de nos
remetermos a posturas e instrumentos metodolgicos que nos
possibilitassem uma maior aproximao tanto do espao de investigao
propriamente dito quanto dos sujeitos que o vivenciam diariamente,
observando, conversando, registrando impresses, enfim, ocupando uma
posio de perto e de dentro (MAGNANI, 2002) que contribusse para a
elaborao de um olhar capaz de vislumbrar a dinamicidade, as tenses,
a pluralidade das relaes estabelecidas entre os diversos agentes
que produzem a cidade cotidianamente, e destes com a prpria
cidade.
Nesse sentido, ainda que no tenha sido realizado um estudo
etnogrfico em sua plena acepo6, as pesquisas desenvolvidas
pautaram-se naquilo que poderamos chamar de um olhar etnogrfico
sobre nosso objeto de estudo. Atento s mltiplas redes, formas de
sociabilidade, estilos de vida, conflitos que do a vida
propriamente dita da metrpole
3 Realizadas no contexto de um programa de revitalizao do Centro
da cidade, da Prefeitura Municipal de Belo
Horizonte - PBH, o Programa Centro Vivo, sobre o qual nos
deteremos no Captulo 3 Patrimnio Cultural e Revitalizao Urbana:
interfaces do Programa Centro Vivo, Belo Horizonte. 4 rea inclusive
nomeada costumeiramente de baixo centro, como veremos no Captulo 1
Cenrio urbano (I):
Centro, Belo Horizonte. 5 Pensando as intervenes, aqui, no s em
seu sentido fsico, como as aes de revitalizao propriamente
ditas, mas tambm aquelas de carter simblico, como a nominao
deste como um patrimnio da cidade. 6 Isto porque o tempo para
realizao desta investigao absolutamente insuficiente para a
efetivao de uma
pesquisa etnogrfica em seu sentido forte, que tem como uma de
suas posturas centrais uma observao de carter ativo e constante -
apesar de consideramos que este seria um caminho profcuo frente s
indagaes propostas.
-
15
(MAGNANI, 2002) atento, enfim, aos imponderveis da vida real
(MALINOWSKI, 1984, p. 29) ou ainda lgica informal da vida real
(GEERTZ, 1989, p. 27) este olhar nos propiciou a criao de certa
proximidade frente aos sujeitos da investigao e a identificao das
diferentes dinmicas que se entrecruzam no contexto abordado, bem
como das maneiras prprias encontradas por estas pessoas para a
construo das relaes tanto com este espao cotidianamente vivenciado
quanto com as intervenes nele realizadas. Nesse contexto, a
pesquisa de campo, aliada pesquisa documental e bibliogrfica,
constituram-se como procedimentos essenciais ao desenvolvimento
desta investigao, num dilogo constante entre pesquisa emprica e
reflexo terica capaz de fundamentar a produo de um conhecimento
pertinente a nosso objeto de estudo, que nos possibilitasse a
ampliao de sua compreenso no contexto da diversidade de reflexes j
produzidas sobre os tambm diversos processos de interveno urbana
contemporneos.
A pesquisa de campo foi desenvolvida atravs da observao da
paisagem fsica do trecho analisado7 e da realizao de entrevistas
com algumas pessoas que convivem cotidianamente com a e na Rua dos
Caets. A observao objetivou, primordialmente, a elaborao de uma
caracterizao deste espao sua arquitetura, as ocupaes e estado de
conservao das edificaes, seus usos e apropriaes cotidianas, seu
movimento que possibilitasse a composio daquilo que chamamos, aqui,
de um cenrio urbano. Este cenrio urbano constitui-se como um quadro
referencial capaz de propiciar a compreenso no s dos arranjos
fsicos que estruturam o espao em questo, como tambm da maneira como
as pessoas se apropriam deste lugar de vivncia cotidiana e de como
ele se insere no contexto do Centro de Belo Horizonte e das
transformaes a ocorridas nas ltimas dcadas8.
No que diz respeito s entrevistas, elas visaram no s estabelecer
um contato amplo e direto com o universo dos sujeitos pesquisados -
comerciantes, profissionais liberais, trabalhadores das lojas, da
rua e dos shopping populares - como tambm identificar as
proximidades e diferenciaes encontradas, em suas falas, no que diz
respeito ao nosso objeto de estudo. O roteiro destas entrevistas
contou tanto com questes mais gerais sobre a relao dos
entrevistados com o local como tempo de moradia/trabalho na regio,
o que achavam de viver/trabalhar ali, se existiam laos de
sociabilidade criados no local - quanto sobre seu
7 Rua dos Caets entre Avenida Amazonas/Rua da Bahia e Avenida
Afonso Pena.
8 A contextualizao temporal relativa ao Centro de Belo Horizonte
foco do Captulo 1 foi realizada com
base em pesquisa bibliogrfica, valendo ressaltar a existncia de
poucos estudos de carter scio-histrico sobre essa rea da cidade,
dentre os quais destacamos as pesquisas de Celina Borges Lemos
(1988, 1994, 2003), alm de poucos outros citados na Bibliografia
(ARROYO, 2004; CHACHAM, 1996; SILVEIRA, 1995; SOUZA e CARNEIRO,
2004).
-
16
conhecimento/sentimento sobre a patrimonializao e revitalizao da
Rua dos Caets - se conheciam e o que achavam da Rua dos Caets ser
considerada patrimnio cultural da cidade e o que pensavam da sua
revitalizao.
Vale ressaltar que estamos aqui chamando de trabalhadores das
lojas quelas pessoas que trabalham no s nos estabelecimentos
comerciais propriamente ditos, mas tambm nos diversos escritrios,
firmas, associaes, escolas que compem esse espao, dos quais
diferenciamos os trabalhadores da rua e dos shopping populares. No
consideramos conveniente lanar mo, no entanto, de uma diferenciao
entre trabalhadores formais e informais tendo em vista no podermos
afirmar que aqueles que trabalham nas lojas so ou no, efetivamente,
trabalhadores formais, bem como no podemos dizer que os
trabalhadores dos shopping populares so informais, no atual
contexto de formalizao do seu trabalho, conforme apontado nos
documentos consultados (Anexo 1) e por Zambelli (2006). Por outro
lado, consideramos importante essa diferenciao, pois que
consideramos que trabalhadores das lojas e trabalhadores da rua e
dos shopping populares estabelecem relaes diferenciadas com esse
espao de vivncia cotidiana, conforme veremos no Captulo 4 - Um
lugar, muitos lugares: apropriaes e representaes da populao sobre
um espao de vivncia cotidiana.
Por seu turno, a pesquisa documental tambm trilhou caminhos
diversos. Alm de documentos oficiais, foram consultados tambm a
lista telefnica, a legislao municipal pertinente s temticas
investigadas e reportagens e notcias sobre a revitalizao do Centro
de Belo Horizonte e da Rua dos Caets publicadas em alguns peridicos
dirios da imprensa escrita da capital9. Os documentos oficiais
analisados foram produzidos em vrias instncias, formatos e para
atender objetivos diversos, destacando-se os relatrios, slides,
projetos, pareceres, processos de tombamento, formulrios,
informativos do portal da Prefeitura e peas publicitrias produzidas
pelo poder pblico municipal, material significativo para a
compreenso da formulao e da gesto das polticas de patrimnio e de
revitalizao urbana em curso na cidade (ANEXO A).
No que diz respeito lista telefnica, considerada como
representativa do maior e mais singular fato relativo s cidades: a
grande quantidade de pores que as compem e a imensa diversidade que
caracteriza o interior destas pores (JACOBS apud LEMOS, 1988, p.31)
vale destacar que pesquisamos a verso eletrnica da lista comercial
- tendo em vista
9 Dentre os quais foi privilegiado o Jornal Estado de Minas,
tradicional veculo da mdia mineira, em razo do
acesso facilitado aos seus arquivos em verso eletrnica (a partir
de 1999) e tambm por ser o jornal de maior circulao na cidade e no
Estado ainda que no tenha sido o nico consultado, conforme
Bibliografia.
-
17
que a lista residencial no mais disponibilizada ao pblico, nem
mesmo em suporte fsico. Esta pesquisa nos possibilitou a
identificao geral dos usos dos pavimentos superiores das edificaes
da Rua dos Caets, sendo fonte importante para a produo do
quadro-sntese elaborado como referncia para a composio do nosso
cenrio urbano, ainda que suas informao precisem ser relativizadas,
conforme nos indica Lemos (1988).
Essa diversidade de fontes documentais consultadas nos auxiliou,
sobretudo, na construo de um olhar ampliado tanto a respeito dos
processos de interveno urbana que marcaram o espao investigado
quanto das representaes que so elaboradas a seu respeito pelos
diversos atores sociais envolvidos, direta ou indiretamente, com
estas aes, contribuindo para o aprofundamento da percepo das tenses
e arranjos sociais e polticos que conformam as relaes estabelecidas
no decorrer desse processo. No entanto, tendo em vista os objetivos
da investigao proposta e a variedade de possibilidades de reflexo
postas pelos documentos consultados no que diz respeito
especificamente ao campo de nosso objeto de pesquisa, colocou-se a
necessidade de seleo de algumas dessas fontes documentais como
referncia para uma anlise mais minuciosa e atenta do nosso objeto
de investigao.
Detivemo-nos, assim, sobre os documentos oficiais consultados,
tendo em vista no s a riqueza das informaes que apresentavam e as
possibilidades analticas que nos faziam vislumbrar, mas sobretudo
em razo de que se colocavam como a fala por vezes contraditria,
dissonante, mas bastante esclarecedora - do poder pblico municipal,
principal agente mobilizador das intervenes realizadas. Ao lado
dessa fala apreendida nos documentos oficiais, recorremos ainda a
uma entrevista com a coordenadora do Programa Centro Vivo, Maria
Caldas, no sentido de esclarecer algumas questes no abordadas ou
explicitadas nos documentos e perceber nuances que nem sempre podem
ser esclarecidas atravs da anlise dos mesmos, fundamentais para que
amplissemos nossa compreenso sobre o referido Programa, conforme
apresentaremos no Captulo 3.
Permeando todo o processo de investigao, as pesquisas
bibliogrficas foram fundamentais sistematizao das indagaes e das
observaes realizadas, fornecendo no s os subsdios tericos e
metodolgicos necessrios s reflexes propostas como tambm referncias
empricas que possibilitaram a construo de um olhar mais abrangente
sobre nosso objeto de pesquisa. Nesse sentido, ao lado de uma srie
de estudos que abordam a conformao histrico-social das
centralidades urbanas e, mais especificamente, do Centro
-
18
de Belo Horizonte10 - foram analisadas produes relativas aos
processos de revitalizao urbana contemporneos, bem como trabalhos
que se dedicam reflexo sobre questes atinentes s temticas do
patrimnio cultural, destacando-se que, com honrosas excees, poucas
so as pesquisas que abordam essas questes para o caso especfico de
Belo Horizonte11. A investigao terica acerca desses temas nos
possibilitou no s o estabelecimento das relaes entre
patrimonializao e revitalizao propostas neste trabalho como tambm a
compreenso de como essas intervenes agem sobre o real ao agir sobre
a representao do real (BOURDIEU, 1996) e de como as representaes
elaboradas a respeito desse processo pelos diversos agentes nele
envolvidos estruturam sua percepo a respeito do mundo social.
Tomando por referncia, portanto, a idia de que a dimenso do
simblico marca significativamente as relaes que se estabelecem no
mundo social, contribuindo sobremaneira para a reproduo das
estruturas de poder que o sustentam (BOURDIEU, 1974, 1996a, 1998),
analisamos as interfaces existentes entre a pretenso de produo de
uma histria para a cidade constante das polticas de patrimonializao
e a perspectiva de estetizao da paisagem urbana (LEITE, 2001, 2002,
2004; JEUDY, 2005) prevista no programa de revitalizao do Centro de
Belo Horizonte. Intentamos, com isto, realizar a necessria tarefa
de desnaturalizao das intervenes que vm sendo efetivadas na urbe
nas duas ltimas dcadas, desvelando em que medida as representaes de
cidade, de patrimnio e de memria elaboradas nesse processo dialogam
entre si e expressam acordos, conflitos, recusas e aceitaes em
torno da legitimao de um determinado sentido de mundo e de uma
determinada memria da cidade que informa no unicamente sobre seu
passado mas, sobretudo, sobre o campo de disputas que se estabelece
na constituio do prprio presente.
Consideramos, assim, que este poder de dar sentido ao mundo,
legitimando aquilo que arbitrrio e naturalizando o carter
assimtrico das relaes de fora que se estabelecem no mundo social,
indica o carter poltico que marca a percepo e a produo da
realidade, tendo em vista que as relaes de sentido so uma
modalidade com que as relaes de fora se manifestam (MICELI, 1974,
p. XIII). Pensamos, portanto, que a aparncia de unanimidade que
ronda essas intervenes urbanas constitui-se como um dos elementos
da
10 Como afirmamos anteriormente, poucos so os estudos que tomam
por objeto o Centro de Belo Horizonte, e
menos ainda aqueles que dizem respeito regio que aqui estamos
chamando de baixo centro, caracterizada neste trabalho a partir das
referncias fragmentrias que so feitas rea nos estudos consultados.
11
Dentre elas destacamos Andrade e Esteves (2002); Botelho e
Andrade (2005); Azevedo e Botelho (2005); Vilela (2006); Cunha
(1997).
-
19
fora simblica dominante, que justifica a sociedade tal como ela
(BOURDIEU, 2002) e constri narrativas que legitimam uma determinada
figurao social (ELIAS, 2001).
Para abordar as questes aqui indicadas, estruturamos este
trabalho em quatro captulos: o primeiro e o segundo captulos
guardam uma profunda relao entre si, dizendo respeito ao que
estamos chamando de composio de um cenrio urbano capaz de
concretizar as anlises e reflexes tanto sobre as intervenes
realizadas no espao em questo o Centro de Belo Horizonte e, mais
especificamente, a Rua dos Caets quanto sobre as apropriaes e
representaes elaboradas por aqueles que ali convivem
cotidianamente. Assim, no Captulo 1 Cenrio urbano (I): Centro, Belo
Horizonte, abordamos a conformao desta centralidade no contexto
espao-temporal da formao histrica da cidade e, no Captulo 2 Cenrio
urbano (II): Rua dos Caets, centro, baixo centro, apresentamos uma
caracterizao da Rua dos Caets a partir da identificao de seus usos
e apropriaes cotidianas, inserindo-a no contexto da conformao da
centralidade urbana na qual se encontra e das transformaes a
ocorridas nas ltimas dcadas. J o Captulo 3 Patrimnio cultural e
revitalizao urbana: interfaces do Programa Centro Vivo, Belo
Horizonte, trata da patrimonializao e do processo de revitalizao da
Rua dos Caets no contexto das polticas de preservao do patrimnio e
do Programa Centro Vivo (programa de reabilitao urbana do poder
pblico municipal voltado para a valorizao do Centro de Belo
Horizonte), problematizando as relaes entre essas polticas urbanas
e seu papel na construo de narrativas legitimadoras de uma dada
ordem social. No Captulo 4 - Um lugar, muitos lugares: apropriaes e
representaes da populao sobre um espao de vivncia cotidiana,
analisamos como os trabalhadores, comerciantes e profissionais
liberais da Rua dos Caets se relacionam com esse espao de vivncia
cotidiana e com as intervenes nele realizadas, e em que medida
estabelecem novas formas de apropriao deste local a partir das
polticas de patrimnio e revitalizao a executadas e como essa
apropriao dialoga com as representaes de cidade, patrimnio e memria
elaboradas pelos agentes envolvidos neste processo de interveno
urbana.
-
20
CAPTULO 1 - CENRIO URBANO (I): CENTRO, BELO HORIZONTE
O centro de uma cidade pode ser considerado, historicamente, um
espao sobre o qual se concentra uma forte carga valorativa - tanto
em termos materiais quanto simblicos. Ainda que possamos
identificar, nas ltimas dcadas, uma tendncia ao chamado
policentrismo (LEFEBVRE, 2004; CASTELLS, 1983), o lugar de uma
grande cidade identificado como seu centro continua exercendo forte
atrao no contexto de metropolizao que caracteriza a urbe
contempornea em grande quantidade de pases, inclusive no
Brasil.
Espao de ligao entre as diversas centralidades que compem a
polis, favorvel ao encontro e sociabilidade, lugar de trnsito
intenso, de trabalho e de sobrevivncia, de trocas, de lazer, de
moradia... enfim, espao de referncia para grandes setores da
populao que vivenciam cotidianamente a metrpole contempornea, o
centro muitas vezes identificado com a prpria cidade, no sendo raro
as pessoas dizerem vou cidade para referir-se a uma ida quele que
considerado seu centro. Como nos afirma Celina Lemos:
(...) um centro vem a ser o lugar do simblico, sendo este o
elemento que d sentido sociabilidade expressa no cotidiano. (...)
Compem esse campo as representaes no espao, atravs do seu espao
construdo e concebido pelos planejadores, e os espaos de
representao, que proporcionam o vivido e o vivenciado referentes
imagem e aos smbolos que os criam dia-a-dia. Assim, concentra-se
num centro, representado pelos seus edifcios, monumentos e
passagens, uma intensa carga valorativa, em funo da qual se
organiza, de maneira significativa, o seu espao. (LEMOS, 1988, p.
17-18)
Belo Horizonte tem hoje legalmente definida como sua rea central
o espao originalmente delimitado como a rea urbana de uma cidade
planejada e hierarquicamente dividida em zonas12. nica regio da
cidade que foi efetivamente planejada, sua zona urbana - uma urbe
moderna por definio e concepo era constituda, segundo Lemos (1988,
2003), por trs centralidades: a comercial (entorno da Praa da
Estao, parte da Av. Afonso Pena, a Rua dos Caets, a Avenida do
Comrcio, Rua Guarani, Avenida Paran e Rua Curitiba), a residencial
(o atual bairro Funcionrios) e a poltico-administrativa (Praa da
Liberdade).
12 Primeira cidade moderna planejada do pas, Belo Horizonte foi
construda no final do sculo XIX para abrigar
a capital de Minas Gerais, at ento localizada em Ouro Preto. Seu
projeto, elaborado no contexto do urbanismo moderno, previa a
existncia de trs zonas: a urbana, a suburbana e a rural, a serem
ocupadas por grupos sociais distintos. Trazendo marcada em seu
traado a perspectiva da ordem e da harmonia, a rea urbana era
caracterizada pela monumentalidade e pela abundncia de parques e
praas, com uma malha perpendicular de ruas, cortadas por avenidas
em diagonal e quarteires de dimenses regulares, alm de uma avenida
que a circundava (Av. do Contorno), delimitando-a frente rea
suburbana.
-
21
Plos aglutinadores que atraram atividades, construes e
investimentos pblicos tanto nos anos da construo da capital quanto
em suas primeiras dcadas de existncia, articulados na e
articuladores da conformao da centralidade da regio, estes espaos
acabaram por confluir como ponto de convergncia simblico e espacial
- de uma cidade que, apesar de ter-se constitudo desde sua fundao
para alm de sua zona urbana e planejada, transformou-se num lugar
de referncia e de identificao do que Belo Horizonte. Constituda
atualmente por vrios bairros13, esta rea central pode ser
caracterizada, portanto, pela diversidade: de usos, de relaes, de
ocupaes, de apropriaes, de pessoas, de representaes - como a grande
parte das reas centrais das metrpoles contemporneas.
Na rea central de Belo Horizonte, no entanto, um espao especfico
nos chama a ateno: delimitado e legalmente nomeado como Hipercentro
pelo Plano Diretor do Municpio em 1996 (FIG.1), abarca grande parte
da rea que se constituiu como bairro comercial14 desde as primeiras
dcadas da vida da urbe. Tendo includas em seu interior importantes
referncias para muitos dos moradores da cidade e de sua regio
metropolitana como o Parque Municipal, a Praa Sete, a Avenida
Afonso Pena, o Mercado Central, a Rodoviria, a Estao Ferroviria, os
viadutos de Santa Tereza e da Floresta, a Rua da Bahia -
identificado por boa parte da populao como Centro de Belo
Horizonte, identificao esta que inclusive vem sendo reforada, na
ltima dcada, por vrias aes do poder pblico municipal15.
13 Funcionrios, Barro Preto, Santo Agostinho, Lourdes, parte do
Santa Efignia e o prprio Centro.
14 Segundo Ablio Barreto (1995), desde os primeiros anos de
existncia da cidade o territrio que estamos
tomando como objeto nesta investigao identificado por seu carter
comercial, o que a nosso ver indica a pertinncia de sua nominao
como bairro comercial que lhe dada por este autor. 15
Congregadas em um programa de revitalizao urbana ao qual nos
referiremos ao longo deste captulo e que ser analisado em maior
profundidade no Captulo 3.
-
22
FIGURA 1- Hipercentro de Belo Horizonte, demarcado pela linha
pontilhada, em vermelho. Fonte: PRAXIS, 2007
No interior deste Centro que chamaremos de Hipercentro sempre
que nos referirmos sua configurao contempornea16 - podemos
distinguir duas regies que, apesar de no estarem legal ou
formalmente delimitadas, agregam usos, apropriaes e valoraes
diversas, sendo histrica e cotidianamente reconhecidas como
distintas. Estas duas regies so muitas vezes chamadas de alto e
baixo centro, tanto em razo do espao fsico que ocupam na cidade o
baixo centro identificando a regio do hipercentro lindeira ao
ribeiro Arrudas e o alto rumando na direo da Serra do Curral quanto
pela distino dos valores que lhes so atribudos, de seus usos e
apropriaes no caso do baixo centro, geralmente identificado como e
com o popular.
Circunscrito pelas praas da Estao, da Rodoviria, Sete de
Setembro e Raul Soares; pelas ruas Guarani, Guaicurus, Caets; pelo
Viaduto da Floresta, pelo Ribeiro Arrudas, pela ferrovia; e pelas
avenidas Santos Dumont, Paran, Olegrio Maciel, Amazonas e Afonso
Pena, o baixo centro marcado pela concentrao de um grande nmero de
estabelecimentos comerciais e pela oferta de ampla variedade de
servios, por abrigar um significativo nmero de pontos de transporte
coletivo, por possuir pouco nmero de residncias, pela grande
quantidade de hotis, penses, motis que a pode ser encontrada, pela
presena de histrica zona de prostituio e boemia... enfim, espao de
passagem por excelncia, referncia para
16 Inclusive porque esta a denominao legal que identifica a
regio na ltima dcada, largamente utilizada no
s pelos documentos oficiais relativos ao programa de revitalizao
urbana anteriormente referido como tambm pela mdia impressa da
capital.
-
23
amplos setores da populao da cidade e da regio metropolitana,
mas que se configura, tambm, como espao de permanncia e
continuidade tanto para aqueles que por ali passam cotidianamente
em busca dos servios e mercadorias oferecidos ou para uso do
transporte coletivo quanto para os que ali trabalham, moram, se
divertem.
neste contexto espacial e simblico mais imediato que se insere a
Rua dos Caets, lugar eleito para a realizao das investigaes
empricas que fundamentam as reflexes propostas. Este lugar ser
abordado, aqui, como um cenrio urbano composto em suas dimenses
espao-temporais, sociais e simblicas e a partir das relaes que
estabelece com o centro e o hipercentro da cidade - que nos
possibilite perceber os usos, apropriaes e representaes que o
caracterizam e o constituem tanto como espao de vivncia cotidiana
quanto como um dos focos dos investimentos que vm sendo realizados
pelo poder pblico e por setores da iniciativa privada no
Hipercentro de Belo Horizonte na ltima dcada.
A idia de composio de paisagens, retratos - cenrios urbanos -
que possibilitem a produo de imagens da metrpole, imagens por sua
vez geradoras de um conhecimento que hoje chamaramos de perto e de
dentro lanando mo da feliz expresso cunhada por Magnani (2002) -
perpassa uma longa tradio de reflexes, pesquisas empricas e produes
tericas realizadas desde pelo menos meados do sculo XIX em diversos
campos de conhecimento como o literrio, o sociolgico, o histrico,
somente para citar alguns
exemplos (BOLLE, 2000). Desde Simmel e Benjamin para lembrar
dois autores referenciais - a preocupao com certo tipo de apreenso
da cidade moderna, que dimensione especialmente sua multiplicidade
e dinamicidade, tem estado presente em uma srie de olhares
produzidos sobre a metrpole, tendo sido apropriada pela
Antropologia Urbana campo no interior do qual se insere esta
investigao como questo de grande peso em sua constituio como campo
especfico de saber (DURHAN, 1986; BAPTISTA, 2003; CORDEIRO, 2003;
FRUGOLI JNIOR., 2005; MAGNANI, 2002, 2003; ARANTES NETO, 2000).
Por outro lado h que se levar em considerao, tambm, uma definio
advinda do campo mais geral da Antropologia, elaborada por Geertz
(1989) para indicar a finalidade precpua da produo do conhecimento
antropolgico a elaborao de descries densas e que, agregada idia de
composio de cenrios, fisionomias, cartografias de um determinado
espao nos indica alguns dos parmetros mais gerais que possibilitam
investigar esses lugares sob a perspectiva de seus usos e das
representaes que sobre eles so elaboradas. Perceber, portanto,
quais so esses usos, como este espao est fisicamente, visualmente
organizado - seus traados, suas imagens, que se multiplicam como
quadros sobrepostos que aos poucos se
-
24
vo agregando uns aos outros medida que dele nos aproximamos17 -,
os movimentos que nele se desenrolam cotidianamente, configurou-se
como o caminho metodolgico escolhido para a elaborao de uma
caracterizao da Rua dos Caets18 que possibilitasse perceber este
como um espao no qual acontecem e se expressam a carne e o sangue
da vida na cidade19 - lugar e momento em que se manifestam as
apropriaes e representaes que as pessoas
elaboram sobre esse lugar de convivncia cotidiana. H que se
destacar que para que esse cenrio ganhe em densidade no h como
deixar
de lado a dimenso de temporalidade que o constitui e a percepo
do lugar que ocupa no processo de conformao de uma determinada
centralidade no contexto urbano a do Hipercentro da cidade, cenrio
urbano mais amplo no qual se insere a Rua dos Caets - no sentido de
compreender as transformaes e permanncias pelas quais tem passado e
que marcam sua configurao atual.
O territrio hoje identificado como centro de Belo Horizonte como
todos os centros urbanos - um espao social e historicamente
constitudo, em um processo de contnua produo de seu sentido de
centralidade. Desempenhando um papel estruturador de integrao fsica
e ao mesmo tempo simblica no contexto urbano e metropolitano o que
segundo Castells (1983) um dos aspectos que identifica um
determinado espao como centro de uma cidade a ele foi conferido um
carter polarizador desde a ocupao da cidade, em finais do sculo XIX
e primeiras dcadas do XX. Caracterizado como lugar de grande
diversidade de usos, valores e significaes, elaboradas em um
processo contnuo de acordos, disputas e apropriaes que
materializaram, nesse espao produzido, as relaes sociais que
conformaram e ainda conformam a cidade, o centro de Belo Horizonte
afirmou-se portanto como centralidade em um dilogo constante entre
o planejado e o vivido, o proposto e o apropriado, o concebido e o
realizado.
Considerada a porta de entrada da capital nascente uma vez que
abrigava o principal espao de chegada e sada de Belo Horizonte, a
estao ferroviria - com grande nmero de hotis e penses para
hospedagem das pessoas que chegavam cidade, altas taxas
17 Para a composio dessa dimenso imagtica do cenrio urbano em
questo consideramos significativo o
registro visual do mesmo, realizado principalmente atravs de
fotografias feitas no decorrer das observaes, e tambm pesquisadas
em alguns arquivos da cidade e na internet, algumas delas includas
ao longo do texto. Gostaramos de destacar, no entanto, que estas
fotos no sero abordadas, aqui, como fonte de investigao, ou seja,
no analisaremos o contexto e motivaes de sua produo, o lugar social
do seu produtor - enfim, as diversas dimenses que definem seu
carter social e histrico lanando mo delas unicamente com o objetivo
de propiciar uma visualidade que contribua para a composio deste
que estamos aqui chamando de um cenrio urbano. 18
Desenvolvida no Captulo 2. 19
Apropriando-nos, aqui, de expresso utilizada por Malinowski
(1984, p. 29) manifestando sua postura frente ao conhecimento
antropolgico, ainda que referente vida na aldeia.
-
25
de ocupao do solo no contexto urbano e concentrao de atividades
de comrcio e servios, a regio inicialmente chamada de bairro
comercial da cidade passou a ser identificada como centro comercial
logo nos seus primeiros anos (LEMOS, 1988, 2003), constituindo-se
como espao de grande circulao tanto de pessoas e mercadorias quanto
de idias. Locus significativo da sociabilidade urbana a partir da
reunio dos diversos significados da vida na urbe - de comrcio, de
lazer, de negcios, de reunio, de manifestao pblica, de boemia, de
moradia... a regio constituiu-se, assim, como lugar de grande carga
valorativa, fixando-se na representao dos habitantes como centro da
cidade e de todos (SILVA, 2006, p.13).
1.1 Diversidade, passagem e permanncia
Com ocupao acelerada e diversificada desde antes da inaugurao da
cidade especialmente em razo da presena da estao ferroviria - espao
por onde entravam as pessoas, materiais e produtos necessrios
construo da nova capital o centro comercial em formao abrigava no s
edificaes para armazenamento desses produtos, mas tambm oficinas,
estabelecimentos comerciais diversos, hospedarias e residncias,
comeando a exercer papel de centro urbano j nos primeiros anos da
nova capital (FIG. 2, 3, 4, 5). Essa ocupao, ligada aos usos
atrados para a regio em razo da presena da Estao e das necessidades
advindas da construo da cidade, foi incentivada tambm pelo poder
pblico, que em 1895 abriu a primeira concorrncia para venda de
lotes na rea com vistas construo de estabelecimentos comerciais -
com a exigncia de que os mesmos deveriam estar em funcionamento em
um prazo mximo de um ano e transformou este em um dos lugares de
maior investimento de recursos pblicos nos primeiros anos da
capital.
-
26
FIGURA 2 Galpes do Grande Emprio Central, do Conde de Santa
Marinha, um dos grandes empreiteiros da construo de Belo Horizonte.
Regio da Praa da Estao. Final do sculo XIX. Fonte:
http://belo-horizonte.fotoblog.uol.com.br/photo20040630150753.html.
Acesso
em 05 ago.2006.
FIGURA 3 - Recepo do presidente Silviano Brando na Praa Rui
Barbosa. 1898. Fonte: MHAB. Coleo Belo Horizonte
-
27
FIGURA 4 - Vista da regio da Estao a partir do bairro Floresta.
1900. Fonte: APCBH. Coleo Jos Ges.
FIGURA 5 - Vista da regio da Estao a partir do bairro Floresta.
1910. Fonte: APCBH. Coleo Jos Ges.
Configurando-se como lugar sntese da experincia citadina,
vocacionado a receber os diferenciados grupos, valores e estilos de
vida (LEMOS, 2003, p. 67), o centro comercial caracterizou-se
portanto, desde as primeiras dcadas da cidade, por uma diversidade
social pouco vista em outros espaos da rea urbana, marcada pela
segregao e hierarquizao presentes no projeto original de Belo
Horizonte. Assim, a presena de trabalhadores das lojas e das
construes, proprietrios dos estabelecimentos comerciais20,
vendedores ambulantes, moradores, profissionais liberais fazia
desse um lugar de confluncia de usos, apropriaes e representaes
diversas, acentuada pelo fato de sua existncia como espao de
trnsito, no s
20 Que muitas vezes residiam nos fundos de suas lojas e,
posteriormente especialmente a partir de finais dos
anos 1920 - no segundo pavimento das edificaes.
-
28
em razo da presena da estao ferroviria (FIG. 6, 7, 8) como tambm
por ser o corredor entre esta e o lugar destinado ao abastecimento
da cidade: o Mercado Municipal (FIG. 9)21. Conforme nos diz
Lemos:
(...) A regio localizada entre a Praa da Estao e o Mercado
Municipal destacava-se pela heterogeneidade de uso. O trem, como
nico meio de transporte e ligao com outras cidades e Estados,
propiciava uma socializao no seu uso. Todos andavam de trem, desde
o Presidente da Repblica at um simples operrio que chegava em busca
de trabalho. Assim, a Estao era a nica para todas as chegadas,
mesmo que estas acontecessem em comboios menos luxuosos. Essa
socializao acabou repercutindo nos arredores da Estao, que, na nova
capital, fazia tambm o papel de porto. Surgiu nas suas imediaes um
grande nmero de hotis e penses, caracterizados pela ausncia de
estrelas, por poucas estrelas ou por todas do cu. (...) (LEMOS,
1988, p. 99-100)
FIGURA 6 - Antigo prdio da estao ferroviria. Entre 1902 e 1920.
Fonte: MHAB. Coleo Belo Horizonte.
21 Inaugurado em 1900, o Mercado Municipal funcionou no local at
1934, quando a foi construda a Feira
Permanente de Amostras, demolida em 1965 para a expanso do
terminal rodovirio da cidade, que ocupa o local desde 1971.
-
29
FIGURA 7 Estao Ferroviria, entre 1916 e 1920. Fonte: MHAB. Coleo
Belo Horizonte.
FIGURA 8 Pessoas esperando o trem na estao. Entre 1920 e 1930.
Fonte: MHAB. Coleo Belo Horizonte.
FIGURA 9 Antigo mercado municipal. Sem data. Fonte: BH VERSO E
REVERSO, p.89.
-
30
Apropriado tambm como espao de manifestao poltica (FIG.10), o
centro comercial de Belo Horizonte configura-se assim, desde suas
primeiras dcadas, como espao de transitoriedade, indicando uma
rotatividade que, acentuada pela existncia de grande nmero de
estabelecimentos para hospedagem das pessoas que vinham cidade,
propiciou que ali se constitusse uma forte zona bomia e de
prostituio, freqentada pelos mais diversos grupos sociais que
conformavam a cidade nascente, e fortemente enraizada no imaginrio
belo-horizontino ainda hoje.
FIGURA 10 - Comcio da Aliana Liberal na Praa da Estao. 1930.
Fonte: MHAB. Coleo Belo Horizonte
A concentrao de pessoas, atividades e relaes que ali se
estabeleciam transformou o centro comercial em plo de atrao para um
nmero cada vez maior de pessoas, que para l se dirigiam em busca
tanto das melhores condies urbanas ali existentes (FIG. 11, 12, 13)
quanto de consumo, trabalho e mesmo moradia, o que caracteriza a
regio tambm como espao de permanncia. Marcado por usos, ocupaes e
apropriaes diversas, onde tanto relaes efmeras quanto aquelas mais
duradouras se estabelecem e onde a dinmica entre a cidade que se
quis - ordenadamente planejada para ser ocupada pelas camadas
superiores da sociedade e a cidade real se confronta de forma mais
visvel, o centro comercial materializa, assim, as contradies, os
conflitos e as acomodaes que sustentam a urbe em formao.
-
31
FIGURA 11 - Rua dos Caets esquina com Rua Esprito Santo, entre
1902 e 1910. Fonte: MHAB. Coleo Belo Horizonte
FIGURA 12 Avenida do Commercio, 1911. Fonte: MHAB. Coleo Belo
Horizonte.
FIGURA 13 Panorama da Avenida dos Andradas, nas proximidades da
Praa da Estao, entre 1922 e 1930.
Fonte: MHAB. Coleo Belo Horizonte.
-
32
1.2 Diferenciaes scio-espaciais
A heterogeneidade social, dos usos e das apropriaes do centro
comercial estabelecido sobretudo na regio conformada pela estao
ferroviria, pelo mercado municipal, pela Avenida do Comrcio22, pelo
ribeiro Arrudas e pelas ruas dos Caets e Guaicurus, acabou por
proporcionar a migrao do comrcio dito nobre e das moradias para a
regio mais alta do centro, na Avenida Afonso Pena, nas proximidades
das ruas Esprito Santo, Tupis e Bahia - regio sul da cidade
destinada, j em seu projeto original, ocupao pelas classes sociais
abastadas. Ficou reservado assim, a esse baixo centro, um comrcio
considerado de carter popular, bem como a afirmao da zona bomia da
cidade, com seus hotis para encontros, prostbulos, cabars, clubes e
bares, sendo possvel identificar a produo de uma hierarquia social
no interior do prprio centro comercial marcada pela distino entre
alto e baixo centro - desde pelo menos meados dos anos 1920,
considerando as lembranas de Pedro Nava sobre o local nesta
poca:
Formavam-se grupos e todos tomavam a mesma direo, em Afonso
Pena, sob os fcus, at virarem em Esprito Santo, Rio de Janeiro ou
So Paulo, que eram os caudais que desguam no quadriltero da zona.
Essa compreendia tudo que ficava entre Bahia, Caets, Curitiba e
Oiapoque, vasta rea de doze quarteires de casas. A partir da crista
da Caets, as ruas ladeiravam at despencarem no Arrudas. Assim, esse
trecho da cidade ficava numa depresso (...). Seguimos lentamente a
avenida sob a sombra espessa e cariciosa dos fcus (...). Fomos at a
So Paulo, atravessamos a avenida do Comrcio iluminada como La
Ramble, La Gran Via - , a rua Guaicurus, que era um pedao de
Marselha jogado no serto (...); olhamos as portas abertas da
Petronilha, da Leondia e, mais abaixo, em Oiapoque, a fachada
misteriosa da Ela Brunatti (...). Dobramos direita contornando o
Palcio das guias e diminumos o passo diante do porto tambm
inacessvel da Olmpia e da fachada acachapada do Curral das Vacas
(...) (NAVA apud LEMOS, 1988, p. 156).
A constituio desta regio como quadriltero da zona no ocorreu, no
entanto, sem conflitos, e em finais dos anos 1930 e no decorrer da
dcada de 1940 os proprietrios de imveis na rea se mobilizaram com o
intuito de acabar com as casas de prostituio ali localizadas. Essa
espacializao do centro em funo dos momentos da vida noturna (LEMOS,
1988, p. 112), portanto, associada ao fato desta ser uma regio
marcada pelo carter
22 Que em 1903 passou a se chamar Avenida Santos Dumont, em
homenagem ao ilustre personagem em visita
capital mineira. Nomes de cafetinas ou cabars da Belo Horizonte
dos anos 1920.
-
33
de passagem e de trnsito, acaba por identificar esse baixo
centro ao popular23 desde as primeiras dcadas de existncia da
capital mineira, estabelecendo-se uma oposio e hierarquizao que
delimita os espaos no interior do prprio centro. Assim podemos
pensar, como nos afirmam Souza e Carneiro, que
O simblico do alto e do baixo predomina na forma espacial do
Hipercentro. Desse modo, as reas de beira-rio foram deixadas para
grandes estabelecimentos que normalmente deveriam ser localizados
em zonas mais afastadas da cidade: estaes ferrovirias e rodovirias,
grandes estabelecimentos como galpes, depsitos de combustvel,
fbricas, garagens, oficinas e linhas frreas, to caractersticas do
Ribeiro Arrudas dentro da zona urbanizada (SOUZA e CARNEIRO, 2004,
p.19-20)
Por outro lado assiste-se, no decorrer dos anos 1930, ao incio
do processo de verticalizao das edificaes do centro da cidade, e a
concentrao desse processo no entorno da Praa Sete - Avenida Afonso
Pena e ruas da Bahia, Esprito Santo, Tupis, So Paulo e Rio de
Janeiro a partir dos anos 1940 e 1950 pode ser considerada um sinal
desta delimitao e hierarquizao dos espaos no interior da rea
central24. Isto porque a verticalizao pode ser vista como
indicativa no s da valorizao fundiria da regio do alto centro, como
tambm de sua valorizao simblica, transformando a regio no emblema
da modernizao da cidade e acentuando-se a distino em relao ao baixo
centro que, com algumas excees, mantm um padro de edificaes com
nmero menor de pavimentos (FIG. 14). Estabelece-se, assim, certo
paradoxo no centro da Belo Horizonte dos anos 1950, visto que a
regio rene, ao mesmo tempo, ecumenismo social e segregao
espacial
(LEMOS, 2003, p.186), numa configurao que passa a marcar cada
vez mais esta regio, dando visibilidade s contradies que conformam
a cidade.
23 O qualificativo popular configura-se como termo polissmico e
de difcil definio, muitas vezes sendo
utilizado de maneira naturalizada e no problematizada, como se
sua compreenso e significao fosse unvoca ou at mesmo consensual.
Utilizado como sinnimo de tradio por aqueles que se dedicam ao
estudo das chamadas culturas populares, o termo tambm bastante
comum entre profissionais da indstria cultural, que o identificam
idia de popularidade, e entre polticos, que o associam idia tambm
nada consensual de povo (ORTIZ, 1994), muitas vezes servindo,
tambm, para identificar espaos marcados pelo convvio de vrias
classes sociais. No entanto, uma dimenso presente em grande parte
das abordagens que lanam mo do termo popular como explicao para
alguma realidade ou fenmeno sua relao com os segmentos de baixa
renda da populao, sentido fortemente presente tanto nos documentos
oficiais quanto nos veculos da mdia impressa por ns pesquisados, e
para o qual chamamos a ateno como significao que deve ser sempre
lembrada quando nos referirmos ao termo no decorrer deste trabalho.
24
Como nos indica Arroyo: Apesar dos incentivos do poder pblico
para a construo de edificaes mais altas, os primeiros quarteires da
Rua dos Caets e Avenida Santos Dumont iro manter uma volumetria de
dois a quatro pavimentos. Ser mantido tambm o uso tradicional e
predominantemente comercial. (ARROYO, 2004, p. 101)
-
34
FIGURA 14 - Vista area do centro de Belo Horizonte, 1954.
esquerda, margeia a foto a Rua da Bahia, a partir da Rua dos Caets,
at o bairro Santo Antnio.
Fonte: APCBH. Coleo Jos Ges.
Ao lado desse processo de valorizao material e simblica do alto
centro assiste-se, a partir de meados dos anos 1950, diminuio da
importncia da ferrovia como principal meio de transporte no pas,
configurando-se um enfraquecimento da centralidade da regio Praa da
Estao no contexto urbano. No entanto, apesar da cristalizao da
estrutura urbana do centro e de sua confirmao como principal plo
articulador de atividades, em nvel poltico, social e econmico, nem
mesmo o alto centro mantm seus patamares de valorizao a partir dos
anos 1960 e 1970, uma vez que neste perodo a cidade vivencia um
processo de metropolizao e de complexificao da questo da
centralidade urbana, que passa a ser referenciada pelo surgimento
de novos centros e pela expanso e fragmentao dos espaos (FRUGOLI
JUNIOR, 2000; LEMOS, 1988, 2003; LEFEBVRE, 2004). O Hipercentro de
Belo Horizonte, como um todo, abandonado pelas elites tanto quanto
local de moradia quanto de consumo e lazer, sofrendo um processo de
desvalorizao. Transforma-se, cada vez mais, em local de trnsito
intenso, de veculos e de pedestres, inclusive em razo do carter
radial do sistema virio da cidade, que faz com que se torne lugar
de passagem obrigatrio tanto para o transporte coletivo quanto
particular o que passa a orientar, inclusive, grande parte das
polticas pblicas voltadas para a regio, regidas, neste perodo, pela
lgica da circulao e pela preocupao com a fluidez dos transportes
(ARROYO, 2004).
A transformao do Hipercentro em plo aglutinador do transporte
coletivo da cidade propiciou, tambm, a concentrao do comrcio
informal nas suas vias. Apesar de se constituir como preocupao do
poder pblico desde as primeiras dcadas da histria da
-
35
capital25, o controle do comrcio de rua passa a fazer parte
constante, principalmente a partir dos anos 1980, dos discursos
sobre o centro da cidade, tanto por parte do poder pblico quanto da
mdia da capital - alm dos comerciantes da regio, que nomeiam a
concorrncia do comrcio informal como desleal, em razo de no estar
submetido ao pagamento de impostos.
Considerados a causa do aumento das ocorrncias policiais na
regio, bem como da sujeira, insegurana e desconforto que passam a
ser identificados como alguns dos principais problemas do
Hipercentro, os ambulantes26 se constituem como personagens de peso
nos processos de interveno urbana realizadas na regio a partir de
ento - conforme veremos no Captulo 3 e afirmam a regio como espao
de busca alternativa pela sobrevivncia (LEMOS, 1988).
Por outro lado, espao preferido ou obrigado dos moradores das
periferias, que excludos das pranchetas dos planejadores insistem
em sua presena na regio (SOUZA e CARNEIRO, 2004, p.89), o
Hipercentro de Belo Horizonte mantm sua dinamicidade, ocupando
posio destacada na gerao de postos de trabalho no mbito da Regio
Metropolitana de Belo Horizonte - ainda que passando por mudanas
significativas em seus padres de ocupao residencial e econmica, com
perda relativa de sua populao residente. Neste caso, a afirmao de
Silva relativa aos centros urbanos de forma geral, pode ser
considerada pertinente situao do Hipercentro de Belo Horizonte a
partir dos anos 1970:
(...) [os centros] foram perdendo moradores e atividades,
sobretudo as mais modernas ou aquelas ligadas proximidade com as
elites (...). Paralelamente, os centros antigos foram recebendo
outras pessoas e atividades, que ocuparam o espao deixado e se
desenvolveram como zonas de comrcio popular ou especializado, de
importncia regional. So cheios de vitalidade e concentram
oportunidades, mas refletem o descuido do poder pblico com a
qualidade dos espaos, os quais tambm permitem a visibilidade da
pobreza e as diversas formas de sobrevivncia buscadas pelos pobres.
(SILVA, 2006, p.13).
Nesse contexto das transformaes vividas a partir dos anos 1970
pelo Hipercentro, o baixo centro que, como vimos, j trazia o carter
popular como referncia h vrias dcadas - configura-se como o espao
no qual essas transformaes se colocam de forma mais visvel e
acentuada, sendo-lhe continuamente associada, especialmente a
partir da dcada de 1980, a imagem de decadncia e deteriorao. A
concentrao de pontos do transporte coletivo,
25 Data de 1908 a primeira regulamentao do trabalho dos
vendedores ambulantes e mascates na cidade
(ARROYO, 2004). 26
O termo ambulantes serve aqui para designar, de maneira geral,
uma grande variedade de formas do trabalho ambulante na cidade,
desde aqueles que trabalham em barracas, como os camels
(licenciados pelo poder pblico) e os toreros (no licenciados), e
aqueles que vendem suas mercadorias em trnsito, geralmente sem
suportes especficos para coloc-las, dentre outros.
-
36
lugares privilegiados para intercmbio de mercadorias; a presena
massiva de vendedores ambulantes; a quase ausncia de moradias; a
predominncia e dinamicidade do comrcio e da prestao de servios
qualificados como populares; o trnsito intenso de pedestres e
veculos, com constantes conflitos entre uns e outros e grandes
congestionamentos; enfim, todas as caractersticas que passam a
marcar o Hipercentro da capital27 tm visibilidade e presena ainda
mais destacada neste baixo centro - acrescidas pela quase ausncia
de investimentos do poder pblico, que realiza na regio
principalmente intervenes de carter pontual e voltadas para
melhoria da circulao de veculos - estabelecendo-se uma associao
bastante ntima entre popularizao, decadncia e deteriorao e
estigmatizando-se aquele como um espao perigoso, sujo, mal
freqentado, feio, que necessita de ordenao e regulao. Como nos
dizem Vargas e Castilho:
Os conceitos de deteriorao e degradao urbana esto frequentemente
associados perda de sua funo, ao dano ou runa das estruturas
fsicas, ou ao rebaixamento do nvel do valor das transaes econmicas
de um determinado lugar. (...) Em geral, a referncia aos espaos
degradados acontece quando, alm das estruturas fsicas, verifica-se
a reverberao da mesma situao nos grupos sociais. Atribui-se condio
de empobrecimento e de marginalizao a destruio das bases da
solidariedade entre os indivduos e o descrdito na noo de bem
comum.
(...) Essa imagem da deteriorao/degradao e seus efeitos afetam
os diferentes atores envolvidos de forma distinta, de acordo com os
respectivos interesses e segundo a conjuntura local, cada vez mais
internacionalizada. (VARGAS e CASTILHO, 2006, p.3-4).
A partir de meados dos anos 1980 a perspectiva de interveno no
Hipercentro passa a adquirir contornos mais ntidos e maior
visibilidade, com a disseminao do discurso da importncia da regio
para a histria e memria da cidade28 e da necessidade de melhoria
das condies de seus espaos fsicos, estabelecendo-se forte
confluncia entre as idias de valorizao simblica e de recuperao
fsica de um espao considerado degradado.
No entanto especialmente a partir de meados da dcada de 1990,
quando o assunto sobre o esvaziamento, abandono e desvalorizao
imobiliria do Hipercentro se coloca como questo recorrente tanto
nos discursos e projetos do poder pblico quanto na mdia da capital,
que os projetos de interveno fsica e simblica - na regio se afirmam
de forma mais
27 Neste momento j configurada como centro de uma grande
metrpole: a criao da Regio Metropolitana de
Belo Horizonte - RMBH data de 1973. 28
Data de 1984 o estabelecimento da poltica municipal de proteo ao
patrimnio histrico e cultural da cidade, com a promulgao da Lei
3802/84, que institui o Conselho Deliberativo do Patrimnio Cultural
do Municpio de Belo Horizonte CDPCM-BH e o tombamento como
principal instrumento jurdico de preservao patrimonial - nos mesmos
moldes do Decreto-Lei n 25, de 30 de novembro de 1937, que organiza
a proteo ao patrimnio histrico e artstico nacional.
-
37
sistmica e concreta. Esses projetos acompanham, inclusive, as
tendncias internacionais de revalorizao dos chamados centros
histricos das grandes cidades e provocam significativas
transformaes neste cenrio, bastante visveis j em meados dos anos
200029, conforme pode ser depreendido da matria jornalstica abaixo
que, apesar de longa, vale a pena ser transcrita em sua grande
parte:
A segurana mais eficiente, com a vigilncia das cmaras do
Programa Olho Vivo em pontos estratgicos, a retirada dos camels das
vias pblicas e a restaurao de praas, caladas e edificaes histricas
so exemplos de iniciativas implementadas pelo poder pblico, nos
ltimos quatro anos, que deram nova vida ao hipercentro de Belo
Horizonte e j comeam a se refletir na valorizao dos imveis da
regio. Entre os sinais de recuperao do mercado local esto o
crescimento acelerado da demanda por lojas e salas e o retorno de
investimentos em empreendimentos residenciais, como o Edifcio
Chiquito Lopes, inaugurado no incio do ms. O prdio, inicialmente de
uso comercial, foi recuperado e transformado num moderno condomnio
residencial pela Construtora Diniz Camargos, com investimento de
cerca de R$ 10 milhes. Essa iniciativa mostra que os empreendedores
voltam a se interessar pelo centro, que comea a recuperar seu
prestgio, depois de anos de abandono e degradao, diz o presidente
do Sindicato do Mercado Imobilirio e das Administradoras de
Condomnios de Minas Gerais (Secovi-MG), Ariano Cavalcanti. Ele
avalia que as aes de revitalizao do hipercentro, principalmente a
retirada dos camels das ruas, associadas recuperao econmica do pas,
esto permitindo um desenvolvimento qualitativo da regio, com o
retorno e instalao de grandes lojas e escritrios de importantes
empresas. J o empresrio Teodomiro Diniz Camargos, diretor da Diniz
Camargos, considera que com mais segurana e um espao urbano
requalificado o centro voltou a ser um bom lugar para se morar,
principalmente para idosos, jovens casais, solteiros e estudantes.
A regio tem toda uma infra-estrutura de servios e lazer e servida
por linhas de nibus que fazem ligao com qualquer ponto da cidade,
observa. Em negociaes para lanar um novo empreendimento residencial
no hipercentro, Teodomiro acredita que a regio pode, inclusive,
atrair, a exemplo do que ocorre em Nova York e Londres, moradores
de alto poder aquisitivo, que j trabalham ou estudam no local. o
resgate de um modo de vida antigo, em que possvel, sem a
necessidade de carro ou grandes deslocamentos, ter acesso a tudo:
trabalho, estudo, servios, lazer e cultura. Isso j realidade nas
grandes metrpoles do mundo e BH comea a fazer parte desse circuito,
afirma. (CENTRO..., 2007)
Um dos espaos privilegiados por estas intervenes , justamente, a
regio sobre a qual esta pesquisa est focada: o baixo centro, que
recebe ateno especial dos chamados projetos de revitalizao urbana,
os quais destacam a dimenso simblica deste espao e investem
maciamente em seus aspectos histrico-culturais e na produo, afirmao
e legitimao de uma memria da/para a cidade. A Praa da Estao e a
prpria estao, a Rua dos Caets, a Praa Sete considerada aqui uma
significativa delimitao espacial entre o alto
29 Momento em que inclusive lanado o Plano de Reabilitao do
Hipercentro (PLANO..., 2007), constante do
Programa Centro Vivo (2004) polticas que sero o principal objeto
de anlise do Captulo 3.
-
38
e o baixo centro30 -, a Rua Aaro Reis, o Boulevard Arrudas31, a
perspectiva de transferncia do Terminal Rodovirio... enfim, uma
srie de aes e projetos que, concentrados na rea, fazem dela um
lugar de confluncia da ateno e muitas vezes do investimento - no s
do poder pblico municipal como da mdia, da iniciativa privada e,
tambm, das centenas de pessoas presentes nesse espao de vivncia
cotidiana.
1.3 Vida cotidiana, lazer e arquitetura
Como dito anteriormente, o Hipercentro de Belo Horizonte
tradicionalmente caracterizado como lugar de trnsito e de passagem,
de grande movimento e de estabelecimento de relaes efmeras (LEMOS,
1988, 1994, 2003; ARROYO, 2004; PRAXIS, 2007; SOUZA e CARNEIRO,
2004), podendo no entanto ser considerado, tambm, espao de
permanncia e de criao de relaes mais duradouras, tendo em vista
configurar-se como lugar de convvio cotidiano para aqueles que ali
se estabelecem em razo da moradia ou do trabalho, ou at mesmo para
aqueles que por ali passam diria e rotineiramente, como os usurios
do transporte coletivo que ali tm seus principais pontos de
embarque caracterizado por esperas s vezes longas - ou desembarque.
Por outro lado, a regio historicamente marcada tanto pela presena
macia de estabelecimentos comerciais e de prestao de servios e seu
intenso uso por grande parcela da populao no s da cidade como de
sua regio metropolitana - quanto pela existncia de espaos, pblicos
e privados, de convvio e lazer como parques, praas, cinemas,
cafs32, bares, dentre outros, o que indica a diversidade de usos e
apropriaes que podem ser encontrados na rea.
30 A Praa Sete de Setembro localiza-se no cruzamento das
Avenidas Afonso Pena e Amazonas, e considerada
o marco fsico e simblico do Centro de Belo Horizonte, podendo
ser vista no s como importante referncia para a populao
belorizontina mas tambm como limite divisrio (em seu sentido
Leste-Oeste) da hierarquia social identificada no Hipercentro da
cidade (LEMOS, 1988, 2003; VILELA, 2006; SOUZA e CARNEIRO, 2004).
31
Obra realizada pela Prefeitura de Belo Horizonte em parte do
ribeiro Arrudas especialmente na regio prxima Estao Ferroviria, em
parceria com o governo estadual, includa no Projeto Linha Verde,
deste ltimo, que prev a criao de uma via de ligao direta com o
Aeroporto Internacional Tancredo Neves, em Confins, cidade da RMBH.
32
Ainda que no seja um tipo de estabelecimento to comum hoje em
dia, os cafs marcaram presena no Centro de Belo Horizonte ao longo
de sua histria como de outras grandes cidades havendo, inclusive,
alguns que continuam atuando na regio, como os cafs Nice e
Palhares, situados na Praa Sete e na Rua Tupinambs,
respectivamente.
-
39
Essa diversidade de usos e apropriaes inclusive nos sugere a
existncia de uma grande variedade de possibilidades de expresso da
vida cotidiana e das representaes que se constroem no e sobre este
lugar da cidade, e que o conformam como um espao multifacetado,
composto por inmeras dimenses e dinmicas, que incluem desde sua
paisagem arquitetnica e urbanstica, passando pelos usos de suas
edificaes e vias, at os movimentos que o marcam como centro da
cidade e de todos (SILVA, 2006, p.13). A composio deste cenrio
urbano no pode prescindir, portanto, destas dimenses e dinmicas
mais afeitas ao cotidiano, ao imaginrio e ao simblico (CERTEAU,
1994; BOURDIEU, 1974, 1990, 1996a, 1998), marcadas por diversos
trajetos do trabalho, do lazer, da circulao, do consumo, da
permanncia e partcipes de sua formao e de sua existncia enquanto
lugar que se produz, cotidianamente, como uma referncia para a
metrpole.
Propomos, nesse sentido, identificar alguns aspectos gerais que
podem nos auxiliar em uma composio dos movimentos e referenciais -
visuais, materiais e simblicos - que configuram o cotidiano do
Hipercentro de Belo Horizonte e a centralidade desse espao, que se
conforma como contexto no qual se insere o lugar especfico objeto
de nossas investigaes, a Rua dos Caets. Para tanto, tomaremos como
parmetro as categorias funcionais e formas de apropriao dos espaos
pblicos identificadas pela Prxis Consultoria em diagnstico
realizado sobre o Hipercentro de Belo Horizonte em 2005 (PRAXIS,
2007, p.141-147) e a anlise de algumas questes afeitas s
configuraes, transformaes e permanncias de sua paisagem
arquitetnico-urbanstica, pretendendo assim contribuir para a
construo de imagens, de uma fisiognomia (BOLLE, 2000) que nos
auxiliem na compreenso das aes efetivadas pelo poder pblico na
regio e das representaes que as pessoas que ali convivem
cotidianamente elaboram sobre esse espao e sobre as intervenes nele
realizadas.
A pesquisa realizada pela Prxis Consultoria identificou trs
categorias funcionais e formas de apropriao dos espaos pblicos na
regio: como local de lazer e descanso, como local de trabalho e
consumo e como local de passagem (PRAXIS, 2007, p.141-147). No que
diz respeito apropriao do espao como local de lazer e descanso, o
diagnstico destacou pessoas sentadas em mobilirio urbano, sozinhas
ou em grupo (lendo jornais, ouvindo msica, observando o movimento);
conversando nas caladas; jogando; dormindo; sentadas em mesas de
bares, nas caladas; namorando; danando; praticando esportes;
fazendo caminhadas; passeando com animais de estimao; crianas
brincando nas praas ou caladas... enfim, uma srie de formas de
apropriao do espao pblico, para o lazer, que de acordo com o
horrio,
-
40
dia da semana e lugar especfico onde ocorrem aparecem de forma
mais ou menos intensa, marcando as especificidades que caracterizam
o dinamismo e vitalidade da regio.
Para alm dessa ocupao cotidiana voltada ao lazer gostaramos de
considerar, ainda, algumas manifestaes eventuais que ocorrem no
Hipercentro, como apresentao de peas teatrais33, shows musicais,
festas - como a Banda Mole, manifestao carnavalesca tradicional da
cidade, e o prprio carnaval, que apesar de no ser mais realizado no
Hipercentro, marcou presena significativa em suas ruas ao longo da
histria34 -, que tambm identificam de maneira representativa este
como um espao de encontro, de festa, de alegria, de diverso,
produtor de sociabilidades pautadas pelo ldico e pelo rompimento
com a rotina (AMARAL, 1988; DA MATTA, 1978; MAGNANI, 2004; CERTEAU,
1994).
Por outro lado, alm desta ocupao dos espaos pblicos no h como
deixar de considerar que o Hipercentro configurou-se como lugar
referencial de diverso e cultura para a populao belo-horizontina,
no decorrer de sua histria, tambm em seus espaos privados,
concentrando parte significativa dos cinemas, teatros, clubes,
livrarias, cafs, cabars, bares que agitavam a vida cultural da
cidade. Em grande parte marcados pela experincia do consumo, estes
espaos distinguiam-se uns dos outros sobretudo em razo do poder
aquisitivo do pblico que os freqentava e do local onde estavam
instalados, neles ficando bastante patente o processo de
popularizao que paulatinamente caracterizou a regio.
Este fato no pode ser deixado de lado diante dos tradicionais
diagnsticos de esvaziamento, a partir dos anos 1980, do papel de
lazer desempenhado pelo Hipercentro, pois que este esvaziamento diz
respeito, de forma geral, queles espaos que tinham os grupos de
mdio e alto poder aquisitivo como pblico principal35. Mantiveram-se
com grande vitalidade em todo este tempo, no entanto, as atividades
de lazer dos grupos de baixa renda (SOUZA e CARNEIRO, 2004; LEMOS,
1988, 1994, 2003; PRXIS, 2007), geralmente moradores das
periferias, que ainda se dirigem regio com o intuito de se divertir
fato que pode ser
33 Principalmente quando da realizao do Festival Internacional
de Teatro FIT, realizado na cidade de dois em
dois anos desde 1995. Nas quase duas semanas durante as quais se
realiza o Festival, vrias peas teatrais so apresentadas nas ruas e
praas do centro e de alguns bairros da cidade. 34
Outras festas realizadas nas ruas do centro foram descritas por
Lemos (1988, p.108), que cita as festas juninas e o Reinado como
comemoraes que ocorriam na regio nas primeiras dcadas de sua
histria. 35
Com exceo aqui para os cinemas, que tiveram sua sada do
Hipercentro marcada por uma dinmica diferenciada, visto que sua
sada no foi do Centro, mas da rua, com sua ida para os shopping
center. H que se destacar ainda, no entanto, que antes de sarem
definitivamente das ruas, os cinemas do Centro sofreram uma alterao
no s do pblico freqentador, como tambm do tipo de filmes exibidos,
dentre os quais passaram a preponderar os filmes pornogrficos.
-
41
observado atravs da realizao de caminhadas e passadas36 pelo
Hipercentro nos finais de semana, noite e na madrugada. Sendo
assim, como nos dizem Souza e Carneiro O fato de os moradores das
Periferias ainda encontrarem motivo de lazer no Hipercentro no
deixa de ser um indicador importante para o estudo dessa funo
enquanto metropolitana (2004, p.91).
J no que se refere apropriao do espao pblico como local de
trabalho e consumo, o diagnstico citado anteriormente (PRXIS, 2007)
indica uma srie de formas de usos que caracterizam a regio, tambm
relacionadas aos horrios, dias da semana e lugares especficos em
que ocorrem. Temos assim o vendedor ambulante37, com e sem banca de
mercadorias, ou com veculos estacionados; artistas que se exibem
nas ruas; policiais; flanelinhas; pessoas fazendo panfletagem e/ou
anncio de servios; funcionrios porta dos estabelecimentos;
trabalhadores fazendo carga e descarga de mercadorias na calada;
engraxates; pipoqueiros; jornaleiros; catadores de papel; crianas
vendendo balas nos semforos; mendigos pedindo esmolas; feirantes...
e tambm os consumidores dos produtos ou servios ofertados, muitas
vezes usurios destes espaos como locais de passagem, pessoas que no
esto ali com o objetivo do consumo, mas que acabam adquirindo
produtos ou servios em razo da rua se transformar em uma vitrine
aberta, estimuladora do ato da compra. H que se destacar, ainda,
que essa caracterizao do espao como lugar de trabalho e de consumo
tambm se configura como marca significativa da regio ao longo de
sua histria, sendo encontradas referncias presena dos trabalhadores
ambulantes nas ruas da cidade, por exemplo, desde os primeiros anos
da existncia da capital (ARROYO, 2004; LEMOS, 1988, 1994, 2003;
VILELA, 2006).
Por fim temos, ainda segundo o referido Diagnstico (PRXIS,
2007), as apropriaes do espao pblico como local de passagem - de
pedestres e de veculos -, uso de grande peso nas caracterizaes
geralmente feitas sobre o Hipercentro. Pessoas que para ali se
deslocam com objetivo de trabalho, estudo ou consumo, ou ainda que
utilizam a rea como simples local de transbordo, em direo a outras
regies da cidade38, e o grande nmero de veculos coletivos ou
privados que por ali transitam diariamente, geralmente em carter de
passagem,
36 Ao longo do perodo em que foi realizada esta pesquisa, alm
das observaes sistemticas foram feitas
tambm observaes informais, tendo em vista ser a regio pesquisada
lugar de moradia e de trajeto da pesquisadora. Algumas destas
observaes foram registradas, outras no, mas nos auxiliaram a
perceber a dinamicidade e a diversidade das apropriaes que
caracteriz