Pginas Recolhidas Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de
Assis, vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado
originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1899. NDICE
PREFCIO O CASO DA VARA O DICIONRIO UM ERRADIO ETERNO! MISSA DO GALO
IDIAS DO CANRIO LGRIMAS DE XERXES PAPIS VELHOS PREFCIO Quelque
diversit d'herbes qu'il y ayt, tout s'enveloppe sous le nom de
salade. MONTAIGNE, Essais, liv. I, cap. XLVI Montaigne explica pelo
seu modo dele a variedade deste livro. No h que repetir a mesma
idia, nem qualquer outro lhe daria a graa da expresso que vai por
epgrafe. O que importa unicamente dizer a origem destas pginas.
Umas so contos e novelas, figuras que vi ou imaginei, ou simples
idias que me deu na cabea reduzir a linguagem. Saram primeiro nas
folhas volantes do jornalismo, em data diversa, e foram escolhidas
dentre muitas, por achar que ainda agora possam interessar. Tambm
vai aqui Tu s, tu, Puro Amor... comdia escrita para as festas
centenrias de Cames, e representada por essa ocasio. Tiraram-se
dela cem exemplares numerados que se distriburam por algumas
estantes e bibliotecas. Uma anlise da correspondncia de Renan com
sua irm Henriqueta, e um debuxo do nosso antigo Senado foram dados
na Revista Brasileira, to brilhantemente dirigida pelo meu ilustre
e prezado amigo Jos Verssimo. Sai tambm um pequeno discurso, lido
quando se lanou a primeira pedra da esttua de Alencar. Enfim,
alguns retalhos de cinco anos de crnica na Gazeta de Notcias que me
pareceram no destoar do livro, seja porque o objeto no passasse
inteiramente, seja porque o aspecto que lhe achei ainda agora me
fale ao esprito. Tudo pretexto para recolher folhas amigas. MACHADO
DE ASSIS O CASO DA VARA Damio fugiu do seminrio s onze horas da
manh de uma sexta-feira de agosto. No sei bem o ano; foi antes de
1850. Passados alguns minutos parou vexado; no contava com o efeito
que produzia nos olhos da outra gente aquele seminarista que ia
espantado, medroso, fugitivo. Desconhecia as ruas, andava e
desandava; finalmente parou. Para onde iria? Para casa, no; l
estava o pai que o devolveria ao seminrio, depois de um bom
castigo. No assentara no ponto de refgio, porque a sada estava
determinada para mais tarde; uma circunstncia fortuita a apressou.
Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, Joo Carneiro, mas o
padrinho era um moleiro sem vontade, que por si s no faria coisa
til. Foi ele que o levou ao seminrio e o apresentou ao reitor:
Trago-lhe o grande homem que h de ser, disse ele ao reitor. Venha,
acudiu este, venha o grande homem, contanto que seja tambm humilde
e bom. A verdadeira grandeza ch. Moo... Tal foi a entrada. Pouco
tempo depois fugiu o rapaz ao seminrio. Aqui o vemos agora na rua,
espantado, incerto, sem atinar com refgio nem conselho; percorreu
de memria as casas de parentes e amigos, sem se fixar em nenhuma.
De repente, exclamou: Vou pegar-me com Sinh Rita! Ela manda chamar
meu padrinho, diz-lhe que quer que eu saia do seminrio... Talvez
assim... Sinh Rita era uma viva, querida de Joo Carneiro; Damio
tinha umas idias vagas dessa situao e tratou de a aproveitar. Onde
morava? Estava to atordoado, que s da a alguns minutos que lhe
acudiu a casa; era no Largo do Capim. Santo nome de Jesus! Que
isto? bradou Sinh Rita, sentando-se na marquesa, onde estava
reclinada. Damio acabava de entrar espavorido; no momento de chegar
casa, vira passar um padre, e deu um empurro porta, que por fortuna
no estava fechada a chave nem ferrolho. Depois de entrar espiou
pela rtula, a ver o padre. Este no deu por ele e ia andando. Mas
que isto, Sr. Damio? bradou novamente a dona da casa, que s agora o
conhecera. Que vem fazer aqui? Damio, trmulo, mal podendo falar,
disse que no tivesse medo, no era nada; ia explicar tudo. Descanse;
e explique-se. J lhe digo; no pratiquei nenhum crime, isso juro;
mas espere. Sinh Rita olhava para ele espantada, e todas as crias,
de casa, e de fora, que estavam sentadas em volta da sala, diante
das suas almofadas de renda, todas fizeram parar os bilros e as
mos. Sinh Rita vivia principalmente de ensinar a fazer renda, crivo
e bordado. Enquanto o rapaz tomava flego, ordenou s pequenas que
trabalhassem, e esperou. Afinal, Damio contou tudo, o desgosto que
lhe dava o seminrio; estava certo de que no podia ser bom padre;
falou com paixo, pediu-lhe que o salvasse. Como assim? No posso
nada. Pode, querendo. No, replicou ela abanando a cabea; no me meto
em negcios de sua famlia, que mal conheo; e ento seu pai, que dizem
que zangado! Damio viu-se perdido. Ajoelhou-se-lhe aos ps,
beijou-lhe as mos, desesperado. Pode muito, Sinh Rita; peo-lhe pelo
amor de Deus, pelo que a senhora tiver de mais sagrado, por alma de
seu marido, salve-me da morte, porque eu matome, se voltar para
aquela casa. Sinh Rita, lisonjeada com as splicas do moo, tentou
cham-lo a outros sentimentos. A vida de padre era santa e bonita,
disse-lhe ela; o tempo lhe mostraria que era melhor vencer as
repugnncias e um dia... No, nada, nunca! redargia Damio, abanando a
cabea e beijando-lhe as mos; e repetia que era a sua morte. Sinh
Rita hesitou ainda muito tempo; afinal perguntou-lhe por que no ia
ter com o padrinho. Meu padrinho? Esse ainda pior que papai; no me
atende, duvido que atenda a ningum... No atende? interrompeu Sinh
Rita ferida em seus brios. Ora, eu lhe mostro se atende ou no...
Chamou um moleque e bradou-lhe que fosse casa do Sr. Joo Carneiro
cham- lo, j e j; e se no estivesse em casa, perguntasse onde podia
ser encontrado, e corresse a dizer-lhe que precisava muito de lhe
falar imediatamente. Anda, moleque. Damio suspirou alto e triste.
Ela, para mascarar a autoridade com que dera aquelas ordens,
explicou ao moo que o Sr. Joo Carneiro fora amigo do marido e
arranjara-lhe algumas crias para ensinar. Depois, como ele
continuasse triste, encostado a um portal, puxou-lhe o nariz,
rindo: Ande l, seu padreco, descanse que tudo se h de arranjar.
Sinh Rita tinha quarenta anos na certido de batismo, e vinte e sete
nos olhos. Era apessoada, viva, patusca, amiga de rir; mas, quando
convinha, brava como diabo. Quis alegrar o rapaz, e, apesar da
situao, no lhe custou muito. Dentro de pouco, ambos eles riam, ela
contava-lhe anedotas, e pedia-lhe outras, que ele referia com
singular graa. Uma destas, estrdia, obrigada a trejeitos, fez rir a
uma das crias de Sinh Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e
escutar o moo. Sinh Rita pegou de uma vara que estava ao p da
marquesa, e ameaoua: Lucrcia, olha a vara! A pequena abaixou a
cabea, aparando o golpe, mas o golpe no veio. Era uma advertncia;
se noitinha a tarefa no estivesse pronta, Lucrcia receberia o
castigo do costume. Damio olhou para a pequena; era uma negrinha,
magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma
queimadura na mo esquerda. Contava onze anos. Damio reparou que
tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de no interromper a
conversao. Teve pena da negrinha, e resolveu apadrinh-la, se no
acabasse a tarefa. Sinh Rita no lhe negaria o perdo... Demais, ela
rira por achar-lhe graa; a culpa era sua, se h culpa em ter chiste.
Nisto, chegou Joo Carneiro. Empalideceu quando viu ali o afilhado,
e olhou para Sinh Rita, que no gastou tempo com prembulos.
Disse-lhe que era preciso tirar o moo do seminrio, que ele no tinha
vocao para a vida eclesistica, e antes um padre de menos que um
padre ruim. C fora tambm se podia amar e servir a Nosso Senhor. Joo
Carneiro, assombrado, no achou que replicar durante os primeiros
minutos; afinal, abriu a boca e repreendeu o afilhado por ter vindo
incomodar "pessoas estranhas", e em seguida afirmou que o
castigaria. Qual castigar, qual nada! interrompeu Sinh Rita.
Castigar por qu? V, v falar a seu compadre. No afiano nada, no
creio que seja possvel... H de ser possvel, afiano eu. Se o senhor
quiser, continuou ela com certo tom insinuativo, tudo se h de
arranjar. Pea-lhe muito, que ele cede. Ande, Senhor Joo Carneiro,
seu afilhado no volta para o seminrio; digo-lhe que no volta...
Mas, minha senhora... V, v. Joo Carneiro no se animava a sair, nem
podia ficar. Estava entre um puxar de foras opostas. No lhe
importava, em suma, que o rapaz acabasse clrigo, advogado ou mdico,
ou outra qualquer coisa, vadio que fosse; mas o pior que lhe
cometiam uma luta ingente com os sentimentos mais ntimos do
compadre, sem certeza do resultado; e, se este fosse negativo,
outra luta com Sinh Rita, cuja ltima palavra era ameaadora:
"digo-lhe que ele no volta". Tinha de haver por fora um escndalo.
Joo Carneiro estava com a pupila desvairada, a plpebra trmula, o
peito ofegante. Os olhares que deitava a Sinh Rita eram de splica,
mesclados de um tnue raio de censura. Por que lhe no pedia outra
coisa? Por que lhe no ordenava que fosse a p, debaixo de chuva,
Tijuca, ou Jacarepagu? Mas logo persuadir ao compadre que mudasse a
carreira do filho... Conhecia o velho; era capaz de lhe quebrar uma
jarra na cara. Ah! se o rapaz casse ali, de repente, apopltico,
morto! Era uma soluo cruel, certo, mas definitiva. Ento? insistiu
Sinh Rita. Ele fez-lhe um gesto de mo que esperasse. Coava a barba,
procurando um recurso. Deus do cu! um decreto do papa dissolvendo a
Igreja, ou, pelo menos, extinguindo os seminrios, faria acabar tudo
em bem. Joo Carneiro voltaria para casa e ia jogar os trs-setes.
Imaginai que o barbeiro de Napoleo era encarregado de comandar a
batalha de Austerlitz... Mas a Igreja continuava, os seminrios
continuavam, o afilhado continuava cosido parede, olhos baixos,
esperando, sem soluo apopltica. V, v, disse Sinh Rita dando-lhe o
chapu e a bengala. No teve remdio. O barbeiro meteu a navalha no
estojo, travou da espada e saiu campanha. Damio respirou;
exteriormente deixou-se estar na mesma, olhos fincados no cho,
acabrunhado. Sinh Rita puxou-lhe desta vez o queixo. Ande jantar,
deixe-se de melancolias. A senhora cr que ele alcance alguma coisa?
H de alcanar tudo, redargiu Sinh Rita cheia de si. Ande, que a sopa
est esfriando. Apesar do gnio galhofeiro de Sinh Rita e do seu
prprio esprito leve, Damio esteve menos alegre ao jantar que na
primeira parte do dia. No fiava do carter mole do padrinho.
Contudo, jantou bem; e, para o fim, voltou s pilhrias da manh.
sobremesa, ouviu um rumor de gente na sala, e perguntou se o vinham
prender. Ho de ser as moas. Levantaram-se e passaram sala. As moas
eram cinco vizinhas que iam todas as tardes tomar caf com Sinh
Rita, e ali ficavam at o cair da noite. As discpulas, findo o
jantar delas, tornaram s almofadas do trabalho. Sinh Rita presidia
a todo esse mulherio de casa e de fora. O sussurro dos bilros e o
palavrear das moas eram ecos to mundanos, to alheios teologia e ao
latim, que o rapaz deixou-se ir por eles e esqueceu o resto.
Durante os primeiros minutos, ainda houve da parte das vizinhas
certo acanhamento, mas passou depressa. Uma delas cantou uma
modinha, ao som da guitarra, tangida por Sinh Rita, e a tarde foi
passando depressa. Antes do fim, Sinh Rita pediu a Damio que
contasse certa anedota que lhe agradara muito. Era a tal que fizera
rir Lucrcia. Ande, senhor Damio, no se faa de rogado, que as moas
querem ir embora. Vocs vo gostar muito. Damio no teve remdio seno
obedecer. Malgrado o anncio e a expectao, que serviam a diminuir o
chiste e o efeito, a anedota acabou entre risadas das moas. Damio,
contente de si, no esqueceu Lucrcia e olhou para ela, a ver se rira
tambm. Viu-a com a cabea metida na almofada para acabar a tarefa.
No ria; ou teria rido para dentro, como tossia. Saram as vizinhas,
e a tarde caiu de todo. A alma de Damio foi-se fazendo tenebrosa,
antes da noite. Que estaria acontecendo? De instante a instante, ia
espiar pela rtula, e voltava cada vez mais desanimado. Nem sombra
do padrinho. Com certeza, o pai f-lo calar, mandou chamar dois
negros, foi polcia pedir um pedestre, e a vinha peg-lo fora e
lev-lo ao seminrio. Damio perguntou a Sinh Rita se a casa no teria
sada pelos fundos; correu ao quintal, e calculou que podia saltar o
muro. Quis ainda saber se haveria modo de fugir para a Rua da Vala,
ou se era melhor falar a algum vizinho que fizesse o favor de o
receber. O pior era a batina; se Sinh Rita lhe pudesse arranjar um
rodaque, uma sobrecasaca velha... Sinh Rita dispunha justamente de
um rodaque, lembrana ou esquecimento de Joo Carneiro. Tenho um
rodaque do meu defunto, disse ela, rindo; mas para que est com
esses sustos? Tudo se h de arranjar, descanse. Afinal, boca da
noite, apareceu um escravo do padrinho, com uma carta para Sinh
Rita. O negcio ainda no estava composto; o pai ficou furioso e quis
quebrar tudo; bradou que no, senhor, que o peralta havia de ir para
o seminrio, ou ento metia-o no Aljube ou na presiganga. Joo
Carneiro lutou muito para conseguir que o compadre no resolvesse
logo, que dormisse a noite, e meditasse bem se era conveniente dar
religio um sujeito to rebelde e vicioso. Explicava na carta que
falou assim para melhor ganhar a causa. No a tinha por ganha; mas
no dia seguinte l iria ver o homem, e teimar de novo. Conclua
dizendo que o moo fosse para a casa dele. Damio acabou de ler a
carta e olhou para Sinh Rita. No tenho outra tbua de salvao, pensou
ele. Sinh Rita mandou vir um tinteiro de chifre, e na meia folha da
prpria carta escreveu esta resposta: "Joozinho, ou voc salva o moo,
ou nunca mais nos vemos". Fechou a carta com obreia, e deu-a ao
escravo, para que a levasse depressa. Voltou a reanimar o
seminarista, que estava outra vez no capuz da humildade e da
consternao. Disse-lhe que sossegasse, que aquele negcio era agora
dela. Ho de ver para quanto presto! No, que eu no sou de
brincadeiras! Era a hora de recolher os trabalhos. Sinh Rita
examinou-os; todas as discpulas tinham concludo a tarefa. S Lucrcia
estava ainda almofada, meneando os bilros, j sem ver; Sinh Rita
chegou-se a ela, viu que a tarefa no estava acabada, ficou furiosa,
e agarrou-a por uma orelha. Ah! malandra! Nhanh, nhanh! pelo amor
de Deus! por Nossa Senhora que est no cu. Malandra! Nossa Senhora
no protege vadias! Lucrcia fez um esforo, soltou-se das mos da
senhora, e fugiu para dentro; a senhora foi atrs e agarrou-a. Anda
c! Minha senhora, me perdoe! tossia a negrinha. No perdo, no. Onde
est a vara? E tornaram ambas sala, uma presa pela orelha,
debatendo-se, chorando e pedindo; a outra dizendo que no, que a
havia de castigar. Onde est a vara? A vara estava cabeceira da
marquesa, do outro lado da sala. Sinh Rita, no querendo soltar a
pequena, bradou ao seminarista. Sr. Damio, d-me aquela vara, faz
favor? Damio ficou frio... Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe
pelos olhos. Sim, tinha jurado apadrinhar a pequena, que por causa
dele, atrasara o trabalho... D-me a vara, Sr. Damio! Damio chegou a
caminhar na direo da marquesa. A negrinha pediu-lhe ento por tudo o
que houvesse mais sagrado, pela me, pelo pai, por Nosso Senhor...
Me acuda, meu sinh moo! Sinh Rita, com a cara em fogo e os olhos
esbugalhados, instava pela vara, sem largar a negrinha, agora presa
de um acesso de tosse. Damio sentiu-se compungido; mas ele
precisava tanto sair do seminrio! Chegou marquesa, pegou na vara e
entregou-a a Sinh Rita. O DICIONRIO Era uma vez um tanoeiro,
demagogo, chamado Bernardino, o qual em cosmografia professava a
opinio de que este mundo um imenso tonel de marmelada, e em poltica
pedia o trono para a multido. Com o fim de a pr ali, pegou de um
pau, concitou os nimos e deitou abaixo o rei; mas, entrando no pao,
vencedor e aclamado, viu que o trono s dava para uma pessoa, e
cortou a dificuldade sentando-se em cima. Em mim, bradou ele,
podeis ver a multido coroada. Eu sou vs, vs sois eu. O primeiro ato
do novo rei foi abolir a tanoaria, indenizando os tanoeiros,
prestes a derrub-lo, com o ttulo de Magnficos. O segundo foi
declarar que, para maior lustre da pessoa e do cargo, passava a
chamar-se, em vez de Bernardino, Bernardo. Particularmente
encomendou uma genealogia a um grande doutor dessas matrias, que em
pouco mais de uma hora o entroncou a um tal ou qual general romano
do sculo IV, Bernardus Tanoarius; nome que deu lugar controvrsia,
que ainda dura, querendo uns que o rei Bernardo tivesse sido
tanoeiro, e outros que isto no passe de uma confuso deplorvel com o
nome do fundador da famlia. J vimos que esta segunda opinio a nica
verdadeira. Como era calvo desde verdes anos, decretou Bernardo que
todos os seus sditos fossem igualmente calvos, ou por natureza ou
por navalha, e fundou esse ato em uma razo de ordem poltica, a
saber, que a unidade moral do Estado pedia a conformidade exterior
das cabeas. Outro ato em que revelou igual sabedoria, foi o que
ordenou que todos os sapatos do p esquerdo tivessem um pequeno
talho no lugar correspondente ao dedo mnimo, dando assim aos seus
sditos o ensejo de se parecerem com ele, que padecia de um calo. O
uso dos culos em todo o reino no se explica de outro modo, seno por
uma oftalmia que afligiu a Bernardo, logo no segundo ano do
reinado. A doena levou-lhe um olho, e foi aqui que se revelou a
vocao potica de Bernardo, porque, tendo-lhe dito um dos seus dois
ministros, chamado Alfa, que a perda de um olho o fazia igual a
Anbal, comparao que o lisonjeou muito, o segundo ministro, mega,
deu um passo adiante, e achou-o superior a Homero, que perdera
ambos os olhos. Esta cortesia foi uma revelao; e como isto prende
com o casamento, vamos ao casamento. Tratava-se, em verdade, de
assegurar a dinastia dos Tanoarius. No faltavam noivas ao novo rei,
mas nenhuma lhe agradou tanto como a moa Estrelada, bela, rica e
ilustre. Esta senhora, que cultivava a msica e a poesia, era
requestada por alguns cavalheiros, e mostrava-se fiel dinastia
decada. Bernardo ofereceu-lhe as coisas mais suntuosas e raras, e,
por outro lado, a famlia bradava-lhe que uma coroa na cabea valia
mais que uma saudade no corao; que no fizesse a desgraa dos seus,
quando o ilustre Bernardo lhe acenasse com o principado; que os
tronos no andavam a rodo, e mais isto, e mais aquilo. Estrelada,
porm, resistia seduo. No resistiu muito tempo, mas tambm no cedeu
tudo. Como entre os seus candidatos preferia secretamente um poeta,
declarou que estava pronta a casar, mas seria com quem lhe fizesse
o melhor madrigal, em concurso. Bernardo aceitou a clusula, louco
de amor e confiado em si: tinha mais um olho que Homero, e fizera a
unidade dos ps e das cabeas. Concorreram ao certmen, que foi annimo
e secreto, vinte pessoas. Um dos madrigais foi julgado superior aos
outros todos; era justamente o do poeta amado. Bernardo anulou por
um decreto o concurso, e mandou abrir outro; mas ento, por uma
inspirao de insigne maquiavelismo, ordenou que no se empregassem
palavras que tivessem menos de trezentos anos de idade. Nenhum dos
concorrentes estudara os clssicos: era o meio provvel de os vencer.
No venceu ainda assim porque o poeta amado leu pressa o que pde, e
o seu madrigal foi outra vez o melhor. Bernardo anulou esse segundo
concurso; e, vendo que no madrigal vencedor as locues antigas davam
singular graa aos versos, decretou que s se empregassem as modernas
e particularmente as da moda. Terceiro concurso, e terceira vitria
do poeta amado. Bernardo, furioso, abriu-se com os dois ministros,
pedindo-lhes um remdio pronto e enrgico, porque, se no ganhasse a
mo de Estrelada, mandaria cortar trezentas mil cabeas. Os dois,
tendo consultado algum tempo, voltaram com este alvitre: Ns, Alfa e
mega, estamos designados pelos nossos nomes para as coisas que
respeitam linguagem. A nossa idia que Vossa Sublimidade mande
recolher todos os dicionrios e nos encarregue de compor um
vocabulrio novo que lhe dar a vitria. Bernardo assim fez, e os dois
meteram-se em casa durante trs meses, findos os quais depositaram
nas augustas mos a obra acabada, um livro a que chamaram Dicionrio
de Babel, porque era realmente a confuso das letras. Nenhuma locuo
se parecia com a do idioma falado; as consoantes trepavam nas
consoantes, as vogais diluam-se nas vogais, palavras de duas slabas
tinham agora sete e oito, e vice-versa, tudo trocado, misturado,
nenhuma energia, nenhuma graa, uma lngua de cacos e trapos. Obrigue
Vossa Sublimidade esta lngua por um decreto, e est tudo feito.
Bernardo concedeu um abrao e uma penso a ambos, decretou o
vocabulrio, e declarou que ia fazer-se o concurso definitivo para
obter a mo da bela Estrelada. A confuso passou do dicionrio aos
espritos; toda a gente andava atnita. Os farsolas cumprimentavam-se
na rua pela novas locues: diziam, por exemplo, em vez de: Bom dia,
como passou? Pflerrgpxx, rouph, aa? A prpria dama, temendo que o
poeta amado perdesse afinal a campanha, props-lhe que fugissem;
ele, porm, respondeu que ia ver primeiro se podia fazer alguma
coisa. Deram noventa dias para o novo concurso e recolheram-se
vinte madrigais. O melhor deles, apesar da lngua brbara, foi o do
poeta amado. Bernardo, alucinado, mandou cortar as mos aos dois
ministros e foi a nica vingana. Estrelada era to admiravelmente
bela, que ele no se atreveu a mago-la, e cedeu. Desgostoso,
encerrou-se oito dias na biblioteca, lendo, passeando ou meditando.
Parece que a ltima coisa que leu foi uma stira do poeta Garo, e
especialmente estes versos, que pareciam feitos de encomenda: O
raro Apeles, Rubens e Rafael, inimitveis No se fizeram pela cor das
tintas; A mistura elegante os fez eternos. UM ERRADIO A porta
abriu-se... Deixa-me contar a histria laia de novela, disse Tosta
mulher, um ms depois de casados, quando ela lhe perguntou quem era
o homem representado numa velha fotografia, achada na secretria do
marido. A porta abriu-se, e apareceu este homem, alto e srio,
moreno, metido numa infinita sobrecasaca cor de rap, que os rapazes
chamavam opa. A vem a opa do Elisirio. Entre a opa s. No, a opa no
pode; entre s o Elisirio, mas, primeiro h de glosar um mote. Quem d
o mote? Ningum dava o mote. A casa era uma simples sala, sublocada
por um alfaiate, que morava nos fundos com a famlia; Rua do
Lavradio, 1866. Era a segunda vez que ia ali, a convite de um dos
rapazes. No podes ter idia da sala e da vida. Imagina um municpio
do pas da Bomia, tudo desordenado e confuso; alm dos poucos mveis
pobres, que eram do alfaiate, havia duas redes, uma canastra, um
cabide, um ba de folha-de-flandres, livros, chapus, sapatos.
Moravam cinco rapazes, mas apareciam outros, e todos eram tudo,
estudantes, tradutores, revisores, namoradores, e ainda lhes
sobrava tempo para redigir uma folha poltica e literria, publicada
aos sbados. Que longas palestras que tnhamos! Solapvamos as bases
da sociedade, descobramos mundos novos, constelaes novas,
liberdades novas. Tudo era o novssimo. L vai mote, disse afinal um
dos rapazes, e recitou: Podia embrulhar o mundo A opa do Elisirio.
Parado porta, o homem cerrou os olhos por alguns instantes,
abriu-os, passou pela testa o leno que trazia fechado na mo, em
forma de bolo, e recitou uma glosa de improviso. Rimo-nos muito;
eu, que no tinha idia do que era improviso, cuidei a princpio que a
composio era velha e a cena um logro para mim. Elisirio despiu a
sobrecasaca, levantou-a na ponta da bengala, deu duas voltas pela
sala, com ar triunfal, e foi pendur-la a um prego, porque o cabide
estava cheio. Em seguida, atirou o chapu ao teto, apanhou-o entre
as mos, e foi p-lo em cima do aparador. Lugar para um! disse
finalmente. Dei-me pressa em ceder-lhe o sof; ele deitou-se, fincou
os joelhos no ar, e perguntou que novidades havia. Que o jantar
duvidoso, respondeu o redator principal do Cenculo; o Chico foi ver
se cobrava alguma assinatura. Se arranjar dinheiro, traz logo o
jantar da casa de pasto. Voc j jantou? J e bem, respondeu Elisirio,
jantei numa casa de comrcio. Mas vocs por que que no vendem o
Chico? um bonito crioulo. livre, no h dvida, mas por isso mesmo
compreender que, deixando-se vender como escravo, tero vocs com que
pagar-lhe os ordenados... Dois mil-ris chegam? Romeu, v ali no
bolso da sobrecasaca. H de haver uns dois mil-ris. Havia s mil e
quinhentos, mas no foram precisos. Cinco minutos depois voltava o
Chico, trazendo um tabuleiro com o jantar e o resto da assinatura
de um semestre. No possvel! bradou Elisirio. Uma assinatura! Vem c,
Chico. Quem foi que pagou? Que figura tinha o homem? Baixo? No
possvel que fosse baixo; a ao to sublime que nenhum homem baixo
podia pratic-la. Confessa que era alto. Confessa ao menos que era
de meia altura. Confessas? Ainda bem! Como se chama? Guimares?
Rapazes, vamos perpetuar este nome em uma placa de bronze. Acredito
que no lhe deste recibo, Chico. Dei, sim, senhor. Recibo! Mas a um
assinante que paga no se d recibo, para que ele pague outra vez; no
se matam esperanas, Chico. Tudo isto, dito por ele, tinha muito
mais graa que contado. No te posso pintar os gestos, os olhos e um
riso que no ria, um riso nico, sem alterar a face, nem mostrar os
dentes. Essa feio era a menos simptica; mas tudo o mais, a fala, as
idias, e principalmente a imaginao fecunda e moa, que se desfazia
em ditos, anedotas, epigramas, versos, descries, ora srio, quase
sublime, ora familiar, quase rasteiro, mas sempre original, tudo
atraa e prendia. Trazia a barba por fazer, o cabelo escovinha; a
testa, que era alta, tinha grossas rugas verticais. Calado, parecia
estar pensando. Voltava-se a mido no sof, erguia-se, sentavase,
tornava a deitar-se. L o deixei, quando sa, s nove horas da noite.
Comecei a freqentar a casa da Rua do Lavradio, mas durante os
primeiros dias no apareceu o Elisirio. Disseram-me que era muito
incerto. Tinha temporadas. s vezes, ia todos os dias;
repentinamente, falhava uma, duas, trs semanas seguidas, e mais.
Era professor de latim e explicador de matemticas. No era formado
em coisa nenhuma, posto estudasse engenharia, medicina e direito
deixando em todas as faculdades fama de grande talento sem aplicao.
Seria bom prosador, se fosse capaz de escrever vinte minutos
seguidos; era poeta de improviso, no escrevia os versos, os outros
que os ouviam e transladavam ao papel, dando-lhe cpias, muitas das
quais perdia. No tinha famlia; tinha um protetor, o Dr. Lousada,
operador de algum nome, que devera obsquios ao pai de Elisirio, e
quis pag-los ao filho. Era atrevido por causa de uma sombrinha de
amor-prprio que no tolerava a menor picada. Naquela casa era
bonacho. Trinta e cinco anos; o mais velho dos rapazes contava
apenas vinte e um. A familiaridade entre ele e os outros era como a
de um tio com sobrinhos, um pouco menos de autoridade, um pouco
mais de liberdade. No fim de uma semana, apareceu Elisirio na Rua
do Lavradio. Vinha com a idia de escrever um drama, e queria
dit-lo. Escolheram-me a mim, por escrever depressa. Esta colaborao
mental e manual durou duas noites e meia. Escreveuse um ato e as
primeiras cenas de outro; Elisirio no quis absolutamente acabar a
pea. A princpio disse que depois, mais tarde, estava indisposto, e
falava de outras coisas; afinal, declarou-nos que a pea no prestava
para nada. Espanto geral, porque a obra parecia-nos excelente, e
ainda agora creio que o era. Mas o autor pegou da palavra e
demonstrou que nem o escrito prestava, nem o resto do plano valia
coisa nenhuma. Falou como se tratasse de outrem. Ns contestvamos;
eu principalmente achava um crime, e repetia esta palavra com alma,
com fogo achava um crime no acabar o drama, que era de primeira
ordem. No vale nada, dizia ele sorrindo para mim com simpatia.
Menino, voc quantos anos tem? Dezoito. Tudo sublime aos dezoito
anos. Cresa e aparea. O drama no presta; mas, deixe estar que
havemos de escrever outro daqui a dias. Ando com uma idia. Sim? Uma
boa idia, continuou ele com os olhos vagos; essa, sim, creio que
dar um drama. Cinco atos; talvez faa em verso. O assunto
presta-se... Nunca mais falou em tal idia; mas o drama comeado fez
com que nos ligssemos um pouco mais intimamente. Ou simpatia, ou
amor-prprio satisfeito, por ver que o mais consternado com a
interrupo e condenao do trabalho fui eu, ou qualquer outra causa
que no achei nem vale a pena buscar, Elisirio entrou a
distinguir-me entre os outros. Quis saber quem eram meus pais e o
que fazia. Disse-lhe que no tinha me; meu pai era lavrador em
Baturit, eu estudava preparatrios, intercalando-os com versos, e
andava com idias de compor um poema, um drama e um romance. Tinha j
uma lista de subscritores para os versos. Parece que, de envolta
com as notcias literrias, alguma coisa lhe disse ou ele percebeu
acerca dos meus sentimentos de moo. Props-se a ajudar-me nos
estudos com o seu prprio ensino, latim, francs, ingls, histria...
Cheio de orgulho, no menos que de sensibilidade, proferi algumas
palavras que ele gostou de ouvir, e a que respondeu gravemente:
Quero fazer de voc um homem. Estvamos ss; eu nada contei aos
outros, para os no molestar, nem sei se eles perceberam da em
diante alguma diferena no trato do Elisirio, em relao a mim. certo,
porm, que a diferena no era grande, nem o plano de "fazer-me um
homem" foi alm da simpatia e da benevolncia. Ensinava-me algumas
matrias, quando eu lhe pedia lies, e eu raramente as pedia. Queria
s ouvi-lo, ouvi-lo, ouvi-lo at no acabar. No imaginas a eloqncia
desse homem, clida e forte, mansa e doce, as imagens que lhe
brotavam no discurso, as idias arrojadas, as formas novas e
graciosas. Muita vez ficvamos os dois ss na Rua do Lavradio, ele
falando, eu ouvindo. Onde morava? Disseram-me vagamente que para os
lados da Gamboa, mas nunca me convidou a l ir, nem ningum sabia
positivamente onde era. Na rua era lento, direito, circunspecto.
Nada faria ento suspeitar o desengonado da casa do Lavradio, e, se
falava, eram poucas e meias palavras. Nos primeiros dias,
encontrava-me sem alvoroo quase sem prazer, ouvia-me atento,
respondia pouco, estendia os dedos e continuava a andar. Ia a toda
parte; era comum ach- lo nos lugares mais distantes uns dos outros,
Botafogo, S. Cristvo, Andara. Quando lhe dava na veneta, metia-se
na barca e ia a Niteri. Chamava-se a si mesmo erradio. Eu sou um
erradio. No dia em que parar de vez, jurem que estou morto. Um dia
encontrei-o na Rua de S. Jos. Disse-lhe que ia ao Castelo ver a
igreja dos Jesutas, que nunca vira. Pois vamos, disse ele. Subimos
a ladeira, achamos a igreja aberta e entramos. Enquanto eu mirava
os altares, ele ia falando, mas em poucos minutos o espetculo era
ele s, um espetculo vivo, como se tudo renascera tal qual era. Vi
os primeiros templos da cidade, os padres da Companhia, a vida
monstica e leiga, os nomes principais e os fatos culminantes.
Quando samos, e fomos at muralha, descobrindo o mar e parte da
cidade, Elisirio fez-me viver dois sculos atrs. Vi a expedio dos
franceses, como se a houvesse comandado ou combatido. Respirei o ar
da colnia, contemplei as figuras velhas e mortas. A imaginao
evocativa era a grande prenda desse homem, que sabia dar vida s
coisas extintas e realidade s inventadas. Mas no era s do passado
local que ele sabia, nem unicamente dos seus sonhos. Vs aquela
estatuazinha que ali tenho na parede? Sabes que uma reduo da Vnus
de Milo. Uma vez, abrindo-se a exposio das belas-artes, fui
visit-la; achei l o meu Elisirio, passeando grave, com a sua imensa
sobrecasaca. Acompanhou-me; ao passar pela sala de escultura, dei
com os olhos na cpia desta Vnus. Era a primeira vez que a via.
Soube que era ela pela falta dos braos. Oh! admirvel! exclamei.
Elisirio entrou a comentar a bela obra annima, com tal abundncia e
agudeza que me deixou ainda mais pasmado. Que de coisas me disse a
propsito da Vnus de Milo, e da Vnus em si mesma! Falou da posio dos
braos, que gesto fariam, que atitude dariam figura, formulando uma
poro de hipteses graciosas e naturais. Falou da esttica, dos
grandes artistas, da vida grega, do mrmore grego, da alma grega.
Era um grego, um puro grego, que ali me aparecia e transportava de
uma rua estreita para diante do Prtenon. A opa do Elisirio
transformou-se em clmide, a lngua devia ser a da Hlade, conquanto
eu nada soubesse a tal respeito, nem ento, nem agora. Mas era
feiticeiro o diabo do homem. Samos; fomos at o Campo da Aclamao,
que ainda no possua o parque de hoje, nem tinha outra polcia alm da
natureza, que fazia brotar o capim, e das lavadeiras, que batiam e
ensaboavam a roupa defronte do quartel. Eu ia cheio do discurso do
Elisirio, ao lado dele, que levava a cabea baixa e os olhos
pensativos. De repente, ouvi dizer baixinho: Adeus, Ioi! Era uma
quitandeira de doces, uma crioula baiana, segundo me pareceu pelos
bordados e crivos da saia e da camisa. Vinha da Cidade Nova e
atravessava o campo. Elisirio respondeu saudao: Adeus, Zeferina.
Estacou e olhou para mim, rindo sem riso, e, depois de alguns
segundos: No se espante, menino. H muitas espcies de Vnus. O que
ningum dir que a esta lhe faltem braos, continuou olhando para os
braos da quitandeira, mais negros ainda pelo contraste da manga
curta e alva da camisa. Eu, de vexado, no achei resposta. No contei
esse episdio na Rua do Lavradio; podiam meter bulha o Elisirio, e
no queria parecer indiscreto. Tinha-lhe no sei que venerao
particular que a familiaridade no enfraquecia. Chegamos a jantar
juntos algumas vezes, e uma noite fomos ao teatro. O que mais lhe
custava no teatro era estar muito tempo na mesma cadeira, apertado
entre duas pessoas, com gente adiante e atrs de si. Nas noites de
enchente, em que eram precisas travessas na platia, ficava aflito
com a idia de no poder sair no meio de um ato, se quisesse.
Naquela, acabado o terceiro ato (a pea tinha cinco), disse-me que
no podia mais e que ia embora. Fomos tomar ch ao botequim prximo, e
deixei-me estar, esquecido do espetculo. Ficamos at o fechar das
portas. Tnhamos falado de viagens; eu contei-lhe a vida do serto
cearense, ele ouviu e projetou mil jornadas ao serto do Brasil
inteiro, por serras, campos e rios, de mula e de canoa. Colheria
tudo, plantas, lendas, cantigas, locues. Narrou a vida do caipira,
falou de Enias, citou Virglio e Cames, com grande espanto dos
criados, que paravam boquiabertos. Voc era capaz de ir daqui a p,
at S. Cristvo, agora? perguntou-me na rua. Pode ser. No, voc est
cansado. No estou, vamos. Est cansado, adeus; at depois, concluiu.
Realmente, estava fatigado, precisava dormir. Quando ia a voltar
para casa, perguntei a mim mesmo se ele iria sozinho, quela hora, e
deu-me vontade de acompanh-lo de longe, at certo ponto. Ainda o
apanhei na Rua dos Ciganos. Ia devagar, com a bengala debaixo do
brao, e as mos ora atrs, ora nas algibeiras das calas. Atravessou o
Campo da Aclamao, enfiou pela Rua de S. Pedro e meteu-se pelo
Aterrado acima. Eu, no Campo, quis voltar, mas a curiosidade fezme
ir andando tambm. Quem sabe se esse erradio no teria pouso certo de
amores escondidos? No gostei desta reflexo, e quis punir-me
desandando; mas a curiosidade levara-me o sono e dava-me vigor s
pernas. Fui andando atrs do Elisirio. Chegamos assim ponte do
Aterrado, enfiamos por ela, desembocamos na Rua de S. Cristvo. Ele
algumas vezes parava, ou para acender um charuto, ou para nada.
Tudo deserto, uma ou outra patrulha, algum tlburi, raro, a passo
cochilado, tudo deserto e longo. Assim chegamos ao cais da
Igrejinha. Junto ao cais dormiam os botes que, durante o dia,
conduziam gente para o Saco do Alferes. Mar frouxa, apenas o
ressonar manso da gua. Aps alguns minutos, quando me pareceu que ia
voltar pelo mesmo caminho, acordou os remadores de um bote, que de
acaso ali dormiam, e props-lhes lev-lo cidade. No sei quanto
ofereceu; vi que, depois de alguma relutncia, aceitaram a proposta.
Elisirio entrou no bote, que se afastou logo, os remos feriram a
gua, e l se perdeu na noite e no mar o meu professor de latim e
explicador de matemticas. Tambm eu me achei perdido, longe da
cidade e exausto. Valeu-me um tlburi, que atravessava o Campo de S.
Cristvo, to cansado como eu, mas piedoso e necessitado. Voc no quis
ir comigo anteontem a So Cristvo? No sabe o que perdeu; a noite
estava linda, o passeio foi muito agradvel. Chegando ao cais da
Igrejinha, meti-me num bote e vim desembarcar no Saco do Alferes.
Era um bom pedao at a casa; fiquei numa hospedaria do Campo de
Sant'Ana. Fui atacado por um cachorro, no caminho do Saco, e por
dois na Rua de S. Diogo, mas no senti as pulgas da hospedaria,
porque dormi como um justo. E voc que fez? Eu? No querendo mentir,
se ele me tivesse pressentido, nem confessar que o acompanhara de
longe, respondi sumariamente: Eu? Eu tambm dormi como um justo.
Justus, justa, justum. Estvamos na casa da Rua do Lavradio.
Elisirio trazia no peito da camisa um boto de coral, objeto de
grande espanto e aclamao da parte dos rapazes, que nunca jamais o
viram com jias. Maior, porm, foi o meu espanto, depois que os
rapazes saram. Tendo ouvido que me faltava dinheiro para comprar
sapatos, Elisirio sacou o boto de coral e disse que me fosse calar
com ele. Recusei energicamente, mas tive de aceit-lo fora. No o
vendi nem empenhei; no dia seguinte pedi algum dinheiro adiantado
ao correspondente de meu pai, calcei-me de novo, e esperei que
chegasse o paquete do Norte, para restituir o boto ao Elisirio. Se
visses a cara de desconsolo com que o recebeu! Mas o senhor no
disse outro dia que lhe tinham dado este boto de presente?
repliquei proposta que me fez de ficar com a jia. Sim, disse e
verdade; mas para que me servem jias? Acho que ficam melhor nos
outros. Bem pensado, como presente, posso guardar o boto. Deveras,
no o quer para si? No, senhor; um presente... Presente de anos,
continuou mirando a pedra com o olhar vago. Fiz trinta e cinco.
Estou velho, meu menino; no tardo em pedir reforma e ir morrer em
algum buraco. Tinha acabado de repor o boto na camisa. Fez anos, e
no me disse. Para qu? Para visitar-me? No recebo nesse dia; de
costume janto com o meu velho amigo Dr. Lousada, que tambm faz o
seu versinho, s vezes, e outro dia brindou-me com um soneto
impresso em papel azul... L o tenho em casa; no mau. Foi ele que
lhe deu o boto... No, foi a filha... O soneto tem um verso muito
parecido, com outro de Cames; o meu velho Lousada possui as suas
letras clssicas, alm de ser excelente mdico... Mas o melhor dele a
alma ... Quiseram faz-lo deputado. Ouvi que dois amigos dele,
homens polticos, entenderam que o Elisirio daria um bom orador
parlamentar. No se ops, pediu apenas aos inventores do projeto que
lhe emprestassem algumas idias polticas; riram-se, e o projeto no
foi adiante. Quero crer que lhe no faltassem idias, talvez as
tivesse de sobra, mas to contrrias umas s outras que no chegariam a
formar uma opinio. Pensava segundo a disposio do dia, liberal
exaltado ou conservador corcunda. O principal motivo da recusa era
a impossibilidade de obedecer a um partido, a um chefe, a um
regimento de cmara. Se houvesse liberdade de alterar as horas da
sesso, uma de manh, outra de noite, outra de madrugada, ao acaso da
freqncia, sem ordem do dia, com direito de discutir o anel de
Saturno ou os sonetos de Petrarca, o meu erradio Elisirio aceitaria
o cargo, contanto que no fosse obrigado a estar calado, nem a
falar, quando lhe chegasse a vez. A tens o que era esse homem
fotografado em 1862. Em suma, boa criatura, muito talento,
excelente conversador, alma inquieta e doce, desconfiada e
irritadia, sem futuro nem passado, sem saudades nem ambies, um
erradio. Seno quando... Mas muito falar sem fumar um charuto...
Consentes? Enquanto acendo o charuto, olha para esse retrato,
descontando-lhe os olhos, que no saram bem; parecem olhos de gato e
inquisidor, espetados na gente, como querendo furar a conscincia.
No eram isso; olhavam mais para dentro que para fora, e quando
olhavam para fora derramavam-se por toda a parte. Seno quando, uma
tarde, j escuro, por volta das sete horas, apareceu-me na casa de
penso o meu amigo Elisirio. Havia trs semanas que o no via, e, como
tratava de fazer exames, e passava mais tempo metido em casa, no me
admirei da ausncia nem cuidei dela. Demais, j me acostumara aos
seus eclipses. O quarto estava escuro, eu ia sair e acabava de
apagar a vela, quando a figura alta e magra do Elisirio apareceu
porta. Entrou, foi direito a uma cadeira, sentei-me ao p dele,
perguntei-lhe por onde andara. Elisirio abraou-me chorando. Fiquei
to assombrado que no pude dizer nada; abracei-o tambm, ele enxugou
os olhos com o leno, que de costume trazia fechado na mo, e
suspirou largo. Creio que ainda chorou silenciosamente, porque
enxugava os olhos de quando em quando. Eu, cada vez mais
assombrado, esperava que ele me dissesse o que tinha; afinal
murmurei: Que ? que foi? Tosta, casei-me sbado... Cada vez mais
espantado, no tive tempo de lhe pedir outra explicao, porque o
Elisirio continuou logo, dizendo que era um casamento de gratido,
no de amor, uma desgraa. No sabia que respondesse confidncia, no
acabava de crer na notcia, e principalmente, no entendia o
abatimento nem a dor do homem. A figura do Elisirio, qual a
recompus depois, no me aparecia por esse tempo com a significao
verdadeira. Cheguei a supor alguma coisa mais que o simples
casamento; talvez a mulher fosse idiota ou tsica; mas quem o
obrigaria a desposar uma doente? "Uma desgraa! repetia baixinho,
falando para si, uma desgraa!" Como eu me levantasse dizendo que ia
acender uma vela, Elisirio reteve-me pela aba do fraque. No acenda,
no me vexe, o escuro melhor, para lhe expor esta minha desgraa.
Oua-me. Uma desgraa. Casado! No que ela me no ame; ao contrrio,
morria por mim h sete anos. Tem vinte e cinco... Boa criatura! Uma
desgraa! A palavra desgraa era a que mais vezes lhe tornava ao
discurso. Eu, para saber o resto, quase no respirava; mas no ouvi
grande coisa, pois o homem, depois de algumas palavras descosidas,
suspendeu a conferncia. Fiquei sabendo s que a mulher era filha do
Dr. Lousada, seu protetor e amigo, a mesma que lhe dera o boto de
coral. Elisirio calou-se de repente, e depois de alguns instantes
como arrependido ou vexado, pediu-me que no referisse a pessoa
alguma aquela cena dele comigo. O senhor deve conhecer-me...
Conheo, e porque o conheo que vim aqui. No sei que outra pessoa me
merecesse agora igual confiana. Adeus, no lhe digo mais nada, no
vale a pena. Voc moo, Tosta; se no tiver vocao para o casamento, no
se case nunca, nem por gratido, nem por interesse. H de ser um
suplcio. Adeus. No lhe digo onde moro, moro com meu sogro, mas no
me procure. Abraou-me e saiu. Fiquei porta do quarto. Quando me
lembrei de acompanh-lo at escada, era tarde; ia descendo os ltimos
degraus. O lampio de azeite alumiava mal a escada, e a figura
descia vagarosa, apoiada ao corrimo, cabea baixa e a vasta
sobrecasaca alegre, agora triste. S dez meses depois tornei a ver o
Elisirio. A primeira ausncia foi minha; tinha ido ao Cear, ver meu
pai, durante as frias. Quando voltei, soube que ele fora ao Rio
Grande do Sul. Um dia, almoando, li nos jornais que chegara na
vspera, e corri a busc-lo. Achei-o em Santa Teresa, uma casinha
pequena, com um jardim, pouco maior que ela. Elisirio abraou-me com
alvoroo; falamos de coisas passadas; perguntei-lhe pelos versos.
Publiquei um volume em Porto Alegre. No foi por minha vontade, mas
minha mulher teimou tanto que afinal cedi; ela mesma os copiou. Tem
alguns erros; hei de fazer aqui uma segunda edio. Elisirio deu-me
um exemplar do livro, mas no consentiu que lesse ali nada. Queria s
falar dos tempos idos. Perdera o sogro, que lhe deixara alguma
coisa, e ia continuar a lecionar, para ver se achava as impresses
de outrora. Onde estavam os rapazes da Rua do Lavradio? Recordava
cenas antigas, noitadas, algazarra, grandes risotas, que me iam
lembrando coisas anlogas, e assim gastamos duas boas horas
compridas. Quando me despedi, pegou-me para jantar. Voc ainda no
viu minha mulher, disse ele. E indo porta que dava para dentro:
Cintinha! L vou! respondeu uma voz doce. D. Jacinta chegou logo
depois, com os seus vinte e seis anos, mais baixa que alta, mais
feia que bonita, expresso boa e sria, grande quietao de maneiras.
Quando ele lhe disse o meu nome, olhou para mim espantada. No um
bonito rapaz? Ela confirmou a opinio inclinando modestamente a
cabea. Elisirio disse-lhe que eu jantava com eles; a moa retirou-se
da sala. Boa criatura, disse-me ele; dedicada, servial. Parece que
me adora. J me no faltam botes nos palets que trago... Pena! melhor
que eles eram os botes que faltavam. A sobrecasaca de outrora,
lembra-se? Podia embrulhar o mundo A opa do Elisirio. Lembra-me.
Creio que me durou cinco anos. Onde vai ela! Hei de fazer-lhe um
epicdio, com uma epgrafe de Horcio... Jantamos alegremente. D.
Jacinta falou pouco; deixou que eu e o marido gastssemos o tempo em
relembrar o passado. Naturalmente, o marido tinha surtos de
eloqncia, como outrora; a mulher era pouca para ouvi-lo. Elisirio
esquecia-se de ns, ela de si, e eu achava a mesma nota antiga, to
viva e to forte. Era costume dele concluir um discurso desses e
ficar algum tempo calado. Resumia dentro de si o que acabava de
dizer? Continuava a mesma ordem de idias? Deixava-se ir ainda pela
msica da palavra? No sei; achei-lhe o velho costume de ficar calado
sem dar pelos outros. Nessas ocasies a mulher calava-se tambm, a
olhar para ele, no cheia de pensamento, mas de admirao. Sucedeu
isso duas vezes. Em ambas chegou a ser bonita. Elisirio disse-me,
ao caf, que viria comigo abaixo. Voc deixa, Cintinha? D. Jacinta
sorriu para mim, como se dissesse que o pedido era desnecessrio.
Tambm ela falou no livro de versos do marido. Elisirio preguioso; o
senhor h de ajudar-me a fazer com que ele trabalhe. Meia hora
depois descamos a ladeira. Elisirio confessou-me que, desde que
casara, no tivera ocasio de relembrar a vida de solteiro, e ao
chegarmos abaixo declarou-me que iramos ao teatro. Mas voc no
avisou em casa... Que tem? Aviso depois. Cintinha boa, no se zanga
por isso. Que teatro h de ser? No foi nenhum; falamos de outras
coisas, e s nove horas tornou para casa. Voltei a Santa Teresa
poucos dias depois, no o achei, mas a mulher disse-me que o
esperasse, no tardaria. Foi a uma visita aqui mesmo no morro, disse
ela; h de gostar muito de o ver. Enquanto falava, ia fechando
dissimuladamente um livro, e foi p-lo em uma mesa, a um canto.
Tratamos do marido; ela pediu-me que lhe dissesse o que pensava
dele, se era um grande esprito, um grande poeta, um grande orador,
um grande homem, em suma. As palavras no seriam propriamente essas,
mas vinham a dar nelas. Eu, que o admirava, confirmei-lhe o
sentimento, e o gosto com que me ouviu foi paga bastante ao tal ou
qual esforo que empreguei para dar minha opinio a mesma nfase. Faz
bem em ser amigo dele, concluiu; ele sempre me falou bem do senhor;
dizia que era um menino muito srio. O gabinete tinha flores frescas
e uma gaiola com passarinho. Tudo em ordem, cada coisa em seu
lugar, obra visvel da mulher. Da a pouco entrou Elisirio, com a
gravata no pescoo, o lao na frente, a barba rapada, correto e em
flor. S ento notei a diferena entre este Elisirio e o outro. A
incoerncia dos gestos era j menor, ou estava prestes a acabar
inteiramente. A inquietao desaparecera. Logo que ele entrou, a
mulher deixou-nos para ir mandar fazer caf, e voltou pouco depois,
com um trabalho de agulha. No, senhora, vamos primeiro ao latim,
bradou o marido. D. Jacinta corou extraordinariamente, mas obedeceu
ao marido e foi buscar o livro que estava lendo quando eu cheguei.
Tosta de confiana, continuou Elisrio, no vai dizer nada a ningum. E
voltando-se para mim: No pense que sou eu que lhe imponho isto; ela
mesma que quis aprender. No crendo o que ele me dizia, quis poupar
moa a lio de latim, mas foi ela prpria que me dispensou o auxlio,
indo buscar alegremente a gramtica do Padre Pereira. Vencida a
vergonha, deu a lio, como um simples aluno. Ouvia com ateno,
articulava com prazer, e mostrava aprender com vontade. Acabado o
latim, o marido quis passar lio de histria; mas foi ela, dessa vez,
que recusou obedecer, para me no roub-lo a mim. Eu, pasmado,
desfiz-me em louvores; realmente achava to fora de propsito aquela
escola de latim conjugal, que no alcanava explicao, nem ousava
pedi-la. Amiudei as visitas. Jantava com eles algumas vezes. Ao
domingo ia s almoar. D. Jacinta era um primor. No imaginas a graa
que tinha em falar e andar, tudo sem perder a compostura dos modos
nem a gravidade dos pensamentos. Sabia muitos trabalhos de mos,
apesar do latim e da histria que o marido lhe ensinava. Vestia com
simplicidade, usava os cabelos lisos e no trazia jia alguma; podia
ser afetao, mas tal era a sinceridade que punha em tudo, que
parecia natural nisso como no resto. Ao domingo, o almoo era no
jardim. J achava o Elisirio minha espera, porta, ansioso que eu
chegasse. A mulher estava acabando de arranjar as flores e
folhagens que tinham de adornar a mesa. Alm disso e do mais,
adornava cartes contendo a lista dos pratos, com emblemas poticos e
nomes de musas para as comidas. Nem todas as musas podiam entrar,
eles no eram ricos, nem ns to comiles; entravam as que podiam. Era
ao almoo que Elisirio, nos primeiros tempos, mais geralmente
improvisava alguma coisa. Improvisava dcimas, ele preferia essa
estrofe a qualquer outra; mais tarde, foi diminuindo o nmero delas,
e para diante no passava de duas ou de uma. D. Jacinta pedia-lhe
ento sonetos; sempre eram quatorze versos. Ela e eu copivamos logo,
a lpis, com retificaes que ele fazia, rindo: "Para que querem vocs
isso?" Afinal perdeu o costume, com grande mgoa da mulher, e minha
tambm. Os versos eram bons, a inspirao fcil; faltava-lhes s o calor
antigo. Um dia perguntei a Elisirio por que no reimprimia o livro
de versos, que ele dizia ter sado com incorrees; eu ajudaria a ler
as provas. D. Jacinta apoiou com entusiasmo a proposta. Pois, sim,
disse ele, um dia destes; comearemos domingo. No domingo, D.
Jacinta, estando a ss comigo, um instante, pediu-me que no
esquecesse a reviso do livro. No, senhora, deixe estar. No
enfraquea, se ele quiser adiar o trabalho, continuou a moa; provvel
que ele fale em guardar para outra vez, mas teime sempre, diga que
no, que se zanga, que no volta c... Apertou-me a mo com tanta fora,
que me deixou abalado. Os dedos tremiamlhe; parecia um aperto de
namorada. Cumpri o que disse, ela ajudou-me, e ainda assim gastamos
meia hora antes que ele se dispusesse ao trabalho. Afinal pediunos
que esperssemos, ia buscar o livro. Desta vez, vencemos, disse eu.
D. Jacinta fez com a boca um gesto de desconfiana, e passou da
alegria ao abatimento. Elisirio est preguioso. H de ver que no
acabamos nada. Pois no v que no faz versos seno fora de muito
pedido, e poucos? Podia escrever tambm, quando mais no fosse alguns
daqueles discursos que costuma improvisar, mas os prprios discursos
so raros e curtos. Tenho-me oferecido tantas vezes para escrever o
que ele mandar... Chego a preparar o papel, pego na pena e espero;
ele ri, disfara, diz um gracejo, e responde que no est disposto.
Nem sempre estar. Pois sim; mas ento declaro que estou pronta para
quando vier a inspirao, e peo-lhe que me chame. No chama nunca. Uma
ou outra vez tem planos; eu vou animando, mas os planos ficam no
mesmo. Entretanto, o livro que ele imprimiu em Porto Alegre foi bem
recebido, podia anim-lo. Anim-lo? Mas ele no precisa de animaes;
basta-lhe o grande talento que tem. No verdade? disse ela
chegando-se a mim, com os olhos cheios de fogo. Mas pena! tanto
talento perdido! Ns o acharemos; hei de trat-lo como se ele fosse
mais moo que eu. O mau foi deix-lo cair na ociosidade... Elisirio
tornou com um exemplar do livro. No trazia tinta nem pena; ela foi
busc-las. Comeamos o trabalho da reviso; o plano era emendar, no s
os erros de imprensa, mas o prprio texto. A novidade do caso
interessou grandemente o nosso poeta, durante perto de duas horas.
Verdade que a maior parte do tempo era interrompido com a histria
das poesias, a notcia das pessoas, se as havia, e havia muitas; uma
boa poro das composies era dedicada a amigos ou homens pblicos.
Naturalmente fizemos pouco: no passamos de vinte pginas. Elisirio
confessou que estava com sono, adiamos o trabalho, e nunca mais
pegamos nele. D. Jacinta chegou a pedir ao marido que nos deixasse
a ns a tarefa de emendar o livro; ele veria depois o texto emendado
e pronto. Elisirio respondeu que no, que ele mesmo faria tudo, que
esperssemos, no havia pressa. Mas, como disse, nunca mais pegamos
no livro. J raro improvisava, e, como no tinha pacincia para compor
escrevendo, os versos iam escasseando mais. J lhe saam frouxos; o
poeta repetia-se. Quisemos ainda assim propor-lhe outro livro,
recolhendo o que havia, e antes de o propor, tratamos de compil-lo.
O todo precisava de reviso; Elisirio consentiu em faz-la, mas a
tentativa teve o mesmo resultado que a outra. Os prprios discursos
iam acabando. O gosto da palavra morria. Falava como todos ns
falamos; no era j nem sombra daquela catadupa de idias, de imagens,
de frases, que mostravam no orador um poeta. Para o fim, nem
falava; j me recebia sem entusiasmo, ainda que cordialmente. Afinal
vivia aborrecido. Com poucos anos de casada, D. Jacinta tinha no
marido um homem de ordem, de sossego, mas sem inspirao nem calor.
Ela prpria foi mudando tambm. No instava j pela composio de versos
novos, nem pela correo dos velhos. Ficou to desinteressada como
ele. Os jantares e os almoos eram como os de qualquer pessoa que no
cuide de letras. D. Jacinta buscava no tocar em tal assunto que era
penoso ao marido e a ela; eu imitava-os. Quando me formei, Elisirio
comps um soneto em honra minha; mas j lhe custou muito, e, a falar
verdade, no era do mesmo homem de outro tempo. D. Jacinta vivia
ento, no direi triste, mas desencantada. A razo no se compreender
bem, seno sabendo as origens da afeio que a levara ao casamento.
Pelo que pude colher e observar, nunca essa moa amou
verdadeiramente o homem com quem casou. Elisirio acreditou que sim,
e o disse, porque o pai dela pensava que era deveras um amor como
os outros. A verdade, porm, que o sentimento de D. Jacinta era pura
admirao. Tinha uma paixo intelectual por esse homem, nada mais, e
nos primeiros anos no pensou em casar com ele. Quando Elisirio ia
casa do Dr. Lousada, D. Jacinta vivia as melhores horas da vida,
escutando-lhe os versos, novos ou velhos, os que trazia de cor e os
que improvisava ali mesmo. Possua boa cpia deles. Mas, ainda que no
fossem versos, contentava-se em ouvi-lo para admir-lo. Elisirio,
que a conhecia desde pequena, falava-lhe como a uma irm mais moa.
Depois viu que era inteligente, mais do que o comum das mulheres, e
que havia nela um sentimento de poesia e de arte que a faziam
superior. O apreo em que a tinha era grande, mas no passava disso.
Assim se passaram anos. D. Jacinta comeou a pensar em um ato de
pura dedicao. Conhecia a vida de Elisirio, os dias perdidos, as
noitadas, a incoerncia e o desarranjo de uma existncia que ameaava
acabar na inutilidade. Nenhum estmulo, nenhuma ambio de futuro. D.
Jacinta acreditava no gnio de Elisirio. Muitos eram os admiradores;
nenhum tinha a f viva, a devoo calada e profunda daquela moa. O
projeto era despos-lo. Uma vez casados, ela lhe daria a ambio que
no tinha, o estmulo, o hbito do trabalho regular, metdico, e
naturalmente abundante. Em vez de perder o tempo e a inspirao em
coisas fteis ou conversas ociosas, comporia obras de flego, nas
boas horas e para ele quase todas as horas eram excelentes. O
grande poeta afirmar-se-ia perante o mundo. Assim disposta, no lhe
foi difcil obter a colaborao do pai, sem todavia confessar-lhe o
motivo secreto da ao; seria dizer que se casava sem amor. O que ela
disse foi que o amava deveras. Que haja nisso uma nota romanesca,
verdade; mas o romanesco era aqui obra de piedade, vinha de um
sentimento de admirao, e podia ser um sacrifcio. Talvez mais de um
tentasse casar com ela. D. Jacinta no pensou em ningum, at que lhe
surdiu a idia generosa de seduzir o poeta. J sabes que este casou
por obedincia. O resultado foi inteiramente oposto s esperanas da
moa. O poeta, em vez dos louros, enfiou uma carapua na cabea, e
mandou bugiar a poesia. Acabou em nada. Para o fim dos tempos nem
lia j obras de arte. D. Jacinta padeceu grandemente; viu
esvair-se-lhe o sonho, e, se no perdeu, antes ganhou o latim,
perdeu aquela lngua sublime em que cuidou falar s ambies de um
grande esprito. A concluso a que chegou foi ainda um desconsolo
para si. Concluiu que o casamento esterilizara uma inspirao que s
tinha ambiente na liberdade do celibato. Sentiu remorsos. Assim,
alm de no achar as douras do casamento na unio com Elisirio, perdeu
a nica vantagem a que se propusera no sacrifcio. Errava
naturalmente. Para mim Elisirio era o mesmo erradio, ainda que
parecesse agora pousado; mas era tambm um talento de pouca dura;
tinha de acabar, ainda que no casasse. No foi a ordem que lhe tirou
a inspirao. Certamente, a desordem ia mais com ele que tanto tinha
de agitado, como de solitrio; mas a quietao e o mtodo no dariam
cabo do poeta, se a poesia nele no fosse uma grande febre da
mocidade... Em mim que no passou de ligeira constipao da
adolescncia. Pede-me tu amor, que o ters; no me peas versos, que
desaprendi h muito, concluiu Tosta, beijando a mulher. ETERNO! No
me expliques nada, disse eu entrando no quarto; o negcio da
baronesa. Norberto enxugou os olhos e sentou-se na cama, com as
pernas pendentes. Eu, cavalgando uma cadeira, pousei a barba no
dorso, e proferi este breve discurso: Mas, meu pateta, quantas
vezes queres que te diga que acabes com essa paixo ridcula e
humilhante? Sim, senhor, humilhante e ridcula, porque ela no faz
caso de ti; e demais, arriscado. No? Vers se o , quando o baro
desconfiar que lhe arrastas a asa mulher. Olha que ele tem cara de
maus bofes. Norberto meteu as unhas na cabea, desesperado. Tinha-me
escrito cedo, pedindo que fosse confort-lo e dar-lhe algum
conselho; esperara-me na rua, at perto de uma hora da noite,
defronte da casa de penso em que eu morava; contava-me na carta que
no dormira, que recebera um golpe terrvel, falava em atirar-se ao
mar. Eu, apesar de outro golpe que tambm recebera, acudi ao meu
pobre Norberto. ramos da mesma idade, estudvamos medicina, com a
diferena que eu repetia o terceiro ano, que perdera, por vadio.
Norberto vivia com os pais; no me cabendo igual fortuna, por
hav-los perdido, vivia de uma mesada que me dava um tio da Bahia e
das dvidas que o bom velho pagava semestralmente. Pagava-as, e
escrevia-me logo uma poro de coisas amargas, concluindo sempre que,
pelo menos, fosse estudando at ser doutor. Doutor, para qu? dizia
comigo. Pois se nem o sol, nem a lua, nem as moas, nem os bons
charutos Vilegas eram doutores, que necessidade tinha eu de o ser?
E tocava a rir, a folgar, a deixar correr semanas e credores. Falei
de um golpe recebido. Era uma carta do tio, vinda com a do
Norberto, naquela mesma manh. Abri-a antes da outra, e li-a com
pasmo. J me no tuteava; dizia cerimoniosamente: "Sr. Simeo Antnio
de Barros, estou farto de gastar toa o meu dinheiro com o senhor.
Se quiser concluir os estudos, venha matricular-se aqui, e morar
comigo. Se no, procure por si mesmo recursos; no lhe dou mais
nada." Amarrotei o papel, finquei os olhos numa litografia muito
ruim do Visconde de Sepetiba, que j achei pendente de um prego, no
meu quarto de penso, e disse-lhe os nomes mais feios, de maluco
para baixo. Bradei que podia guardar o seu dinheiro, que eu tinha
vinte anos, o primeiro dos direitos do homem, anterior aos tios e
outras convenes sociais. A imaginao, madre amiga, apontou-me logo
uma infinidade de recursos, que bastavam a dispensar os magros
cobres de um velho avarento; mas, passada essa primeira impresso, e
relida a carta, entrei a ver que a soluo era mais rdua do que
parecia. Os recursos podiam ser bons e at certos; mas eu estava to
afeito a ir Rua da Quitanda receber a penso mensal e a gast-la em
dobro, que mal podia adotar outro sistema. Foi neste ponto que abri
a carta do amigo Norberto e corri casa dele. J sabem o que lhe
disse; viram que ele meteu as unhas na cabea, desesperado. Saibam
agora que, depois do gesto, disse com olhar sombrio que esperava de
mim outros conselhos. Quais? No me respondeu. Que compres uma
pistola ou uma gazua? algum narctico? Para que ests caoando comigo?
Para fazer-te homem. Norberto deu de ombros, com um laivozinho de
escrnio ao canto da boca. Que homem? Que era ser homem seno amar a
mais divina criatura do mundo e morrer por ela? A Baronesa de
Magalhes, causa daquela demncia, viera pouco antes da Bahia, com o
marido, que antes do baronato, adquirido para satisfazer a noiva,
era Antnio Jos Soares de Magalhes. Vinham casados de fresco; a
baronesa tinha menos trinta anos que o baro; ia em vinte e quatro.
Realmente era bela. Chamavam-lhe, em famlia, Iai Lindinha. Como o
baro era velho amigo do pai de Norberto, as duas famlias uniram-se
desde logo. Morrer por ela? disse eu. Jurou-me que sim; era capaz
de matar-se. Mulher misteriosa! A voz dela entravalhe pelos
ossos... E, dizendo isto, rolava na cama, batia com a cabea, mordia
os travesseiros. s vezes, parava, arquejando; logo depois tornava s
mesmas convulses, abafando os soluos e os gritos, para que os no
ouvissem do primeiro andar. J acostumado s lgrimas do meu amigo,
desde a vinda da baronesa, esperei que elas acabassem, mas no
acabavam. Descavalguei a cadeira, fui a ele, bradei-lhe que era uma
crianada, e despedi-me; Norberto pegou-me na mo, para que ficasse,
no me tinha dito ainda o principal. verdade; que ? Vo-se embora.
Estivemos l ontem, e ouvi que embarcam sbado. Para a Bahia? Sim.
Ento, vo comigo. Contei-lhe o caso da carta, e as ordens de meu tio
para ir matricular-me na Bahia, e estudar ao p dele. Norberto
escutou-me alvoroado. Na Bahia? Iramos juntos; ramos ntimos, os
pais no recusariam este favor nossa jovem amizade. Confesso que o
plano pareceu-me excelente, e demo-nos a ele com afinco. A me,
apesar de muita lgrima que teria de verter ao despegar-se do filho,
cedeu mais prontamente do que supnhamos. O pai que no cedeu nada.
No houve rogos nem empenhos; o prprio baro, que eu tive a arte de
trazer ao nosso propsito, no alcanou do velho amigo que deixasse ir
o filho, nem ainda com a promessa de o aposentar em casa e velar
por ele. O pai foi inflexvel. Podem imaginar o desespero do meu
amigo. Na noite de sexta-feira esteve em casa dela, com a famlia,
at onze horas; mas, com o pretexto de passar comigo a ltima noite
da minha estada aqui, veio realmente chorar tantas e tais lgrimas,
como nunca as vi chorar jamais, nem antes nem depois. No podia
descrer da paixo, nem presumir consol-la; era a primeira. At ento,
ambos ns s conhecamos os trocos midos do amor; e, por desgraa dele
a primeira moeda grande que achara, no era ouro nem prata, seno
ferro, duro ferro, como a do velho Licurgo, forjada como mesmo
amargo vinagre. No dormimos. Norberto chorava, arrepelava-se, pedia
a morte, construa planos absurdos ou terrveis. Eu, arranjando as
malas, ia-lhe dizendo alguma coisa que o consolasse; era pior, era
como se falasse de dana a uma perna dolorida. Consegui que fumasse
um cigarro, depois outro, e afinal fumou-os s dzias, sem acabar
nenhum. s trs horas tratava do modo de fugir ao Rio de Janeiro, no
logo, mas da a dias, no primeiro vapor. Tirei-lhe essa idia da
cabea unicamente no interesse dele prprio. Ainda se fosse til, v,
disse-lhe eu; mas ir sem certeza de nada, ir dar com o nariz na
porta, porque a mulher, se no gosta de ti, e te v l, capaz de
perceber logo o motivo da tua viagem, e no te recebe. Que sabes tu?
Pode receber-te, mas no h certeza, acho eu. Crs que ela goste de
ti? No digo que sim, nem que no. Contou-me episdios, gestos, ditos,
coisas ambguas ou insignificantes; depois vinha uma reticncia de
lgrimas, murros no peito, clamor de angstia, a dor iase-me
comunicando; padecia com ele, a razo cedia compaixo, as nossas
naturezas fundiam-se em uma s lstima. Da esta promessa que lhe fiz.
Tenho uma idia. Vou com eles, j nos conhecemos, provvel que
freqente a casa; eu ento farei uma coisa: sondo-a a teu respeito.
Se vir que nem pensa em ti, escrevo-te francamente que penses em
outra coisa; mas se achar alguma inclinao, pouca que seja,
aviso-te, e, ou por bem ou por mal, embarca. Norberto aceitou
alvoroado a proposta; era uma esperana. Fez-me jurar que cumpriria
tudo, que a observaria bem, sem temor, e, pela sua parte, jurou-me
que no hesitaria um instante. E teimava comigo que no perdesse
nada; que, s vezes, um indcio pequeno valia muito, uma palavrinha
era um livro; que, se pudesse, aludisse ao desespero em que o
deixava. Para peitar a minha sagacidade, afirmou que o desengano
mat-lo-ia, porque esse amor, eterno como era, iria fartar-se na
morte e na eternidade. No achei boca para replicar-lhe que isto era
o mesmo que obrigar-me a s mandar boas notcias. Naquela ocasio,
apenas sabia chorar com ele. A aurora registrou o nosso pacto
imoral. No consenti que ele fosse a bordo despedir-se. Parti. No
falemos da viagem... mares de Homero, flagelados por Euros, Breas e
o violento Zfiro, mares picos, podeis sacudir Ulisses, mas no lhe
dais as aflies do enjo. Isso bom para os mares de agora, e
particularmente para aqueles que me levaram daqui Bahia. S depois
de chegar ante a cidade, ousei aparecer nossa dona magnfica, to
senhora de si, como se acabasse de dar um passeio apenas longo. No
tem saudades do Rio de Janeiro? disse-lhe eu logo, de intrito.
Certamente. O baro veio indicar-me os lugares que a gente via do
paquete, ou a direo de outros. Ofereceu-me a casa dele, no Bonfim.
Meu tio veio a bordo, e, por mais que quisesse fazer-se ttrico,
senti-lhe o corao amigo. Via-me, nico filho da irm finada, e via-me
obediente. No podia haver para mim melhores impresses de entrada.
Divina juventude! as coisas novas pagavam-me em dobro as coisas
velhas. Dei os primeiros dias ao conhecimento da cidade; mas no
tardou que uma carta do meu amigo Norberto me chamasse a ateno para
ele. Fui ao Bonfim. A baronesa ou Iai Lindinha, que era ainda o
nome dado por toda a gente, recebeu-me com tanta graa, e o marido
era to hospedeiro e bom, que me envergonhei da particular comisso
que trazia. Mas durou pouco a vergonha, vi o desespero do meu
amigo, e a necessidade de consol-lo ou desengan-lo era superior a
qualquer outra considerao. Confesso at uma singularidade; agora que
estavam separados entrou-me na alma a esperana de que ela no
desgostasse dele, justamente o que eu negava antes. Talvez fosse o
desejo de o ver feliz; podia ser uma instigao da vaidade que me
acenasse com a vitria em favor do desgraado. Naturalmente,
conversamos do Rio de Janeiro. Eu dizia-lhe as minhas saudades,
falava das coisas que estava acostumado a ver, das ruas que faziam
parte da minha pessoa, das caras de todos os dias das casas, das
afeies... Oh! as afeies eram os laos mais apertados. Tinha amigos:
os pais de Norberto... Dois santos, interrompeu a moa; meu marido,
que conhece o velho desde muitos anos, conta dele coisas curiosas.
Sabe que casou por uma paixo fortssima? Adivinha-se. O filho o
fruto expressivo do amor dos dois. Conheceu bem o meu pobre
Norberto? Conheci; ia l casa muitas vezes. No conheceu. Iai
Lindinha franziu levemente a testa. Perdoe-me se a desminto,
continuei com vivacidade. No conheceu a melhor alma, a mais pura e
a mais ardente que Deus criou. Talvez que ache parcial por ser
amigo. A verdade que ningum me prende mais ao Rio de Janeiro.
Coitado do meu Norberto! No imagina que homem talhado para dois
ofcios ao mesmo tempo, arcanjo e heri, para dizer terra as delcias
do cu, e para escalar o cu, se for preciso ir l levar as lamentaes
humanas... S no fim desta fala compreendi que era ridcula. Iai
Lindinha, ou no a entendeu assim, ou disfarou a opinio; disse-me
somente que a minha amizade era entusiasta, mas que o meu amigo
parecia boa pessoa. No era alegre, ou tinha crises melanclicas.
Disseram-lhe que ele estudava muito... Muito. No insisti para no
atropelar os acontecimentos... Que o leitor me no condene sem
remisso nem agravo. Sei que o papel que eu fazia no era bonito; mas
j l vo vinte e sete anos. Confio do Tempo, que um insigne
alquimista. D-se-lhe um punhado de lodo, ele o restitui em
diamantes; quando menos, em cascalho. Assim que, se um homem de
Estado escrever e publicar as suas memrias, to sem escrpulo, que
lhes no falte nada, nem confidncias pessoais, nem segredos do
governo, nem at amores, amores particularssimos e inconfessveis,
ver que escndalo levanta o livro. Diro, e diro bem, que o autor um
cnico, indigno dos homens que confiaram nele e das mulheres que o
amaram. Clamor sincero e legtimo, porque o carter pblico impe
muitos resguardos; os bons costumes e o prprio respeito s mulheres
amadas constrangem ao silncio... ... Mas deixai pingar os anos na
cuba de um sculo. Cheio o sculo, passa o livro a documento
histrico, psicolgico, anedtico. Ho de l-lo a frio; estudar-se- nele
a vida ntima do nosso tempo, a maneira de amar, a de compor os
ministrios e deit-los abaixo, se as mulheres eram mais animosas que
dissimuladas, como que se faziam eleies e galanteios, se eram
usados xales ou capas, que veculos tnhamos, se os relgios eram
trazidos direita ou esquerda, e multido de coisas interessantes
para a nossa histria pblica e ntima. Da a esperana que me fica, de
no ser condenado absolutamente pela conscincia dos que me lem. J l
vo vinte e sete anos! Gastei mais de meio em bater porta daquele
corao, a ver se l achava o Norberto; mas ningum me respondia de
dentro, nem o prprio marido. No obstante, as cartas que mandava ao
meu pobre amigo, se no levavam esperanas, tambm no levavam
desenganos. Houve-as at mais esperanosas que desenganadas. A afeio
que lhe tinha e o meu amor-prprio conjugavam as foras todas para
espertar nela a curiosidade e a seduo de um mistrio remoto e
possvel. J ento as nossas relaes eram familiares. Visitava-os a
mido. Quando l no ia trs noites seguidas, vivia aflito e inquieto;
corria a v-los na quarta noite, e era ela que me esperava ao porto
da chcara, para dizer-me nomes feios, ingrato, preguioso,
esquecido. Os nomes foram cessando, mas a pessoa no deixava de
estar ali espera, com a mo prestes a apertar a minha, s vezes,
trmula, ou seria a minha que tremia; no sei. Amanh no posso vir,
dizia-lhe algumas noites, despedida, baixo, no vo de uma janela.
Por qu? Explicava-lhe a causa, estudo ou alguma obrigao de meu tio.
Nunca tentou dissuadir-me de promessa, mas ficava desconsolada.
Comecei a escrever menos ao Norberto e a falar pouco de Iai
Lindinha, como quem no ia casa dela. Tinha frmulas diferentes:
"Ontem encontrei o baro no largo do Palcio; disse-me que a mulher
est boa". Ou ento: "Sabes quem vi h trs dias no teatro? A
baronesa". No relia as cartas, para no encarar a minha hipocrisia.
Ele, pela sua parte, tambm ia escrevendo menos, e bilhetes curtos.
Entre mim e a moa no aparecia mais o nome de Norberto;
convencionamos, sem palavras, que era um defunto, e um triste
defunto sem galas morturias. Beirvamos o abismo, ambos teimando que
era um reflexo da cpula celeste, incongruncia para os que no andam
namorados. A morte resolveu o problema, levando consigo o baro, por
meio de um ataque de apoplexia, no dia vinte e trs de maro de 1861,
s seis horas da tarde. Era um excelente homem, a quem a viva pagou
em preces o que lhe no dera em amor. Quando eu lhe pedi, trs meses
depois, que, acabado o luto, casasse comigo, Iai Lindinha no
estranhou nem me despediu. Ao contrrio, respondeu que sim, mas no
to cedo; punha uma condio: que conclusse primeiro os estudos, que
me formasse. E disse isto com os mesmos lbios, que pareciam ser o
nico livro do mundo, o livro universal, a melhor das academias, a
escola das escolas. Apelei dela para ela; escutou-me inflexvel. A
razo que me deu foi que meu tio podia recear que, uma vez casado,
interromperia a carreira. E com razo, concluiu. Oua-me: s me caso
com um doutor. Cumprimos ambos a promessa. Durante algum tempo
andou ela pela Europa, com uma cunhada e o marido desta; e as
saudades foram ento as minhas disciplinas mais duras. Estudei
pacientemente; despeguei-me de todas as vadiaes antigas. Recebi o
capelo na vspera da bno matrimonial; e posso dizer, sem hipocrisia,
que achei o latim do padre muito superior ao discurso acadmico.
Semanas depois, pediu-me Iai Lindinha que vissemos ao Rio de
Janeiro. Cedi ao pedido, confesso que um pouco atordoado. C viria
achar o meu amigo Norberto, se que ele ainda residia aqui. Ia em
mais de trs anos que nos no escrevamos; j antes disso as nossas
cartas eram breves e sem interesse. Saberia do nosso casamento? Dos
precedentes? Viemos; no contei nada a minha mulher. Para qu? Era
dar-lhe notcia de uma aleivosia oculta, dizia comigo. Ao chegar,
pus esta questo a mim mesmo, se esperaria a visita dele, se iria
visit-lo antes; escolhi o segundo alvitre, para avis-lo das coisas.
Engenhei umas circunstncias especiais, curiosas, acarretadas pela
Providncia, cujos fios ficam sempre ocultos aos homens. No me ria,
note-se bem; minha imaginao compunha tudo isso com seriedade. No
fim de quatro dias, soube que Norberto morava para os lados do Rio
Comprido; estava casado. Tanto melhor. Corri a casa dele. Vi no
jardim uma preta amamentando uma criana, outra criana de ano e
meio, que recolhia umas pedrinhas do cho, acocorada. Nh Bertinho,
vai dizer a mame que est aqui um moo procurando papai. O menino
obedeceu; mas, antes que voltasse, chegava de fora o meu velho
amigo Norberto. Conheci-o logo, apesar das grandes suas que usava;
lanamo-nos nos braos um do outro. Tu aqui? Quando chegaste? Ontem.
Ests mais gordo, meu velho! Gordo e bonito. Entremos. Que ?
continuou ele inclinando-se para Nh Bertinho, que lhe abraava uma
das pernas. Pegou dele, alou-o, deu-lhe trinta mil beijos ou pouco
menos; depois, tendo-o num brao, apontou para mim. Conheces este
moo? Nh Bertinho olhava espantado, com o dedo na boca. O pai
contou-lhe ento que eu era um amigo de papai, muito amigo, desde o
tempo em que vov e vov eram vivos... Teus pais morreram? Norberto
fez-me sinal que sim, e acudiu ao filho, que com as mozinhas
espalmadas pegava da cara do pai, pedindo-lhe mais beijos. Depois,
foi criana que mamava, no a tirou do regao da ama, mas disse-lhe
muitas coisas ternas, chamou-me para v-la; era uma menina. Revia-se
nela, encantado. Tinha cinco meses por ora; mas se eu voltasse ali
quinze anos depois, veria que mocetona. Que bracinhos! que dedos
gordos! No podendo ter-se, inclinou-se e beijou-a. Entra, anda ver
minha mulher. Jantas conosco. No posso. Mame, est espiando, disse
Nh Bertinho. Olhei, vi uma moa porta da sala, que dava para o
jardim; a porta estava aberta, ela esperava-nos. Subimos os cinco
degraus; entramos na sala. Norberto pegou-lhe nas mos, e deu-lhes
dois beijos. A moa quis recuar, no pde, ficou muito corada. No te
vexes, Carmela, disse ele. Sabes quem este sujeito? aquele Barros
de quem te falei muitas vezes, um Simeo, estudante de medicina... A
propsito, por que que no me respondeste participao do casamento? No
recebi nada, respondi. Pois afirmo que foi pelo correio. Carmela
ouvia o marido com admirao; ele tanto fez, que foi sentar-se ao p
dela, para lhe reter a mo, s escondidas. Eu fingia no ver nada;
falava dos tempos acadmicos, de alguns amigos, da poltica, da
guerra, tudo para evitar que ele me perguntasse se estava ou no
casado. J me arrependia de ter ido ali; que lhe diria, se ele
tocasse ao ponto e indagasse da pessoa? No me falou em nada; talvez
soubesse tudo. A conversao prolongou-se; mas eu teimei em sair, e
levantei-me; Carmela despediu-se de mim com muita afabilidade. Era
bela; os olhos pareciam dar-lhe um resplendor de santa. Certo que o
marido tinha-lhe adorao. Viste-a bem? perguntou-me ele porta do
jardim. No te digo o sentimento que nos prende, estas coisas
sentem-se, no se exprimem. De que sorris? Achasme naturalmente
criana. Creio que sim; criana eterna, como eterno o meu amor.
Entrei no tlburi, prometendo ir l jantar um daqueles dias. Eterno!
disse comigo. Tal qual o amor que ele tinha a minha mulher. E,
voltando-me para o cocheiro, perguntei-lhe: O que eterno? Com perdo
de V.S., acudiu ele, mas eu acho que eterno o fiscal da minha rua,
um maroto que, se no lhe quebro a cara um destes dias, a minha alma
se no salve. Pois o maroto parece eterno no lugar; tem a no sei que
compadres... Outros dizem que... No me meto nisso... L quebrar-lhe
a cara... No ouvi o resto: fui mergulhando em mim mesmo, ao zunzum
do cocheiro. Quando dei por mim, estava na Rua da Glria. O demnio
continuava a falar; paguei, e desci at Praia da Glria, meti-me pela
do Russell e fui sair do Flamengo. O mar batia com fora. Moderei o
passo, e pus-me a olhar para as ondas que vinham ali bater e
morrer. C dentro, ressoava, como um trecho musical, a pergunta que
fizera ao cocheiro: O que eterno? As ondas, mais discretas que ele,
no me contaram os seus particulares, vinham vindo, morriam, vinham
vindo, morriam. Cheguei ao Hotel de Estrangeiros ao declinar da
tarde. Minha mulher esperava-me para jantar. Eu, ao entrar no
quarto, peguei-lhe das mos, e perguntei-lhe: O que eterno, Iai
Lindinha? Ela, suspirando: Ingrato! o amor que te tenho. Jantei sem
remorsos; ao contrrio, tranqilo e jovial. Coisas do Tempo! D-se-lhe
um punhado de lodo, ele o restitui em diamantes... MISSA DO GALO
Nunca pude entender a conversao que tive com uma senhora, h muitos
anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo
ajustado com um vizinho irmos missa do galo, preferi no dormir;
combinei que eu iria acord-lo meia-noite. A casa em que eu estava
hospedado era a do escrivo Meneses, que fora casado, em primeiras
npcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceio, e a me
desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de
Janeiro, meses antes, a estudar preparatrios. Vivia tranqilo,
naquela casa assobradada da Rua do Senado, com os meus livros,
poucas relaes, alguns passeios. A famlia era pequena, o escrivo, a
mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. s dez horas da
noite toda a gente estava nos quartos; s dez e meia a casa dormia.
Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao
Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas
ocasies, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam socapa; ele
no respondia, vestia-se, saa e s tornava na manh seguinte. Mais
tarde que eu soube que o teatro era um eufemismo em ao. Meneses
trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de
casa uma vez por semana. Conceio padecera, a princpio, com a
existncia da combora; mas afinal, resignara-se, acostumara-se, e
acabou achando que era muito direito. Boa Conceio! Chamavam-lhe "a
santa", e fazia jus ao ttulo, to facilmente suportava os
esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado,
sem extremos, nem grandes lgrimas, nem grandes risos. No captulo de
que trato, dava para maometana; aceitaria um harm, com as aparncias
salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e
passivo. O prprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que
chamamos uma pessoa simptica. No dizia mal de ningum, perdoava
tudo. No sabia odiar; pode ser at que no soubesse amar. Naquela
noite de Natal foi o escrivo ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou
1862. Eu j devia estar em Mangaratiba, em frias; mas fiquei at o
Natal para ver "a missa do galo na Corte". A famlia recolheu-se
hora do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto.
Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ningum.
Tinha trs chaves a porta; uma estava com o escrivo, eu levaria
outra, a terceira ficava em casa. Mas, Sr. Nogueira, que far voc
todo esse tempo? perguntou-me a me de Conceio. Leio, D. Incia.
Tinha comigo um romance, Os Trs Mosqueteiros, velha traduo creio do
Jornal do Comrcio. Sentei-me mesa que havia no centro da sala, e
luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei
ainda uma vez ao cavalo magro de D'Artagnan e fui-me s aventuras.
Dentro em pouco estava completamente brio de Dumas. Os minutos
voavam, ao contrrio do que costumam fazer, quando so de espera;
ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso.
Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da
leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas de
jantar; levantei a cabea; logo depois vi assomar porta da sala o
vulto de Conceio. Ainda no foi? perguntou ela. No fui, parece que
ainda no meia-noite. Que pacincia! Conceio entrou na sala,
arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupo branco, mal
apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de viso romntica, no
disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi
sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canap.
Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo
barulho, respondeu com presteza: No! qual! Acordei por acordar.
Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos no eram de
pessoa que acabasse de dormir; pareciam no ter ainda pegado no
sono. Essa observao, porm, que valeria alguma coisa em outro
esprito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez no dormisse
justamente por minha causa, e mentisse para me no afligir ou
aborrecer. J disse que ela era boa, muito boa. Mas a hora j h de
estar prxima, disse eu. Que pacincia a sua de esperar acordado,
enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! No tem medo de almas
do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu. Quando
ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu logo. Que que
estava lendo? No diga, j sei, o romance dos Mosqueteiros.
Justamente: muito bonito. Gosta de romances? Gosto. J leu a
Moreninha? Do Dr. Macedo? Tenho l em Mangaratiba. Eu gosto muito de
romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances que voc
tem lido? Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceio ouvia-me
com a cabea reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as
plpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando
passava a lngua pelos beios, para umedec-los. Quando acabei de
falar, no me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida,
vi-a endireitar a cabea, cruzar os dedos e sobre eles pousar o
queixo, tendo os cotovelos nos braos da cadeira, tudo sem desviar
de mim os grandes olhos espertos. "Talvez esteja aborrecida",
pensei eu. E logo alto: D. Conceio, creio que vo sendo horas, e
eu... No, no, ainda cedo. Vi agora mesmo o relgio, so onze e meia.
Tem tempo. Voc, perdendo a noite, capaz de no dormir de dia? J
tenho feito isso. Eu, no; perdendo uma noite, no outro dia estou
que no posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas
tambm estou ficando velha. Que velha o que, D. Conceio? Tal foi o
calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos
demorados e as atitudes tranqilas; agora, porm, ergueu-se
rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos,
entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o
desalinho honesto que trazia, dava-me uma impresso singular. Magra
embora, tinha no sei que balano no andar, como quem lhe custa levar
o corpo; essa feio nunca me pareceu to distinta como naquela noite.
Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou
concertando a posio de algum objeto no aparador; afinal deteve-se,
ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o crculo das suas
idias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe
o que ela sabia, isto , que nunca ouvira missa do galo na Corte, e
no queria perd-la. a mesma missa da roa; todas as missas se
parecem. Acredito; mas aqui h de haver mais luxo e mais gente
tambm. Olhe, a semana santa na Corte mais bonita que na roa. S. Joo
no digo, nem Santo Antnio... Pouco a pouco, tinha-se reclinado;
fincara os cotovelos no mrmore da mesa e metera o rosto entre as
mos espalmadas. No estando abotoadas as mangas, caram naturalmente,
e eu vi-lhe metade dos braos, muito claros, e menos magros do que
se poderiam supor. A vista no era nova para mim, posto tambm no
fosse comum; naquele momento, porm, a impresso que tive foi grande.
As veias eram to azuis, que apesar da pouca claridade, podia
cont-las do meu lugar. A presena de Conceio espertara-me ainda mais
que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roa e da
cidade, e de outras coisas que me iam vindo boca. Falava emendando
os assuntos, sem saber por que, variando deles ou tornando aos
primeiros, e rindo para faz-la sorrir e ver-lhe os dentes que
luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela no eram bem
negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo,
dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a
voz, ela reprimia-me: Mais baixo! mame pode acordar. E no saa
daquela posio, que me enchia de gosto, to perto ficavam as nossas
caras. Realmente, no era preciso falar alto para ser ouvido:
cochichvamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais; ela, s
vezes, ficava sria, muito sria, com a testa um pouco franzida.
Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu volta mesa e veio
sentar-se do meu lado, no canap. Voltei-me e pude ver, a furto, o
bico das chinelas; mas foi s o tempo que ela gastou em sentar-se, o
roupo era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas.
Conceio disse baixinho: Mame est longe, mas tem o sono muito leve;
se acordasse agora, coitada, to cedo no pegava no sono. Eu tambm
sou assim. O qu? perguntou ela inclinando o corpo, para ouvir
melhor. Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canap e
repeti-lhe a palavra. Riuse da coincidncia; tambm ela tinha o sono
leve; ramos trs sonos leves. H ocasies em que sou como mame;
acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, toa,
levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me e nada. Foi o
que lhe aconteceu hoje. No, no, atalhou ela. No entendi a negativa;
ela pode ser que tambm no a entendesse. Pegou das pontas do cinto e
bateu com elas sobre os joelhos, isto , o joelho direito, porque
acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma histria de sonhos,
e afirmou-me que s tivera um pesadelo, em criana. Quis saber se eu
os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem
que eu desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma narrao
ou uma explicao, ela inventava outra pergunta ou outra matria, e eu
pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me: Mais
baixo, mais baixo... Havia tambm umas pausas. Duas outras vezes,
pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um
instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os
houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu
por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar,
no sei se apressada ou vagarosamente. H impresses dessa noite, que
me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma
das que ainda tenho frescas que, em certa ocasio, ela, que era
apenas simptica, ficou linda, ficou lindssima. Estava de p, os
braos cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantarme; no
consentiu, ps uma das mos no meu ombro, e obrigou-me a estar
sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estremeceu, como se
tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na
cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho,
que ficava por cima do canap, falou de duas gravuras que pendiam da
parede. Estes quadros esto ficando velhos. J pedi a Chiquinho para
comprar outros. Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do
principal negcio deste homem. Um representava "Clepatra"; no me
recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos;
naquele tempo no me pareciam feios. So bonitos, disse eu. Bonitos
so; mas esto manchados. E depois francamente, eu preferia duas
imagens, duas santas. Estas so mais prprias para sala de rapaz ou
de barbeiro. De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.
Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moas e
namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com
figuras bonitas. Em casa de famlia que no acho prprio. o que eu
penso; mas eu penso muita coisa assim esquisita. Seja o que for, no
gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceio, minha
madrinha, muito bonita; mas de escultura, no se pode pr na parede,
nem eu quero. Est no meu oratrio. A idia do oratrio trouxe-me a da
missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis diz-lo. Penso que
cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela
contava, com doura, com graa, com tal moleza que trazia preguia
minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas
devoes de menina e moa. Em seguida referia umas anedotas de baile,
uns casos de passeio, reminiscncias de Paquet, tudo de mistura,
quase sem interrupo. Quando cansou do passado, falou do presente,
dos negcios da casa, das canseiras de famlia, que lhe diziam ser
muitas, antes de casar, mas no eram nada. No me contou, mas eu
sabia que casara aos vinte e sete anos. J agora no trocava de
lugar, como a princpio, e quase no sara da mesma atitude. No tinha
os grandes olhos compridos, e entrou a olhar toa para as paredes.
Precisamos mudar o papel da sala, disse da a pouco, como se falasse
consigo. Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espcie de
sono magntico, ou o que quer que era que me tolhia a lngua e os
sentidos. Queria e no queria acabar a conversao; fazia esforo para
arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito;
mas a idia de parecer que era aborrecimento, quando no era,
levava-me os olhos outra vez para Conceio. A conversa ia morrendo.
Na rua, o silncio era completo. Chegamos a ficar por algum tempo,
no posso dizer quanto, inteiramente calados. O rumor nico e
escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou
daquela espcie de sonolncia; quis falar dele, mas no achei modo.
Conceio parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na
janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: "Missa do galo!
missa do galo!" A est o companheiro, disse ela levantando-se. Tem
graa; voc que ficou de ir acord-lo, ele que vem acordar