1 Anais do I SISCultura – Seminário Internacional Sociedade e Cultura na Panamazônia Manaus, 14 a 17 de outubro de 2014. ISSN 2359-5353 OXUM EXILADA: A INVISIBILIZAÇÃO DAS RELIGIÕES AFRO-AMERÍNDIAS, DAS MÃES-DE-SANTO E A URBANIZAÇÃO DOS IGARAPÉS EM MANAUS. Fabiane Vinente dos Santos Instituto Leônidas e Maria Deane – ILMD/Fiocruz RESUMO O trabalho aborda a relação entre saúde e práticas sociais a partir dos terreiros afro- ameríndios na cidade de Manaus, de suas lideranças, as mães-de-santo, e de sua inserção nas comunidades em que estes se localizam. Foi utilizado o conceito de auto- atenção para a compreensão das escolhas das práticas terapêuticas holísticas simultaneamente aos tratamentos pelos sistemas médicos oficiais. O pano de fundo são as reformas urbanas engendradas pelo poder público e sua intervenção sobre os igarapés do centro da cidade na última década, com o consequente deslocamento das casas de terreiro para os bairros da periferia. Palavras-chave: saúde – terreiros – religiões afro-ameríndias – Prosamim THE EXILED OXUM: THE CONCEALMENT OF THE AFRICAN-AMERINDIAN RELIGIOUS CULTS, THEIR PRIESTESS AND THE URBANIZATION OF THE URBAN WATER STREAMS IN MANAUS. This work approaches the relation between health and social practices from african- amerindian terreiros [sacred places] in Manaus, their leaders, the mothers-of-Orishas [mães-de-santo], and its insertion in the communities in which they are established. The concept of self-attention is used to understanding the choices of holistic therapeutics treatments simultaneously to the practices of the official medical system. The background is the urban reform undertaken by the government and its intervention on
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Oxum exilada: a invisibilização das religiões afro-ameríndias, das mães-de-santo e a urbanização dos igarapés em Manaus
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Anais do I SISCultura – Seminário Internacional Sociedade e Cultura na Panamazônia Manaus, 14 a 17 de outubro de 2014. ISSN 2359-5353
OXUM EXILADA: A INVISIBILIZAÇÃO DAS RELIGIÕES AFRO-AMERÍNDIAS, DAS
MÃES-DE-SANTO E A URBANIZAÇÃO DOS IGARAPÉS EM MANAUS.
Fabiane Vinente dos Santos
Instituto Leônidas e Maria Deane – ILMD/Fiocruz
RESUMO
O trabalho aborda a relação entre saúde e práticas sociais a partir dos terreiros afro-
ameríndios na cidade de Manaus, de suas lideranças, as mães-de-santo, e de sua
inserção nas comunidades em que estes se localizam. Foi utilizado o conceito de auto-
atenção para a compreensão das escolhas das práticas terapêuticas holísticas
simultaneamente aos tratamentos pelos sistemas médicos oficiais. O pano de fundo são
as reformas urbanas engendradas pelo poder público e sua intervenção sobre os
igarapés do centro da cidade na última década, com o consequente deslocamento das
THE EXILED OXUM: THE CONCEALMENT OF THE AFRICAN-AMERINDIAN
RELIGIOUS CULTS, THEIR PRIESTESS AND THE URBANIZATION OF THE
URBAN WATER STREAMS IN MANAUS.
This work approaches the relation between health and social practices from african-
amerindian terreiros [sacred places] in Manaus, their leaders, the mothers-of-Orishas
[mães-de-santo], and its insertion in the communities in which they are established. The
concept of self-attention is used to understanding the choices of holistic therapeutics
treatments simultaneously to the practices of the official medical system. The
background is the urban reform undertaken by the government and its intervention on
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the streams of the downtown in the last decade, with the consequent displacement of
the terreiros to the peripheries of the city.
Key-words: health – terreiros – african-amerindian religions – Prosamim
1. INTRODUÇÃO
Embora o conceito de saúde reconhecido pela Organização Mundial de Saúde
estabeleça esta como o “estado de completo bem-estar físico, mental e social e não
somente a ausência de afecções e enfermidades”, muito ainda temos que caminhar
rumo a uma concepção de saúde que não se restrinja à intervenção de medicamentos
e procedimentos médicos. Neste paper, meu intuito é abordar a relação entre saúde e
práticas sociais a partir das práticas religiosas afro-ameríndias na cidade de Manaus e
de suas lideranças, as mães-de-santo, e sua profunda relação com as comunidades nas
quais estão inseridas. Como pano de fundo, está o projeto de intervenção urbana
engendradas pelo poder público sobre os igarapés do centro da cidade e do
deslocamento das casas de terreiro para os bairros da periferia na última década.
Por terreiros estamos tomando aqui os espaços religiosos organizados a partir
de grupos constituídos em torno de culto de matriz africana, afro-brasileira e/ou
ameríndia, localizados na área urbana de Manaus e instituídos em torno da dimensão
comunitária, do caráter étnico, ligado à herança religiosa e cultural trazida pelos
escravos durante o período do tráfico negreiro da África para o Brasil (entre o século
XVI até 1850), de uma organização social diferenciada e reunidos em torno de uma
autoridade religiosa reconhecida pelo grupo1.
Os cultos afro-brasileiros são classificados de acordo com o local de sua origem
africana: os Jeje (também chamados de fon, mina, ashanti, mahin e ewe) vieram de
1 Há uma ampla base no ordenamento jurídico para proteção legal das comunidades de terreiro e das
práticas religiosas de matriz africana e afro-ameríndia. A Constituição Federal de 1988 dispõe que “é
inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos
e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e às suas liturgias” (art. 5°, VI). Na esteira do
texto constitucional, toda uma legislação definidora das comunidades tradicionais e de suas prerrogativas
tem sido efetivada. A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais (Decreto 6.040 de 2007) estabelece que Povos e Comunidades Tradicionais “são entendidos
como grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias
de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua
reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas
gerados e transmitidos pela tradição”. O Artigo 23 da Lei 12.288 de 12 de julho de 2010, chamada de
“Estatuto da Igualdade Racial”, assegura que é “inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto
e às suas liturgias”.
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Togo, Gana e Benin, no Golfo da Guiné. Os Nagô (também chamados de Ketu), do
Benin e outros locais – agrupados na categoria Yoruba, e os Angola, originários do local
hoje ocupado pelo país do mesmo nome (MOURA, 2004). Estas procedências são as
principais referências para as comunidades de terreiro existentes no Brasil desde a
chegada dos primeiros africanos, ainda no século XVII. No Amazonas, os fluxos
migratórios como o do início da zona franca na década de 70 ajudaram a enriquecer
este quadro.
De acordo com o estudo de Chester Gabriel (1985) - um dos poucos trabalhos
de investigação sobre os cultos afro-brasileiros em Manaus, realizado na década de 70
-, diferente das outras cidades, Manaus sofria uma grande influência de terreiros de
origem Jeje (oriundos das casas maranhenses como a de Minas e Turquia), mas que
se caracterizava pela diversidade e mistura de elementos originários das religiões
indígenas, de umbanda e batuques, este último considerado mais próximo ao
candomblé. Pereira (1979), na mesma direção, identifica a forte influência da Casa das
Minas em Manaus. Araújo (2008), em trabalho recente, acompanhou uma casa de
Angola, mostrando como este universo é multifacetado.
A Umbanda, embora tenha forte influência do Candomblé, é uma formulação
diferente das tradicionais casas características desta última modalidade de culto: Ortiz
(1999) defende que ela é uma síntese essencialmente brasileira das religiões africanas
com a influência indígena e do catolicismo. A umbanda, embora flexibilize algumas
instituições do candomblé, permanece semelhante a este na estrutura dos cultos,
voltadas para entidades metafísicas que podem incorporar-se nos humanos e, através
deles, aconselhar, admoestar, alertar, conversar e até se divertir, numa comunhão do
mundo espiritual com o terreno raramente vista em outras práticas religiosas.
As chamadas “religiões de matriz africana, afro-brasileira e ameríndia”,
portanto, atualmente abrangem uma grande diversidade de cultos e vertentes com
várias denominações de acordo com o local (candomblé, umbanda, batuque, tambor de
mina, xambá, omolocô, pajelança, jurema, quimbanda, xangô, terecô). A centralidade
da casa de cultos, chamada de “templo” ou “seara” não impede a existência de uma
espacialidade difusa que abrange outros elementos ambientais considerados sagrados
como árvores, casas anexas ao templo, criação de animais para os serviços dos templos
ou geração de renda, fontes de água, etc.
Embora não seja estabelecido que as lideranças dos terreiros sejam sempre
femininas, é conhecido o fato de que as mulheres costumam ocupar este posto na
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maioria das vezes. A seguir, explorarei, a partir da literatura etnográfica clássica sobre
cultos de matriz afro na Bahia, algumas razões para isso.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1. Diálogos entre a Manaus do século XXI e a Bahia dos anos 30
Pensar o significado das mães-de-santo nas comunidades de terreiro da Manaus
atual é pensar nas estratégias e escolhas feitas por essas mulheres no contexto sócio-
histórico específico da cidade. Para ajudar nesta reflexão, buscarei elementos em um
estudo clássico sobre as religiões de matriz-africana no Brasil, a pesquisa de Ruth
Landes que deu origem ao livro “Cidade das Mulheres” (LANDES, 2002). Na década de
30, o Brasil aparecia como um importante centro de estudos a partir da sua grande
população negra e do seu passado escravista. A Bahia aparecia como uma cidade ideal
para observar como o negro havia de integrado na sociedade nacional, analisada via de
regra sobre o prisma da religião pelos cultos fetichistas.
O estudo de Landes, antropóloga nova-iorquina de formação boasiana, tinha
como principais sujeitos as mães-de-santo das tradições ioruba e caboclo na cidade de
Salvador, suas filhas, suas famílias e suas crianças. Seu estudo contrapunha-se à
concepção de cultura estática e cristalizada, apresentando a o candomblé como o
produto de um arranjo sócio histórico específico, para o qual contribuíra, entre outras
coisas, tanto a instituição da escravidão, quanto sua abolição. As principais teses de
Landes versavam sobre a presença de um regime de matriarcado no candomblé baiano,
em razão do maior poder exercido pela mulher na sociedade negra.
Os estudos elaborados até então (como os do norte-americano M. Herkovitz e
os do brasileiro Arthur Ramos) insistiam na transposição dos cultos da África para o
Brasil, sem levar em conta o contexto social e as transformações sofridas pelos negros
como segmento social dentro de uma sociedade de classe. Nesse sentido, o trabalho
de Landes inovava por revelar que tais transformações provocaram um movimento
novo: um maior prestígio social das mulheres na sociedade local, que lhes proporcionou
um papel central nas práticas religiosas do candomblé, a ponto dos maiores terreiros
contarem com lideranças femininas (como o Gantois, liderado pela célebre Mãe
Menininha). Para Landes as mulheres sempre foram os receptáculos “naturais” dos
deuses, tendo a prerrogativa exclusiva de recebe-los e dançar com eles. O que mudara
fora o sistema religioso, isto é, a administração do templo e a direção dos cultos – se
anteriormente era papel masculino, com o contexto pós-abolição também passara a ser
controlado pelas mulheres, dando-lhes uma força social enorme.
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Sobre a questão de gênero, no texto de Landes os homens das classes baixas
urbanas da Bahia são mostrados como portadores de limitadas possibilidades de renda
depois da abolição, tornando-se dependentes do ganho de suas mulheres, que não
raramente, eram as responsáveis absolutas pela manutenção da família. Contudo, o
papel inferiorizado do homem era um elemento criador, pois constituía-se em mais um
fator que corroborava com a ascensão social da mulher negra.
O papel de liderança da mulher negra nos cultos de matriz africana, tal como se
deu na Bahia, foi ecoado em vários contextos como as cidades de Recife (RIBEIRO,
1954), Belém (FRY, 1982), Rio de Janeiro (BIRMAN, 1995), São Luís (PEREIRA, 1979)
e Manaus (PINHEIRO apud PEREIRA, 1979).
2.2. As religiões afro-ameríndias em Manaus e a disputa por espaço na cidade
No que diz respeito a Manaus, é necessário antes de tudo fazer referência à
história do negro no estado do Amazonas, que ainda é pouco estudada, o que tem
contribuído para a concepção de que a contribuição do negro localmente foi menor do
que a de outros segmentos, especialmente pelo fato de que o maior contingente de
escravos foi o da população indígena, tendo o tráfico negreiro um volume bem menor
que o de outras regiões do Brasil (SAMPAIO, 2011).
Entretanto, a influência negra fez-se sentir em várias ocasiões, especialmente
durante o ciclo da borracha, quando a migração de nordestinos, especialmente os
maranhenses, trouxe elementos próprios que, misturados aos indígenas, foi a matéria-
prima de novas concepções culturais e religiosas. Um bom exemplo disso é a
disseminação da manifestação folclórica conhecida como Bumba-Meu-Boi maranhense,
que aqui se tornou o Boi Bumbá, e a consolidação de novas formas de religiosidade,
como é o caso da Casa de Mina, de raiz Jeje, principal vertente dos cultos de origem
africana nesta região.
Os terreiros manauaras são referências religiosas e afetivas importantes para as
pessoas de seu entorno que participam das festas ou que os procuram em busca de
alívio espiritual. Fazem parte da história dos bairros e da cidade de Manaus, como é o
caso da célebre Joana Galante, uma das fundadoras do bairro de São Jorge e a mãe-
de-santo mais famosa de Manaus nas décadas de 50 e 60, conhecida por sua
generosidade e sabedoria e Mãe Quintina, sua sucessora. Outra figura histórica é a de
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Mãe Zulmira, antológica yalorixá do Morro da Liberdade, que até sua morte ganhou
inúmeras homenagens de políticos e pessoas proeminentes na sociedade manauara.
Com a implantação da Zona Franca em 1967, um processo de “inchaço” da área
urbana de Manaus teve início. O aumento do número de habitantes chegados de outros
estados e do interior do Amazonas em busca de emprego e oportunidades provocou a
ocupação desordenada dos igarapés e cursos de água, alguns deles aterrados para dar
lugar a novas áreas de habitação. Tal dinâmica, agudizada nas últimas décadas, atingiu
violentamente aos terreiros, cujo caráter guarda uma relação estreita com os elementos
ambientais. Os terreiros necessitam de um espaço diferenciado para realizar suas
práticas: sua relação com elementos ambientais como água corrente, árvores e animais
é mais estreita do que a de outras práticas religiosas. O processo de concentração
urbana e o desaparecimento de quintais, cursos de água e áreas verdes em Manaus,
tem impossibilitado sua permanência (BOAES E OLIVEIRA, 2011).
Os terreiros não têm a mesma força política de outras denominações, e por isso
são mais vulneráveis a ações de desapropriação. A prova disso é o processo de
“desaparecimento” dos terreiros das áreas centrais da cidade nos últimos anos, fruto da
perseguição religiosa ou simplesmente da expansão urbana. Os centros de culto têm
se refugiando em bairros mais afastados como a Cidade Nova e outros da Zona Leste.
Recentemente, o Prosamim tem sido um fator que colabora para o processo de
invisibilização dos terreiros nas áreas centrais de Manaus.
2.3. O Prosamim e o deslocamento compulsório dos terreiros
Os igarapés têm uma importância vital na produção do espaço urbano de
Manaus. A história testemunha que a intervenção pública através de obras de grande
impacto sobre os igarapés de Manaus como forma de valorização imobiliária foi uma
constante desde os primórdios da cidade. Valle e Oliveira (2003) mostram como as
áreas centrais da cidade foram continuamente aterradas e desaterradas, o que causou
o desaparecimento de vários dos igarapés urbanos no século XIX.
Em nome da higienização do espaço urbano, as reformas urbanas do final
daquele século insistiram na supressão destes cursos de água, expulsando a população
com menos recursos financeiros e cujas atividades dependiam da água, como as
lavadeiras, para áreas cada vez mais longínquas. A história, como sabemos, se repete.
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Com o passar do tempo e com o acúmulo de intervenções desastrosas por parte
do poder público, o decréscimo da qualidade de vida e do ambiente nestes lugares
mostrou-se um desafio para as políticas públicas, frente ao crescimento desordenado
das habitações e da negligência do poder público em administrá-las.
O Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus, que iniciou sua
primeira etapa no ano de 2005, foi uma das soluções engendradas para dar conta dos
problemas de ocupação desordenada dos igarapés urbanos. O Programa afirma ter
como objetivos promover a manutenção do desenvolvimento socialmente integrado e
do crescimento econômico sustentável, assegurando a preservação do patrimônio
ambiental de Manaus de forma a contribuir, em longo prazo, para a melhoria contínua
da qualidade de vida da população amazonense.
O que ocorre de fato é a substituição das moradias precárias de madeira à beira
d’água insalubre por conjuntos habitacionais de inegável apelo visual e que ajudam na
melhora da paisagem urbana. Tais projetos, entretanto, não se fazem acompanhar de
uma preocupação de recuperação ambiental das áreas atingidas, mas na modificação
radical dos leitos dos igarapés pela implantação de um sistema de canais de concreto.
Além da diminuição da área de passagem das águas e do desaparecimento completo
da vegetação ciliar, as modificações alteram de forma irreversível o próprio regime das
águas, sem contudo, realizar o prometido saneamento dos esgotos das residências, que
continuam jogando no igarapé os resíduos sem tratamento.
As ações de implantação do Prosamim implicam em transformações estruturais
profundas na disposição da ocupação das áreas atingidas pelo projeto. Atuando em
áreas de grande desordem urbana e precário saneamento básico, o Programa altera
padrões de assentamento e, consequentemente, as relações sociais inerentes a estes.
É neste contexto que presencia-se a remoção dos terreiros, batuques e mesinhas de
cura da área central da cidade.
Tais locais de culto, como já foi dito, necessitam da presença de alguns
elementos naturais que ficam completamente ausentes na nova configuração espacial
dos conjuntos residenciais. Os sacerdotes e sacerdotisas são obrigados a constituírem
suas searas nos bairros periféricos mais afastados, onde ainda podem contar com
cursos de água natural e vegetação para garantir a presença de seus deuses em seus
templos.
Os terreiros em geral não gozam de nenhuma das prerrogativas franqueadas
pela lei a outros templos religiosos como a isenção de taxas públicas, e ainda enfrentam
os perigos de sua vulnerabilidade social, que obriga-os a mudanças bruscas como as
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engendradas pelo Prosamim, desconstruindo redes de relacionamentos e ameaçando
a existência dos cultos.
2.4. O terreiro de Mãe Ilda: Saúde e Auto-Atenção no universo feminino
Os manauaras sempre tiveram uma relação de grande tolerância com as práticas
religiosas afro-ameríndias. Na memória social dos bairros, as festas de santo como o
Dia de Cosme e Damião e as festas em homenagem a Oxum (Nossa Senhora da
Conceição), Iansã (Santa Bárbara) e Ogum (São Sebastião) faziam parte do calendário
das festividades urbanas. A relação com as líderes dos terreiros, as mães-de-santo
como a já citada Joana Galante, a saudosa Mãe Zulmira ou a atuante Mãe Emília de
Toy Lyssa da Cidade Nova era e é algo presente na vida de algumas partes da cidade.
Uma dessas líderes é a Mãe Ilda, que há 25 anos conduz a Casa de Umbanda Caboclo
Roxo e Ogum Beira Mar; no bairro da Glória, reunindo uma grande família formada por
filhos naturais e filhos-de-santo ao seu redor.
A Casa, fundada em 26 de agosto de 1989, foi construída sobre o terreno
comprado por seu falecido marido de um dos filhos do primeiro proprietário, o conhecido
comerciante J.G. Araújo. O sacerdócio de Mãe Ilda começou logo depois da morte de
seu esposo. Embora médium desde muito jovem, ela dedicou-se a formar uma família,
e durante muitos anos relegou a segundo plano seus dons. Com a morte do marido,
com quatro filhos para criar e vivendo uma situação de fragilidade, Dona Ilda foi
procurada por seus guias, dos quais os principais são o Caboclo Roxo e Ogum Beira
Mar, que a intimaram a começar a trabalhar: ela precisava começar a ajudar aos outros
para poder se fortalecer. A decisão e servir ao santo pressupõe uma entrega completa,
que ocupa todas as dimensões da vida da mãe-de-santo. Por isso a decisão de viver do
santo nunca é uma decisão simples e em geral encontra resistência por parte do
escolhido ou da escolhida.
Com o passar dos anos, a Casa de Mãe Ilda se constituiu em uma referência
espiritual para os moradores da Glória e adjacências. A área onde se encontra o templo
e seus anexos (como o “assentamento da esquerda”, local fechado e interditado aos
frequentadores comuns e que fica a parte da seara) está em meio a um terreno com
grande quantidade de vegetação e próximo ao igarapé da Glória, reunindo os típicos
elementos presentes nos terreiros. É um lugar agradável, um ponto verde em meio ao
concreto das ruas de um bairro com pouca vegetação.
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Embora receba a todos, como acontece na maioria dos terreiros, as mulheres
guardam uma relação de mais proximidade com a mãe-de-santo por vários motivos: é
esta quem benze as crianças pequenas, evitando os quebrantos (malefícios oriundos
do olhar de pessoas que pode, com ou sem intenção de seus autores, trazer graves
doenças às ainda frágeis almas infantis), tratando doenças para as quais nãos e
encontram fundamentos físicos, para receitar um banho de ervas, para aconselhar sobre
problemas cotidianos ou simplesmente para fazer um “passe” (uma benção) em prol da
saúde espiritual, que está estritamente relacionada ao afastamento dos males e ao bem-
estar.
Nos terreiros, o ser humano é visto por uma perspectiva holística: corpo e alma
formam um todo indivisível e a saúde é o estado de equilíbrio de ambos. Neste sentido,
o conceito de auto-atenção formulado por Menendez (2003) parece adequado para
pensar as práticas religiosas afro-ameríndias que envolvem a saúde e o bem-estar das
pessoas, que é descrito pelo autor como sendo...
As representações e práticas que a população utiliza no nível do sujeito e do grupo social para diagnosticar, explicar, atender, controlar, aliviar, suportar, curar, solucionar ou prevenir os processos que afetam sua saúde em termos reais ou imaginários, sem a intervenção central, direta ou intencional dos curadores profissionais, mesmo quando eles possam ser a referência da atividade de auto-atenção; de tal maneira que a auto-atenção implica decidir a auto-prescrição e o uso de um tratamento de forma autônoma ou relativamente autônoma (MENENDEZ, 2003: 199, tradução minha).
Tais práticas não excluem o modelo da medicina oficial, mas o complementam,
fornecendo aos indivíduos as explicações que estes demandam sobre o porquê de seu
adoecimento e dos mecanismos de cura disponíveis, além de devolver aos sujeitos o
protagonismo do processo de terapêutico, do qual eles são alienados pelos serviços
médicos.
O papel da crença como elemento da cura, além do suporte emocional e da
importância das práticas solidárias nos terreiros, cuja ética valoriza a caridade e o
cuidado com o semelhante, são os elementos que ajudam a explicar a importância dos
terreiros e das mães e pais de santo como líderes espirituais e sociais das comunidades
em que se inserem.
3. CONCLUSÃO
Sim: existe uma cidade em nós.
Uma cidade tão singular
que se realiza apenas no plural:
Manaos-Manaus.
(As muitas cidades, Aldísio Figueiras)
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Em 1942, em uma nota transcrita no livro de Nunes Pereira sobre as Casas de
Minas, o estudioso amazonense Geraldo Pinheiro escreveu sobre os terreiros de
candomblé de Manaus, que acompanhava há muitos anos:
Diga-se, a bem da verdade, que o desaparecimento desses batuques ou, pelo menos, a sua transformação, já se anuncia para um futuro muito próximo. O elemento nativo haverá de vencer. Já presenciei mesmo no terreiro de Ifigênia o Negro Marcos, curador, agitando convulso o seu maracá, em uma seção de cura, tal qual o utilizavam certos pajés tupis... (Geraldo Pinheiro apud PEREIRA, 1979, p. 62).
Apesar da sensibilidade que o guiava como pesquisador na busca de
compreensão do fenômeno das religiões de matriz afro em Manaus, Pinheiro acreditava
que os terreiros de Manaus não sobreviveriam ao sincretismo com as práticas rituais
herdadas dos indígenas, de forte influência no solo urbano na época. Passados mais de
setenta anos destes pensamentos, a realidade mostra que os terreiros estão bastante
vivos, apesar da notória estigmatização da qual são vítimas diariamente e que tem
crescido ao longo dos anos.
Sendo um tipo de culto constantemente alvo de preconceito e de discriminação,
as religiões de matriz afro-brasileira e ameríndia constituem-se num elemento
importante da diversidade sociocultural e histórica das cidades, testemunho da mistura
de crenças e de experiências sociais distintas do negro, do branco e do índio.
Enquanto um templo católico dificilmente sofrerá uma ação de remoção e as
igrejas evangélicas possuem um caráter muito mais livre e flexível com relação ao lugar
que ocupam para os cultos, podendo facilmente mudar de localização, os terreiros
possuem raízes muito mais profundas com as áreas onde estão estabelecidos, além de
um componente afetivo bastante forte com suas comunidades. É importante que
Manaus guarde a memória da presença dos terreiros também nas áreas centrais da
cidade e que esta presença não seja ocultada ou escondida.
Em 2007, visando reagir contra esta invisibilização, lideranças religiosas dos
povos de terreiro conseguiram encaminhar um projeto de lei para a Câmara Municipal
visando a criação de um local onde as práticas rituais e culturais dos povos de terreiro
pudessem ter espaço. O projeto, chamado de “Parque dos Orixás”, apresentado pela
então vereadora Lúcia Antony, foi duramente criticado por vereadores adeptos de outras
denominações religiosas e recusado, sem nem mesmo ir à discussão na tribuna, o que
causou grande frustração entre os apoiadores.
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A proposta, ousada para o contexto vivido atualmente pelas religiões de matriz
afro-brasileira em Manaus, previa local para a realização dos ritos religiosos, sendo este
o principal argumento para seu engavetamento, baseado no veto que a Constituição
federal estabelece ao suporte do Estado a práticas religiosas. Entretanto, a retirada do
projeto não muda o fato de que o espaço para a cultura negra e seus sincretismos é
cada vez mais reduzido e ocultado em Manaus e que ações políticas são necessárias
para reverter este quadro.
Serra et al. (2010) mostra como os terreiros de candomblé de Salvador,
compreendidos como núcleos de ação social e desta forma como agências de saúde,
são parceiros preciosos do setor saúde na formulação, implantação e monitoramento
de políticas públicas da área. Este envolvimento entre religião e saúde em prol da
qualidade de vida da população não é novidade: há várias iniciativas exitosas e de maior
repercussão como o caso da Pastoral da Criança da Igreja Católica, que ajudou a
reverter índices de mortalidade infantil no Brasil na década de 80.
Nas etapas anteriores do Prosamim, outras casas foram deslocadas sem que
nenhuma compensação que contemplasse o caráter coletivo e cultural dos terreiros
fosse dada. Em 2012, ciente deste fato, o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas
estabeleceu como uma das condicionantes à Licença de Instalação da terceira etapa do
projeto (L.I. n. 074/12 para a UGPI - Unidade Gestora do Programa Social e Ambiental
dos Igarapés de Manaus) o levantamento das possíveis comunidades de terreiro
existentes na área prevista para o Prosamim III. O levantamento antropológico concluído
em 2013 aguarda desdobramentos práticos (SANTOS, 2013).
A intervenção sobre a paisagem urbana, quando feita sem a devida atenção aos
aspectos sociais e históricos que relaciona seus moradores, contribui para varrer a
presença dos terreiros das áreas de maior circulação, negando o caráter plural e
dinâmico da cidade e privando uma parcela da população do conforto psíquico
proporcionado por práticas de saúde que, mesmo sem o reconhecimento oficial, se
constituem em modos de vivenciar a sociabilidade urbana que envolvem valores como
solidariedade, integralidade, comunidade e respeito à pessoa humana.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO, Luciney. De Inzo Muzambo Tata Mutalembê ao Abassá de Angola Nengua
Keuamazi: O Candomblé de Angola em Manaus. Trabalho de Conclusão de curso de
Bacharelado em Ciências Sociais, Universidade Federal do Amazonas, 2008.
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