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André Gardel é ator e pesquisador, doutorado pela UFRJ.
obra de Arnaldo Antunes vem trazendopara o universo da cultura
de massas, demodo sistemático e com grande poderinventivo,
elementos expressivos que fin-cam raízes em algumas das mais
impor-
tantes experimentações de vanguarda do séculoXX. Não que tais
trocas, intercâmbios e livresusos não ocorram, com certa
freqüência, entreessas instâncias culturais; antes, pelo
contrário,podemos dizer que fazem parte de seus proces-sos
constitutivos comuns, das origens à atuali-dade, particulares mesmo
de suas configuraçõesabertas e permeáveis. E, muito menos ainda,que
outros artistas brasileiros tão inventivosquanto Arnaldo, dentro da
música popular, noBrasil, não tenham feito semelhante aproxima-ção
e interferência de códigos culturais. O quesalta aos olhos e
diferencia a sua produçãomultimídia, é a manutenção e
continuidade,tanto de sucesso comercial quanto de experi-mento, de
um esforço criativo cuja plataformabásica é desentranhar do lugar
comum, o inco-mum; da informação redundante, inovação; dobanal
cotidiano, poesia; dos padrões de norma-lidade, estranheza.
A produção de Antunes parece ser umdesdobramento pop de linhas
inventivas dese-nhadas pelo Concretismo. Parece apenas. O
poeta paulista contemporâneo não é mais umepígono dos concretos;
sua postura estética é,na verdade, pós-concreta, aponta para um
novorumo a partir do movimento, assim como ostrês líderes iniciais
do concretismo renovaram-se seguindo caminhos posteriores
particulares erevitalizantes. Mas a base é uma só: o instru-mental
lingüístico e semiótico; a inserção daescrita ideogramática na
escrita alfabética, queincorpora a estrutura analógica à lógica
dis-cursiva ocidental, subvertendo sintaxes, núcle-os vocabulares;
a pesquisa gráfica e caligráficarevitalizando o verbal; a
contaminação multi-meios; a poesia visual de fundo
cronstrutivista;a proesia; a busca isomórfica de significação
en-tre signo verbal e referente, similaridades fônicase
ambigüidades semânticas etc. Base que é solonutritivo para outras
notas e atitudes entrareme se desenvolverem.
Tais posturas estéticas, embutidas nacriação e divulgação da
obra de Antunes, têmcomo meta o estabelecimento de uma verdadei-ra
reeducação dos sentidos, realizando uma es-pécie de pedagogia da
estranheza, ao tentaramdiminuir o fosso existente entre
experimenta-ção formal e comunicação ligada à indústria cul-tural.
Isso se dá como uma continuação, em ba-ses globalizadas atuais, da
diversidade de
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AAAAA pa l av ra - co rpo e a pe r fo rmance poé t i c a pa l a
v r a - co rpo e a pe r fo rmance poé t i c a pa l a v r a - co rpo
e a pe r fo rmance poé t i c a pa l a v r a - co rpo e a pe r fo
rmance poé t i c a pa l a v r a - co rpo e a pe r fo rmance poé t i
c ae m A re m A re m A re m A re m A rna ldo An tune sna ldo An
tune sna ldo An tune sna ldo An tune sna ldo An tune s
AAAAA ndré Gardel
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interesses, discursos, interferências, culturas eritmos
introduzidos pela Tropicália (por si só,já uma deglutição pop de
proposições moder-nistas) na música popular brasileira, com
umacriação que navega na confluência dessas instân-cias,
enfrentando de modo plural e muito pes-soal o jogo artístico que se
desdobra da dialéti-ca contemporânea entre novidade e
tradição,estética culta e de massas.
O movimento mais constante nessa pro-dução, com isso, é o de
busca de uma possívelbrasilidade desterritorializante,
desfolclorizante,modulada pelo intuito de “transformar o óbviono
inesperado.”1 E este procedimento vai domicroestético ao
macrocultural, se apresentan-do nas unidades mínimas significativas
da ma-terialidade poética, na reconfecção arejante demáximas e
ditos populares, nas suas propostasde diálogo artístico
intersemiótico. Trata-se deum trabalho de desconstrução que se
insinuacomo a contraface pós-moderna, reciclada, doespírito e olhar
primitivistas das vanguardas.O frescor originário do “bárbaro
tecnizado deKeyserling” (Andrade, 1978, p. 14). transmode-la-se nos
olhos livres recriativos do estranhoacústico/ eletrônico massivo,
atravessados pelodesejo interessado (no sentido mariondradino
dotermo), mas não especializado, em produziruma “criação
contaminada de vida, contami-nando a vida” (Antunes, 2000, p. 12) e
que, aomesmo tempo, sofra a interferência de váriasáreas do
saber.
Em outras palavras, para efetuar sua pe-dagogia da estranheza
poética na sociedade bra-sileira contemporânea de massas, Arnaldo
exe-cuta, em sua práxis poética, um movimentosinestésico que se
desborda em multicultura-lidade e multidiscursividade: códigos
distintosvistos como mundos distintos inter-relacioná-veis, mundos
distintos ouvidos como códigosassimiláveis, linguagem e vida
interagindo em
contágios incessantes, vários campos de conhe-cimento em
trânsito, desviando seus sentidos,readquirindo força na migração
poética, nainteração de noções na imagem. Tudo isso parainjetar
estranhamento numa ambiência que,para funcionar, exige o já
assimilado, o estável,a não-novidade, e, também,
dialeticamente,para embeber positivamente de cotidiano múl-tiplo,
diálogo, clareza, fluxo vital a complexida-de formal, o trabalho
com a linguagem.
Os meios expressivos de que Arnaldo seutiliza são diversificados
e amplos: livros, dis-cos, shows e ações performáticas, trabalhos
deartes plásticas, caligráficas, gráficas, poemasvisuais e
digitais, instalações, intervenções.A multiplicidade dessa produção
disponibilizaum variado espectro de possibilidades de recep-ção,
que podem ocorrer, por exemplo, commegashows realizados para
multidões, em gale-rias de arte, a partir de videoclipes e
programasmusicais de tv, do uso artístico de objetos deconsumo, da
visão de outdoors e outros espa-ços urbanos, em palestras e
recitais em bienais,feiras de livros, escolas, centros culturais,
em es-paços teatrais específicos para pequenas perfor-mances, na
leitura silenciosa livresca, naambiência hipertextual da
internet.
Como se vê, Arnaldo estabelece um livretrânsito entre a
indústria “major” e a “minor”,entre os espaços “cults” e “bregas”,
oficiais e al-ternativos, entre o erudito e o popular, entre
os“happy few” e a massa. E é justamente essa pos-tura transicional,
de Hermes-Mercúrio multi-cultural e interartístico, que propicia o
exercí-cio e ampliação do viés “pedagógico” de suaprodução, em
essência, poética. Pois é a partirda potencialização das forças que
tencionam apalavra poética, se distendendo e reverberando,de modo
recorrente, em todos os meios de ex-pressão a que se dedica, que
vem à tona seuideário último: a revitalização, multimídia, de
1 Antunes, Arnaldo. Entrevista concedida a Marili Ribeiro,
suplemento Idéias-Livros do Jornal do Bra-sil, 27/09/1997.
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AAAAA palavra-corpo e a performance poética em Arnaldo
Antunes
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um estado de linguagem – primitivo, semiótico,performativo – em
que nome e coisa, objeto esigno surgem como um único e mesmo
fenô-meno pulsante. Num resgate de uma situação ede um momento
originários em que a lingua-gem torna-se corpo e o corpo,
linguagem.
Dar corpo à palavra significa reinaugurá-la em sua
materialidade, desinvesti-la de suafunção lógico-linear-discursiva
abstrata, tãousual na tradição ocidental. Recuperar, por umlado,
sua tactibilidade de signo verbal oriundode um espaço sensório vivo
e, por outro, de sig-no plástico passível de reconfiguração gráfica
ecaligráfica, pictórica e ideogramática. No pri-meiro caso, o que
se entremostra é o aspectoperformativo e semiótico da palavra
poética, es-tado ritual da linguagem em que o verbo emer-ge
traspassado de fulgurações de ritmo, melo-dia, dança, gestos,
modulações vocalizantes,silêncios, pausas, formas-força
situacionais queaderem à palavra e fazem dela poesia, formamutante
aberta a recriações incessantes. No se-gundo, para aplicar um
choque poético, antiar-bitrário, involutivo na escrita alfabética,
com ointuito de que esta possa trazer em si sua pró-pria
significação, assim como os hieróglifos, sobordenamento paratático,
em co-presença de sig-nos-coisa, articulando-se em fraseogramas
ouatomizando-se em arranjos de morfemogramas,por exemplo.
A proposta deste trabalho é abordar apoesia das performances de
Arnaldo Antunes.O que significa falar, basicamente, dos
instan-tâneos de sua obra em que seu corpo, como au-tor e ator de
uma individualidade, impregna-sede presentidade poética; e, na
mesma medida,dos momentos em que o verbo viajante da poe-sia se
encontra mais preso à língua do corpo,isto é, nas suas
vocalizações, no contexto rít-mico-melódico das canções ou na
ambiênciacênico-espacial de suas ações performáticas.Tangenciando
essas instâncias, a pedagogia daestranheza de Arnaldo Antunes
parece encon-trar uma de suas regras rotativas fundamentais:a
recuperação, no corpo e na linguagem, de umaexperiência originária
humana, em clave mixed-
mídia, de desobstrução e circulação inventiva dapercepção e dos
sentidos, (re) vivida e cons-truída pelo performer, esse “mago
semiótico”(Glusberg, 2003, p. 103), com o intuito de quereverbere
no mundo, expandindo-se como ri-tual coletivo secular.
A palavra corpórA palavra corpórA palavra corpórA palavra
corpórA palavra corpóreaeaeaeaea
Os desdobramentos corpóreos da palavra poé-tica se manifestam
“por suas formas, suas ema-nações sensíveis, e não somente por seus
senti-dos” (Artaud, 1984, p. 157). Pois, segundo PaulZumthor, “tudo
se passa como se a poesia tives-se, entre os poderes da linguagem,
a função deacusar o papel performativo desta” (Zumthor,2007, p.
46). E é justamente pensando a línguacomo performance que Diderot,
em sua Cartasobre os surdos-mudos, cria o conceito de energiapara
definir a especificidade da linguagem poé-tica, portadora da
unidade original da natureza:
“Por intermédio da sensação, diz ele, nossaalma percebe várias
idéias ao mesmo tempo,que são representadas sucessivamente
pelodiscurso. Se a sensação pudesse comandar vin-te bocas
simultaneamente, as múltiplas idéiaspercebidas de modo instantâneo
também se-riam expressas a um só tempo. Na falta des-sas bocas,
‘vincularam-se várias idéias a umasó expressão’” (Mattos, 2005, p.
22).
Nessa concepção de poesia, a única formade restaurar a
exuberância do eixo da simulta-neidade sensorial, submetido à
sucessividade dalógica-lingüística, é o exercício de construção
delinguagem sob a fórmula quanto “menos discur-so, mais energia”,
com o verbal podendo ser re-duzido “a uma palavra, a um gesto ou
mesmo aosilêncio total” (idem). Aqui, a estética do
menososwaldiana, cabralina e concreta é levada ao ex-tremo
performativo, chegando à dimensãoextraverbal na qual outros códigos
e não-códigosvêm em auxílio do poético para que a imanta-ção
corpórea não perca sua pulsação originária.
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Desconstrução necessária em uma civili-zação como a Ocidental,
fundada na idéia mo-derna de evolução científica, de novidade e
deexcesso de informação, de sons e de imagensdescartáveis e
exangues, na qual a revivescênciada entidade energética silêncio
surge como vi-tal. E é por meio de uma trajetória
regressiva,abordada a partir da história dos produtos ma-teriais
inventados pelo ou próprios do homem,com palavras desierarquizadas
definindo fases,para chegar aos primórdios dos tempos, que serevela
na letra/ poema O silêncio, presente noCD do mesmo nome2 de Arnaldo
Antunes:“antes de existir computador existia tevê/ antesde existir
tevê existia luz elétrica/ antes de exis-tir luz elétrica existia
bicicleta/ antes de existirbicicleta existia enciclopédia/ antes de
existirenciclopédia existia alfabeto/ antes de existir al-fabeto
existia a voz/ antes de existir a voz existiao silêncio/ o
silêncio...”. O silêncio precisa serresgatado em meio ao mar de
ruídos contem-porâneos, por ser “a primeira coisa que existiu”.A
reeducação dos sentidos implicando na audi-ção regenerativa de “um
silêncio que ninguémouviu”, no micro e macrouniversos, na vida ena
morte, nas partes internas e externas dos se-res: “...astro pelo
céu em movimento/ e o somdo gelo derretendo/ o barulho do cabelo
emcrescimento/ e a música do vento/ e a matériaem decomposição/ a
barriga digerindo o pão/explosão de semente sob o chão/ diamante
nas-cendo do carvão...”. A letra termina com a vozpoética
retornando aos dias de hoje, para pediratenção educada e apaixonada
ao silêncio-signopresente/ ausente em tudo como fonte de ener-gia
primal: “...vamos ouvir esse silêncio, meuamor/ amplificado no
amplificador/ do este-toscópio do doutor/ no lado esquerdo do
peitoesse tambor”3.
Em sua obra de poesia vocalizada e deperfomance poética, Arnaldo
Antunes ecoa demodos diversos as questões suscitadas por Di-derot.
Mas uma imagem que dialoga com ametáfora do filósofo e dramaturgo
francês, comares de afinidade eletiva, é a fotomontagem quefecha o
livro Tudos (Antunes, 1993), em que opoeta aparece com um rosto sem
olhos ou na-riz, composto só por quatro bocas superpostasaté à
testa, todas com um leve sorriso saciado.Dentro da significação
imediata sugerida pelolivro-conceito, a noção que a foto traz é a
dedeglutição polifágica do mundo criado e domundo incriado, do
mundo da natureza e domundo astrofísico, dos nadas e silêncios,de
tudos discursivos refeitos em linguagemcontaminada,
transdisciplinar e artística, duplodo universo em semiose infinita
sob as leis pa-radoxais e reconfigurantes da poesia. No entan-to,
se levarmos em conta a perspectiva dide-rotiana, podemos ler o
poema visual de Antu-nes também como alegoria do corpo aliviadopor
expor, de modo simultâneo, os tudos quesente e percebe sem recorrer
à redução a uma sóvoz discursiva linear, emitida por uma só
bocanão-poética.
É o que podemos perceber na audição doCD que acompanha o livro 2
ou + corpos nomesmo espaço (Antunes, 1997) e que funcionacomo uma
transleitura vocal de poemas oriun-dos de contexto
gráfico-espacial. Tal procedi-mento é recorrente na obra do poeta,
que se or-ganiza como um tipo de máquina lúdica quenão se esgota no
modelo barroco, com poemascirculando com roupagens diferentes, em
dife-rentes veículos expressivos, num jogo intratex-tual em que
peças se alternam na produção po-rosa de significados. Contudo, na
operação detradução intersemiótica em questão, verbivoco-
2 Antunes, Arnaldo. O silêncio (Arnaldo Antunes/ Carlinhos
Brown). Encarte do CD O Silêncio, BMG/Ariola, 1997.
3 Idem.
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Antunes
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visual, Antunes acrescenta a essa dinâmica odado performativo
específico do corpo. Se estejá aparecia nas subterrâneas
manifestaçõesaction-paiting de traços gestuais e
entonativosdeixados em poemas caligráficos (em Apenas;idem, p. 83),
na tridimensionalidade da dobra-dura de páginas ocupadas por
vocábulos emconstelação sintática espacial (em Transborda;idem, p.
72-3) ou, ainda, na dinâmica de folhe-ar para animar a grafia do
verbo cinético (emQuerer; idem, p. 26 e 38), agora o corpo se
re-vela verdadeiramente em sua fisicalidade, pormeio das
vocalizações de 13 poemas do livro.
A voz corpórea esplende ora de um tran-se encantatório de
sibila, ora ressoa da costurarapsódica de vocábulos sob domínio
rítmico-melódico da respiração, do pulso e da pausa.O uso do
sampler e da programação eletrônicapermite ao telúrico da voz
humana um desdo-brar-se timbrístico no espaço, uma
alteraçãomultiplicada do mesmo. O resultado
acústico-corpóreo-eletrônico desse efeito é o de uma câ-mara de
ecos independentes, em que as varia-ções da voz única do performer
soam como asemissões das muitas bocas que protagonizam alinguagem
dos sentidos e das sensações do cor-po que as impulsiona.
Dispõem-se sob confor-mação jogralesca, coral, instrumental
vocálica,sem perder, contudo, a autonomia, não-aletóriaou
indeterminante, e, sim, sob forte conceitua-ção experimental do
régisseur, desenhando aambiência de cada composição.
Para exemplificarmos a transcodificaçãodo corpo plástico para o
performativo da voz,vamos nos deter na vocalização de Apenas.
Trata-se de um poema visual-caligráfico que se afigu-ra como uma
espécie de torre torta, negra, quesobressai do fundo branco da
página. Erguidapor superposição de traços de escrita de vocá-bulos,
sílabas e sintagmas que surgem, desdo-brados, da repetição da
palavra apenas, a ima-gem da torre de ébano sugere uma ironia à
torrede marfim parnasiana, como seu duplo malditoembriagado
complementar, dessacralizando omito do poeta gênio isolado em
pensamentosprofundos, por meio de uma das expressões
emergentes do processo que é “apenas pensa”.Sobrepostos uns aos
outros, numa escrita hori-zontal trêmula, os signos gráficos que
prolife-ram da palavra título (pena/ pensa/ apenas/apensa/ a pena/
pen/ paz/ ás) vão, aos poucos,transmodelando-se em borrões, ao
descerem navertical do alto para a base da suposta torre, de-senho
disforme por ecoar na sua figuração aidéia da fumaça de um cigarro
angustiado dequem pensa ou está queimando a mufa. O du-plo sonoro
de Apenas apresentado no CD ébrevíssimo, com duração de apenas 42
segun-dos, o que faz lembrar, pelo mínimo grávido demáximo, o
esquete sonoro-visual beckttianopós-catástrofe Respiração
(Berrettini, 2004,p. 206), de apenas 35 segundos.
As palavras surgem em volume baixo noarranjo vocal, parecendo
vir de longe, em eco,como pensamentos, e vão aumentando até
seestabilizar numa altura de duas vozes médias emchamada e
resposta, que se alternam em umcompasso binário, estabelecendo o
ritmo deuma andadura, de um corpo que anda e pensa.Contudo, se
ligam pela consoante sibilante esse,que se prolonga, insinuando um
pedido de si-lêncio para a pena do pensar com a cabeçaapensa ou,
ainda, o sibilar da serpente, dona daárvore do conhecimento. Aos 26
segundos daperformance, uma voz grave, que puxa para ochão,
atravessa as outras duas com notas lon-gas, lentas, vindo do fundo
para frente, inicial-mente mais baixa e logo mais alta, como se
di-minuísse o ritmo, parasse e fosse escrever à pena,viver a pena
ou apenas viver. Os sintagmas quese constroem/ destroem na
vocalização do poe-ma podem ser atribuídos a uma primeira ou
ter-ceira pessoa, a um personagem pensando con-sigo ou a um
narrador descrevendo a situação;a voz grave do final, que acaba por
levar todas aum fade out, pode ser apreendida como a falaemitida
pelo “eu” que pensa ou, talvez, a de maisum outro personagem, que
chega e some...
A idéia pessoana de multiplicação das re-flexões e refrações do
espelho do ser em lingua-gem, prismada em poetas e obras poéticas,
emvozes que saem do imaginário e invadem a vida,
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surge reconfigurada em Arnaldo, presa de modointrínseco à
construção do discurso verbal dealgumas de suas letras de canções.
Em Fora desi, do CD Ninguém, no trecho “eu fico oco/ eufica bem
assim/ eu fico sem ninguém emmim.”4, o uso do verbo na terceira
pessoa, fica,inicia a trajetória de relacionamento do estra-nho com
o outro e faz do eu ele, do criador cria-tura, do sujeito expandido
romântico voz lacu-nar cabralina, do ser existencial
linguagempoética, a partir da contribuição milionária detodos os
erros oswaldianos. Por outro lado, aterceira pessoa materializa a
saída de si, cristali-za a presença/ ausência do outro, e o ente
nin-guém se torna o mesmo. Na verdade, como emO seu olhar, do mesmo
CD, “o seu olhar seuolhar melhora/ melhora o meu”5, alteridade
emesmidade atuam juntas na compleição do ser.Pois, em O Buraco, do
CD Silêncio, “o buracoensina a caber/ a semente a não caber em
si”6, ecaber em si pode ser ficar preso no Buraco doespelho, do
mesmo CD, que não dá acesso aolado de cá, à comunicação com o
mundo: “Mes-mo que me chamem pelo nome/ Mesmo queadmitam meu
regresso/ Toda vez que eu vou aporta some”.7
Nas canções de Arnaldo, a voz corpórea,em ambiência
rítmico-melódico-instrumental-acústico-eletrônica, se faz notar,
principalmen-te, nos momentos em que é usada no limite en-tre o
canto e o berro, ou quando o poeta produzum grave profundo em suas
performances vo-cais. O canto berrado de Antunes parece ema-nar de
um corpo que confirma as palavras deArtaud sobre Van Gogh, quando
diz que “é dalógica anatômica do homem moderno nuncater podido
viver, nem pensado viver, senão pos-
sesso” (Artaud, 2007, p. 41). Como exemplo,Nome, de CD de título
homônimo, no qualencontramos ainda Se não se, Entre ou Arma-zém,8
que apresentam atitudes estéticas que sóreafirmam a sua pedagogia
da estranheza. Ex-plícita, ainda, no grave cavernoso da voz a
querecorre em canções como Desce, do CD O Si-lêncio ou No fundo, do
CD Ninguém, que tra-zem o peso da gravidade de uma voz de
tubafincando os pés no chão, em contraponto in-tencional e didático
à padronização do gostopor canções que se deixam atravessar pelo
vôode vozes agudas cortando os céus do
universopopular-comercial.
Performance poéticaPerformance poéticaPerformance
poéticaPerformance poéticaPerformance poética
Vamos abordar, agora, as performances poéti-cas de Arnaldo
Antunes a partir de duas pers-pectivas básicas: em suas ações em
shows ao vivoe videoclipes, quando o artista se movimenta aosom
instrumental de uma banda de música po-pular, e em recitativos de
poemas, situações emque ou atua sozinho ou divide seu trabalho
comoutros performers. Contudo, em nenhum doscasos as formas
suscitadas se dão de modo iso-lado, há sempre a presença simultânea
de dife-rentes linguagens estabelecendo diálogos, ten-sões ou
interferências intersemióticas.
Estamos pensando aqui a performance, “oúnico modo vivo de
comunicação poética”(Zumthor, 2007, p. 34), nas palavras do
teóri-co suíço-canadense Paul Zumthor, como o mo-mento da obra do
poeta paulista no qual o cor-po do próprio artista torna-se meio e
suportede expressão. Com isso, a movimentação poéti-
4 Antunes, Arnaldo. Fora de si (Arnaldo Antunes). Encarte do CD
Ninguém, BMG, 19955 Idem. O seu olhar (Paulo Tatit/ Arnaldo
Antunes).6 Idem. O Buraco (Arnaldo Antunes). Encarte do CD O
Silêncio, BMG/Ariola, 1997.7 Idem. O Buraco do Espelho (Arnaldo
Antunes).8 Idem. Músicas presentes no CD Nome, BMG, 1993.
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ca de uma voz lírica que se quer “ligada a vocêpelo chão”
(Antunes, 2002) parece, finalmente,mostrar-se na dinâmica de seu
circuito inven-tivo pleno, sempre exercido com o intuito
dedisseminar um ritual de reeducação dos senti-dos: rodando sobre o
mesmo eixo – acionadopor associações inesperadas, similaridades,
ana-logias, esbarros iluminadores, presença pela au-sência,
afirmação pela negação –, para que o sig-no vire corpo e o corpo,
signo.
Esse corpo signo que “é para ser usado”,que sabe que “ver dá
vertigem” pois tem “umolho na ponta de cada dedo”, produz uma
“mú-sica subcutânea” em que “o som ecoa no céu daboca”; e entende,
sob a luz de “cine-pensamen-to”, movido por “vento dentro/
in-vento”, que“o ar que contorna define a forma”, já que “ogesto é
o principal”, na medida em que sente a“pele viva à flor da carne”,
numa “sensação comsentimento dentro”, aprendendo, assim, que
“odesejo comanda o desejo” e “a pele pede pele”.Portanto, um corpo
performativo, com um re-pertório de conduta subjacente a uma
poética ea uma subjetividade, que desmascara a funçãoreguladora
cultural das atitudes convencionaispor ser “um demonstrativo
dramático de ges-tos, adquirindo o estatuto privilegiado de
en-frentar-se com o óbvio, o simples e o mais na-tural” (Glusberg,
2007, p. 90).
Uma postura criativa reincidente na po-esia de Arnaldo, no ato
de desentranhar poéti-co do não-poético, é a reconfecção de
adágiospopulares, ao redesenhar sentidos nas frases-fei-tas,
jargões, clichês, como se fossem massa demodelar. O nome do livro
Psia (1986), segun-do o autor, é o feminino do ruído oral
signifi-cativo psiu (Antunes, 1998, capa), e, também,
corruptela da palavra poesia, o que só ratifica omergulho
radical e lúdico na coloquialidade,uma das fontes modernas de sua
poética. A fra-se que abre o livro é uma espécie de diálogo como
bordão popular Quem com ferro fere, com fer-ro será ferido,
colocado em xeque a partir damudança do tipo de metal que fere:
“Quemcom ouro fere?”. A expressão Ponha a mão naconsciência, que
chama a si quem perdeu a ra-zão por motivo qualquer, aparece
revigorada emtom libertário na letra Consciência, do CD Nin-guém:
“tire a mão da consciência e meta/ nocabaço da cabeça/ tire a mão
da consciência eponha/ no buraco da vergonha...”9. Em Deci-da, do
CD Um som, as expressões de situaçõeslimites Ou dá ou desce e é
agora ou já, apareceminvertidas e reempenhadas: “...Decida/ Ou
des-ce ou desce/ Ou dá ou dá/ Decida/ É agora oujá/ É agora ou
já...”10. A máxima liberou geral,que usualmente tem o sentido
popular de valetudo, de mundo às avessas das inversões
carna-valescas, reconcebida na letra Macha Fêmeo, doCD O silêncio,
vira “liberal gerou”11, sugerindoo significado politicamente (in)
correto que omundo liberal propiciou à questão das sexuali-dades
alternativas.
Essa mesma postura criativa, de extrair oincomum do comum, se
desnuda no uso docorpo de Antunes como suporte de umaindumentária,
uma fisionomia e uma movi-mentação coreográfica híbridas,
funcionandocomo manifestações de sua pedagogia da estra-nheza na
configuração de uma imagem públi-ca, que mescla informações
culturais contras-tantes. O seu traço fisionômico tradicional é ode
um rosto imberbe, com olhos bem abertos,mais para o sério ou para o
êxtase contido do
9 Antunes, Arnaldo. Consciência (Edgard Scandurra/Arnaldo
Antunes). Encarte do CD Ninguém, BMG,1995.
10 Idem. Decida (Edgard Scandurra/ Arnaldo Antunes). Encarte do
CD Um som, BMG, 1998.11 Idem. Macha Fêmeo (Paulo Tatit/ Arnaldo
Antunes/ Marcelo Fromer). Encarte do CD O Silêncio, BMG/
Ariola, 1997
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que para o riso largo, com um corte exótico decabelo entre a
rebeldia punk e o clean pragmá-tico. A dança que realiza surge nos
rápidos ins-tantes em que não canta, e se assemelha a es-pasmos
autômatos de um balé construtivistaclownesco, que se anuncia e não
se configura,sugere um caminho para, de imediato, borrá-lo, indo
para outro que também se deixa inter-romper antes de ser concluído
e, assim, sucessi-vamente. Traz, nos dedos, anéis artesanais
demetal, às vezes com outras sem grandes pedras,e usa pesados
sapatos pretos nos pés, com designentre o coturno e o executivo.
Seu figurino, nogeral, alterna-se entre as cores preta, branca
ebege, vestindo ora quimonos, ora ternos formaiscom as mangas das
camisas de baixo muito lon-gas e desabotoadas, que oscilam de
acordo comseus movimentos impermanentes.
Vamos nos deter, agora, em três ações es-pecíficas de Arnaldo
Antunes em shows ao vivoe em videoclipes. A primeira é uma
performan-ce em que letra e figurino dialogam na reflexãosobre o
corpo como “campo de contradiçõessociais e políticas, e não apenas
instrumento deexpressão cultural neutra” (Pavis, 2008, p.
x).Trata-se da letra da canção Na massa, do CDParadeiro12, que
Arnaldo canta, em shows, ves-tindo uma indumentária que se
assemelha a umParangolé que tivesse sido concebido peloperformer
mexicano Guilhermo Gomez-Peña,em parceria com o nosso artista
plástico viden-te-esquizo-paranóico Arthur Bispo do Rosário...Como
o Penetrável de Hélio Oiticica, ganhaforma-força expressiva não
apenas revestindo ocorpo mas, principalmente, com a vivência
doponteado contido/ expansivo da dança. Comoas assemblages/
environments do autor da per-formance/ instalação El Shame-man se
encuentracom el Mexican’t y com la hija apócrita de FridaCola y
Freddy Krugger em Brasil, o corpo é meiode veiculação de
identidades e não-identidades
em choques, tensões e contrafluxos intercultu-rais,
transnacionais e multidiscursivos. E, porúltimo, como as obras
trash de nosso gênio daColônia Juliano Moreira, os trapos e restos
quecompõem o figurino usado pelo compositor re-velam, por meio do
trivial e do lixo, a objectua-lidade e a vulnerabilidade
não-hierarquizada doselementos quando em trânsito vida/ arte.
O multiculturalismo pulsando no que aAntropologia chama de
cultura material, cujoconhecimento traz o social para o âmbito
dosensorial, aparece na personagem transnacio-nalizada, “anjo sem
asa”, que “segue a moda deninguém”, “moda tem a sua só”.
Misturandoinformações diversas, lixo reciclado, fantasia
decarnaval, badulaques múltiplos, o poeta com-põe um tipo híbrido:
“... roupa de princesa/ empele de plebeu...”, nas falas e nomes de
coisas:“...vai de my cherri/ vai de mon amour.../ man-to de garrafa
pet.../ óculos Ray-ban/ raios detupã...”, nas roupas: “...no corpo
collant.../ ca-miseta de Che Guevara.../ de biquíni xale bataou
avental.../ turbante importado/ lá de Bag-dá.../ México chapéu
cabana.../ tanga demiçanga fina...”, nos apetrechos: “...jóia de
bi-juteria/ lantejoula e purpurina.../ ou com lençode cigano.../
capacete de bacana.../ gargantilhano cangote.../ plástico metal/
árvore de natal...”,no corte de cabelo: “passa de cabelo moicano”
enos movimentos: “...anda de abada/ dança obragada...”. Pele e
roupa se confundem: “...usaa roupa da pele da/ roupa da pele da
roupa...”,numa construção exterior que sugere a interiorao mesclar
produtos arcaicos e high tech, vetoresdas relações sócio-culturais,
procurando umaidentidade, uma diferença “na massa”, mas quetambém
se desconstrói na medida mesmo emque “some na massa”13.
A segunda ação performativa em que nosdebruçaremos é a do
videoclipe Música paraouvir, canção do CD Um som, dirigido por
12 ANTUNES, Arnaldo. Na massa (Davi Moraes/ Arnaldo Antunes). CD
Paradeiro, BMG/Ariola, 2001.13 Idem. Na massa (Davi Moraes/ Arnaldo
Antunes). Encarte do CD Paradeiro, BMG/Ariola, 2001.
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Andrew Waddington e Toni Vanzolini; mais es-pecificamente, sobre
uma imagem-corpo que seapresenta ao olhar no transcorrer do
vídeo.Concebida em linguagem inaugural de “cifraótica” (Lehmann,
2007, p. 119) ou de uma“espécie de hieróglifo vivo para ser
decifrado”(Fernandes & Guinsburg, 2008, p. 18), cujafunção é
propiciar uma aventura heurística re-ceptiva que insira o leitor/
espectador na ativi-dade do tempo ritual da performance poética,
acomposição de Antunes sugere as metamorfo-ses de percepção
implícitas na dinâmica do cor-po-signo. O poeta surge dançando em
passossaltitantes espasmódicos, braços esticados, todode preto, com
um alto falante, um pouco mai-or do que o formato de sua cabeça,
preso a elana altura do rosto. Tal ser-signo sugere que to-dos os
sentidos e suas potências de conforma-ção de linguagem, à exceção
da audição, irmã-ímã do canto, encontram-se
transcodificados,trazendo junto suas especificidades latentes,
noato de vocalização corporal rítmico-melódico-instrumental,
filtrada, modificada e ampliadapela tecnologia, simbolizada pelo
alto falante.Esse corpo híbrido subjetivo/ objetivo que atra-vessa,
meio gauche, o cenário do clipe, pode serentendido como a figuração
da produção musi-cal do performer, em viagem auto-expressiva desua
estranheza última, em pleno universo main-stream da indústria da
música de massas.
A terceira performance é a que Arnaldorealiza no videoclipe Essa
mulher, música do CDParadeiro14. A letra da canção, que tematiza
asações no clipe, aborda a manutenção do desejomasculino mesmo
sendo desprezado pela mu-lher: “ela quer viver sozinha/ sem a sua
compa-nhia/ e você ainda quer/ essa mulher”, que “temum travesseiro
mais macio/ do que o seu braço/e um acolchoado muito mais/ quente
que o seuabraço”. O que salta à vista são os bonecos, fan-toches,
títeres, marionetes, manequins, mamu-lengos, de diferentes formas e
tamanhos, que seespalham pela casa, junto com inúmeros pro-dutos
industriais selados com a imagem do can-tor (batom, almofada,
colher de pau, marcadorde livro etc), que está em cena, cantando,
sem
ser notado, assim como todos esses outros obje-tos, pela atriz
que faz a personagem sugerida pelaletra. No final da encenação, o
performer, ves-tido e caracterizado de boneco de pano, coreo-grafa
uma dança patética, chapliniana, pois nãoconseguiu se fazer notar e
ser companhia daque-la mulher.
Para Kleist, o duplo da marionete adqui-ria um contorno
romântico de figura de funda-ção para o mundo da arte, do qual
vontade econsciência, características intrínsecas ao ho-mem, ente
preso às leis da natureza, deveriamser abolidas para que se pudesse
chegar ao en-cantamento e à beleza, fim próprio de uma cria-ção
intelectual artística. Para Craig, como modode extrair da cena o
mimetismo e recuperar asorigens sagradas da encenação, é necessária
aincorporação da figura enigmáticas da superma-rionete,
“descendente dos antigos ídolos de pe-dra dos templos”, “imagem
degenerada de umDeus” (Craig, 2003, p. 166); não para rivalizarcom
a vida, mas para ir além dela, figurandoum outro modo de presença
do corpo huma-no, “em estado de êxtase” (idem, p. 167). ParaTadeusz
Kantor, “os bonecos são algo como aessência primordial e esquecida
do ser humano,seu Eu-lembrança que ele continua a levar con-sigo”
(Lehmann, 2007, p. 121), duplo do ator/performer inaugural, um
rebelde e herege porexcelência, que ousou se desvincular da sua
co-munidade de culto, para retornar trazendo aexperiência da morte
para o mundo dos vivos;daí seu Teatro da Morte, que faz do
manequimpresença constante, por ser a figuração recorren-te deste
instante arcaico originário da arte.
No videoclipe de Arnaldo Antunes, oabismo entre homem e coisa é
relativizado edesfuncionalizado. E a troca, a comunicação,
acirculação, o diálogo se dá, antes, entre objeto eser humano, pois
ambos, após serem tragicomi-camente desprezados, acabam como
joguetes dodestino da mulher-deusa autônoma. E, no final,terminam
por revelar sua mesmidade inerentefundamental: o
corpo-signo-mamulengo-clowndançante, duplo grotesco pop tanto de um
“es-tado de êxtase” primal, quanto metáfora da
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morte vital artística do ator/ performer arcaico,pré-moderno,
que retorna, costeando a moder-nidade, em pleno universo
globalizado da cul-tura de massas informacional contemporânea.
Podemos detectar as origens da perfor-mance nas seratas
futuristas e dadaístas, nasexperimentações da Bauhaus e do
BlackMountain College, na action-paiting, nohappening, na live art,
no movimento Fluxus ena body art. Em Antunes, em seus
recitativosperformáticos, em suas performances intermí-dias,
elementos pinçados dessas propostas sur-gem sob a batuta
multidiscursiva do performer-régisseur. Em interação comunicativa
direta,com consciência de presença, o poeta canta/ re-cita sua
palavra corpórea, na intersecção de mo-vimentos gestuais, enquanto
são apresentados,simultaneamente, vídeos, slides,
vídeoperfor-mances, performance plástico-caligráficas, sonsde sua
própria voz pré-gravados, alterados emanuseados no aparelho para
intervenção emsuas vocalizações pelo próprio Arnaldo, emis-sões de
sons eletrônicos pontuais e ambientaisexecutados por outros
performers convidados.
A primeira experiência marcante de Arnal-do Antunes com a
performance veio de sua par-ticipação, em fins dos anos setenta, na
Aguilar ea Banda Performática. Criada e concebida peloartista
plástico José Roberto Aguilar, agregavapoetas, dançarinos, atores,
pintores em perfor-mance musical. Nas palavras do líder da
banda,podemos apreender as bases do que será desen-volvido
posteriormente por Arnaldo Antunes:
“Eu não sou músico, sou pintor. Mas nadame impede de ser
band-leader da BandaPerformática, porque atrás dela existe sem-pre
um discurso sobre as artes plásticas, mascomo um conceito ou
metalinguagem dorock. Minha banda é uma legião estrangeirade
linguagens pois se serve de vídeo, dança,
teatro, artes plásticas...Mas eu não quero queela seja diferente
das outras bandas, porque,no fundo, é uma banda de rock. Minha
ban-da é pintura. Muda a linguagem, mas o con-ceito é sempre o
mesmo” (Aguillar, 1984).
No recitativo performático da canção“Inclassificáveis”15, do CD
O silêncio, que Ar-naldo Antunes realizou no auditório da Sociescde
Joinville, em 29 de agosto de 2008, dentroda “V poesia em cena”, o
poeta canta ao micro-fone, todo vestido de preto, segurando
folhasde papéis na mão, acompanhado apenas pelosom sintetizado de
Marcelo Jeneci, com ima-gens múltiplas se alternados ao fundo,
numatela. As linguagens se organizam por justapo-sição e
superposição, sem sucessão, fusão outransição, num simultaneísmo
com instantesocasionais de diálogo entre voz/ som eletrônicoe as
imagens plásticas em movimento (do tipochamado/ resposta rítmica,
com alternânciavaga-lume da luz à pulsação dos acentos da mú-sica),
e outros momentos de autonomia dos có-digos. As imagens passam por
diferentes reinos,do natural, com a aparição de um peixe ver-melho
no aquário, ao arquitetônico, com a vi-são angular de uma igreja
iluminada vista doalto à noite, para finalizarem-se com formas
ge-ométricas azuis em fundo negro, se alterandoem número de
elementos e composição abstra-ta formal.
A letra aborda a revitalização criativa domodelo étnico-cultural
crioulo, a partir de lei-turas não-hifenizadas de nossa cultura,
comArnaldo Antunes concebendo nosso universocultural como
desierarquizado, assistemático,rebelde e vital. O poema cantado/
recitado ini-cia com perguntas indignadas, em resposta auma
possível afirmação de nossa etnia a partirdo mito das três raças:
“Que preto, que branco,que índio o quê?/ Que branco, que índio,
que
14 Antunes, Arnaldo. Essa mulher (Arnaldo Antunes). CD
Paradeiro, BMG/Ariola, 2001.
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preto o quê?/ Que índio, que preto, que brancoo quê?/ Que preto
branco índio o quê?/ Brancoíndio preto o quê?/ Índio preto branco o
quê?”Utilizando-se dos procedimentos barrocos dapergunta
iniciativa, de simetria e de máquinacomposicional lúdica do poema,
a voz poéticasugere que a ordem dos fatores e suas insinuan-tes
hierarquias não modificam o produto racialinclassificável da
cultura brasileira. Que em suadinâmica e abertura de fluxos
contínuos, pren-de e solta tipos e raças, como as palavras-valisede
que se utiliza para expor a miscigenaçãoconstante, numa expressiva
superposição lin-güístico-cultural: “Aqui somos mestiços
mula-tos/Cafusos pardos mamelucos sararás/ Cri-louros guaranisseis
e judárabes/ Orientupisorientupis/ Ameriquítalos lusos
nipocaboclos/Iberibárbaros indo ciganagôs/ Somos o que so-mos/
Inclassificáveis”16
No refrão, a série de ambigüidades conti-das no termo que nomeia
a canção (Inclassi-ficáveis) se entremostra para (in)definir
nossabrasilidade: “Não tem um, tem dois/ Não tem
dois, tem três/ Não tem lei, tem leis/ Não temvez, tem vezes/
Não tem deus, tem deuses/ Nãotem cor, tem cores/ Não há sol a sós”.
O tira ebota dos sintagmas – tem/ não tem – constrói adinâmica da
dialética barroca, na qual a dife-rença se resolve em oposição,
esta em simetriae, por fim, em nova identidade na qual o mes-mo
vira outro. Assim, descreve nossa recon-fecção das leis oficiais em
favor das leis quesurgem no dia-a-dia das comunidades, comaplicação
prática na vida em detrimento de nos-sa abstração doutoresca; nossa
multiplicidadegradativa de tons e cores raciais e/ ou
naturais;nossa pluralidade de possibilidades religiosas emíticas em
sincretismo negociante, em duploexpansivo: “não tem vez/ tem
vezes”17. A am-bivalência fonética do verso final do refrão
traznova reverberação espelhada, guardando, porum lado, a
possibilidade de leitura de todo tipode sol, negro inclusive (não
há sol, há sóis) e,por outro, a força solar que só brilha em
nossainevitabilidade agregante rotativa última (nãohá sol a
sós).
15 Antunes, Arnaldo. “Inclassificáveis” (Arnaldo Antunes). CD O
Silêncio (BMG/Ariola, 1997).16 Idem.17 Idem.
Referências bibl iográficasReferências bibl
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Publicação do Centro de Estudos de Arte Contemporânea.
ANDRADE, Oswald. Obras Completas Volume VI: Do Pau-Brasil à
Antropofagia e às Utopias. Rio deJaneiro: Civilização Brasileira,
1978.
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_______. Palavra Desordem. São Paulo: Iluminuras, 2002.
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_______. Tudos. São Paulo: Iluminuras, 1993.
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PAVIS, Patrice.O teatro no cruzamento de culturas. Trad. de
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ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Trad. de Jerusa
Pires Ferreira e Suely Fenerich.São Paulo: Cosac Naify, 2007.
RESUMO: Abordagem da obra de Arnaldo Antunes sob a perspectiva
da poesia de suasperformances, nas vocalizações e outras
manifestações criativas. De como o autor, por meio de umaprodução
que prima por impregnar de imprevisto o clichê e o automatismo da
informação massiva,se empenha em trabalhar com a materialidade da
linguagem em diferentes instâncias midiáticas eexpressivas.
Proposta que leva a uma pedagogia inventiva da estranheza, tanto
por resgatar, nacontemporaneidade high tech da arte, uma
experiência originária humana de circulação desobstruídada
percepção e dos sentidos, quanto por tentar diminuir o fosso entre
experimentação estética ecomunicação de massas.PALAVRAS-CHAVE:
Poesia e música popular. Performance. Jogo intersemiótico e
multidiscursivo.Pedagogia da estranheza. Transculturalidade.
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