Para superar o capitalismo, sistema de morte (I)POR MAURO LOPES –ON 31/12/2015 CATEGORIAS:POSTS 6 0 0 0 Novos ensaios em “Outras Palavras”: informado pela Teologia da Libertação e pensamento do papa Francisco, colunista escreve sobre grandes impasses contemporâneos. No primeiro texto, o papel dos bancos e da aristocracia financeiraPor Mauro Lopes | Imagem:Emil Nolde, Máscaras (1911) Escrevo hoje e nos próximos dias uma breve série de meditações sobre o capitalismo a partir do ensinamento da Igreja e do Papa Francisco, que no II Encontro dos Movimentos Populares, em Santa Cruz de la Sierra (Bolívia), em julho de 2015, qualific ou o sistema de “ditadura sutil”. Para o Papa, o
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capitalismo “é insuportável: não o suportam os camponeses, não o suportam ostrabalhadores, não o suportam as comunidades, não o suportam os povos…”Antes, em abril, um dos líderes da reforma da Igreja, o cardeal de Tegucigalpa,Óscar Andrés Rodriguez Maradiaga, ex-presidente da Cáritas mundial e
coordenador do grupo encarregado da reforma da Cúria romana, havia afirmadoque o capitalismo é “um sistema econômico que mata”. Não são ensaios nemartigos, apenas breves meditações que buscam colocar-se a serviço da Igreja,que busca retomar o caminho original dos ensinamentos de Jesus.
I – Os bancos
Minha nova atividade profissional fez-me frequentar um ambiente no qual não
pisava há quase vinte anos: as filas de agências bancárias. O que tenhotestemunhado é um verdadeiro massacre. Toda vez que alguém chega para fazer
um pagamento ou retirar dinheiro ou qualquer outra operação nos caixas dos
grandes bancos e seu cartão é inserido nas maquininhas, abre-se uma tela para o
funcionário do banco com as informações necessárias para espoliar a pessoa. Os
velhos e velhas aposentados são as vítimas preferenciais. Os bancos tentam
arrancar seu dinheiro sem dó nem piedade, aproveitando-se do fato de estes
aposentados terem uma renda mensal garantida. Nos caixas, jovens bem falantes,
articulados e obrigados à “venda”, sob o risco de não “atingirem as metas” e, no
limite, serem demitidos por isso. É um sistema infernal. Outro dia minha mulher
testemunhou um velhinho quase aceitando um crédito de 40 mil reais diante da
insistência do caixa: “O senhor não está precisando trocar de carro? Tem aqui 40
mil, podemos fazer já. O senhor usa e paga um pouquinho por mês”. Ela quase se
meteu para impedir o assalto, mas a última hora o senhor recusou.
Outro dia vi uma cena semelhante, com uma senhora que visivelmente nãoestava entendendo a oferta criminosa da caixa do banco. Ao ver que eu estava
ao lado olhando, a funcionária do banco recuou e desconversou. Imaginequantas milhares de vezes ao dia a cena se repete. E quantas vezes o assalto é
bem sucedido. Agora, os bancos inventaram um jeito de poderem praticar ocrime de maneira mais discreta, reduzindo o risco da indignação pública nasfilas. Meteram umas divisórias de vidro que impedem aqueles que estão na filavejam ou escutem o que acontece na boca dos caixas. A desculpa chega a serridícula. Dizem os gerentes de duas agências em que perguntei a razão damedida que é “para segurança dos clientes” – teoricamente para evitar assaltos
à saída das agências. Conversa fiada. É para facilitar o assalto que acontecedentro das agências, para garantir privacidade à ação criminosa dos caixas. Não,
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em sua imensa maioria eles não são criminosos, são igualmente vítimas daengrenagem. Em minha família há duas pessoas que são funcionários degrandes bancos e estão gravemente adoentadas emocionalmente por isso.
É claro que os lucros dos grandes bancos não são feitos exclusivamente sobre oroubo aos velhos aposentados. Mas eles funcionam como os assaltantes de farol:
evitam os mais fortes, preferem os mais frágeis — é mais fácil e seguro.
As fontes de lucros dos bancos são diversas e todas elas assentadas sobre práticas
comparáveis aos saques feitos nas guerras.
Há um artigo memorável e atualíssimo do professor Ladislau Dowbor publicado
no site Outras Palavras em outubro de 2014, “Bancos: o peso morto da economia
brasileira”. Leia, é de fato imperdível. Nele, Dowbor detalha as fontes dos lucros
do sistema financeiro no Brasil. Os números são referentes a 2014, mas são ainda
mais escorchantes em 2015.
1. Juros dos crediários: há uma “pegadinha” malandra dos bancos, que é a deapresentar as taxas apenas referentes ao período mensal e esconder o númeroanualizado. Facilita engambelar as vítimas. Com base em números oficiais daAssociação Nacional de Executivos de Finanças, Administração e
Contabilidade (Anefac) – dados de junho 2014 – , Dowbor informa que os juros praticados no mercado para a compra de uma TV eram de 6,87% ao mês, um juro real ao ano de 122% – “literalmente, um assalto”, escreveu o professor.
2. Juros para pessoa física: “Tomando os dados de junho 2014, constatamos que
os intermediários financeiros cobram juros de 238,67% no cartão de crédito,
159,76% no cheque especial, 234,58% na compra de automóveis. Os empréstimos
pessoais custam na média 50,23% nos bancos e 134,22% nas financeiras. Estamos
deixando aqui de lado a agiotagem de rua, que ultrapassa os 300%.” Dowbor nãoescreveu, mas a agiotagem de rua é, em boa medida, controlada pelos grandes
bancos. Mas esclareceu que os números para o cartão de crédito – juros de 238%,
segundo a Anefac – eram estimados em 280%pela Associação Brasileira das
Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs)! Achou pouco? Em setembro
de2015 o Banco Central informou que os juros do cartão de crédito haviam
ultrapassado 400% ao ano – muito mais que a “agiotagem de rua” de 2014.
3. Juros para empresas: Escreveu Dowbor que “as taxas de juros para pessoa
jurídica não ficam atrás. O estudo da Anefac apresenta uma taxa praticada
média de 50,06% ao ano, sendo 24,16% para capital de giro, 34,80% paradesconto de duplicatas, e 100,76% para conta garantida. Ninguém em sãconsciência consegue desenvolver atividades produtivas, criar uma empresa,enfrentar o tempo de entrada no mercado e de equilíbrio de contas, pagando
este tipo de juros. Aqui, é o investimento privado que é diretamente atingido.”
4. Juros sobre a dívida pública: Os bancos são os maiores detentores de títulosda divida pública. Ganham uma fortuna. Mais uma vez, o texto do professorLadislau: “Quando gastamos 5% do PIB para pagar os juros da dívida pública,significa que estamos transferindo, essencialmente para os bancos donos dadívida e um pequeno grupo de afortunados, cerca de 250 bilhões de reais aoano, que deveriam financiar investimentos públicos, políticas sociais e
semelhantes. Para os bancos, é muito cômodo, pois em vez de terem deidentificar bons empresários e fomentar investimentos, tendo de avaliar os projetos – enfim, fazer a lição de casa – aplicam em títulos públicos, comrentabilidade elevada, liquidez total, segurança absoluta. É dinheiro em caixa,
por assim dizer, e rendendo muito.”
“ Nesse caso, além do efeito macroeconômico, há outro: a chantagem política ea ameaça constante contra o governo. Este é um processo não apenas brasileiro,mas global, como bem tem anotado o Papa. Outro professor, François Morin,da Universidade de Toulouse e membro do conselho do Banco Central francês,lanço em maio o livro “L’Hydre Mondial [A Hidra mundial], sobre os 28
bancos que dominam a economia mundial. Numa entrevista em setembro de2015, também publicada noOutras Palavras, ele adverte sobre a situação-limitedas dívidas públicas e de como os Estados estão nas mãos dos bancos: ”Todasas condições estão maduras para um novo terremoto financeiro ocorrer, quandoos Estados estão exangues. Ele será ainda mais grave do que o precedente.
Ninguém pode desejá-lo, porque seus efeitos econômicos e financeiros serão
desastrosos e suas consequências políticas e sociais podem ser dramáticas.Podemos vê-los na Grécia. Urgência democrática e lucidez política tornaram-se indispensáveis e urgentes”.
2015 foi um ano duro, a crise foi forte no Brasil não foi? Pessoas perderam
empregos, empresas fecharam ou tiveram prejuízos, o setor público entrou em
crise em todas as esferas, nacional, estadual e municipal. Mas para os bancos o céu
Parece inacreditável, mas é verdadeiro. A cada trimestre, este ano, assistimos –
alguns abismados — os bancos continuarem a bater recordes em seus lucros.
Recordes sobre 2015, 2014, 2013, 2012. Recordes sobre anos difíceis para a
economia e anos de crescimento acelerado. Para os bancos, só boas notícias.
O ano nem acabou mas os números são maravilhosos – para os banqueiros, éclaro. Até agora, sabemos o que os bancos lucraram até o fim de setembro. Nãotrema. Fiquemos apenas no “trio de ferro”, os três grandes bancos de rede do
país.
O Itaú lucrou até setembro R$ 17,6 bilhões; o Bradesco, R$ 12,7 bilhões; oSantander, R$ 6,6 bilhões. Não trema. Até setembro de 2015 os três bancos
arrancaram de aposentados, de pessoas e empresas que precisaram de créditos,de incautos (nós todos) que pagamos tarifas e do Estado dinheiro suficiente paraterem um lucro de $ 36,9 bilhões. Não é que eles arrancaram isso da sociedade.
Não. Eles arrancaram muito mais. Isso é apenas o lucro. Mantido o desempenhodos trimestres anteriores, Itaú, Bradesco e Santander terão um lucro de ao redorde R$ 50 bilhões em 2015!
Apenas três instituições financeiras terão drenado da sociedade para seus cofres,
em ações que numa sociedade marcada pelo respeito ao próximo seriam
criminalizadas, R$ 50 bilhões em um ano! Para os mortais comuns, um númerocomo este é tão estapafúrdio que perdemos o senso de grandeza. São números
macroeconômicos. A direita brasileira quer o golpe contra Dilma por causa das
tais “pedaladas fiscais”. Segundo os números do Tribunal de Contas da União
(TCU) e outros disponíveis na imprensa, elas estariam entre R$ 40 bilhões e R$ 57
bilhões. Os roubos mensurados na Petrobrás até agora alcançam R$ 19 bilhões.
Mas veja que os números referentes às tais pedaladas e à corrupção na Petrobrás
são a soma total de anos a fio: no caso dos bancos, é o butim de apenas um ano!
Mas não há uma linha sobre este assalto ao povo brasileiro nos jornais, revistas,TVs. A velha mídia cala. Há uma operação complexa e torpe na sociedade.Alguns dos elementos desta operação de legitimação do assalto ao país são:
1. A velha mídia tem parte expressiva de suas receitas oriunda das verbas publicitárias dos grandes bancos. Só em 2015, o Itaú entregou R$ 225 milhões para o patrocínio do futebol na Globo! Lembre o que o lucro do ano do Itaú nãoembute este valor. O banco terá lucrado algo como R$ 24 bilhões já descontadaa grana para o futebol da Globo (só para o futebol, sem contar o resto). O quadro
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repete-se em relação aos outros dois bancos do “trio de ferro” e em relação atodos os veículos da velha mídia, em suas diversas expressões. Dá pra imaginara Globo ou a Folha ou a Veja dando manchetes ou entrando em campanhacontra os lucros obscenos dos bancos?
2. Os chamados “jornalistas econômicos” buscam suas informações sobre os
bancos… nos próprios bancos ou nas entidades patrocinadas por eles!
3. Os bancos agem mais ou menos como os traficantes nas favelas. Tentamcomprar a opinião da sociedade com obras de alto valor percebido pelascomunidades ou sociedade. Os traficantes de drogas bancam campinhos defutebol, piscinas, transportes para as comunidades. Assim, o Itaú tornou-se algo
como um mecenas da pós-modernidade. Itaú Cultural, MAM e tantos outrosinvestimentos culturais. Você acha que é o Itaú que paga. Mas é você! É dodinheiro arrancado dos aposentados, do governo, das pessoas e empresasendividadas que eles “fazem bonito”. Mais uma vez: o lucro dos bancos excluio que investem nestas ações.
Esta ação perversa dos bancos, pois travestem de bondade e consciência o queé cortina de fumaça para legitimar os lucros arrancados com o suor do país todo,estende-se evidentemente ao cenário político. Os bancos, direta ou
indiretamente, financiam partidos e candidatos e, se o vento sopra pra esquerda,lá vão eles para a esquerda; se sopram para a direita, lá vão eles. Acabamos deter um ministro da Fazenda que era funcionário do Bradesco até chegar ao cargo
– o que foi revelador dos descaminhos do segundo governo Dilma logo ao seuinício! Dá pra imaginar o ex-funcionário de um dos três bancos do “trio deferro” defendendo o país da ação nefasta das instituições financeiras?
Como diz o Papa, a ditadura do capitalismo é “sutil”. Os grandes bancos são
um dos principais protagonistas da construção deste sistema ditatorial. É sutil,mas, como acrescentou o Papa, é crescentemente insuportável: “não o suportamos camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o suportam ascomunidades, não o suportam os povos…”.
Encerro esta primeira meditação com o fim da entrevista de François Morin: “A
hidra bancária nasceu há cerca de dez anos, e já tomou conta de todo o planeta. O
confronto de poderes, entre bancos avassaladores e poderes políticos
enfraquecidos, parece agora inevitável. Um resultado positivo desta luta – a priori
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desigual – só pode ocorrer por meio mobilização de cidadãos que estejam
plenamente conscientes do que está em jogo.”
Para superar o capitalismo (II): a indústria da moda
POR
MAURO LOPES
– ON 11/01/2016 CATEGORIAS: DESIGUALDADES, MUNDO, POSTS, SOCIEDADE
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Cultura do descarte: vestuário tornou-se indústria que mais emprega e segunda
mais poluidora. Para consumo frenético, trabalho ultra-precário. Como escapar
do “fast fashion”?
Por Mauro Lopes, editor do blog Caminho para Casa
Escrevo uma breve série de meditações sobre o capitalismo a partir do ensinamento
da Igreja e do Papa Francisco, que no II Encontro dos Movimentos Populares, em
Santa Cruz de la Sierra (Bolívia), em julho de 2015, qualificou o sistema de
“ditadura sutil”. Para o Papa, o capitalismo “é insuportável: não o suportam os
camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o suportam as comunidades,
não o suportam os povos…” Antes, em abril, um dos líderes da reforma da Igreja,
o cardeal de Tegucigalpa, Óscar Andrés Rodriguez Maradiaga, ex-presidente daCáritas mundial e coordenador do grupo encarregado da reforma da Cúria romana
havia afirmado que o capitalismo é “um sistema econômico que mata”. Não são
ensaios nem artigos, apenas breves meditações que buscam colocar-se a serviço da
Igreja, que busca retomar o caminho original dos ensinamentos de Jesus.
2. A indústria da moda
Tempos atrás, quando o dólar ainda estava ao preço “me engana que eu gosto” e a
classe média se esbaldava na Flórida e pelo mundo afora, minha mulher e eu fomos
a NY. Conhecemos algo novo. Roupa a preço de banana. Numa tal Forever 21
compramos um vestido a 7 dólares (algo como R$15 à época); numa outra H&M,
preços inacreditáveis também. Numa japonesa, Uniqlo, igual. Ressoava em nossos
ouvidos a cantilena da direita: é mais barato porque o mercado é imenso e porque
eles não têm a quantidade de impostos daqui do Brasil! Mas eis que a Forever 21abriu quase trinta lojas no Brasil e… praticam os mesmos preços!
Como assim? Mas não era mais barato “lá” e “aqui” é tudo mais caro? Pois é. Tudo
bem que assim chamado “mercado consumidor” cresceu exponencialmente ao
longo dos governos do PT e, afinal, a história de que o Brasil tem a maior carga
tributária do mundo é para enganar os trouxas – segundo a Fundação Heritage, a
conservadora e americana, sinônimo de “insuspeita” para a direita brasileira, nossa
carga tributária é a 32ª do mundo, atrás de países como Alemanha, Hungria,
Holanda e outros. Mas, de fato, mesmo assim, o mercado brasileiro ainda é bemmenor que o americano e a carga tributária no país é mais alta que na sede do
capitalismo.
Então, qual o segredo? Como estas redes vendem a preços tão baixos tanto nos
EUA como no Brasil?
Aquilo que faz a festa dos consumidores está baseado na mais abjeta exploração
do trabalho humano que um setor econômico produziu na história recente docapitalismo.
Para entender isso, é preciso contextualizar brevemente a indústria da moda. Ela
sofreu uma transformação radical no século 21, atingindo valores e volumes sem
precedentes. Nenhuma outra cadeia de produção é tão dependente de trabalho
humano como ela: são centenas de milhões de trabalhadoras e trabalhadores, desde
as plantações de algodão à rede de indústrias, confecções e comércio em todo o
mundo. Seu faturamento alcança US$ 3 trilhões/ano! Comercializa-se 80 bilhões
de peças de roupas por ano, 400% a mais que há 20 anos.
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são contratadas pelas grandes marcas; há uma rede quase infinita de fábricas e
confecções, elas sim contratadas, com base em apenas um princípio, que fez e faz
a delícia dos capitalistas, mesmo os “moderninhos” que se dizem preocupados com
o meio ambiente: “mais por menos”. O único item do contrato: fazer mais, cada
vez mais, por menos, cada vez menos.
Assim é na China, maior produtor de roupas do mundo, seguido por Bangladesh e
Camboja. Assim, como é público, acontece no Brasil. Trabalhadores e
trabalhadores recebem entre US$ 2 e US$ 3 por dia; não têm registro nem qualquer
benefício, não estão integrados a sistemas públicos de saúde ou aposentadoria, são
proibidos de reivindicar ou se organizar.
Um dos símbolos da exploração é o que ficou conhecido como a tragédia do RanaPlaza, acontecida em abril de 2013, em Dhaka, capital de Bangladesh – no
desabamento do edifício, onde trabalhavam mais de 5 mil pessoas, 1124 morreram.
O desabamento revelou pela enésima vez as condições de trabalho de mulheres e
homens nas confecções – se quiser, leia aqui uma reportagem feita à época pela
BBC.
No Camboja, a repressão às manifestações de trabalhadores e trabalhadoras da
indústria da moda tem sido cruel. No massacre de Phnom Penh, capital do país,
em janeiro de 2014, cinco jovens foram assassinados pelas forças de segurança. Oque eles pediam? Pode parecer absurdo, mas nada mais que um salário mínimo de
US$ 160 (algo entre R$ 400 ao câmbio da época e R$ 650 a preços de hoje).
Veja aqui um relato da situação no país pela Anistia Internacional.
Se você quiser ter uma visão global sobre a indústria da moda, não pode deixar de
assistir o documentário The True Cost, um relato agudo e jornalístico sobre o que
acontece no mundo hoje. O documentário está disponível no Netflix com legendas
em português, e você pode ter acesso a ele, ao trailer e a outras reportagensclicando no sitehttp://truecostmovie.com/.
E no Brasil?
O Ministério do Trabalho realiza fiscalização específica sobre o trabalho em
condições análogas à escravidão desde 1995. Mas apenas no governo Lula elas
passaram a ser significativas. Em 2003, primeiro ano do governo do PT, o número
de fiscalizações mais do que dobrou, em relação ao governo FHC, de 30 ou ainda
menos para 67. Em 2006, a quantidade de operações realizadas anualmente
ultrapassou a casa da centena.
O que é trabalho nestas condições? A definição do Ministério ilumina o assunto e,
ao mesmo tempo, por si só é capaz de causar consternação e indignação:“Considera-se trabalho realizado em condição análoga à de escravo a que resulte
das seguintes situações, quer em conjunto, quer isoladamente: a submissão de
trabalhador a trabalhos forçados; a submissão de trabalhador a jornada exaustiva;
a sujeição de trabalhador a condições degradantes de trabalho; a restrição da
locomoção do trabalhador, seja em razão de dívida contraída, seja por meio do
cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, ou
por qualquer outro meio com o fim de retê-lo no local de trabalho; a vigilância
ostensiva no local de trabalho por parte do empregador ou seu preposto, com o fimde retê-lo no local de trabalho; a posse de documentos ou objetos pessoais do
trabalhador, por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no
local de trabalho”. Veja aqui esta definição e saiba o que faz o Ministério do
Trabalho na busca da erradicação do trabalho em condições similares à escravidão.
O ano em que houve mais trabalhadores resgatados foi 2007; nada menos que
5.999. Há uma concentração grande de casos no campo. Mas, mesmo depois de
anos de repressão e campanhas, os números ainda são impressionantes. Em 2015,
quase mil pessoas foram resgatadas (936, exatamente). Veja aqui a nota do
Ministério sobre o assunto.
A indústria da moda entrou em evidência em 2012, quando a ONG Repórter Brasil,
fundada em 2001 com missão de denunciar o trabalho escravo, passou a dedicar
atenção a ela. Veja o site da ONG aqui.
A partir de 2009 a ONG começou a publicar as primeiras reportagens em seu site
revelando as condições de trabalho patrocinadas por grandes marcas, mas oassunto ganhou grande repercussão em 2012: veja aqui. Uma série de fiscalizações
flagrou os trabalhadores, em especial bolivianos e peruanos, submetidos a
condições análogas à escravidão em pleno centro da maior metrópole do país, São
Paulo. As marcas denunciadas: Zara, Renner, Marisa, Pernambucanas, M.Officer,
Colloins, Le Lis Blanc, Bobbô, Hyppychic, Gregory, Cori, Emme, Luigi Bertolli,
Unique Chic, 775, Talita Kume, As Marias, Seiki, Atmosfera, Fenomenal,
Desde então, uma série de ações e pactos foram firmados com as próprias marcas
para coibir o trabalho escravo. No entanto, segundo líderes da Pastoral do Migrante
de São Paulo, com quem conversei no início de 2015, há centenas de confecções
que continuam produzindo nas mesmas condições, em especial na região central
de São Paulo e zona norte da cidade.
Com as ações fiscalizatórias e as denúncias mais frequentes, grandes marcas
brasileiras começaram a deslocar parte de sua produção para o Nordeste e lançam
mão, cada vez mais, do modelo de “terceirização”. É o caso da Riachuelo, Hering,
C&A e Renner. Reportagem de dezembro de 2015 no site da Repórter Brasil
denunciou as práticas da indústria na região.
É revelador examinar o discurso dos promotores das condições degradantes detrabalho e ver como ele é sempre o mesmo, no Brasil ou no exterior. A visão é
sempre a mesma, a velha visão do colonizador que “faz o favor” de colonizar – a
mesma conversa desde o século 15.
Segundo Flávio Rocha, CEO da Riachuelo com carreira política vinculada à direita
no país e hoje uma espécie de “estrela” da mídia econômica conservadora, o Estado
atrapalha tudo. Ele declarou à Repórter Brasil que “o céu era o limite”, mas que as
fiscalizações “intimidatórias” do Ministério do Trabalho têm prejudicado os
negócios. “Para Rocha, a melhora das condições de vida dos trabalhadores não éalcançada através da criação de normas trabalhistas, e sim pela demanda e
competição por mão de obra.” Ou seja, como as pessoas não tinham emprego, não
tinham nada, deveriam ser gratas às empresas por condições de trabalho
degradantes.
Em The True Cost, uma entrevista com Benjamin Powell, diretor do Instituto do
Livre Mercado, as fábricas no Terceiro Mundo “são parte de um processo que
eleva os padrões de vida e levarão a salários mais altos com o tempo”. Pois, afinal,ele proclamou ao repórter no documentário, “as alternativas existentes para esses
trabalhadores são piores que as nossas”.
É a lógica do descarte. Ou, como tem afirmado o Papa Francisco, o tempo da
cultura do descarte. Descartem-se as roupas porque elas são tão baratas que
podemos adquirir outras. Descartem-se os trabalhadores e trabalhadoras porque
eles são tão baratos que podemos adquirir outros. É a lógica da indústria.
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