PASE/POR/3C – texto – 1/2 T E X T O I Lê atentamente o texto I. 5 10 15 20 25 30 Chegámos ao topo do Pico eram quatro da manhã, e o frio era insuportável, cortava a pele nas suas velozes rajadas, era um vento selvagem de altitude, corria sem obstáculos e sem domador por um espaço sem marcas. Ao chegar lá acima, disse-me: «Ande sempre junto a mim e olhe bem para o chão.» Fiz o que me mandava e andei sempre muito próxima dele, maravilhada com a enorme caldeira rochosa que se abria mesmo no cume do Pico, se alongava numa enorme depressão e, no extremo oposto àquele onde nos encontrávamos, continuava para cima, formando o Pico Pequeno. Torneámos toda a caldeira até chegar ao sopé do pequeno monte, ao longo da borda estreita que ficava entre a descida da caldeira e a descida da encosta. […] Ficámos durante toda a manhã na caldeira. O Tomás achava que eu devia dormir e restaurar as forças para a descida, mas eu sentia-me tão entusiasmada que nada me faria parar. Cercámos a caldeira vezes sem conta, a ver as ilhas. O Tomás apontava com o braço e eu ia-lhe seguindo o gesto com o olhar, a ver o Faial, São Jorge, a Graciosa e a Terceira. […] Só as Flores ficou por ver, porque se erguia na sua direcção um nevoeiro forte, denso e habituado a parar naquele lugar. Descemos à caldeira, subimos, voltámos a descer… O Tomás andava à minha frente, muito devagar e, de vez em quando, eu punha- me a correr à sua frente, a correr de felicidade, já sem frio, sem cansaço e sem idade, sobretudo sem aquela idade marcada no corpo e na alma pelas feridas que nos sangram ao longo da vida. Subitamente, debaixo da exaustão da subida, e do deslumbre das paisagens inesperadas, e da aventura de subir ao alto das nuvens, e da surpresa de ser levada por um guia cego que conhecia os trilhos com a perícia 1 das cabras e a memória das pedras, por baixo dos sabores acres 2 e doces que me chegavam aos lábios com o vento frio, por baixo dos cheiros exuberantes da natureza descoberta num retrato de dia, por baixo das novas paixões do mundo, cicatrizavam todas as feridas, ou adormeciam somente, fechavam-se em latência 3 , escondiam-se, deixavam-me sem marcas do tempo humilhado, do tempo passado numa lenta perda, tempo enclausurado 4 no medo, tempo maltratado como uma forma sempre e sempre retorcida nas mãos de um alquimista 5 obcecado, doente, não da busca da perfeição das formas, mas do poder sobre matéria, da soberania sobre a substância, da liberdade de retorcer um corpo passivo e de o retalhar na sua extensão e movimento… Era de novo um tempo sem manchas… Eu deslizava ao lado do meu companheiro de PASE 2011 - Português 3.º Ciclo
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Transcript
PASE/POR/3C – texto – 1/2
T E X T O I
Lê atentamente o texto I.
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30
Chegámos ao topo do Pico eram quatro da manhã, e o frio era insuportável, cortava a
pele nas suas velozes rajadas, era um vento selvagem de altitude, corria sem obstáculos e
sem domador por um espaço sem marcas. Ao chegar lá acima, disse-me:
«Ande sempre junto a mim e olhe bem para o chão.»
Fiz o que me mandava e andei sempre muito próxima dele, maravilhada com a enorme
caldeira rochosa que se abria mesmo no cume do Pico, se alongava numa enorme
depressão e, no extremo oposto àquele onde nos encontrávamos, continuava para cima,
formando o Pico Pequeno. Torneámos toda a caldeira até chegar ao sopé do pequeno
monte, ao longo da borda estreita que ficava entre a descida da caldeira e a descida da
encosta. […]
Ficámos durante toda a manhã na caldeira. O Tomás achava que eu devia dormir e
restaurar as forças para a descida, mas eu sentia-me tão entusiasmada que nada me faria
parar. Cercámos a caldeira vezes sem conta, a ver as ilhas. O Tomás apontava com o
braço e eu ia-lhe seguindo o gesto com o olhar, a ver o Faial, São Jorge, a Graciosa e a
Terceira. […] Só as Flores ficou por ver, porque se erguia na sua direcção um nevoeiro
forte, denso e habituado a parar naquele lugar. Descemos à caldeira, subimos, voltámos a
descer… O Tomás andava à minha frente, muito devagar e, de vez em quando, eu punha-
me a correr à sua frente, a correr de felicidade, já sem frio, sem cansaço e sem idade,
sobretudo sem aquela idade marcada no corpo e na alma pelas feridas que nos sangram ao
longo da vida. Subitamente, debaixo da exaustão da subida, e do deslumbre das paisagens
inesperadas, e da aventura de subir ao alto das nuvens, e da surpresa de ser levada por um
guia cego que conhecia os trilhos com a perícia1 das cabras e a memória das pedras, por
baixo dos sabores acres2 e doces que me chegavam aos lábios com o vento frio, por baixo
dos cheiros exuberantes da natureza descoberta num retrato de dia, por baixo das novas
paixões do mundo, cicatrizavam todas as feridas, ou adormeciam somente, fechavam-se
em latência3, escondiam-se, deixavam-me sem marcas do tempo humilhado, do tempo
passado numa lenta perda, tempo enclausurado4 no medo, tempo maltratado como uma
forma sempre e sempre retorcida nas mãos de um alquimista5 obcecado, doente, não da
busca da perfeição das formas, mas do poder sobre matéria, da soberania sobre a
substância, da liberdade de retorcer um corpo passivo e de o retalhar na sua extensão e
movimento…
Era de novo um tempo sem manchas… Eu deslizava ao lado do meu companheiro de
PASE 2011 - Português 3.º Ciclo
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jornada, encantada, maravilhada até com a cor das pedras, e com o céu, e com a fantástica
liberdade dos quatro elementos da natureza num lugar tão próximo dos deuses que deveria
cheirar a obediência. Devorei toda a comida que tinha levado comigo, sorri com a alegria
que a luz do sol trouxera, fui transformando em música as coisas vistas para que Tomás as
pudesse conhecer. Conversámos muito, falámos com a sinceridade de quem partilha o ar
dos deuses, falámos sobre a cegueira, sobre viver sem olhar, sobre viver olhando apenas…
Em troca da minha música, o Tomás dizia-me o que eram para ele as coisas do quotidiano,
como era viver de todos os sinais que a natureza alberga6 para os vários sentidos.
«E eu? Que sou eu, para si?», perguntei-lhe.
Pensou durante algum tempo, depois respondeu-me:
«Você é um barco recém-ancorado nestas ilhas. A julgar pela bravura e pela vontade de
descobrir a terra, diria que é um barco de conquistadores… A julgar pelo desgosto que traz
consigo, diria que é um barco de condenados ao exílio. O que é que se acha?»
Maria Orrico, Terra de Lídia.
Vocabulário
1 perícia – agilidade.
2 acres – azedos.
3 latência – ocultação, dissimulação.
4 enclausurado – fechado, aprisionado.
5 alquimista – pessoa que transforma, transmuta; mágico.
6 alberga (forma do verbo albergar) – guarda.
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PROVA DE AVALIAÇÃO SUMATIVA EXTERNA
A PREENCHER PELO ALUNO Nome
Data de nascimento ___ / ___ / ___ (DIA/MÊS/ANO) Escola
A PREENCHER PELA UNIDADE ORGÂNICA Número convencional do Aluno ___________ Número convencional da Turma ___________
Prova de Avaliação Sumativa Externa de Português
3.º Ciclo do Ensino Básico
2011 Duração da Prova: 90 minutos.
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PROVA DE AVALIAÇÃO SUMATIVA EXTERNA
Prova de Avaliação Sumativa Externa de Português
3.º Ciclo do Ensino Básico
A PREENCHER PELO ALUNO Sexo F M
A PREENCHER PELO PROFESSOR APLICADOR – CASOS PARTICULARES (ASSINALE COM UM X)
A Alunos com deficiência auditiva.
B Alunos com deficiência motora.
D Alunos com deficiência visual.
O Alunos que beneficiam das modalidades de apoio educativo previstas no n.º 1,
alíneas d), e) e f), do art.º 35.º da Portaria n.º 76/2009, de 23 de Setembro.
P Alunos que não tenham o Português como língua materna.
Q Alunos em regime de Ensino Doméstico.
T Alunos dos Subprogramas Oportunidade III e Oportunidade Profissionalizante
A PREENCHER PELA UNIDADE ORGÂNICA
Número convencional do Aluno ___________
Número convencional da Turma ___________
A PREENCHER PELO PROFESSOR CLASSIFICADOR Classificação em percentagem ________ % (______________________________ por cento)