4º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais De 22 a 26 de julho de 2013. "OTOMANIA" NA TURQUIA CONTEMPORÂNEA História das Relações Internacionais Painel "O nacionalismo na Ásia e no Oriente Médio" Monique Sochaczewski Goldfeld CPDOC/Fundação Getulio Vargas Belo Horizonte 2013
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4º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais
De 22 a 26 de julho de 2013.
"OTOMANIA" NA TURQUIA CONTEMPORÂNEA
História das Relações Internacionais
Painel "O nacionalismo na Ásia e no Oriente Médio"
"OTOMANIA" NA TURQUIA CONTEMPORÂNEA Trabalho submetido e apresentado no 4º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais – ABRI.
Belo Horizonte 2013
RESUMO
Quando do nascimento da República da Turquia em 1923 e sua consolidação
como Estado independente, moderno e secular, ao longo do século XX pouca ou
nenhuma atenção oficial era dada a seu passado otomano. Tal característica vem se
alterando nos últimos anos, em especial desde a ascensão ao poder do Partido
Justiça e Desenvolvimento (AKP), em 2002. O intuito nesta comunicação é em um
primeiro momento tratar brevemente da lida da República Turca com seu passado
otomano, para então centrar-se na corrente "otomania". O filme "Fetih 1453"
("Conquista 1453", sobre a tomada de Constantinopla) e o seriado "Muhteşem Yüzyıl"
("Século Magnífico", sobre o sultanato de Suleiman, o Magnífico) e seus usos e
repercussões servirão de estudos de caso.
Palavras – Chave
Turquia; Império Otomano; História; Política Externa; Nacionalismo;
“Otomania” na Turquia Contemporânea Monique Sochaczewski (Doutora em História, Política e Bens Culturais –
CPDOC/FGV)
Quem visita Istambul hoje se assusta com o grande número de obras em
andamento na cidade. Estão sendo erguidos prédios, shopping centers, uma nova
ponte sobre o Chifre de Ouro, confirma-se para a breve a construção de uma terceira
ponte sobre o Bósforo e fala-se em um terceiro aeroporto para a cidade. A importante
praça de Taksim - uma espécie de Cinelândia local, no sentido de espaço tradicional
de manifestações políticas - está quase que totalmente tomada por tapumes. E
praticamente todo e qualquer monumento remanescente do Império Otomano (1299-
1922), sejam fontes, mesquitas, cemitérios ou yalıs (residências típicas), também
estão em fase de "renovasyon", ou seja, renovação, restauro.
As obras em Istambul refletem um momento muito interessante da Turquia
Contemporânea, de elevada auto-estima e de uma lida diferente com seu passado do
que acontecia tradicionalmente no período republicano, iniciado em 1923. Ocorre uma
"otomania", uma nostalgia do Império Otomano como uma era de poder e esplendor
cultural, durante a qual sultões reinaram um império que ia dos Balcãs ao Oceano
Índico e tinham legitimidade espiritual sobre quase todo mundo muçulmano sunita. O
interesse oficial massivo por tudo o que é otomano se tornou uma tendência, ou quase
uma onipresença, na Turquia dos últimos anos.
O intuito nesta comunicação é justamente apresentar em um primeiro momento
a forma como o governo da República Turca, estabelecida em 1923, lidou com seu
passado otomano, em grande medida negando-o e negligenciando-o. A seguir tratar-
se-á especificamente do governo do Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP),
chegado ao poder em 2002, e sua corrente "otomania". Parte-se então para dois
breves estudos de caso, o filme “Fetih 1453” (“Conquista 1453", sobre a tomada de
Constantinopla), e o seriado “MuhteşemYüzyıl” (“Século Magnífico”, sobre o sultanato
de Suleiman, o Magnífico) e seus usos e repercussões.
Como ressalta Margaret Macmillan (2010) a história ajuda a definir e validar os
grupos, mas não são os poucos casos de visões competitivas a seu respeito.
Argumenta-se aqui que justamente ocorre na Turquia Contemporânea usos políticos
do passado otomano e que este compete no momento com a história oficial
estabelecida pelo kemalismo. Para além do revival otomano corrente na academia
turca - que não é objeto aqui por questão de espaço - há forte uso oficial da
"otomania" em política interna e externa e reações acaloradas por parte do governo do
AKP quando alguma obra relacionada a este período não condiz com sua visão.
A República Turca e o passado otomano
Poucos Estados viveram ruptura tão abrupta com seu passado como a
República Turca. Os mais de seis séculos de história otomana foram explicitamente
rejeitados com a fundação da república por Mustafá Kemal Atatürk1. A percepção
deste, que foi presidente de 1923 a 1938, era que a Turquia que nascia dos
escombros da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e da guerra de independência
(1919-1923) somente poderia se tornar uma grande nação se abandonasse seu
passado otomano e emulasse práticas ocidentais. Atatürk declarou expressamente tal
intento em discurso de 1923: "A nova Turquia não tem relação com a antiga. O
governo otomano desapareceu na história. Uma nova Turquia nasceu" (apud Wilson,
2007: 83).
A ideologia de Atatürk acabou se tornando conhecida como "kemalismo" - por
vezes também referenciada como "atatürkismo" - e tinha como princípios gerais
republicanismo, laicismo, nacionalismo, populismo, estatismo e reformismo. Várias
foram as chamadas "revoluções de Atatürk" na direção da criação de um Estado
pretensamente secular, moderno e ocidentalizado. O calendário e a hora ocidental
foram adotados, o fez - chapéu típico - foi banido, o uso de sobrenomes se tornou
obrigatório, o uso de véu pelas mulheres desencorajado e as irmandades dervishes
banidas. Dentre estas "revoluções", provavelmente a "revolução alfabética", de 1928,
e um programa de reforma da língua que a acompanhou, funcionou de fato como um
corte radical com o passado imediato otomano. A mudança da escrita de letras árabes
para latinas e mesmo de grande parte do idioma negou a população, que finalmente
passava a cada vez mais ter acesso a educação, um contato direto com os escritos de
seus antepassados (Findley, 2010: 256-8) .
Desta forma, a criação de uma Sociedade Nacional de História (Türk Tarih
Kurumu), em 1931, e uma Sociedade de Língua Turca (Türk Dil Kurumu), em 1932,
cumpriram um papel importante na "invenção" de uma história e uma língua turcas.
(Findley, 2010: 253-6; Wilson, 2007: 83). As teorias e estudos propostas pela primeira
a respeito dos turcos - questões essas que se manteriam sempre fortemente
politizadas - marcaram boa parte do período republicano. Já a segunda cumpriria um
1 Gazi Mustafá Kemal Paşa passou a se chamar Atatürk após a "revolução dos sobrenomes",
em 1934.
importante papel de "purificar" a língua turca inventando e sugerindo sinônimos para
palavras "estrangeiras", isto é, palavras otomanas derivadas do persa e do árabe.
Uma "Teoria da Língua do Sol", que dizia que a língua turca era a primeira da qual
todas as outras emergiram, também ganhou certa notoriedade a partir de 1932.
O Império Otomano multiétnico, multireligioso e multilinguístico era substituído
por um Estado nacional focado no "turquismo", que ia buscar suas origens na Ásia
Central. "Os turcos" existiam no Império Otomano como uma denominação usada
basicamente por europeus, mas a etnia acabou sendo "imaginada" desde o final do
século XIX e passou a contar com uma história ligando-a aos nômades da Ásia
Central, às civilizações antigas da Anatólia, como os hititas e frígios, e mesmo
indiretamente às civilizações suméria e assíria da Mesopotâmia (Wilson, 2007: 82).
Assim, nos anos iniciais da República Turca estudos históricos, arqueológicos,
antropológicos e lingüísticos eram conduzidos de maneira a formular e sustentar estas
ligações. Buscava-se legitimar o direito dos turcos a ter sua própria pátria, forjando
para estes um "pedigree ilustre" (Finkel, 2008). Esses estudos passavam a fazer da
Anatólia a locação natural da República Turca, fato reforçado com a transferência da
capital de Constantinopla - então renomeada Istambul - para Ancara, em 1923. Não
por acaso nesta cidade já se encontrava o "Museu das Civilizações Anatolianas",
inaugurado em 1921.
Durante os anos de Atatürk e durante boa parte do período republicano o
Império Otomano só era lembrado internamente por sua decadência e fracasso
humilhante, tendo sido partilhado e ocupado pelos aliados após a Primeira Guerra
Mundial. Após a morte de Atatürk, em 1938, começava a se esboçar também uma
série de rituais e símbolos ligados a sua figura. Fotografias e bustos de Atatürk se
tornaram onipresentes por todos os espaços públicos, e mesmo privados, do país e
um enorme mausoléu, Anıtkabir, foi construído na capital na década de 1950
venerando não só sua pessoa, como sua concepção de Turquia (Wilson, 2007: 82).
Durante a segunda metade do século XX a Turquia teve um papel importante
na lógica da Guerra Fria, tendo largas fronteiras com a União Soviética e seus
satélites, além de grupos de esquerda bastante ativos internamente. Foi alvo do Plano
Marshall e se tornou membro da OTAN. O colapso do comunismo levou a intensas
alterações internas ao longo da década de 1990 tanto em termos do separatismo
curdo - que nunca aceitou o nacionalismo kemalista - como em termos da participação
de muçulmanos devotos da política do país (Findley, 2010: 305-349).
Já constavam tentativas de estabelecimento e atuação de partidos políticos
islâmicos desde a década de 1970, mas todas foram malogradas seja em função de
intervenções militares - ocorridas nos anos de 1960, 1971 e 1981 - ou por decisões da
Suprema Corte local, visando a manutenção do Estado laico pregado por Atatürk.
Como ressalta Ömer Taşpınar (2012), a cada fechamento2, porém, o partido político
islâmico seguinte surgia mais moderado e pragmático e esse foi o caso final do Partido
Justiça e Desenvolvimento (Adalet ve Kalınma Partisi, AKP), eleito em novembro de
2002, e no poder desde então, após duas reeleições.
O AKP e a nostalgia otomana
Recep Tayyip Erdoğan, fundador e líder do AKP (criado em 2001), rejeita a
definição do partido em termos religiosos, preferindo denominá-lo como dono de
agenda "democrática conservadora". Sua ascensão deve muito a política do primeiro-
ministro e depois presidente Turgut Özal nos anos 1980 e 1990, que permitiu a criação
de uma burguesia empreendedora muçulmana na Anatólia, que com o tempo acabou
também mais engajada e atuante em termos políticos. Nos anos 1990, durante o breve
período de existência do Partido do Bem Estar Social, chegaram inclusive a governar
as principais cidades do país, Istambul e Ancara. O próprio Erdoğan foi prefeito da
primeira entre os anos de 1994 e 1998.
O discurso oficial do AKP de busca por inclusão na União Europeia, fazendo
reformas democráticas para tanto, atraiu o apoio da comunidade empresarial turca,
bem como intelectuais liberais e uma classe média pragmática. E ao criticar a
corrupção, focar na economia e dar prioridade a questões sociais, ganhou o apoio dos
mais pobres. Em 2002 o partido foi eleito e de fato passou boa parte de seu primeiro
mandato (2002-2006) lidando com reformas em busca de aceitação como membro da
União Europeia.
O crescimento econômico desde então vem sendo de cerca de 5% ao ano,
com baixa inflação, e crescente presença de empresas estrangeiras, em função de
privatizações e reformas3. No segundo mandato do AKP, porém, as tensões
começaram a crescer fortemente com os kemalistas e hoje o país encontra-se
bastante polarizado. O crescente esvaziamento do poder dos militares, a alteração de
2 O Partido da Ordem Nacional, fundado em 1970, foi banido pela corte constitucional em 1971.
O Partido da Salvação Nacional, fundado em 1972, foi posto fora da lei com o golpe militar de 1980. O Partido do Bem-Estar Social, fundado em 1983, foi banido pela Corte Constitucional em 1998. O Partido da Virtude, fundado em 1997, foi banido em 2001. 3 Jeffrey Sachs. Why Turkey is thriving. In: Project Syndicate, May 27 2013.
leis instituídas ainda nos dias de Atatürk como o banimento do uso de véus em campi
universitários, a crescente proibição de consumo de álcool, entre outras medidas, vem
sendo interpretadas por kemalistas como uma "agenda oculta" por parte do AKP de
islamizar o país.
Em paralelo a essas mudanças mais claras em termos político e econômico, é
possível de se observar uma nova lida por parte do governo em relação à história e o
legado otomanos. É importante se frisar que isso acontece em termos internos e
externos. No que diz respeito à política externa do AKP, jornalistas e acadêmicos
como Hadi Uluengin, Zülfü Livaneli e Michael Rubin a apelidaram de "Neo-
Otomanista", cada qual com diferente approach4. Tal fato se deu devido ao grande
ativismo para o Oriente Médio e os Bálcãs e também em função da reformulação de
suas relações com o Ocidente. O establishment turco, porém, não a aceita por
entender quererem implicar um componente imperialista nesta5.
O termo que Ahmet Davutoğlu usou para denominar sua política externa,
primeiro como assessor especial e depois como ministro das relações exteriores, foi
"zero problemas com os vizinhos". Sua justificativa é a de que as elites que
governaram o país anteriormente erigiram obstáculos "físicos, mentais e políticos" em
relação aos vizinhos e que seu intuito foi o de quebrar essa cultura. Esforços foram
feitos então para resolver a questão cipriota, acabar com a inimizade com a Síria e
normalizar as relações com a Armênia, ao mesmo tempo em que se buscava
proximidade de atores emergentes da Ásia, América Latina e África. A seu ver,
ocorreu em função desse esforço uma espécie de "reconexão" com os Bálcãs, com a
região do Mar Negro, com o Cáucaso e também com o Oriente Médio e a região
passava finalmente a ser vista como arena para cooperação e parcerias, mais do que
de problemas e tensões (Davutoğlu, 2013). Esse ativismo turco e seu distanciamento
da órbita dos EUA em especial ao se negar a permitir que norte-americanos usassem
4 Hadi Uluengin e Zülfü Livaneli são jornalistas turcos. O primeiro do periódico Hürriyet e o
segundo do Sabah. Ambos publicaram artigos a respeito do tema em seus jornais, o primeiro considerando o neo-otomanismo mais como "um processo psicoterapêutico da Turquia restabelecer ligações interrompidas com o legado otomano e a era republicana". Já Livaneli entende que a questão deve se dar mais em aspectos culturais com antigas províncias, algo parecido com o que acontece com países hispânicos. Já o acadêmico norte-americano Michael Rubin ressalta uma percepção imperialista em relação à Turquia por parte de vizinhos. 5 O New York Times, na matéria "Frustrated with West, Turks revel in empire lost", de 5 de
dezembro de 2009, cometeu um erro conceitual importante ao denominar Iraque e Síria como "antigas colônias otomanas". Vale ter em mente que a lógica que regia o Império Otomano era distinta da lógica do imperialismo europeu. As províncias árabes muçulmanas sunitas adicionadas ao império no século XVI, aceitavam a legitimidade do sultão e califa.
seu território para atacar o Iraque em 2003 estaria por trás do uso do apelido "neo-
otomanista", como dito, prontamente rechaçado pelo AKP.
Já no que diz respeito a interpretações gerais sobre o passado otomano, vale
levar em conta o que disse o primeiro ministro Erdoğan ao ser questionado sobre esse
"legado" por um jornalista da revista Time, em 2011:
Of course we now live in a very different world, which is going through a scary process of transition and change. We were born and raised on the land that is the legacy of the Ottoman empire. They are our ancestors. It is out of the question that we might deny that presence. Of course, the empire had some beautiful parts and some not so beautiful parts. It’s a very natural right for us to use what was beautiful about the Ottoman Empire today. We need to upgrade ourselves in every sense, socially, economically, politically. If we cannot upgrade ourselves and the way we perceive the world, we will lag behind tremendously. It would be self-denial. That’s why whether it be in the Middle East or North Africa or anywhere in the world, our perception has in its core this wealth that is coming from our historical legacy. But it’s established upon principles of peace. And it all depends on people loving one another without discrimination whatsoever.
Nesta fala do primeiro-ministro fica claro o interesse em revisitar o passado
otomano, por tanto tempo renegado, no contexto de uma busca pela auto-estima
turca. Este contou com importantes períodos de grandeza e engenhosidade e sua
história passa a ter largo uso oficial por parte do governo do AKP. O discurso pacífico,
tendo por base um passado de aceitação aos diferentes serve também como reforço à
ênfase dada à parcerias, cooperação e resolução mediada de conflitos.
Para além do discurso, passou-se a materialidade da ênfase no passado
otomano. Mesquitas como Fatih Camii, construída pelo sultão Mehmet II (conquistador
de Constantinopla) em 1470, passam por longo e cuidadoso processo de restauro.
Novos museus como "Panorama 1453", inaugurado em 2009, e "Museu da Tulipa",
aberto em 2013, procuram tratar de momentos de vitória "turca" e muçulmana ou de
"esclarecer" ao mundo à real origem da popular flor6. Esses são alguns exemplos de
atuação oficial que se juntam ainda a iniciativas diversas como a criação da coluna
"Taste of past" de Niki Gamm no jornal Hurriyet Daily News, iniciada em 2011, sobre
história e cultura otomanas. Perfis como Ottoman History Podcast e Ottoman History
6 Ambos os museus procuram também estar atentos a novas linguagens museográficas,
fazendo largo uso da tecnologia. No caso do museu da tulipa, além de esclarecer ser esta flor originária do Império Otomano, busca-se ressaltar a grande quantidade de material cultural local que usou a flor como motivo, tais como cáftans, cerâmicas e afins, além de sua simbologia no Islã. (Everything about tulips in a museum. Hurriyet Daily News, 22/3/2013)
Pictures Archive no Facebook, com milhares de seguidores, também são dignos de
nota e perfazem uma verdadeira explosão de "otomania" por todos os lados.
Vejamos agora com mais atenção dois casos específicos de obras artísticas
ligadas ao Império Otomano e seus usos ou recriminações por parte do governo do
AKP, em função de sua visão do que consideram "belo" e válido deste período a ser
retido e referenciado.
MuhteşemYüzyıl
As chamadas "novelas" turcas são na realidades seriados, que passam uma
vez por semana com duração de por volta de uma hora e meia. São produzidas
basicamente em Istambul por canais de TV estabelecidos após a liberalização da TV
privada no país, na década de 1990. Acabaram tornando-se extremamente populares
não só no país como no Oriente Médio e mesmo nos Balcãs e Sudeste Europeu.
"Gumuş", renomeada "Nur" e projetada no países árabes em 2008, talvez tenha
sido o primeiro gigantesco sucesso de um movimento de crescente interesse árabe na
Turquia. Para além do romance açucarado, o público, em especial feminino, se
mostrava entusiasmado com a Turquia que se mostrava moderna, mas com uma
cultura não totalmente diferente, por conta da religião e história compartilhadas. As
novelas passavam assim a ter um importante papel no "poder brando" da diplomacia
turca.
MuhteşemYüzyıl, ou "Século Magnífico", entrou no ar em janeiro de 2011, e
passa desde então às quartas de noite, estando no momento em sua terceira
temporada. Sua história principal gira em torno do sultão Suleiman, o Magnífico (r.
1520-1566), tratando de questões políticas, diplomáticas e sociais de seu sultanato (o
mais longo do império), mas, sobretudo, centrando-se em seu harém e intrigas de
alcova entre suas concubinas, principalmente com Hürrem Sultan, conhecida no
Ocidente como Roxelana.
A novela conta com cerca de setenta personagens e trata-se do programa mais
caro da TV turca, envolvendo equipe de três redatores, assessorados por três
historiadores (um da arte de dois de política)7. Acabou se tornando um sucesso
instantâneo e conta com audiência de cerca de um terço do país. Trata-se da série
mais popular da história turca e também uma das mais polêmicas.
Por um lado, faz parte de um negócio que vem trazendo importantes dividendos
políticos e econômicos para a Turquia: o da exportação de suas novelas. Angaria
7 "Ottomania" is becoming omnipresent in Turkey. In: Turkey Correspondent, Feb 27, 2013.
recursos com a venda em si e ajuda a atrair crescente número de turistas árabes para
a Turquia. Faz imenso sucesso nos Bálcãs e no Oriente Médio. Por outro, atrai a ira de
muçulmanos conservadores assim também como de nacionalistas pela forma como
Suleiman é retratado para eles: bêbado e mulherengo. O próprio primeiro-ministro
Erdoğan fez duras críticas públicas a esse respeito dizendo que o sultão passou "trinta
anos sobre um cavalo", dando a entender que estava mais afeito a construir um
império do que a lidar com coisas mundanas8.
Fetih 1453
No dia 16 de fevereiro de 2012, propositalmente às 14:53, foi lançada a
primeira mega produção de cinema turca: o filme "Fetih 1453" ("Conquista 1453")9,
dirigido por Faruk Aksoy. A obra, de duas horas e meia, tem como foco a luta
otomana, liderada pelo sultão Mehmet II, em tomar Constantinopla dos bizantinos.
Inicia a narrativa em termos messiânicos com dizeres do profeta Muhammad de que a
cidade certamente seria conquistada por "um comandante e um exército abençoados",
e mostra dificuldades e revezes encarados pelos otomanos antes da vitória final, que
ainda contou com benevolência do sultão ao receber cristãos derrotados como
súditos.
Trata de tema importante para os turcos de hoje - a tomada da mais importante
cidade do país, embora não mais sua capital -; para a história mundial - sua tomada de
mãos cristãs alterou rotas comerciais e impulsionou navegações que chegaram ao
Novo Mundo -; e também para os muçulmanos em geral, uma vez que mostra
engenhosidade e vitória, assim como tolerância, como características islâmicas.
Mistura ação com mensagem política e religiosa. Não parece fortuita, inclusive, a
decisão da companhia aérea Emirates em deixar tal filme, claramente turco, em
"Cinema Árabe" no "centro de entretenimento" de seus vôos.
O filme por um lado em muito agradou o primeiro ministro Erdoğan, que contou
com uma projeção especial antes do lançamento formal nos cinemas do país. Por
outro causou revolta na Grécia, Alemanha e Líbano em função da forma como os
8 Erdogan, the not-so magnificent. In: Latitude, International Herald Tribune, November 30,
2012. Why is Turkey's Prime Minister at War with a Soap Opera? In: Time, Dec. 26, 2012; Arabs soak up Turkish soap operas. In: Al-Monitor, Jan. 25, 2013. 9 Para o portal oficial do filme, com informações em inglês, ver:
www.1453fetih.com/eng/index.html
cristãos são retratados, assim como clamores por boicote. Não foram poucas as
acusações de racismo e "obscurecimento" de fatos históricos10.
Dois milhões e meio de turcos assistiram o filme na primeira semana em cartaz,
porém, e este segue sendo projetado em eventos importantes11. No último dia 29 de
maio, por ocasião dos festejos dos 560 anos da tomada de Constantinopla, lá estava
ele entre os eventos que tomaram conta da grande festa oficial feita às margens do
Chifre de Ouro12.
Observações Finais
O renovado interesse pelo Império Otomano foi um processo lento que ganhou
força para além do meio acadêmico no final dos anos 1990. A ascensão do AKP é
extremamente associada a este. O primeiro ministro Erdoğan e seus ministros
promoveram ativamente essa tendência.
Ocorre no momento uma luta entre legitimidades buscadas pelas elites secular
e religiosa, sobretudo, às vésperas de mudança que ocorrerá no texto constitucional
do país. Para a primeira, o Ocidente é essencialmente o norte e Atatürk e seu legado,
ainda as principais fontes. Para a segunda a nostalgia do Império Otomano é uma
forma de desafiar a elite pró-ocidental que surgiu durante os anos de Atatürk e ajuda a
formar uma identidade nacional da Turquia como líder regional ascendente.
"Otomania" é assim uma forma de "empoderamento" islâmico de uma nova burguesia
muçulmana que está reagindo a tentativa de Atatürk de jogar a religião e o Islã para
escanteio. Casa bem também com a renovada auto-estima em função de anos
recentes de boas condições econômicas. Por um lado, ocorre uma busca por
identidade em uma sociedade fortemente imiscuída na cultura europeia. Por outro
percebe-se uma burguesia recente crescentemente rica e curiosa sobre uma forma
aristocrática de vida.
Outros filmes e novelas, além dos aqui tratados, se dedicam ao tema, assim
como ocorre amplo movimento de "recuperar" a gastronomia otomana. Jóias, design e
decoração também são fortemente influenciados por seus motivos e estilos. Os turcos
de uma maneira geral, e talvez os istanbullus em especial, passam a considerar que
10
"Fetih 1453" continues to anger in Europe. In: Hürriyet Daily News, Ferbuary 7, 2012. 11
'Conquest' 1453 reaches more than 2mls viewers. In: Hurriyet Daily News, February 28, 2012. 12
Celebrations of Istanbul's conquest held on the Golden Horn. In: Sabah, May 30th 2013.
seu passado otomano não foi tão ruim como lhes disseram por tanto tempo. Passa a
lhes parecer magnífico.
Bibliografia
Ahmet Davutoğlu. Zero Problems in a New Era. In: Foreign Policy, March 21,
2013.
Caroline Finkel. Ottoman History: Whos history is it? In: International Journal of
Turkish Studies; 2008, Vol. 14 Issue 1/2.
Christopher S. Wilson. The persistence of the Turkish nation in the mausoleum
of Mustafa Kemal Atatürk. In: Mitchell Young, Eric Zuelow e Andreas Sturm (ed).
Nationalism in a Global Era. The persistence of nations. London & New York:
Routledge, 2007. p.82-103.
Lord Kinross. Ataturk: A biography of Mustafa Kemal, father of modern Turkey.
New York: William Morrow and Company, 1965.
Margaret Macmillan. The uses and abuses of history. London: Profile Books,
2010.
Ömer Taşpınar. Turkey: The New Model? April, 2012. In: www.brookings.edu.