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19 Líbero – São Paulo – v. 13, n. 25, p. 19-30, jun. de 2010 José Eugenio de O. Menezes – Para ler Vilém Flusser Resumo: O texto apresenta as principais idéias desenvolvidas pelo pensador tcheco-brasileiro Vilém Flusser nas suas obras disponíveis no Brasil. Destaca a contribuição de Flusser para a compreensão dos complexos ambientes comunicacionais e das práticas vinculadoras que permitem a organização das socieda- des e das culturas. No contexto da contemporaneidade, marcada por processos de comunicação também mediados por compu- tadores e ambientes digitais, mostra a importância da interlo- cução com Flusser nas pesquisas sobre cultura, imagem, media, aparatos da comunicação e o p róprio processo da comunicação. Palavras-chave: Vilém Flusser, comunicação, cultura, imagens técnicas, teorias da comunicação, media. Para leer Vilém Flusser Resumen: Este artículo presenta las principales ideas desarrolla- das por el pensador checo-brasileño Vilém Flusser en sus obras que están disponibles en Brasil. Destaca la contribución de Flus- ser para entender los complejos ambientes de la comunicación y las prácticas de interacción que permiten la organización de las sociedades y sus culturas. En el contexto actual, marcado por los procesos de comunicación mediada también por los ordenado- res y los entornos digitales, muestra la importancia del diálogo con Flusser en la investigación sobre la cultura, imagen, medios de comunicación, aparatos de comunicación y el proprio proce- so de la comunicación. Palabras clave: Vilém Flusser, comunicación, cultura, imáge- nes, técnicas, teorías de la comunicación, media. To read Vilém Flusser Abstract: This text presents the main ideas of the books available in Portuguese by Czechoslovakian-Brazilian thinker Vilém Flusser. It highlights Flusser contribution to understanding the complex communicational environments and the bounding practices that allow the organization of societies and cultures. In the context of contemporary world, set by communication processes mediated by computers and digital environments, this study shows interlo- cution with Flusser in researches about culture, image, media, com- munication devices and the communication processes themselves. Key words: Vilém Flusser, communication, culture, technical images, communication theory, media. Para ler Vilém Flusser José Eugenio de O. Menezes ste artigo pretende mostrar o desen- volvimento das contribuições de Vi- lém Flusser (1920-1991) para a compreensão dos processos mediáticos contemporâneos, ou seja, da chamada cultura dos media ou cultura de redes. O mapa das obras de Flus- ser disponíveis no Brasil facilita o contato com seus primeiros breves ensaios publica- dos em jornais brasileiros e depois reunidos em livros. Em seguida, oferece subsídios para a continuidade dos debates a respeito das imagens, dos media, dos processos de co- municação e dos aparatos de comunicação, temas com os quais Flusser trabalhou na fase madura de sua vida. Entre os diversos caminhos para o acesso a um autor e/ou sua obra destaca-se a leitu- ra de sua autobiograa. O contato com Bo- denlos: uma autobiografa flosófca, de Vilém Flusser, permite o acesso ao universo dialó- gico no qual viveu o lósofo tcheco natu- ralizado brasileiro que, fugindo da invasão nazista, deixou sua cidade natal – Praga – com a família de sua namorada Edith Barth e viveu no Brasil de 1940 a 1972. No prefácio da edição brasileira Gustavo Bernardo, pro- fessor de Teoria Literária da UERJ, traduz a palavra alemã Bodenlos como “sem chão” ou “sem fundamento”, lembrando que Flusser Doutor em Ciências da Comunicação (ECA-USP) Proessor de Pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero jeomenezes@acasper.com.br E
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Para Ler Viem Flusser1280781703

Apr 08, 2018

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Líbero – São Paulo – v. 13, n. 25, p. 19-30, jun. de 2010José Eugenio de O. Menezes – Para ler Vilém Flusser

Resumo: O texto apresenta as principais idéias desenvolvidaspelo pensador tcheco-brasileiro Vilém Flusser nas suas obrasdisponíveis no Brasil. Destaca a contribuição de Flusser para acompreensão dos complexos ambientes comunicacionais e daspráticas vinculadoras que permitem a organização das socieda-des e das culturas. No contexto da contemporaneidade, marcadapor processos de comunicação também mediados por compu-tadores e ambientes digitais, mostra a importância da interlo-cução com Flusser nas pesquisas sobre cultura, imagem, media,aparatos da comunicação e o próprio processo da comunicação.Palavras-chave: Vilém Flusser, comunicação, cultura, imagenstécnicas, teorias da comunicação, media.

Para leer Vilém Flusser Resumen: Este artículo presenta las principales ideas desarrolla-das por el pensador checo-brasileño Vilém Flusser en sus obrasque están disponibles en Brasil. Destaca la contribución de Flus-ser para entender los complejos ambientes de la comunicación y las prácticas de interacción que permiten la organización de lassociedades y sus culturas. En el contexto actual, marcado por losprocesos de comunicación mediada también por los ordenado-res y los entornos digitales, muestra la importancia del diálogocon Flusser en la investigación sobre la cultura, imagen, mediosde comunicación, aparatos de comunicación y el proprio proce-so de la comunicación.Palabras clave: Vilém Flusser, comunicación, cultura, imáge-nes, técnicas, teorías de la comunicación, media.

To read Vilém Flusser Abstract: This text presents the main ideas of the books availablein Portuguese by Czechoslovakian-Brazilian thinker Vilém Flusser.It highlights Flusser contribution to understanding the complexcommunicational environments and the bounding practices thatallow the organization of societies and cultures. In the context of contemporary world, set by communication processes mediatedby computers and digital environments, this study shows interlo-cution with Flusser in researches about culture, image, media, com-munication devices and the communication processes themselves.Key words: Vilém Flusser, communication, culture, technicalimages, communication theory, media.

Para ler Vilém Flusser

José Eugenio de O. Menezes

ste artigo pretende mostrar o desen-volvimento das contribuições de Vi-

lém Flusser (1920-1991) para a compreensãodos processos mediáticos contemporâneos,ou seja, da chamada cultura dos media oucultura de redes. O mapa das obras de Flus-ser disponíveis no Brasil facilita o contatocom seus primeiros breves ensaios publica-dos em jornais brasileiros e depois reunidos

em livros. Em seguida, oferece subsídiospara a continuidade dos debates a respeitodas imagens, dos media, dos processos de co-municação e dos aparatos de comunicação,temas com os quais Flusser trabalhou na fasemadura de sua vida.

Entre os diversos caminhos para o acessoa um autor e/ou sua obra destaca-se a leitu-ra de sua autobiograa. O contato com Bo-denlos: uma autobiografa flosófca, de VilémFlusser, permite o acesso ao universo dialó-

gico no qual viveu o lósofo tcheco natu-ralizado brasileiro que, fugindo da invasãonazista, deixou sua cidade natal – Praga –com a família de sua namorada Edith Barthe viveu no Brasil de 1940 a 1972. No prefácioda edição brasileira Gustavo Bernardo, pro-fessor de Teoria Literária da UERJ, traduz apalavra alemã Bodenlos como “sem chão” ou“sem fundamento”, lembrando que Flusser

Doutor em Ciências da Comunicação (ECA-USP)Proessor de Pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero

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“assume sua condição de eterno migrante, desujeito desenraizado; tanto de pátrias quantode quaisquer sistemas” (Bernardo in Flusser,2007:10).

Para Norval Baitello, professor da

Pós-graduação em Comunicação e Semióti-ca da PUC/SP, Flusser é um dos pensadoresque permitem a compreensão dos processosde comunicação em uma ótica culturalista.

Flusser reete em sintonia com uma correntede estudos marcada por pesquisadores comoo historiador da arte Aby Warburg (1886-1929), o jornalista e depois teórico dos me-dia Harry Pross (1923-2010), o lósofo esociólogo Dietmar Kamper (1936-2001) e ohistoriador da arte Hans Belting (1935).

 Língua e realidade

A primeira obra de Flusser, publicada em1963 pela Editora Herder e em 2004 pela An-nablume, foi dedicada ao tema da linguagem.Língua e realidade está dividido em um prólo-go, quatro partes e uma conclusão. As quatropartes praticamente explicitam todo o sentidodos propósitos teóricos do autor: a língua é arealidade; a língua forma a realidade; a línguacria realidade e a língua propaga a realidade.

Na primeira parte o autor enfatiza quepretende investigar como “a realidade dosdados brutos é apreendida e compreendidapor nós em forma de língua. Essa posição éradical, já que, se for aceita, a realidade em si dos dados brutos se torna inacessível e, nestesentido, vazia” (Flusser, 2004: 82). Na argu-

mentação da primeira parte de A língua é a

realidade o autor mostra que a correspondên-cia entre língua e realidade é inarticulável, queo conhecedor é produto e produtor da língua,que as múltiplas línguas representam diferen-

tes cosmos e que o poliglotismo é um métodopara se ultrapassar os limites de uma língua eda visão de mundo expressa pela mesma.

Na segunda parte, intitulada A língua or-

ma realidade, Flusser lembra que o lósofoaustríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951)dene a losoa como “um conjunto de con-tusões que o intelecto acumulou ao chocar-se contra os limites da língua”. Lembra queWittgenstein fala em língua “como se existis-se uma única, nunca considera a pluralidadedas línguas” (2004:85). Em seguida, mostraque “cada língua é o mundo inteiro, e dife-rente de toda outra língua” (2004:128).

No terceiro capítulo, denominado A lín-

gua cria realidade, Flusser argumenta que aschamadas realidade e conhecimento são “ca-tegorias da língua que variam de língua paralíngua”.

No quarto capítulo, A língua propaga arealidade, o autor mostra que a natureza éuma conseqüência da conversação, lembraque “aquilo que chamamos de fenômenosnaturais, as pedras, as estrelas, a chuva, as ár-vores, a fome, são fenômenos reais, porquesão conceitos, palavras. As relações entre osfenômenos são reais, porque formam pensa-mentos, frases” (2004:190).

O autor conclui mostrando que o pro-pósito da obra era incentivar o processo deconversação, que pretende “mergulhar estetrabalho no grande rio da conversação paraque seja levado pela correnteza da realizaçãoaté o oceano do indizível” (2004:203).

 A história do diabo

O primeiro livro de Flusser, com o títu-lo A História do Diabo, foi escrito antes deLingua e Realidade, mas publicado apenasem 1965. A História do Diabo, redigido emalemão entre 1956 e 1957, não encontrouacolhida de editoras alemãs e foi traduzido

O primeiro livro de

Flusser, redigido em

alemão, não encontrou

acolhida de editoras

e oi traduzido parao português pelo

próprio autor 

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para o português pelo próprio autor. Publi-cado pela Livraria Martins Fontes (1965) edepois pela Annablume (2005), a obra pa-rodia textos bíblicos e aborda temas recor-rentes no imaginário ocidental: luxúria, ira,

gula, inveja, avareza, soberba, a preguiça e atristeza do coração.Em uma resenha publicada na revista

Communicare, Mônica Maria Martins deSouza, doutora em Comunicação e Semi-ótica e professora da Faculdade Anchieta,destaca que “Flusser considera que escreversobre o diabo é embrenhar-se em confusãoética, portanto, pecar, mas não escrever étornar-se autoconsciente disso. Reetir a res-peito é deparar-se com a dúvida, a essênciado homem. Viver é lançar-se ao inferno, tãoou mais prazeroso que os céus” (2004:174).Mônica Martins de Souza lembra que:

Através de cenários, de imagens e da discus-são a respeito das imagens, Flusser ofereceuma grande contribuição à teoria da mídia,tratada a partir da concepção das relaçõesespaciais, a partir da criação de vínculos.Lembra do mito do início e do tempo comodimensão do espaço. No início, o Senhordeu a corda, de onde se desenrolaram o céue a terra. Quando ela desenrolasse intei-

ramente, o início estaria ndo. Sendo issoobscuro, e na obscuridade, o signicado seesconde e se revela, criaram-se céu e ter-ra, espaço e tempo. Então, Deus arrancouum pedaço do ser em si e o mergulhou nacorrenteza do tempo. A identidade entre otempo e o diabo torna-se, então, o princí-pio do progresso, transformação da realida-de em irrealidade (Martins, 2004:174).

Ao comentar esta obra de Flusser, no arti-go Os elementos pós-modernos na obra brasi-

leira de Vilém Flusser , a pesquisadora tcheca

Eva Batlickova mostra que o autor “logica-mente, mas de maneira incomum, liga Deuscom tudo que se encontra fora do tempo ecom tudo que é individual”. Por outro lado,mostra que “o Diabo desempenha o papeldo construtor da história, porque, em con-traste com Deus, passou a existir a partir deum determinado momento e assim tem umahistória” (Batlickova, 2004).

Dentre os temas de A História do Diaboencontra-se um questionamento ao nacio-nalismo. “O nacionalismo é uma máscararomântica da luxúria que conseguiu enganara inibição e penetrou, assim disfarçada, a su-

perfície dos acontecimentos”. E o autor ain-da acrescenta que o nacionalismo é uma dasvitórias mais impressionantes do diabo pelofato de ter “todas as características diabólicasem grau elevado” (2005:85).

No livro destaca-se também a diferençacara ao autor entre conversação e conver-sa ada, quando lembra que “as palavras,que na conversação autêntica são conceitos,transformam-se, na conversa ada, em pre-conceitos” (2005:153).

 Da Religiosidade

Publicado originalmente pela ImprensaOcial para a Comissão Estadual de Culturado Estado de São, em 1967, a última ediçãode Da Religiosidade recebeu um acréscimoem seu título na publicação da Editora Escri-turas (2002): Da Religiosidade. A literatura e

o senso de realidade.Da Religiosidade reúne dezessete ensaios.

Onze deles publicados no Suplemento Literá-rio do jornal O Estado de S. Paulo, bem comooutros textos publicados na Revista Brasileira

de Filosofa, na Revista do Instituto Tecnológico

da Aeronáutica, na Revista Comentário, na Di-

álogo e também um artigo publicado na Re-vista Brasileña de Cultura, editada em Madrid.

A literatura, para Flusser, é “o lugar noqual se articula o senso de realidade. E sensode realidade é, sob certos aspectos, sinônimode religiosidade” (Flusser, 2002:13). O autor,depois de observar que “senso de realidade” ésinônimo de “religiosidade”, acrescenta:

Real é aquilo no qual acreditamos. Durantea época pré-cristã o real era a natureza, eas religiões pré-cristãs acreditam nas for-ças da natureza que divinizam. Durantea Idade Média o real era o transcendente,que é o Deus do cristianismo. Mas a par-tir do século XV o real se problematiza. Anatureza é posta em dúvida, perde-se a fé

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no transcendente. Com efeito, nossa situa-ção é caracterizada pela sensação do irreale pela procura de um senso novo de reali-dade. Portanto, pela procura de uma novareligiosidade. Esse o tema dos ensaios esco-lhidos (Flusser, 2002:13).

Neste livro destaca-se um artigo denomi-nado O Funcionário, no qual aborda o temada liberdade, considerando que aqueles quetrabalham com aparelhos, os funcionários,agem em função dos aparelhos e não podemescolher. Este tema fundamental, depois de-senvolvido por Flusser em A Filosofa da Cai-

xa Preta, continua instigando as pesquisas arespeito da liberdade no contexto das redesde computadores.

 Natural:mente

Publicado em 1979 pela Livraria DuasCidades, o livro Natural:mente: vários acessos

ao signifcado da natureza reúne um conjun-to de ensaios que Flusser escreveu para diver-sas revistas brasileiras, americanas, alemãs,francesas e especialmente para o Suplemento

Literário do jornal O Estado de S. Paulo. Osensaios, redigidos a partir da observação depaisagens européias e publicados pela pri-

meira vez em Paris, apresentam títulos emforma de “guia turístico”: caminhos, vales,pássaros, chuva, o cedro no parque, vacas,grama, dedos, a lua, montanhas, a falsa pri-mavera, prados, ventos, maravilhas, botões,neblina e natural:mente.

No último ensaio de Natural:mente o au-tor indica que a mesma pretende “ilustrarcomo a cultura, longe de libertar o homemda determinação pelas forças da natureza, seconstitui em condição determinadora. Por-

tanto, em ‘segunda natureza’” (1979:137).Na medida em que os ensaios mostram a

vacuidade do termo natureza, o autor indicaque na verdade escreveu um livro a respeitode losoa da ciência, da história da ciênciaou a respeito de questões epistemológicas.Flusser mostra que a crise da ciência exigeuma reformulação radical tanto dos méto-dos quanto do interesse da mesma pelas coi-

sas. Gustavo Bernardo, ao comentar o livroNatural:mente, arma que o autor propõe asuspensão das principais crenças. De acordocom Bernardo:

A proposta se explicita desde o título

ambíguo do seu livro de contos/ensaios,Natural:mente. Fala-se ‘naturalmente’, umapalavra só. Mas o ‘natural’, propriamen-te dito, ‘mente’; é desta constatação queemerge a obra de Flusser. É possível pro-jetar um mapa e consultá-lo para se orien-tar na paisagem – ou consultar a paisagempara se orientar no mapa. Todavia, quan-do se trata de tomar decisões, mapas nãoservem: ‘Decisões autênticas são absurdas’(Bernardo, 2002:89).

No nal da obra Flusser justica o fato de

publicar um volume sobre as paisagens eu-ropéias no contexto da literatura brasileira.Lembra que o livro “foi escrito por quem vi-veu a maior parte de sua vida no Brasil e vol-tou para a Europa natal com mente e sensibi-lidade fortemente abrasileiradas” (1979: 47).

 Pós-História

O livro Pós-História. Vinte instantâneos e

um modo de usar foi publicado em 1983 pela

Editora Duas Cidades. O livro está organiza-do em pequenos textos que podem ser lidosem qualquer ordem. O sumário indica umpanorama dos temas abordados: modos deusar, o chão que pisamos, nosso céu, nossoprograma, nosso trabalho, nosso saber, nos-sa saúde, nossa comunicação, nosso ritmo,nossa morada, nosso encolhimento, nossaroupa, nossas imagens, nosso jogo, nosso di-vertimento, nossa espera, nosso receio, nossaembriaguez, nossa escola, nosso relaciona-

mento e, por m, retorno.Os leitores devem ter o cuidado de não

confundir o título do livro Pós-História comos estudos a respeito da pós-modernidade naperspectiva da obra La Condition Postmo-

derne de Jean-François Lyotard. Pós-história“é um conceito irônico, em contraposição àseriedade patética que cerca o chamado pós-moderno” (Bernardo, 2002:127).

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No início da obra, ao apresentar os Mo-

dos de usar , Flusser explica que o texto nãopretende orientar ou instruir o leitor. “Oque precisamente não quer é ser consumido.Por isto este ‘modo de usar’ se quer rejeita-

do depois de lido. O que se pretende é queo leitor faça uso deste texto da maneira quebem entender. Mas que o transforme, prefe-rivelmente, em parte dos diálogos dos quaiso leitor participa” (Flusser, 1983:8).

No texto O chão que pisamos, o autormostra que o programa da cultura ociden-tal contém várias virtualidades, não apenasaparelhos que aniquilam seus funcionários eseus programadores.

Numerosas virtualidades ainda não foram

realizadas. Em tal sentido a ‘história do Oci-dente’ ainda não acabou, o jogo ocidentalcontinua. [...] O que nos resta é analisarmos oevento Auschwitz em todos os detalhes, paradescobrirmos o projeto fundamental que láse realizou pela primeira vez, para podermosnutrir a esperança de nos projetarmos forado projeto. Fora da história do Ocidente. Talo clima ‘pós-histórico’ no qual somos chama-dos a viver doravante (1983:15).

Na avaliação de Gustavo Bernardo(2002:187), foi a história das imagens técni-cas que conduziu Vilém Flusser ao conceito depós-história. Tal concepção de imagens técni-cas foi abordada no livro Filosofa da Caixa Pre-

ta, quando em um pequeno glossário Flusserdistingue a pré-história ou “domínio de idéias,ausência de conceitos; ou domínio de imagens,ausência de textos”, a história como “traduçãolinearmente progressiva de idéias em concei-tos, ou de imagens em textos” e, nalmente, após-história como “processo circular que re-traduz textos em imagens” (2002:77).

O livro Pós-História apresenta conceitos-chave para a pesquisa a respeito das redes edos hiperlinks que marcam a comunicaçãoe a incomunicação na contemporaneidade.

 Filosofa da Caixa Preta

A obra hoje traduzida em quinze paísesfoi publicada originalmente como Für eine

Philosophie der Fotografe (Göttingen: Euro-pean Photography, 1983). No Brasil, a versãotraduzida pelo próprio autor foi publicadacomo Filosofa da Caixa Preta (1985). A úl-tima edição brasileira, pela Editora Relume

Dumará, apresenta o título Filosofa da CaixaPreta: Ensaios para uma utura flosofa da o-

tografa (2002).

O livro mais conhecido de Flusser apre-senta um sumário com os seguintes capítu-los: a imagem, a imagem técnica, o aparelho,o gesto de fotografar, a fotograa, a distribui-ção da fotograa, a recepção da fotograa, ouniverso fotográco, a necessidade de umalosoa da fotograa e, nalmente, glossáriopara uma futura losoa da fotograa.

Apesar de Filosofa da Caixa Preta ter, noBrasil, o subtítulo Ensaios para uma utura

flosofa da otografa, a palavra ‘fotograa’deve ser lida como metonímia, isto é, comouma palavra para designar o universo deimagens mediadas por tecnologias. O autorusa a palavra fotograa como pretexto paracompreender o funcionamento das socie-dades pós-históricas que trabalham menoscom textos e mais com imagens. Na avalia-ção de Arlindo Machado (2001), professorda USP e da PUC de São Paulo, Flusser estu-da a fotograa como modelo para analisar asociedade das imagens técnicas.

O livro mostra, ainda segundo Machado,que os fotógrafos atuam dentro de duas pos-sibilidades: usar a máquina como um simplesfuncionário que não conhece os programasdo aparelho (caixa preta) ou em uma pers-

O autor mostra que

a crise da ciência

exige uma reormu-

lação radical tanto

dos métodos quanto

do interesse da

mesma pelas coisas

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pectiva artística que insurge contra o progra-ma e resgata artisticamente a liberdade.

Ao tratar as imagens como “superfíciesque pretendem representar algo” (2002:7), oautor está se referindo à subtração de algo,

isto é, mostra que a imagem é a principalferramenta da desmaterialização das coi-sas e dos corpos. Flusser ainda mostrará, nacontinuação de suas obras, a diferença entreimagens tradicionais (bidimensionais) e asimagens técnicas (nulodimensionais).

Gustavo Bernardo, para decifrar a noçãodo “funcionário” que utiliza aparelhos jámontados e programados, faz uma relaçãoentre a lósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) e Vilém Flusser.

Hannah Arendt, ao estudar a banalidadedo mal, se perguntou como gente insigni-cante foi transformada pelo aparelho nazis-ta em funcionários poderosos. Flusser ten-tou olhar o outro lado do problema: genteresponsável e culta sendo transformadaem funcionários insignicantes que pro-movem, sem o perceber, males gigantescos,adequados aos aparelhos agigantados queos empregam (Bernardo, 2002:176).

O último capítulo de Filosofa da Caixa

Preta, intitulado Glossário para uma utu-

ra flosofa da otografa, apresenta termoscomo: aparelho: “brinquedo que simula umtipo de pensamento”, fotógrafo: “pessoa queprocura inserir na imagem informações nãoprevistas pelo aparelho fotográco”, funcio-nário: “pessoa que brinca com aparelho eage em função dele” e imagem: “superfície

signicativa na qual as idéias se interrelacio-nam magicamente”.

 Os gestos

Em 1991 o autor publicou Gesten. Versu-ch einer Phänomenologie pela editora alemãBollmann Verlag. A obra, inédita em portu-guês, foi traduzida para o espanhol pela Edi-tora Herder em 1994 como Los Gestos. Feno-

menología y Comunicación.É interessante observar que esta obra en-

cerra toda uma pesquisa sobre a observaçãoaberta, minuciosa e compreensiva dos gestosmais simples em pleno momento do desen-volvimento da telemática. Assim, Los Gestos,é uma obra madura que revela que todo ca-minho percorrido pelo autor foi marcadopor uma postura losóca com metodologiafenomenológica.

No capítulo O gesto de escrever 1 encontra-se um exemplo dessa perspectiva fenomeno-lógica pela qual o pensador deixa-se tocar,abre-se para observar um gesto, descreve-ocom uma sensibilidade impar:

Para podermos escrever necessitamos – en-tre outras coisas – dos seguintes fatores: uma

superfície (a folha de papel), um instrumen-to (uma caneta, esferográca), uns signos(letras), uma convenção (o signicado dasletras), umas regras (a ortograa), um siste-ma (a gramática), um sistema marcado pelosistema da língua( um conhecimento se-mântico da língua em questão), uma men-sagem para escrever ( as idéias ) e a escrita. Acomplexidade não está tanto na pluralidadedos fatores indispensáveis quanto na sua he-terogeneidade (Flusser, 1991:32).

Assim, para o autor, “os gestos são movi-

mentos do corpo que expressam uma inten-ção” (1991:14). Uma Teoria dos Gestos seriaa “disciplina interpretativa (semiológica)das manifestações fenomenais da liberdade”,deniu o autor em uma carta a Celso Lafer,professor de losoa do direito da USP, em1975 (Lafer in Flusser, 1999:15).

Flusser usa a palavra

otografa como pretexto

para compreender o

uncionamento dassociedades que traba-

lham mais com imagens

do que com textos

1 Citação traduzida do espanhol por Maria Helena Charro.

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A obra, ainda inédita em língua portu-guesa, está organizada, na edição espanhola,em 18 capítulos: gesto y acordamiento, másallá de las máquinas, el gesto de escribir, elgesto de hablar, el gesto de hacer, el gesto de

amar, el gesto de destruir, gesto de pintar, elgesto de fotografar, el gesto de lmar, el ges-to de darle la vuelta a la máscara, el gesto deplantar, el gesto de afeitar, el gesto de oír mú-sica, el gesto de fumar em pipa, el gesto de te-lefonar, el gesto del vídeo e el gesto de buscar.

Dos gestos descritos por Flusser nasce anecessidade de se aprofundar os processos depercepção a partir, por exemplo, de trabalhoscomo Fenomemelogia da Percepção de Mau-rice Merleau-Ponty.

 Fenomenologia do brasileiro

Publicada na Alemanha pela editora Boll-mann Verlag em 1994 e no Brasil em 1998,pela Editora da Universidade do Estado doRio de Janeiro, a obra reete a respeito doBrasil dos “anos 70 para ‘trás’ ”. Em alemãoo título completo da obra é Brasilien oder die

Suche nach dem neuen Menschen: Für eine

Fhänomenologie der Unterentwichklung . Natradução brasileira realizada pelo próprioFlusser o título é Fenomenologia do brasileiro:em busca de um novo homem.

O autor propõe que o novo homem sejaum homo ludens consciente de que joga e deque jogam com ele. Neste contexto, descrevetrês estratégias de jogo. A estratégia um é ados que, como os estadunidenses, jogam paravencer, mesmo arriscando a derrota. A estra-tégia dois é o jogo dos excluídos que jogampara não perder, buscando reduzir os riscostanto da derrota como da vitória. Já a estraté-gia três é o jogo dos que jogam para mudar ojogo, atuam com certo distanciamento, comofazem os cientistas. O termo Homo Ludens integra o título de um livro do historiadormedievalista Johan Huizinga: Homo Ludens:

o jogo como elemento da cultura (1990).O livro Fenomenologia do brasileiro: em

busca de um novo homem está organizadode forma a abordar vários cenários da vida

brasileira: em busca de um novo homem,imigração, natureza, defasagem, alienação,miséria, cultura, língua e, nalmente, diag-nóstico e prognóstico.

Na avaliação de Maria Helena Varela, da

Universidade de Évora (Portugal), “Flussernão se questiona sobre o que é o Brasil, massobre o que pode ser o brasileiro, sobre a pos-se de sua ontologia poi-ética, num processoque começou ao nível lingüístico, e, por issomesmo, é autêntico, não deliberado”. A pes-quisadora enfatiza:

Não há qualquer atitude messiânica do -lósofo tcheco em relação ao Brasil. O Bra-sil é apenas um dos vários lugares (nãode muitos) em que surgem sintomas quetornam possível uma esperança. Dialogarcom ele, sentir a experiência afetiva de ou-tra língua no colorido metafísico do por-tuguês brasileiro, na versatilidade táctil deseu signicante politicamente incorreto,em ressonância com a oração do coraçãoe a noite do sensível, seduz o seu [Flusser]espírito fenomenológico, no claro-escurode uma cumplicidade que insere mas nãointegra (Varela, 2001:444).

Na obra encontram-se armações curio-sas como, por exemplo: “O brasileiro é ho-

mem do palpite genial, e não do planejamen-to” (1998:53). Na verdade, Flusser manifestacomo o Brasil se apresenta ao imigrante inte-lectual no último terço do século XX:

um ambiente que não lhe opõe obstáculodigno de nota, nem incentivo para enga-jar-se nele. Se quiser viver nesse ambientecomo homem livre, deve abrir sua própriapicada. Homem livre signica homem quevê sua própria situação de fora, projeta ummapa sobre ela e age de acordo, que dá sen-tido ao seu ambiente, vive de acordo comeste sentido, e assim o transforma nummundo da sua vida. E, para que este sen-tido dado não seja mera fantasia, procuradesvendar a realidade da situação em quevive. Portanto: pronto a alterar-se, a m dealterar o mundo” (Flusser, 1998:56).

Uma importante revelação dos motivospelos quais Flusser se interessava pelos fenô-menos da comunicação humana está presen-

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te neste livro. O autor explicita que reete so-bre os abismos que separam os homens e aspontes que atravessam tais abismos, porqueutua, ele próprio, por cima deles.

 Ficções Filosófcas

Publicado em 1998 pela Edusp, o livroFicções Filosófcas reúne 35 artigos, a intro-dução da advogada Maria Lília Leão e a apre-sentação de Milton Vargas, professor da USP.O livro reúne artigos publicados em perió-dicos brasileiros, cinco traduções de ensaiospublicados na Europa e um texto inéditocom o título Pontifcar .

Em uma carta dirigida a Maria Lilia Leão,que introduz o livro com o texto Flusser e aliberdade de pensar , Vilém Flusser comenta otítulo do livro.

Quanto ao título ‘cção losóca’: há muitotempo estou com a idéia de que o tratadolosóco (texto alfanumérico sobre) nãomais se adequa à situação da cultura; de queos lósofos acadêmicos são gente morta, eque a verdadeira losoa atual é feita porgente como Fellini, os criadores de clips,ou os que sintetizam imagens. Mas comoeu próprio sou prisioneiro do alfabeto, e

como sou preso da vertigem losóca, devocontentar-me em fazer textos que sejampré-textos para imagens. A maneira de fazê-lo é escrever fábulas, por que o fabuloso éo limite do imaginável. Escrevi e publiqueiuma fábula animal, Vampyrotheutis Iner-nalis, sobre a qual Abraham Moles escreveuque inicia método losóco futuro, e meusensaios não aparentemente fabulosos, na re-alidade se querem ccionais (Flusser apud Leão in Bernardo e Mendes, 2000:18).

Para o leitor brasileiro ca a curiosidade

pelo Vampyrotheutis Inernalis (Flusser; Bec,1987), citado na carta acima. Trata-se de ummonstro criado em colaboração com o ‘bi-ólogo-fantasista’ francês Louis Bec, descritosobre forma ‘fantasiosamente cientíca’, quevive isolado nas profundidades oceânicas.

Ainda em Ficções Filosófcas, destaca-se oensaio Hearing Aids, no qual o autor faz umaimportante reexão sobre a relação entre o

ouvido e a política; mostra que o ouvido émuito mais político que a vista, que o silêncioé o maior dos luxos, que o engajamento po-lítico é um engajamento “em barulho”. Comsuas palavras, com a política “[...] pretende-

se harmonizar o barulho. Em alemão ‘voto’é ‘voz’ (stimme). Trata-se de harmonizar asesferas. Fazer do barulho concerto (não con-senso) (Flusser, 1998:62).

Na mesma coletânea destaca-se tambémum instigante texto a respeito da cançãoDeixa Isso Pra Lá, composta por Edson Me-nezes e Alberto Paz, e interpretada por JairRodrigues: “Deixa que falem, que digam,que pensem; deixe isto pra lá. Eu não estoufazendo nada, você também. Faz mal baterum papo assim gostoso com alguém? Vempra cá, o que é que tem?”. Com o texto in-titulado Deixe isto pra lá, Flusser analisa aconsciência coletiva indicando que a cançãorevela uma desilusão total com os valores dasociedade, “o abandono desses valores e suasubstituição pela inautenticidade do bate-papo” (Flusser, 1998:77-82).

 Bodenlos: uma autobiografa flosófca

A obra foi publicada na Alemanha logo

após a morte do autor, reunindo textos es-critos após sua volta para a Europa, em 1972.No prefácio da edição brasileira (2007), inti-tulado A Gente de Flusser , Bernardo explica apreferência do autor pela expressão “a gente no lugar da primeira pessoa do singular, eu,ou do plural de modéstia, nós”, bem como opróprio sobrenome do autor que sugere ouir de um rio (Fluss, em alemão).

A obra está organizada em quatro seções:monólogo, diálogo, discurso e reexões. Na

seção Monólogo encontramos oito temas:atestado de falta de fundamento, Praga en-tre as guerras, a invasão nazista, a Inglaterrasitiada, a guerra em São Paulo, o jogo do sui-cídio e do Oriente, a natureza brasileira e alíngua brasileira. Na seção Diálogo apresentaas conversações com Alex Bloch, Milton Var-gas, Vicente Ferreira da Silva, Samson Flexor,João Guimarães Rosa, Haroldo de Campos,

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Dora Ferreira da Silva, José Bueno, Romy Fink, Miguel Reale e Mira Schendel. Na se-ção Discurso apresenta sua leitura da Teoriada Comunicação e da Filosoa da Ciência.Por m, a seção Reexões, explica o que sig-

nica habitar a casa na apatridade.Através do relato dos diálogos com 11 in-terlocutores, 7 brasileiros e 4 imigrantes (otcheco Alex Bloch, o artista plástico romenoSamson Flexor, o inglês Romy Fink e a artistaplástica suíça Mira Schendel), Flusser mos-tra que toda construção de sua vida e de suaprodução aconteceu na conversação com in-terlocutores. Pessoas que também buscavama compreensão do mundo e a justicativapara continuar a viver e a manter um engaja-mento na contemporaneidade.

 A Dúvida

O prefácio de Celso Lafer para A Dúvi-

da (1999) é um texto revelador do percur-so losóco de Flusser, das relações comos interlocutores, das idéias e livros quedevorou antropofagicamente, à maneirade Oswald de Andrade. Assim, mostra queo positivismo lógico, com seu formalismo,era insuciente para dar conta das inquieta-ções losócas de Flusser. Observemos, porexemplo, o seguinte excerto:

No trato teórico da língua em A Dúvida,estão presentes tanto Carnap e Wittgens-tein quanto Heidegger e Sartre. Em Flus-ser, esta conuência se radica na razãovital, que é, à maneira de Ortega y Gasset,que ele conhecia bem, uma razão de vidana dupla acepção de orientar nossa vidano mundo e orientar-nos no entendimen-to do mundo através de nossa vida” (Lafer

in Flusser, 1999:8).

O livro, uma versão ampliada e trabalha-da de um artigo chamado Da Dúvida, publi-cado em Da Religiosidade (1967), apresentaos seguintes capítulos: introdução, do inte-lecto, da frase, do nome, da proximidade, edo sacrifício. Pode-se dizer que a dúvida é omais espinhoso tema de Flusser, apresentadologo no início deste livro:

A dúvida é um estado de espírito poliva-lente. Pode signicar o m de uma fé, oupode signicar o começo de outra. Podeainda, se levada ao extremo, ser vista como‘ceticismo’, isto é, como uma espécie de féinvertida. Em dose moderada estimula o

pensamento. Em dose excessiva paralisatoda atividade mental. [...] A dúvida, aliadaà curiosidade, é o berço da pesquisa, por-tanto de todo conhecimento sistemático(Flusser, 1999:17).

A perspectiva da dúvida é um importantecomponente do pensamento de Flusser. Eletinha a consciência de fazer parte da primei-ra ou segunda geração daqueles para os quaisa dúvida da dúvida” não é mais um passa-

tempo teórico, mas uma situação existencial”(Flusser, 1999:19).

 O mundo codifcado

Publicado pela Cosac Naif em 2007, olivro reúne um conjunto de artigos sobrecomunicação e design. O organizador, Ra-fael Cardoso, reuniu nesta coletânea algunstextos traduzidos por Raquel Abi-Sâmaraa partir da obra alemã Vilem Flusser: VomStande der Dinge (Gottingen: Seidl Verlag,1993 e 1997), outros textos traduzidos dacoletânea Vilém Flusser: Dinge und Undin-

ge: Phänomenologische Skizzen (Munique/Viena: Carl Hanser Verlag, 1993) e outrostraduzidos do alemão a partir de originaisdatilografados fornecidos pelo Vilém Flus-ser Archiv. A coletânea, além da introduçãode Rafael Cardoso, que chega a apresentarFlusser como um dos maiores pensadores

Los Gestos é uma obra

madura que revela que

todo caminho percor-

rido pelo autor oi mar-

cado por uma posturaflosófca com metodo-

logia enomenológica

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do século XX, conta com três grandes se-ções: coisas, códigos e construções.

Trata-se de uma obra fundamental paracompreender o que pode ser chamado de“período europeu” da vida do autor, pois

também reúne textos escritos entre 1973,um ano após o retorno para a Europa, e1991, ano da sua morte (Menezes, 2009).Este período é marcado pelo reconhecimen-

to internacional e pelas inúmeras palestrasque proferiu em diferentes países onde eraconvidado como “lósofo dos novos media”(Bernardo in Flusser, 2007: 9). Dentre os tex-tos de O mundo codifcado, destaca-se O que

é comunicação, onde distingue comunicaçãodialógica e comunicação discursiva:

Para produzir informação, os homenstrocam diferentes informações disponí-veis na esperança de sintetizar uma novainformação. Essa é a forma de comuni-cação dialógica. Para preservar, mantera informação, os homens compartilhaminformações existentes na esperança deque elas, assim compartilhadas, possamresistir melhor ao efeito entrópico da na-tureza. Essa é a forma de comunicaçãodiscursiva (Flusser, 2007:97).

O lósofo mostra a importante diferençaentre participar de um discurso e participarde um diálogo, considerando especialmenteque um dos desaos da contemporaneidadeé justamente a “diculdade de produzir diá-logos efetivos, isto é, de trocar informaçõescom o objetivo de adquirir novas informa-ções” (2007:98).

 O universo das imagens técnicas.

Elogio da superfcialidade

O Elogio da Superfcialidade era o títulodo original datilografo em português, pu-

blicado no Brasil em 2008 como O Universodas Imagens Técnicas – Elogio da Superfcia-

lidade. Composto de 16 capítulos, sendo 15deles com os títulos expresso através de ver-bos: abstrair, concretizar, tatear, imaginar,apontar, circular, dispersar, programar, dia-logar, brincar, criar, preparar, decidir, domi-nar, encolher e o último intitulado música decâmera. O autor recomenda, no nal da obra,que “este último capítulo pode ser lido comoprimeiro”. Em síntese, a imagem técnica ou

tecno-imagem, produzida por aparelhos, é aimagem pós-escrita, feita de pontos, grânulose pixels, não mais de planos ou superfícies.

Neste livro Fusser percorre a história dastransformações dos meios de comunicaçãoe elabora o conceito de escalada da abstra-ção, a subtração progressiva das dimensõesdos objetos. O conceito é fundamental paraa o entendimento das relações entre comu-nicação tridimensional (o corpo e sua ges-tualidade), comunicação bidimensional (a

imagem), comunicação unidimensional (aescrita, o traço, a linha...) e comunicação nu-lodimensional (pontos ou números do uni-verso digital, as imagens técnicas). Detalhesa respeito desta questão foram desenvolvidospor Baitello (2003, 2005 e 2010) e Menezes(2008 e 2009).

O estudo é uma importante contribuiçãopara leitura da cultura dos media ou culturade redes. O Elogio da Supercialidade ante-cede e prepara o conjunto de ensaios depois

reunidos no livro Medienkiltur (Cultura dosMedia), publicado na Alemanha em 1997 eainda inédito em língua portuguesa.

 A Escrita. Há uturo para a escrita?

O livro foi redigido entre 1987 e 1989,dois anos antes do autor sofrer um acidenteautomobilístico e falecer em Praga, em 21 de

Nas investigações

sobre os novos

ambientes comuni-

cacionais, sobre

cultura, media e

imagem, Flusser é uminterlocutor necessário

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dezembro de 1991. Em A alquimia da escrita:

a passagem obrigatória das coisas para as não-coisas, a apresentação da edição brasileirado livro A Escrita. Há uturo para a escrita?  (2010), Norval Baitello mostra que a obra é

peça-chave para compreensão do pensamen-to de Flusser.

[...] Como se trata do artifício que trans-formou a cabeça dos seus criadores e lhesabriu as perspectivas para um novo pen-samento, abstrato e de horizontes impen-sados, a escrita é fundamental passo parase compreender o novo universo abstratoe imaterial dos avanços tecnológicos, sobreos quais Flusser tanto profetizou (Baitelloin Flusser, 2010:19).

No sumário da obra percebe-se a pers-pectiva metodológica de busca das cama-das mais profundas utilizada pelo autor, talcomo fazem os pesquisadores das ciênciasarqueológicas. Após a introdução, o sumárioindica os seguintes capítulos: metaescrita,inscrições, sobreescrições, letras, textos, ti-pograa, a língua falada, poesia, modos deleitura, decifrações, livros, cartas, jornais,papelarias, escrivaninhas, roteiros, (códigos)digitais, transcodicar, subscrita e posfácio.

Ao comentar o fato que o livro teria umasegunda edição Flusser escreveu um posfá-cio no qual convida os leitores a reetir demaneira dialógica a respeito do ensaio, con-siderando que este estilo de texto não tem oobjetivo de comprovar algo. “Um ensaio éuma tentativa de incitar os outros a reeti-rem, de levá-los a escrever complementos”(2010:177).

 Considerações fnais

Os leitores brasileiros recentemente forambrindados com obras que mostram a impor-tância de Flusser: A serpente, a maça e o holo-

grama. Esboços para uma Teoria da Mídia, deNorval Baitello Jr. (2010), Vilém Flusser: uma

introdução, de Gustavo Bernardo, Anke Fingere Rainer Guldin (2008) e A época brasileira deVilém Flusser de Eva Batlickova (2010).

Ciente que qualquer articulação de tantosensaios não capta o cenário do pensamento doautor, recordo uma entrevista que realizei, em29 de julho de 2004, com Suzana Maria de Ca-margo Ribeiro, ex-aluna de Flusser. De acordocom Suzana Ribeiro, que concluiu o curso de

Comunicação com Habilitação Polivalente em1971, na Faculdade de Humanidades e Comu-nicações da FAAP, o professor Flusser orienta-va seus alunos para três formas de aproxima-ção na leitura de um texto: “Primeiro a leiturae absorção pela intuição e emoção, que sãomuito minhas amigas. Segundo, pelo distan-ciamento e nalmente pela busca da estruturado texto”. Assim, convido o leitor a deixar estemapa introdutório e continuar ou começar aler Flusser com muita calma, seguindo as três

orientações que ele mesmo compartilhavacom seus alunos ou interlocutores.

Nas investigações sobre os novos ambien-tes comunicacionais que marcam as práticasvinculadoras que permitem a organização dassociedades e das culturas, nas pesquisas sobrecultura, imagem, media, aparatos da comuni-cação e o próprio processo da comunicação,Flusser é um interlocutor necessário.

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Reerências