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ISSN 1679-4214
CPGravura IA / Unicamp novembro 2003 nmero 2
Artigos
Henrique M-S Luise Weiss
Ensaio de imagens
Amir Brito Cador Andr de Miranda
Lygia Arcuri Eluf Marcio Prigo
Entrevista
Armando Sobral, por Roberto Shwafaty
Documentos e Bibliografia
Seleo Bibliogrfica
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cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 2
cadernos de [gravura] ISSN 1679-4214 no 2, novembro de 2003
www.iar.unicamp.br/cpgravura/cadernosdegravura Centro de Pesquisa
em Gravura (CPGravura), Instituto de Artes, UNICAMP, 2003
Editora responsvel: Paula Almozara Secretria: Valria de Souza
Cruz Reviso: Maria Alice da Cruz Paula (Monotipias: algumas
consideraes, Luise Weiss). Demais textos sob responsabilidade dos
autores Layout: Paula Almozara Conselho Cientfico: Luise Weiss
Lygia Arcuri Eluf Mrcio Prigo Marco Francesco Buti Paulo Mugayar
Khl Universidade Estadual de Campinas Prof. Dr. Carlos Henrique de
Brito Cruz Reitor Instituto de Artes Prof. Dr. Jos Roberto Zan
Diretor CPGravura Centro de Pesquisa em Gravura Profa. Dra. Lygia
Arcuri Eluf Coordenadora Artigos, imagens, textos (com fontes e
documentos) e resenhas para publicao devem ser enviados ao
CPGravura e sero submetidos ao Conselho Cientfico; se aceitos, sero
publicados nos prximos nmeros. Endereo para correspondncia:
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acadmicos esto autorizadas, desde que mencionada a fonte. As
opinies emitidas pelos autores so de sua exclusiva
responsabilidade, no expressando necessariamente a opinio do Centro
de Pesquisa em Gravura do Instituto de Artes da Unicamp.
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cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 3
[editorial] No segundo nmero dos cadernos de [gravura]
apresentamos trabalhos dos artistas e professores responsveis pelas
disciplinas de gravura do Departamento de Artes Plsticas do
Instituto de Artes da Unicamp e do Centro de Pesquisa em Gravura da
Unicamp: Luise Weiss, Marcio Prigo e Lygia Eluf. Tambm neste
caderno encontramos os trabalhos de dois jovens pesquisadores e
artistas: Amir Brito Cador e Henrique Marques-Samn. Andr de Miranda
mostra imagens de seu trabalho com linleo com um texto de
apresentao da gravadora Anna Carolina Albernaz. Na seo de
documentos e bibliografia realizamos uma primeira e pequena seleo
bibliogrfica, com referncias sobre: ilustrao, tcnicas de gravura,
histria do livro, artistas gravadores etc.
Paula Almozara
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cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 4
[sumrio] cadernos de [gravura], no 2, novembro de 2003
artigos
HENRIQUE MARQUES-SAMN. A Modernidade na Pedra: representaes do
Fin-de-Sicle em litografias francesas do fim do sculo XIX
5
LUISE WEISS. Monotipias: algumas consideraes 19
ensaio de imagens
AMIR BRITO CADOR. Mutus Liber 24
ANDR DE MIRANDA. Reino misterioso do inconsciente 28
LYGIA ARCURI ELUF. Terra vista 36
MARCIO PRIGO. Vigilar e ter uma leve esperana de idias
tangentes
44
entrevista
ARMANDO SOBRAL por Roberto Shwafaty 48
documentos e bibliografia
SELEO BIBLIOGRFICA 1 51
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cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 5
[artigo]
A Modernidade na Pedra: representaes do Fin-de-Sicle em
litografias francesas do fim do sculo XIX
Henrique Marques-Samn
Bacharel em Filosofia, ps-graduando em Filosofia da Arte e
Psicologia Social. Ensasta, tem textos publicados sobre arte e
cultura em vrias revistas e peridicos. Colunista de fotografia nas
revistas Fotosite e Moda Almanaque; editor, com a jornalista Laura
Cnepa, da revista Anfiguri.
Resumo O presente artigo um ensaio sobre representaes de
aspectos sociais e culturais do perodo histrico conhecido como fin
de sicle (ou seja: o fim do sculo XIX) em litografias francesas do
sculo XIX. Apresenta-se uma contextualizao histrica do perodo
mencionado, bem como anlises sobre litografias de Eugne Grasset,
Toulouse-Lautrec, Guydo e Honor Daumier.
Abstract This article is an essay on representations of the
historical period known as fin de sicle in french lithographs of
the 19th. Century. Are analised some graphics of artists as Eugne
Grasset, Toulouse-Lautrec and Honor Daumier.
I. Introduo
Glorificar a vagabundagem e o que se pode chamar o boemismo.
Charles Baudelaire, Meu corao desnudado
Este artigo pretende analisar algumas litografias francesas do
fim do
sculo XIX, a fim de expor como nelas encontravam-se presentes
representaes de aspectos scio-culturais caractersticos do
Fin-de-Sicle. Comeo com uma contextualizao histrica do momento aqui
abordado, concedendo especial ateno idia de decadncia ento em voga.
A seguir, mostro as diferentes formas como os artistas reagiram ao
ambiente niilista: alguns, criando uma arte inspirada em outros
tempos, portadora de franco idealismo, como como os medievalistas
ou os adeptos do japonesismo; outros, mergulhando no hedonismo e na
decadnce, criando uma arte expressiva destas formas de vida.
Analiso obras de Eugne Grasset, que curiosamente desenvolveu
gravuras portadoras de referncias para as duas citadas vertentes;
Toulouse-Lautrec, Honor Daumier e Guydo.
II. Fin de Sicle e Decadnce
Em seu estudo sobre a Frana da virada do sculo XIX para o XX, o
historiador Eugen Weber dedica, sintomaticamente, vrias das pginas
iniciais ao estudo da noo de decadncia. Embora seja esta uma idia h
muito conhecida pela humanidade, neste perodo ela adquire facetas
muito peculiares e particularmente prximas da vida cotidiana. J
desde a poca da Revoluo Francesa, era comum a crena de que vivia-se
em uma poca de decadncia: preguia, falta de bom gosto e excesso de
capricho eram vistos como sintomas de uma sociedade que seguia o
caminho para baixo sem sequer olhar para trs.
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Como bem percebeu contemporaneamente o socilogo Emile Durkheim,
a sociedade francesa vivia uma profunda crise moral. As geraes
francesas mais antigas haviam vivido nada menos que duas
significativas derrotas militares, em 1814-5 e 1870-1; vrias formas
de solidariedade haviam rudo junto com os valores que haviam sido
abandonados notavelmente, os valores religiosos. Ademais, houve o
sbito crescimento das cidades: no incio do sculo, Paris era a nica
cidade com mais de cem mil habitantes; em 1911, quinze cidades
atingem este patamar, alm de emergir um novo tipo de aglomerao
urbana a periferia. Este crescimento urbano foi acompanhado por
toda a srie de problemas decorrentes da industrializao: a diviso de
trabalho industrial e os conflitos entre o empresariado e a classe
operria. Por isso o termo Belle poque utilizado como referncia a
esta poca traz em si, como nota o socilogo Renato Ortiz, um sentido
nostlgico, algo como um passado ureo perdido para sempre1.
Tudo isso ajudou a disseminar a crena de que a poca vivia uma
franca decadncia. Duas matrizes amplificaram esta percepo: de um
lado, a vulgarizao da teoria de Darwin, que concedeu um certo
sentido hereditrio ao elitismo social no se tratava simplesmente de
os homens no serem iguais, mas de as desigualdades serem
hereditrias. No era o mrito, mas um elitismo predeterminado que
traava os destinos dos homens e das sociedades. Ento para que se
esforar?2 ; de outro, a popularizao, a partir da dcada de 1840, de
estudos sociais que documentavam e dramatizavam a misria e suas
causas patolgicas: a doena e o crime. A vida moderna, nas cidades,
era responsabilizada pela deteriorao fsica e psquica. Em 1908, em
um debate na Cmara, Louis Grard-Varet falou em uma espcie de
neurastenia coletiva, um desarranjo da conscincia coletiva que o
novo ritmo urbano suscitava em seus cidados3.
No entanto, os efeitos que esta sensao de inevitvel decadncia
tiveram nos cidados mostraram-se diversos. Para alguns, tratava-se
de uma falncia social completa: o aumento da criminalidade, com o
requinte do surgimento de novas modalidades de crime, como os
ataques com cido; a multiplicao de bares, com o conseqente aumento
do consumo de lcool; a impotncia da fora policial que, no bastasse
sua incompetncia, ainda era mal vista pela populao. Alguns buscaram
outras formas alternativas de lidar com esta atualidade que parecia
caminhar para o vazio: muitos encontraram sadas na idealizao
medievalista ou orientalista. Outros decidiram render-se sensao de
inevitabilidade, o que teve como efeito uma aceitao de tal destino.
Para estes, a vida transformou-se em uma espcie de afirmao da
decadncia: o vcio tornou-se objeto de glorificao; o desregrado
hedonismo, forma inevitvel de existncia. A inverso de valores a tal
ponto chegou que, como nota Weber, a corrupo foi expurgada de todo
o seu sentido negativo ou destrutivo; transfigurou-se em vivncia
redentora, caminho para a transcendncia da mediocridade sufocante
das convenes de todos os dias 4.
Estas duas sadas, como logo veremos, s variaes artsticas
presentes na Art Nouveau: de um lado, o chamado Japonesismo (ou
Japonismo) e o Medievalismo, em verdade herdado da tendncia
Pr-Rafaelita; de outro, a exaltao da transgresso e do decadentismo.
No entanto, antes de mergulharmos neste exame mais detido destas
tendncias, cabe compreender mais detidamente o papel da arte na
modernidade precisamente o momento histrico acerca do qual trata
este ensaio.
1 Cf. Ortiz 1991: 52. 2 Weber 1988: 32. 3 Apud id. 4 Cf. ibid.:
26.
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III. Arte e modernidade
O conceito de modernidade modernit foi introduzido por Charles
Baudelaire em sua obra O pintor da vida moderna. A modernit
caracterizada tanto como uma qualidade da vida moderna quanto como
objeto de uma experincia artstica particular; em um e em outro,
fundamental o papel da novidade, a nouveaut na poca, recentemente
feita parte da vida cotidiana. Penso que h franca relao disto com a
nova experincia moderna do consumo, que no existia no Antigo Regime
na acepo que possui na modernidade. Em pocas anteriores, o vesturio
e os acessrios pessoais faziam parte de uma escala hierrquica;
traziam consigo a funo simblica de distinguir a nobreza; eram uma
das formas de expresso do status ocupado pelos nobres no Estado.
Mas isso muda com o decreto de 8 brumrio ano II, de 1793 onde se
estabelece que nenhum cidado ou cidad poder ser obrigado a
vestir-se de uma forma particular: cada um livre de usar as roupas
de seu sexo, que lhe convm5. Com isso, abrem-se as portas para que
a burguesia crie suas prprias normas, seus prprios princpios
estticos e cdigos de vesturio; em outras palavras, nasce a moda e,
com ela, o consumo moderno. As magasins de nouveauts so importante
produto destes novos tempos. Surgindo na dcada de 1830, so locais
onde se encontram venda todos os objetos e acessrios que podem ser
comprados, organizados em sees e balces especficos, e que logo
comeam a publicar nos jornais suas ofertas especiais. No h mais
roupas e acessrios padronizados; tudo agora visa ser diferente e
inovador, ocupando um local singular no mercado. Quando, no incio
do sculo XX, surgirem os grands magasins, tudo isso ser ampliado
para uma escala monumental, movimentando mais de cem milhes de
francos anualmente. Mas qual o lugar do artista nessa nova
sociedade? Para Baudelaire, o papel do artista precisamente o de
capturar o efmero, a contingente novidade do presente. Como afirma
em O pintor da vida moderna, o artista deve ser capaz de acompanhar
a velocidade da modernidade em sua constante atualizao; deve tomar
como objeto a transitoriedade do momento e todas as sugestes de
eternidade que nele existem6.
H deste modo presente a exigncia de uma contemporaneidade do
artista. Se a vida moderna transitria e efmera, se gira em torno da
incessante irrupo de nouveauts, funo do artista acompanhar este
ritmo: seus passos devem acompanhar esta acelerada marcha. Essa
insero do artista no mundo em que habita foi objeto da reflexo de
Georg Simmel, que encontrou a essncia da modernidade precisamente
nessa experincia e interpretao do mundo em uma esfera psicolgica;
quer dizer: a modernidade uma forma particular da experincia
vivida, que se d nesta relao recproca entre a vida interior e o
mundo no qual se habita. E a arte justamente a forma de expresso
humana que pode capturar e dar forma fluidez destas experincias
interiores. Eis porque a arte moderna assiste ao fim do
naturalismo: porque no mais pretende ser verdadeira em relao ao
mundo, quer dizer, no dele que tira sua referncia, nem para ele que
pretende se afirmar como verdadeira. Por outro lado: a referncia
para a arte, na modernidade, a prpria interioridade humana. Da
Simmel afirmar que a arte moderna no apenas possui a verdade, ela a
verdade7.
A Art Nouveau representa uma primeira manifestao artstica desta
nova relao entre o homem e seu tempo justamente por no se limitar a
ser um movimento na esfera artstica; mas sim uma afirmao integrada,
que se d no s no campo das artes, mas que simultaneamente a
expresso de uma nova forma de vida. A Art Nouveau no estava apenas
nas telas, mas no mundo de
5 Apud Ortiz ibid.: 129. 6 Cf. Frisby 1986: 16-7. 7 Apud ibid.:
47. Traduo minha.
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cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 8
todos aqueles que a abraaram. Estava em vasos, casas, mveis,
talheres. Pensemos nas casas de Victor Horta, nos vasos de Auguste
e Antonin Daum, nas moblias de Eugne Vallin ou Charles Mackintosh.
No era preciso ir s galerias para contemplar a Art Nouveau;
vivia-se dentro dela e rodeado por ela.
Sintomaticamente, no houve sequer uma variao artstica
relacionada Art Nouveau que no fosse a legtima expresso de um
ethos, de uma forma de vida. Aqueles que pintavam cenas dos
Cafconcs, os cafs-concerto como o Moulin Rouge ou o Eldorado,
estavam pintando suas prprias vidas, e em certa medida fazendo uma
apologia desta havia ali uma defesa de valores, uma afirmao
axiolgica. Da mesma forma, os Pr-Rafaelitas estavam, em suas telas,
a defender os valores sobre os quais edificavam suas prprias vidas.
Aprofundarei estes pontos com algumas anlises sobre diferentes
litografias deste perodo, que classificarei, de maneira ampla, em
duas vertentes idealista e hedonista que identifico a atitudes
diante daquela situao histria.
IV. O Idealismo: Orientalismo e Medievalismo
O niilista ambiente da Frana do fin de sicle era, sem dvida,
frtil terreno para idealismos de toda a espcie. No toa, assistiu a
um verdadeiro florescimento de seitas esotricas e doutrinas do
gnero; podemos at mesmo encontrar uma intitulada Decadncia Crist
entre as religies que surgiram na poca. Isso pode parecer
paradoxal, se pensarmos que o sculo XIX assistiu a tantos
progressos tecnolgicos; no entanto, as coisas no eram assim to
mutuamente excludentes. Ao menos para os que viviam naquele
contexto, no parecia muito difcil resolver tais contradies. Charles
Richet, professor da Sorbonne e cientista de renome na rea mdica,
publicou um prefcio em um tratado de Metapsquica de oitocentas
pginas, em que pretendia colocar em um mesmo plano as pesquisas
sobre cincia, fsica, botnica, patologia e paranormalidade; Alfred
Russel Wallace tornou-se defensor das doutrinas de M. H. Rivail,
vulgo Allan Kardec; Sir Oliver Lodge participou da fundao de uma
Sociedade Britnica de Pesquisa Cientfica8.
Em Paris, assistia-se a (mais um) reflorescimento dos movimentos
rosacrucianistas. O historiador Christopher McIntosh considerou
Josphin Pladan, um dos participantes deste renascimento, uma
personagem que encarnou tudo quanto era excntrico e fin de sicle.
Depois de haver trabalhado como empregado em bancos, passou a
nomear-se Sar Mrodack Pladan (sendo Sar um ttulo assrio de nobreza
e Mrodack o deus caldeu associado a Jpiter) e comeou a desfilar
pelos cafs de Montmartre, ora com hbito de monje, ora com um gibo
com cales de veludo rendados. Quando fundou, em 1890, sua Ordem da
Rosa Cruz Catlica cujas reunies eram realizadas em seu apartamento
na Rue Notre-Dame-des-Champs, onde Pladan oficiava vestido em um
traje de monge com uma cruz rosada no peito , comeou a organizar
exposies de arte com temas esotricos e catlicos, na qual no era
admitido nada de naturalista ou experimental; e que eram
freqentadas por gente como Gustave Moreau e Georges Rouault9, alm
de garbosas damas vestidas la nophyte, costumes martyre e saias
fantasmagricas feitas de seda Liberty. Estamos, afinal, a falar de
uma sociedade onde os teatros encenavam peas pretensamente msticas
(Pladan jurou haver reencontrado duas peas de squilo, alm de ser
autor de Babylone, que considerava uma tragdia wagneriana em quatro
atos); Sarah
8 Apud Weber: ibid.: 48-9. 9 McIntosh : 111-4.
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cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 9
Bernhardt recitava o mistrio da Paixo no Cirque dHiver10, e Erik
Satie era fundador de uma certa Igreja Metropolitana da Arte de
Jesus, o Regente11.
No possvel falar no idealismo da Art Nouveau de modo satisfatrio
sem referir o movimento Pr-Rafaelita ainda que, em meio a tantas
excentricidades, a obsesso medievalista dos Pr-Rafaelitas possa at
mesmo parecer um tanto quanto ingnua. A Confraria Pr-Rafaelita tem
ultimamente sido lembrada apenas como um movimento artstico
anti-acadmico, um combate aos cnones que limitavam-se a reproduzir
os princpios estabelecidos por Rafael. No entanto, o movimento
muito mais rico que isso. O grande terico do Pr-Rafaelismo, John
Ruskin, fora um seguidor das idias de Augustin Pugin este, um
arquiteto catlico de cuja pena surgiu, na primeira metade do sculo
XIX, uma srie de livros defendendo um retorno da arquitetura aos
princpios medievais. Ruskin deu seguimento misso de Pugin. Nascido
em famlia rica, pde dedicar seus anos de juventude a viagens atravs
da Europa, nas quais defendeu a adoo, contemporaneamente, dos
princpios arquitetnicos medievais. E tudo isto culmina em 1848, com
a fundao da Confraria dos Pr-Rafaelitas.
preciso dizer que, a princpio, Ruskin autor dos principais
textos tericos do movimento rechaou veementemente que houvesse
relaes entre o Pr-Rafaelismo e o medievalismo. Mas tal recusa tinha
sua razo de ser: nesta poca, estava em moda o Romanismo, uma espcie
de mania artstica que tomava como modelo a arte Romnica. No
entanto, o tom dos discursos mudaria mais tarde; no que Ruskin
aceitasse qualquer vinculao com o Romanismo; porm, estabeleceria
uma franca relao com um outro tipo de medievalismo na verdade, uma
construo idealizada do que seria a arte medieval. A argumentao de
Ruskin elaborada: acusa Rafael de ser o autor de uma ruptura entre
a arte e religio, referindo os afrescos rafaelitas que mostram
Cristo presidindo o mundo teolgico, enquanto Apolo preside o mundo
da poesia; e utiliza, como referncia para sua idia de medievalismo,
um tempo em que as convenes da arte harmoniosamente incorporavam a
devoo religiosa12. Em um ponto mais extremo, Ruskin chega a
comparar Rafael a Lcifer. Rafael, consoante o pintor pr-rafaelita,
foi o inaugurador de uma esttica espria, que sacrificou a verdade
em nome do orgulho. E o argumento de Ruskin adquire matizes ainda
mais religiosas quando afirma que Rafael serviu mpia luxria do
Vaticano, que espalhou um veneno que infectou milhes de
cristos13.
Julguei pertinente fazer esta breve apresentao do Pr-Rafaelismo
para chegar ao ponto crucial: o fato de que, escapando s limitaes
de um movimento exclusivamente artstico, havia ali a pretenso de
realizar uma legtima reforma social. Tratava-se de um resgate de
princpios, valores e ideais. William Morris, a grande ponte entre o
movimento Pr-Rafaelita e a Art Nouveau, enfatizar este aspecto
social do movimento. Se Pugin pretendia duplicar os princpios da
arte medieval a ponto de desencadear um revivalismo do gtico ,
Morris preocupa-se com uma espcie de atualizao de um sentido
artstico h muito esquecido: o resgate do elo entre arte e
artesanato; o fim da ciso entre artes maiores e menores; a
recuperao do personalismo da manufatura contra o padronizado
produto industrializado. Ainda que as pretenses sociais de Ruskin
estivessem destinadas ao fracasso, devido s imensas vantagens
econmicas da produo industrial, suas propostas estticas
efetivamente obtiveram sucesso. Seus tecidos, ornamentados com
motivos naturalistas estilizados, foram um sucesso comercial; o
jardim ingls espalhou-se por toda a Europa; o domestic revival
arquitetnico, inimigo da arquitetura do ferro, consolidou-se como
tendncia inovadora.
10 Cf. Weber: op. cit.: p. 48. 11 Cf. McIntosh: op. cit.: 114.
12 Leahy 1999 (traduo minha). 13 Ibid.
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cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 10
A influncia do Pr-Rafaelismo na Art Nouveau, portanto, dupla:
diz respeito tanto ao medievalismo, no tocante ao resgate do
artesanato e na construo de uma nova arquitetura pensemos na Escola
de Nancy ou em Hector Guimard , quanto no tocante prpria temtica
desenvolvida por alguns de seus representantes na pintura e na
gravura. Eugne Grasset, suo naturalizado francs, virtualmente o
maior representante da tendncia medievalista na arte grfica
francesa. Sua litografia na capa do peridico simbolista La Plume,
em um volume publicado em 1894, alis dedicado sua obra, apresenta
temtica de ntida relao com o Pr-Rafaelismo. No apenas os costumes
so medievalistas, como tambm a composio dominada por linhas curvas
e motivos que sugerem folhas e caules, em uma estilizao geomtrica
que remete aos padres ornamentais consagrados por Morris e seus
afiliados.
Todavia, no era esta a nica vertente idealista do perodo. Uma
outra, mais antiga, ainda encontrava-se em voga, encontrando amplos
desenvolvimentos: o Japonesismo, ou Japonismo em verdade, apenas
uma nova variao do orientalismo que j se fazia presente, desde h
muito, na arte europia. Pode-se, a princpio, encarar este olhar
para o Oriente como uma busca por nova inspirao artstica;
entretanto, afirm-lo recusar o fato de que, muitas vezes, o que h
ali no meramente uma influncia tcnica ou formal, mas apenas um
circular em torno de imagens e esteretipos que tentam criar cenas
tipicamente orientais. Nesta medida, estamos a falar de um
orientalismo na acepo que ao termo foi dada por Edward Said o
Oriente como uma idia que tem uma histria e uma tradio de
pensamento, imagstica e vocabulrio que lhe deram realidade e
presena no e para o Ocidente14. Em outras palavras, a questo no o
Oriente tal e qual, mas enquanto uma criao ocidental baseada no
lugar especial ocupado pelo Oriente na experincia ocidental
europia15. As japonaiseries criadas pelos artistas europeus desta
poca obedecem inegavelmente a este princpio. Ainda que tomem as
gravuras japonesas como modelos, ainda que muitos se tornem
conhecidos como especialistas na criao desta artetipicamente
japonesa, suas obras na maior parte das vezes no passam de
pastiches. o caso da litografia de Guydo que ilustra o cartaz por
este criado para divulgao do licor Amara Blanqui. A composio, pobre
e trivial, reduz a rica bidimensionalidade das gravuras japonesas a
uma construo bvia e ingnua; ademais, o trao no possui a delicadeza
e a graa caractersticas da obras japonesas nas quais certamente
esta obra foi inspirada.
V. O Combate Burguesia
As origens da esttica antiburguesa devem ser buscadas j nas
primeiras dcadas do sculo XIX; tratava-se de uma mescla, como bem
notou Dolf Oehler, de uma profunda perplexidade diante da burguesia
como fenmeno e uma ingenuidade romntica diante da funo histrica da
nova classe dominante16. Na Frana, nota Arnold Hauser, a bomia
atravessou trs fases: a romntica, constituda por jovens artistas e
estudantes em quem a oposio sociedade dominante era usualmente
fruto de uma mera exuberncia e rebeldia juvenis; a naturalista,
gente que se situava alm das fronteiras da sociedade burguesa e
cuja luta contra a burguesia era no um jogo animado, mas uma
necessidade amarga; e a impressionista, talvez melhor se definida
como ps-naturalista, formada por artistas que j formavam uma horda
de vagabundos e marginais... um grupo de desesperados, que rompem
no s com a sociedade burguesa mas
14 Cf. Said 1990: 17. 15 Cf. ibid. p. 13. 16 Oehler 1997:
11.
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cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 11
com toda a civilizao europia 17. So principalmente estes ltimos
os que nos interessam. So eles que, para fortalecer esta linha que
os separa da sociedade burguesa, cuidam de glorificar ao extremo
tudo o que sugere decadncia, tudo o que vai de encontro s convenes
burguesas.
Na dcada de 1880, surge uma multido de excntricas confrarias com
nomes que sugerem marginalidade e mistificao Hidropatas, Hirsutos,
Incoerentes. A fundao de Le Dcadent, na mesma poca, sintetiza o
esprito que impulsionava o nascimento de to estranhas crias:
Religion, moeurs, justice, tout dcade... A sociedade se desintegra
sob a ao corrosiva de uma civilizao deliqescente... refinamento de
apetites, sensaes, gosto, luxo, prazeres; neurose, histeria,
hipnotismo, morfinomania, impostura cientfica, extremo
schopenhaeurismo, esses so os sintomas premonitrios da evoluo
social18. Lembremo-nos da anotao de Baudelaire em seu dirio: do dio
do povo beleza19!. Decerto que, para boa parte destes apocalpticos,
os culpados por esta degenerescncia da sociedade eram... os
burgueses! Principalmente porque estes haviam se aproximado
perigosamente de um terreno antes ocupado apenas por uns poucos
escolhidos como nota Eric Hobsbawm, o desejo crescente da burguesia
em acercar-se das artes multiplicou os candidatos em abra-las
estudantes de arte, aspirantes a escritores, etc. ... talvez
houvesse na segunda metade do sculo entre 10 e 20 mil pessoas em
Paris denominando-se a si mesmos de artistas20. Se havia uma ciso
que perpassava a sociedade nesta poca, era aquela que a dividia
entre os burgueses e os artistas e era atravs do culto ao belo que
o artiste se afirmava contra os desmandos do bourgeois21.
Eis, portanto, as razes dos ferozes ataques desferidos pelos
artistas contra a burguesia. As principais formas que tais golpes
assumiram foram virulentos ataques contra o estilo de vida burgus
seus valores, sua rotina; e os meios utilizados para tal combate
foram essencialmente aqueles que, permitindo ampla reproduo,
acompanhavam o surgimento dos meios de comunicao de massa,
notavelmente as litografias. Tomaremos como objeto de anlise aqui
duas obras que atacavam frontalmente as convenes amorosas da
burguesia: uma litografia de 1840, de Honor Daumier, que representa
ironicamente a falncia do casamento burgus certamente muito
anterior ao perodo aqui analisado, mas na qual j encontramos um
ataque com o mesmo esprito que encontraremos nas obras do fin de
sicle; e um cartaz de Toulouse-Lautrec que, ao exaltar os
espetculos dos Cafs-Concerto, simultaneamente atacava frontalmente
a moral burguesa.
Como nota Dolf Oehler, j desde a primeira metade do sculo XIX
era comum representar formas no-convencionais de relacionamentos
amorosos como antteses dos relacionamentos burgueses, e encontrar
naquelas um conjunto de valores que nestes j no se encontravam
presentes. Da, por exemplo, a exaltao baudelairiana do amor entre
as mulheres. Somente Lesbos... faz desabrochar os sonhos de
profunda delicadeza e paixo que no sobrevivem a uma noite sequer na
heterossexualidade, sobretudo no casamento. No amor lsbico,
confiana, intimidade, delicadeza, dedicao, paixo e volpia, na relao
sexual burguesa, insensibilidade, egosmo, brutalidade, violncia,
terror e barbarismo22. E esta runa do casamento burgus o que
encontramos em As sabe-tudo, dos Costumes Conjugais de Daumier. A
legenda da gravura (Ah, quer dizer que voc passou a noite no
escritrio?); o marido acuado; a esposa pouco atraente e com ar de
megera, os objetos partidos no cho elementos do pattico 17 Hauser
1994: 919-21. 18 Apud Weber ibid.: 36. 19 Baudelaire 1981: 94. 20
Hobsbawm 1979: 305-6. 21 Oehler ibid.: 13. 22 Apud ibid.: 248.
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cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 12
cenrio do inferno conjugal, mergulhado na mediocridade da rotina
e na indiferena dos compromissos assumidos fora. Perfeita anttese,
decerto, do festivo cenrio que encontramos na gravura de Lautrec
que, alis, adequa-se ainda mais nossa anlise por sintetizar
praticamente tudo o que a boemia exaltava contra a burguesia. A
lasciva abertura de pernas da dana de Louise Weber, sugesto de uma
sexualidade intensa que permanecia distante dos frios lares
burgueses (ou assim indubitavelmente acreditavam os bomios); a
apologia vida de vcio e excessos, dado que o apelido La Goulue com
o qual a danarina fora batizada fazia referncia justamente
facilidade com que esvaziava taas de bebida no Moulin Rouge; e
mesmo uma indireta referncia ao amor no-convencional, j que era
conhecido o fato de que Louise vivia com uma mulher a gorducha Mme
Fromage23. Se o casamento burgus habitava uma casa em runas, o
palcio dos cafs-concerto era o refgio onde ainda era possvel viver
de uma forma menos montona...
Havia, no entanto, ainda uma outra trilha disposio daqueles que
haviam optado por habitar nestas niilistas paragens. Esta era,
afinal, a poca em que as drogas tinham entrado na moda,
principalmente a partir de 1870, quando comearam a se tornar mais
acessveis. O haxixe, em voga desde tempos mais antigos, era o
preferido dos comedores de sonhos; morangos embebidos em ter
constituam um requintado aperitivo, embora o ter tambm fosse
consumido com conhaque e talvez injetado; a partir da dcada de
1880, a cocana tornou-se de tal modo popular que Freud a usava at
para soltar a lngua24. Mas a preferida das mulheres, como vemos na
gravura de Grasset Morphineuse, era a morfina. Tema de romances e
poemas, amplamente utilizada em crculos elegantes, movia um comrcio
ao seu redor eram fabricadas seringas especiais de prata banhadas
ou folheadas a ouro para os mais requintados e foi por Dumas Filho
considerada o absinto das mulheres. Desta forma, a dama que vemos
na litogravura de Grasset, ao injetar em sua coxa a adorada
morfina, nada faz seno repetir um pequeno gesto em toda a grande
celebrao da Belle poque estes tempos em que, para muitos, o mundo
parecia mergulhar no ltimo abismo da degenerescncia; mas que, para
tantos outros, era uma poca em que, mais que nunca, as emoes
pareciam infinitas.
VI. Bibliografia Baudelaire, C. Meu corao desnudado. Trad.
Aurlio Buarque de Holanda. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1981. Champigneulle, B. A Art Nouveau.
Trad. Maria Jorge Viana. So Paulo: Verbo:
Edusp: 1976. Frisby, D. Fragments of modernity: studies in
contemporany German social though.
Cambridge: MIT, 1986. Hobsbawm, E. A era do capital: 1848-1875.
Trad. Luciano Costa Neto. 2a. ed. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1979. Leahy, A. Ruskin and the
Pre-Raphaelites in the 1850s. In: PaGes: Arts
Postgraduate Research in Progress. Vol. 6. University College
Dublin, 1999. McIntosh, C. Os mistrios da Rosa-Cruz. Trad. Aydano
Arruda. So Paulo:
IBRASA, 1987. Oehler, Dolf. Quadros parisienses (1830-1848):
esttica anti-burguesa em
Baudelaire, Daumier e Heine. Trad. Jos Macedo, Samuel Tintan Jr.
So Paulo: Cia. das Letras, 1997.
Ortiz, R. Cultura e modernidade: a Frana no sculo XIX. So Paulo:
Brasiliense, 1991.
23 Cf. Weber ibid.: 52. 24 Ibid.: 46.
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Said, E. Orientalismo: o Oriente como inveno do Ocidente. Trad.
Toms Bueno. So Paulo: Cia. das Letras, 1990.
Weber, E. Frana fin-de-sicle. Trad. Rosaura Eichenberg. So
Paulo: Cia. das Letras, 1988.
VII. Lista de Imagens Daumier, Honor. As sabe-tudo. Litografia
de Costumes conjugais. 1840. Grasset, Eugne Samuel. Morphineuse.
Litografia de Lalbum destampes originales de la Galerie Vollard.
1897. Grasset, Eugne Samuel. Capa da revista La Plume. Litografia.
1894. Guydo. Cartaz para o licor Amara Blanqui. Litografia. 1893.
Toulouse-Lautrec, Henri de. Au Moulin Rouge, La Goulue. Cartaz
(litografia). 1892.
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Daumier, Honor. As sabe-tudo. Litografia de Costumes conjugais.
1840.
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cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 15
Grasset, Eugne Samuel. Capa da revista La Plume. Litografia.
1894.
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Grasset, Eugne Samuel. Morphineuse. Litografia de Lalbum
destampes originales de la Galerie Vollard. 1897.
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Guydo. Cartaz para o licor Amara Blanqui. Litografia. 1893.
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Toulouse-Lautrec, Henri de. Au Moulin Rouge, La Goulue. Cartaz
(litografia). 1892.
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