-
"Universal Time" A estandardizao horria num mundo
globalizado*
Cada tempo inventa o seu tempo.O tempo uma criao social,
um produto da atividade humana, uma inveno cultural.
Octavio Ianni
Toute vie social exige un synchronisme minimal, un amnegement
commun des occupations,
de travail et des ftes...Jacques Attali
...time and space... became an organizing medium
of modernity's institutional dynamism.Anthony Giddens
Osvaldo Lpez Ruiz
Junio, 2000
* Texto publicado na revista Cultura Vozes, n. 6, v. 94, p.
168-191, nov./dez. 2000.
-
26-2
Introduo
Como seria a vida se existisse um s horrio mundial? Que
aconteceria se todos os
relgios do mundo marcassem a mesma hora? A questo da
estandardizao do horrio leva-nos
ao longo processo que, durante o sculo XIX, acabou regulando a
hora segundo uma norma
comum. Primeiro foi a adoo da hora nacional. Tempo depois, o
estabelecimento de um
meridiano base a partir do qual as horas nacionais foram
ajustadas dentro de um sistema global.
Assim foi definido, h pouco mais de cem anos, o tempo universal:
"Universal Time" (UT).
Naquela poca, o que motivou a padronizao horria foram as fortes
mudanas nas formas de
funcionamento e organizao da sociedade produzidas pela ecloso da
modernidade. Duas
revolues industriais tinham conseguido, com suas inovaes,
alterar a paisagem do mundo.
Para os habitantes da poca, o mundo de repente comprimia-se em
sua geografia e, ao mesmo
tempo, ampliavam-se as possibilidades de percorr-lo. Da, ficou
inevitvel a passagem do
horrio local ao nacional. Seria possvel pensar hoje no passo
seguinte, da hora nacional para a
hora global?
O propsito deste trabalho explorar se o processo de racionalizao
do tempo acabou no
sculo XIX, aps a aceitao do sistema de zonas horrias, ou se
continuar acompanhando as
transformaes sociais que esto acontecendo no comeo do sculo XXI.
Esto essas mudanas
prefigurando a construo efetiva da to anunciada cultura
global?
Apresentam-se a seguir algumas situaes que mostram as novas
dificuldades de
coordenao horria que surgem de uma nova "onda" de encolhimento
das distncias pela
extenso e ampliao das redes de informao-comunicao. Revisam-se,
logo depois, alguns
fatos da interessante e prolongada sucesso de mudanas que
acompanharam os primeiros
intentos de racionalizao horria no sculo XIX. Visa-se, a partir
deles, destacar as semelhanas
e diferenas que viriam com um novo avano na padronizao da hora
mundial, agora no j no
contexto de uma sociedade industrial mas de uma sociedade
informacional. Nesse sentido so
analisados alguns dos efeitos que essa unificao horria poderia
trazer para a organizao do
trabalho e das relaes sociais, assim como criao de uma
conscincia coletiva global. No
final, sero discutidas as conseqncias que, no plano social,
poderiam ocorrer ao se chegar a um
mximo de homogeneizao temporal com a instalao de um tempo pblico
uniforme. O
"Universal Time" representa o fim da dimenso heterognea e
privada do tempo, ou pelo
contrrio, permitiria reafirm-la?
-
26-3
Situaes
Existem cada vez mais canais de televiso. Invade a atmosfera
terrestre uma multido de
sinais satelitais. Capilarizam-se pelo espao areo das cidades
entrando por cabo em todos os
lares. cada vez mais difcil, porm, achar o que assistir. s
vezes, o problema a falta de
contedo. Entretanto, como que em mais de cem canais no h o que
assistir? Na realidade, a
sensao outra; possvel achar alguns programas atraentes mas
parece que se est sempre no
momento equivocado: duas horas antes ou vinte minutos depois no
do horrio local mas da
hora leste ou oeste dos Estados Unidos. A confuso aumenta com o
zapping num passe de
mgica passa-se para o mundo europeu. A sincronizao com a DW, a
RAI ou a BBC pode gerar
ainda maiores confuses. O que acaba acontecendo que o ato de
assistir televiso vira o fato de
assistir (s) a programao de televiso; a frustrao de estar sempre
antes ou depois do
acontecimento emitido conforme as horas locais das centrais
televisivas.
Mas essa experincia cotidiana de contato com o global reduzida
se comparada com o
que est acontecendo e que ainda est por acontecer no mundo do
trabalho. Imagine-se a
situao seguinte: um empregado de uma sucursal da empresa IBM em
qualquer cidade do
mundo deixa seu trabalho nessa firma e aceita uma proposta para
trabalhar na filial da NEC
japonesa da mesma cidade. Essa pessoa muda de lugar de trabalho
e comea a desenvolver suas
tarefas nos escritrios da nova empresa, a menos de 10 Km de onde
trabalhava at ento.
Quando entra na NEC, no entanto, solicitado que acerte seu
relgio conforme a hora de
Tquio. Deve deixar assim a "Eastern Hour" da central
nova-iorquina da IBM e ajustar seu
tempo de trabalho adiantando em 14 horas seu relgio para
ajustar-se hora japonesa.
Quanto de fico cientfica h hoje neste relato? Sem dvida um
pouco, mas bem menos
do que parece primeira vista. Existe na atualidade uma
necessidade crescente de desenvolver
trabalhos em conjunto entre as diferentes filiais. prtica comum
que pessoal de uma mesma
empresa espalhado pelo mundo esteja trabalhando num mesmo
projeto. Trabalhar em co-
presena virtual, longe de ser uma sofisticada extravagncia da
avanada tecnologia reservada
excepcionalidade de algum processo em particular e vai ser uma
forma de trabalho cada vez
mais generalizada. No se trata tanto de "trabalho de casa" que,
como demostram alguns estudos,
continuar reservado a bem poucas atividades e representar uma
nfima proporo do trabalho
em geral, mas do "teletrabalho"1. A partir de centros regionais,
as empresas j comeam a
1 Castells (1996: 394-395).
-
26-4
sincronizar seus processos e desenvolver suas tarefas em forma
conjunta entre a central e os
centros locais. Como coordenar os trabalhos em tempo real? Como
ajustar o "face a face" atravs
da rede? Como tornar possvel a presena real dos trabalhadores em
linha, a uma mesma hora
todos os dias?... A que hora?
Essa situao de "caos horrio" na verdade no nova, registra
antecedentes histricos
muito ilustrativos. Jacques Attali em sua Histoires du temps
conta que nos Estados Unidos, na
segunda metade do sculo XIX, cada companhia de estrada de ferro
tinha sua prpria hora
baseada na hora da cidade principal de cada ferrovia. A hora
determinada por cada uma das
empresas diferia da hora local das cidades pelas quais o trem
passava e ainda mais em relao da
hora adotada por outras linhas que tinham outras cidades como
centro. Foi preciso publicar
tabelas de converso entre as principais estaes e as outras redes
de ferrovias do pas. Assim,
passar de uma companhia para outra exigia modificar a hora do
relgio prprio e compor
vrios volumes.2
Conforme pode ser visto, existe o precedente das empresas
estabelecendo sua prpria
hora e coordenando suas atividades segundo um horrio por elas
decidido. Esse horrio era
fixado com a necessria independncia da hora local dos postos de
trabalho, ou seja, de cada
uma das estaes e dependncias da ferrovia ao longo do trajeto. A
novidade no ento que
transnacionais como IBM o NEC decidam tomar como referncia a
hora de suas matrizes devido
demanda de coordenao do trabalho entre suas filiais. O
verdadeiramente novo que
trabalhadores, como aquele hipotetizamos antes, devam ajustar a
hora de seus relgios sem nem
sequer trocar de empresa ou de lugar de trabalho dentro dela.
Ento, voltando para a alegoria
apresentada: algum tempo depois de haver comeado a trabalhar na
transnacional japonesa,
nosso personagem impelido a acertar novamente seu relgio (agora
atrasando-o em nove horas)
para ficar em sincronia com a nova casa matriz por exemplo, a
central da Deutsche Telekom.
No entanto, o problema da sincronizao afeta tambm outras
atividades. No mundo das
finanas apresentam-se muitas dificuldades na coordenao das
operaes dos diferentes
mercados. Jean Chesneaux, descrevendo as caratersticas da
modernidade, salientava h mais de
dez anos que:
As operaes da City londrina comeam s 4:30hs. da manh (hora local
de NovaYork) e so suspensas s 11hs. Wall Street abre duas horas
antes, s 9hs. local time e fecha s 2 Attali (1982: 236). Kern
documenta que em 1870, s nos Estados Unidos, havia cerca de 80
horas diferentes nasferrovias (1983: 12).
-
26-5
17hs. Tquio a substitui a partir das 16:30hs. at 1h. da manh
(sempre segundo a hora deNova York), e seguido por Bahrein que abre
meia-noite e fecha s 6hs. quando a "City" jretomou suas atividades
h 90 minutos. Que Bahrein seja assim investida de uma funo
de"intervalo" indispensvel para assegurar a continuidade das cotaes
da Bolsa reflete o pesoquase que decisivo que possui nas
consideraes globais; a opulncia dos petrlares somenteno lhe poderia
trazer essa investidura...
Arrastado pela sucesso de fusos horrios e pela interconexo dos
computadores, omercado financeiro mundial funciona as 24 horas do
dia em instantnea onipresena, e amesma interdependncia mundializada
carateriza toda a vida econmica da modernidade.3
Nas ltimas dcadas, este panorama s se aprofundou. O volume da
riqueza financeira
multiplicou-se por trs de 1983 a 1989.4 Nos anos noventa, a
partir de uma maior abertura e
flexibilizao dos mercados, mas tambm pelos avanos tecnolgicos
que permitiram agilizar e
multiplicar as transaes, a riqueza financeira tem crescido de
forma antes inimaginvel. H j
algum tempo, ante a explosiva variedade de produtos financeiros
que comeava a surgir, o
presidente do City Bank falando de como haveria de ser o banco
do ano 2000, diagnosticava que
este deveria virar um "supermercado de produtos financeiros".
Aconteceu uma proliferao de
possibilidades de inverso combinando carteiras de todo tipo e
grau de risco que eram
inimaginveis h uma dcada. Soma-se a esse quadro um nmero
crescente de investidores
particulares que operam diretamente, atravs da Internet, em
mercados de valores como o
"Nasdaq", a bolsa eletrnica, onde so cotados os ttulos das
empresas de alta tecnologia.5
Com o ritmo e magnitude alcanado pelas transaes na atualidade,
onde so negociadas
a cada dia quantidades to altas que s vezes superam os oramentos
de vrios pases, a pergunta
que se coloca se o grande (super) mercado financeiro pode parar.
Sem dvida, a necessidade de
trabalhar as 24 horas do dia "em instantnea onipresena", como
era mostrado por Chesneaux,
hoje muito maior que h uma dcada. Os processos foram agilizados
grandemente e as
necessidades de coordenao so portanto maiores. Mas tambm so
maiores as dificuldades que
oferece o atual sistema de bolsas de valores, ainda dependendo
da alternncia dos centros
conforme a sada ou ao por do sol em cada uma de suas cidades. O
que aparece cada vez com
mais clareza a necessidade de que esse "supermercado" trabalhe
tambm as 24 horas em cada
3 Chesneaux (1989: 63-64).4 Turner (1991: 52), Franois Chesnais
(1994).5 J em 1994 o Nasdaq, que tem mais de 500.000 terminais de
computador interligados simultaneamente no mundotodo, ultrapassava
a Bolsa de Nova York em volume de aes negociadas. Em 1998 o valor
em dlares norte-americanos comerciados no Nasdaq atingiu 5800
bilhes de dlares, com um volume mdio dirio de 802 milhes.Fonte:
"Nasdaq, History and Timeline" em
http://www.nasdaq.com/about/timeline.stm
-
26-6
uma de suas "filiais" e possa encontrar todas elas bem
sincronizadas, operando no como
mercados independentes mas como partes de um nico mercado
global.
Analisando os exemplos aqui tratados, pode com razo ser colocado
que a necessidade de
sincronizao horria s afeta aos setores da avanada: as empresas
de alta tecnologia, a
produo das industrias culturais e aos mercados financeiros na
economia. Mas, at que ponto
esses setores so representativos de uma tendncia real para
outras prticas sociais na atualidade?
No 25 de fevereiro de 1999 publicava-se sobre o projeto de
Internet de alta velocidade
conhecido como "Internet2", que:
A rede mostrou a que veio ontem, quarta-feira (24), quando foi
realizada a primeiracirurgia com a ajuda da veloz rede de fibra
tica de 2,4 Gigabits por segundo. A vesculabiliar de um paciente
internado no hospital da Universidade Pblica de Ohio foi retirada
coma assessoria de um mdico na cidade de Washington, a milhares de
quilmetros de distncia.6
Essa nova rede ultraveloz encontra-se j em construo. Ela tem a
capacidade de
transmitir entre 100 e 1000 vezes mais rpido que a Internet
atual. Est sendo desenvolvida no
mbito universitrio norte-americano como o foi sua predecessora e
estar dedicada, num
primeiro momento, a atividades como a tele-medicina e a
tele-educao. No entanto, pode se
prever que num futuro prximo poder ser usada em tarefas to
diversas como dar apoio nas
atividades agrcolas ou acessar bibliotecas digitais, que podero
enviar os quase 30 volumes da
Enciclopdia Britnica em menos de 2 segundos. Essa inusitada
velocidade de transmisso
revolucionar praticamente todos os afazeres sociais de maneira
difcil de se imaginar a partir
das "rudimentrias" condies presentes. O que est sendo
considerado ainda possibilidades
futuras, contudo, trata-se de um futuro que absolutamente
eminente e que j parte do
cotidiano no s nos Estados Unidos. A menos de um ano da
experincia inicial naquele pas,
pode se ler no Brasil:
Uma aula distncia, com interatividade entre professores e alunos
e umavideoconferncia, marcou a operao, em carter experimental, da
Internet2 na regio deCampinas.7
Alm da cidade de Campinas, que est com sua rede metropolitana
pronta, a AdvancedANSP [Advance Academic Network So Paulo] pretende
criar um backbone capaz de alcanaras cidades de Piracicaba, Rio
Claro, So Carlos, Araraquara, Ribeiro Preto, Bauru, So Josdo Rio
Preto, So Jos dos Campos e Cachoeira Paulista. "A experincia com a
cidade de 6 "Internet2 mostra a que veio j no primeiro dia" en UOL,
Info On line Quinta-feira, 25 de fevereiro de
1999(http://www2.uol.com.br/info/infonews/021999/25021999-16.shl).7
"Equipe da Unicamp rene 50 pessoas", Silvia Simas. So Paulo, Gazeta
Mercantil, 21.12.99.
-
26-7
Campinas nos d condies de ampliar a ANSP2. Pretendemos iniciar o
segundo semestre de2000 com todas as cidades interligadas", afirma
Glaser...8
A criao da Rede Metropolitana de Alta Velocidade de So Paulo
(RMAV-SP)consolida a infra-estrutura de comunicao entre o Instituto
do Corao do Hospital dasClnicas (Incor) e o Hospital So Paulo, da
Unifesp, os primeiros centros hospitalaresinterligados pela
rede.9
Quanto tempo levar para que a Internet2 vire o padro hoje uma
previso difcil de
fazer. Mas ainda muito arriscado imaginar em quanto podem mudar
as prticas sociais na hora
que se dispor, para todos os usos, de uma velocidade de
transmisso mil vezes maior que a
conhecida na atualidade. Da mesma forma, no comeo do sculo XIX,
no deve ter sido nada
fcil predizer como ia se ver o mundo poucos anos depois, quando
a velocidade dos transportes
aumentou umas 6 ou 7 vezes, passando dos 16 Km/h. dos carruagens
a cavalo aos 100 das
locomotivas a vapor.10 As predies que hoje podem ser feitas so
relativas. Entretanto, partindo
do fato que essas tecnologias existem j e esto funcionando,
lgico pensar em sua difuso
num prazo curto para as diferentes atividades e para um nmero
crescente de habitantes do
planeta.
Isto parece indicar que novos conflitos com a determinao da hora
surgiro. No caso de
uma cirurgia na qual tenham que participar especialistas que
estejam fisicamente em diferentes
cidades do mundo, a hora da operao ser fixada segundo o horrio
local do hospital onde esteja
o paciente, ou segundo o horrio do hospital em que se encontre o
cirurgio? claro que o
problema no a coordenao do horrio de uma operao piloto. Nesses
casos obvio que pode
se marcar com antecedncia uma hora de encontro: "esta cirurgia,
primeira em seu tipo, ser
realizada as 8 a.m. hora do Oeste canadense por encontrar-se em
Vancouver o cirurgio
principal sendo as 13 horas em Recife onde est o paciente a ser
transplantado, e as 2 da manh
do dia seguinte em Sidney onde mora outro dos especialistas." O
conflito na coordenao
surgir com a conformao de equipes de trabalho que regularmente
trabalhem juntos e nos
quais os membros morem em diferentes partes do mundo, seja isso
por outras obrigaes
laborais, por necessidades ou referencias familiares. As
diversas horas locais no s dificultaro
a coordenao entre as pessoas, mas tambm a interao dos aparelhos
eletrnicos a serem
8 "Brasil na era da Internet2", Ediane Tiago. So Paulo, Gazeta
Mercantil, 21.12.99.9 " Cirurgia atravs do Computador", Chistiane
Hato. So Paulo, Gazeta Mercantil, 21.12.99.10 David Harvey
apresenta uma sugestiva ilustrao do encolhimento do mapa do mundo
pela inovao nostransportes entre 1500 e 1960-70.
-
26-8
utilizados; cada um deles com seus relgios a horas diferentes e,
eventualmente, at com outra
data.
Olhando para trs: o que acontecia no sculo XIX
As dificuldades surgidas pela existncia de mltiplos horrios leva
a pensar no que
acontecia na segunda metade do sculo XIX. Henry Ford, recordando
seus anos de
aprendizagem, conta na sua autobiografia:
Tinha gosto para os trabalhos de preciso, relojoaria sobretudo,
e comecei a trabalhar noite em concertos numa joalheria... Isto foi
na poca em que se procurava determinar a horaregulamentar das
estradas de ferro. At essa data elas se guiavam pelas horas solares
e pormuito tempo, tal que hoje nos dias de escassez de luz, as
horas das estradas de ferro diferiamdas horas locais. Isto me
preocupava, e consegui fazer um relgio que marcavasimultaneamente
as duas horas. Possua dois mostradores e tornou-se um motivo
decuriosidade para nossa vizinhana.11
O sculo XIX foi um perodo excepcional na histria no qual a
modernidade desenvolveu
toda sua potncia transformadora. Com a apario e a difuso de
novas tecnologias como as
ferrovias, o telgrafo, as transmisses radiais e o telefone, a
fisionomia do mundo modificou-se
rapidamente assim como abalou-se a vida cotidiana das pessoas,
que tiveram que acabar se
adaptando as novas possibilidades que vinham com essas mudanas
tecnolgicas. Tambm e da
mesma maneira, produziram-se desajustes nos modos de perceber o
tempo e o espao em relao
aos tradicionais. Foi preciso, como narra Ford, comear a se
manejar como outros horrios alm
do local. Com as ferrovias nasceu a viagem como prtica social
nova e com sentido muito
diferente do que tinha at ento. O trem facilitava grandemente os
deslocamentos, da que
comeou a ser possvel pensar em "viagens de passeio": visitas a
parentes em lugares distantes,
ou o inusitado hbito de tirar frias. Ainda mais, uma febre pela
literatura de viagens excitou o
imaginrio, mesmo de quem no saia do lugar, mas que podia pensar
a viagem como coisa
possvel. No casual que em 1873 fosse publicado o clebre romance
de Verne A volta ao
mundo em oitenta dias.
Com as alteraes nas percepes do espao e a distncia foram-se
transformando os
hbitos e os costumes, at esse momento centrados na localidade na
qual vivia-se. O problema
que se apresentou no foi simplesmente a necessidade de trocar a
hora quando viajava-se a outra
11 Ford (1954: 30).
-
26-9
localidade. O verdadeiramente perturbador foi a intromisso de
outra temporalidade no lugar
prprio. A estrada de ferro trouxe consigo outra hora, diferente
da hora local. Como j foi dito,
tratava-se da hora da cidade na qual se encontrava a estao
principal da ferrovia em questo.
Dessa forma, as localidades pelas que o trem passava tiveram que
se acostumar a ter, alm do
horrio local, o da estao ou das estaes, se eram cruzadas por
mais de uma estrada de ferro.
O tempo no era j um s. Tambm no era determinado unilateralmente
pelo sol quando
chegava a sua altura mxima em cada lugar. O lugar no gozava mais
dos privilgios da
autonomia e da particularidade do distante. Havia sido
atravessado por outras dimenses, por
outros tempos e outros espaos e no podia j voltar a ser o
mesmo.
Interessa resgatar o acontecido no sculo XIX porque, em boa
medida, essa convivncia
do local com dois ou mais horrios reaparece novamente na
atualidade. Existe hoje no s a
possibilidade generalizada de maiores deslocamentos fsicos e
mentais como podem-se
experimentar quotidianamente viajando ou assistindo ao jornal na
televiso, mas tambm torna-
se manifesta a ingerncia de outros horrios "extra-territoriais",
para dar-lhes algum nome, nas
prticas do dia a dia. Quando as atividades so planejadas
conforme a hora de emisso de um
programa transmitido desde o outro "canto" do mundo ou, ainda
mais, quando preciso ajustar o
cronograma de trabalho para que seja possvel trabalhar com
pessoas que esto disseminadas
pelo planeta todo, o que se produz uma efetiva intromisso de uma
outra temporalidade na
prpria; ou, o que no to diferente: a paulatina desapario dos
tempos locais em funo de
um tempo unificado e global.
No sculo XIX, com as ferrovias, o telgrafo e depois com o
telefone aproximando as
localidades e economizando tempo, a variao das horas tornou-se
intolervel.12 A sociedade
civil comeou a pressionar seus estados para que fosse tomada
alguma medida que resolvera a
crescente confuso nos horrios. Era cada vez mais imprescindvel
coordenar atividades e
processos. Manejar mltiplas horas "locais" e tabelas de converso
ia ficando insustentvel.
traduzvel esta situao aos tempos e as tecnologias atuais? O
processo de racionalizao do
tempo parece continuar ao ritmo das novas prticas sociais de
nossa poca. Est-se frente
necessidade de uma nova instncia de padronizao da hora?
12 Ortiz (1991: 237) da exemplos claros de como isso era vivido
na sociedade francesa.
-
26-10
Faz pouco mais de cem anos, Sandford Fleming, engenheiro das
ferrovias canadenses e
autor do que depois virasse o esquema internacionalmente aceito
de padronizao horria, dizia
justificando-a:
O uso do telgrafo "sujeita toda a superfcie do globo observao
das comunidadescivilizadas e no deixa intervalos de tempo entre
lugares muito longnquos proporcionalmente distncia que os separa."
Este sistema confunde o dia e a noite porque "o meio-dia, a
meia-noite, a sada ou o pr do sol so todos observados no mesmo
momento" e "o domingorealmente comea no meio do sbado e dura at a
metade da segunda-feira." Cada evento podeacontecer em dois meses
diferentes ou inclusive em dois anos diferentes... O sistema
vigente...vai a levar a incontveis problemas polticos, econmicos,
cientficos e legais que s a adoodo sistema coordenado mundialmente
pode prevenir.13
Quo perto volta-se a estar de tudo isso? Sero precisos, conforme
avance o sculo XXI,
relgios como aquele inventado por Ford, no para mostrar a hora
local e da ferrovia mas a hora
nacional e a de cada um dos centros das redes globais?
Em 1875 reuniu-se o Congresso Internacional de Geografia. Uns
dos problemas mais
importantes em discusso era a eleio de um meridiano de base que
servisse como ponto de
referencia para o horrio dos trens do mundo todo. As redes de
ferrovias transpassavam j, nessa
poca, as fronteiras nacionais e acumulavam-se ento dois
problemas: o primeiro era as
diferenas horrias entre as diversas localidades de um mesmo pas
e o horrio da estrada de
ferro (o qual, por exemplo na Inglaterra, havia sido j resolvido
uniformizando-os); o segundo
era a coordenao dos horrios entre os diferentes pases e regies.
Naqueles anos de construo
e reafirmao da nao, era poltica de cada Estado a unificao, sob
uma hora nacional, de todo
seu territrio. Essa hora seria a do principal observatrio de
cada pas. Na prtica, isso demorou
muito a se generalizar e as localidades continuaram usando sua
hora local. Mas tambm, a
pretendida hora nacional, por estar fundada no tempo solar do
lugar de cada observatrio
nacional, diferia da de os outros pases em horas minutos e
segundos. A confuso era muito
grande e a coordenao das ferrovias em aquelas condies deve ter
sido um oficio reservado s
para verdadeiros especialistas. Nesse contexto, o engenheiro
ferrovirio Sandford Fleming
props eleger um meridiano de base como ponto de referncia do
horrio para todo os trens do
mundo e alm disso sugeriu a utilidade de impor uma hora uniforme
para o mundo todo:
13 Citado por Kern (1983: 11-12) a partir do artigo de Sandford
Fleming, "Time-Reckoning for the TwentiethCentury" do Smithsonian
Report de 1886.
-
26-11
O tempo evidentemente nico em todo o universo, e a idia da hora
universal, nodeveria ser posta em questo, a pesar de que ela est em
conflito direito com nossas idiaspreconcebidas e nossos hbitos
mentais.14
A soluo mais prtica para o problema da coordenao horria naquela
poca haveria
sido a adoo de uma hora universal, mas como o prprio Fleming
reconhece, os costumes e
hbitos mentais dos que recentemente haviam visto invadida sua
isolada solido local no iam se
adaptar facilmente. A sada para esta situao foi a inveno de uma
engenhosa fico que
intermediava entre um horrio local (ou nacional) e um nico
horrio mundial mas ainda,
constituiu uma baliza fundamental no processo de esvaziamento do
tempo de sua identidade
local. Foi proposta a diviso do mundo em 24 zonas horrias
homogneas (de 15 de longitude e
uma hora de diferena cada uma) a partir de um meridiano aceito
como base comum. A hora
no dependeria j nem do horrio verdadeiro do nascimento e o pr do
sol em cada localidade
(como tinha sido at aproximadamente 1820) nem do tempo solar
meio, conveno calculada por
os astrnomos baseando-se em um sol imaginrio que se movia
uniformemente durante todo o
ano em cada lugar. Tambm no da hora nacional medida desde o
principal observatrio de cada
pas e imposta por lei como a hora corrente para todo o territrio
da nao. Agora a nao devia
se adaptar a uma retcula que cobria o globo terrqueo em conjunto
e que determinava que lugar
horrio correspondia-lhe a cada pas dentro de um sistema mundial.
Porm, o Sistema de Fusos
Horrios, a genial proposta de Fleming, demorou ainda vrios anos
na sua instaurao e mais
inclusive em ser aceito pela maioria dos pases do mundo.
Enquanto isso, continuavam as situaes que mostram as
dificuldades surgidas pela falta
de racionalizao horria. Em cidades que eram ns de vrias redes de
ferrovias como Pittsburg
nos Estados Unidos, conviviam seis padres horrios para a partida
e a chegada dos trens. A
intromisso no espao local de outras temporalidades chegava at o
ponto de que, sem sair da
cidade prpria, poderia se conviver nela com seis horrios
diferentes! Para quem viajava, a
situao de confuso temporal crescia ainda mais. Diz-se de quem
fazia o percurso de
Washington a So Francisco por volta de 1870 que, se colocava em
hora seu relgio em cada
cidade a que ia chegando, deveria ajust-lo umas duzentas vezes.
Na Europa, alem de os pases
serem menos estendidos em latitude que os Estados Unidos e
Canad, as dificuldades no eram
menores. Na Frana, por exemplo, um empregado das ferrovias
ficava encarregado de descer do
trem e ajustar os relgios em cada uma das estaes pelas que o
trem passava; isso quando j
tinha sido decidido que a linha da ferrovia impunha a seu passo
a hora local de sua central em
14 Attali (1982: 238).
-
26-12
Rouen ou em Paris. Entretanto as dificuldades no s limitavam-se
as ferrovias. Noutras
atividades geravam-se da mesma forma conflitos, por exemplo, nos
processos judicirios ou nas
eleies parlamentrias. Ilustrando uma dessas situaes, Whitrow
narra o acontecido em 1858
em Dorchester, Gr Bretanha onde um juiz encerrou um processo
ditando sentena por no
comparecer o acusado na hora estabelecida pelo tribunal. No
entanto, seu advogado defensor
apelou o veredicto argumentando que o caso foi encerrado antes
da hora estabelecida. A deciso
do juiz foi anulada porque foi decidido que era o horrio local o
que devia estar vigente e no o
do relgio do tribunal ajustado como a hora de Greenwich, e por
isso, alguns minutos adiantado
em relao a hora de Dorchester. Esta sentena do tribunal superior
sentou jurisprudncia e
privilegiou o horrio local nos processos em Gr Bretanha at
1880.15
No entanto, curioso observar que a hora do Observatrio Real de
Greenwich, como
hora oficial para todo o territrio britnico, havia sido adotada
realmente em 1811. A pretenso
de consolidar a unidade nacional estabelecendo um horrio comum
(em correlao com as
necessidades histrico-polticas e sociais da poca) adiantou-se s
possibilidades tcnicas
existentes. Esta deciso resultou uma fico impossvel de por em
prtica devido a basicamente
um nico problema: a distribuio do tempo. At a inveno e
implementao do telgrafo, que
ainda demoraria em aparecer alguns anos, no existia modo para
distribuir a hora de Greenwich
por todo o territrio ou, em outras palavras, no haviam ainda
condies para a simultaneidade
fora do espao local. Na dcada de 1820, a Standard Time Company
construi um telgrafo
eltrico que permitia ajustar a hora dos pndulos das grandes
cidades inglesas em relao do
Observatrio Real. Mesmo assim, faltaria ainda um bom tempo para
que a hora, da mo das
novas tecnologias, fosse levada aos mais recnditos cantos do
Reino e conseguisse amalgam-los
em uma hora efetivamente nacional.
importante salientar que a racionalizao horria implicou dois
processos que, em
parte, foram sobrepostos. Houve um momento primeiro de abstrao
do tempo das significaes
locais que unificou a hora ao nvel da nao, e um segundo momento
mas que em muitos casos
foi ao mesmo tempo em que aceitou-se um meridiano de base comum
para o mundo todo. A
partir desse meridiano coordena-se a hora local (quando "local"
j significava "nacional") com a
dos outros pases. Dessa forma, entra-se ao sistema coordenado
mundial da mo de uma hora
nacional. Completa-se assim, durante o sculo XIX, o processo de
"esvaziamento" temporal que
carateriza a modernidade. Instituiu-se primeiro um "tempo
oficial" como tempo legtimo do
15 Whitrow (1988: 181, 185-186), Kern (1983: 12), Attali (1982:
236).
-
26-13
Estado-Nao e logo depois homologaram-se os calendrios e
padronizaram-se os horrios para
construir um "tempo pblico universal".16 Como foi j salientado,
desde a construo do sistema
ferrovirio e a conseqente necessidade de coordenao dos
deslocamentos, a aceitao dos
horrios locais como mtodo de medio do tempo foi ficando
insuficiente para determinar o
ritmo da sociedade industrial. Foi preciso que uma nova conveno
efetivasse e essa foi a
unificao dos horrios.17
Da Revoluo Industrial Revoluo Informacional
Voltando para a poca atual, bom se perguntar se continuar sendo
til a conveno
aceita, h mais de um sculo, de unificao dos horrios pela adoo do
sistema de Fusos
Horrios. Naquela ocasio, essa deciso permitiu passar da
necessidade de acordos permanentes
para a coordenao de infinidade de horrios locais (o pessoal das
companhias de estradas de
ferro tinham que se reunir ao menos dois vezes ao ano) a uma
coordenao racional dos horrios
comum e por todos aceita. O sistema idealizado por Fleming foi,
como j foi dito, um ponto
intermedirio apropriado entre a necessidade imperativa da
sociedade industrial de unificao da
hora e a manuteno da rtmica cotidiana gravada nos usos e os
costumes de cada lugar.
Entretanto, essa ainda a situao de uma sociedade que tem sado de
uma fase de
desenvolvimento industrial e entrado numa etapa de "Revoluo
Informacional"?18
Hoje, as tecnologias da informao-comunicao entram no espao local
com suas
mltiplas temporalidades afetando e transformando as prticas
sociais. Elas produzem alteraes
tanto ou mais significativas que as experimentadas com a chegada
das ferrovias a meados do
sculo XIX, irrompendo em cada localidade com o tempo de um outro
lugar. Alm disso, como
foi visto, as tecnologias atualmente em desenvolvimento prometem
trazer, ainda como "melhor
resoluo", o tempo de suas redes, influenciando assim a vida
quotidiana muito mais
profundamente. A ferrovia obrigava a levar em conta uma hora
diferente da do lugar, exigia a
tomada de conscincia da existncia de uma outra temporalidade e,
s vezes e s para algumas
atividades os indivduos tinham que trocar de horrio. Na
atualidade, as tecnologias
16 Giddens (1994), Diaz Isenrath (1999). Ao respeito deste
processo Attali (1982:237) diz: "Se tem alguma data deimportante na
historia do tempo essa foi a da unificao mundial da hora, nos
Tempos precedentes no havia sidonunca possvel nem havia se tido
necessidade de impor a unificao dos calendrios sob uma tal
extenso."17 Ortiz (1991: 235).18 Castells (1996, 1997, 1998).
-
26-14
informacionais esto conseguindo que a vida seja vivida numa
temporalidade distinta da do
lugar. No so s ocasionais "ajustes do relgio"; hoje vive-se
imerso num tempo-espao
desenhado a medida (em parte por cada pessoa, em parte pelo
sistema), no qual combinam-se
mltiplas temporalidades, ou melhor, cria-se uma temporalidade
prpria.
Com o passo do paradigma industrial ao paradigma informacional,
o espao de fluxos das
redes de informao-comunicao torna-se a base material, as
"ferrovias", das atuais prticas
sociais dominantes.19 Sem dvida, essas no so nem sero as nicas
prticas existentes. No so
todos que trabalham interatuando quotidianamente atravs da rede;
nem todos os que o faam
vivero somente nessa dimenso espao temporal. Porm, apesar de no
serem as nicas prticas
sociais, pode se esperar que por serem as dominantes, configurem
a nova realidade social de um
mundo efetivamente mais globalizado do que hoje conhecemos.
Nele, sem dvida, ser
necessrio negociar novos acordos entre o local e o global, entre
a famlia e o trabalho, entre o
trabalho e a diverso.
Embora as prticas dominantes atuais estejam montadas sobre as
redes de informao
como estiveram no mundo industrial sobre as redes ferrovirias,
aqui a analogia encontra seu
limite: o sistema ferrovirio impulsou a coordenao dos
deslocamentos enquanto que o sistema
de redes de informao impe a coordenao das localidades. Essa uma
diferena fundamental
que permite apreciar quanto mais intensas so e sobre tudo sero
as transformaes do social.
Ingressa-se num mundo no qual no haver mais a necessidade de
translados; ser possvel se
comunicar a todas partes estando sempre no mesmo lugar. Trata-se
mesmo da distino entre
viajar e operar no computador: a viagem poderia ficar relegada
atividades recreativas ou a
encontros de excepcional importncia. Isso no significa que no
haver deslocamentos; a
tentativa que, pelo contrrio, tanto dentro como fora das
cidades, a mobilidade continue se
intensificando; no entanto o que muda o sentido dos
deslocamentos. Em termos mais tericos
pode ser postulada a hiptese de que entra-se numa etapa de
sincronizao das prticas globais e,
por sua vez, de desincronizao das locais. Essa sim uma diferena
significativa em relao
Revoluo Industrial.
Nessas condies, legtimo pensar numa futura abolio do Sistema de
Fusos Horrios,
o que transformaria o mundo numa grande e nica zona horria, um
nico lugar regido pela
19 As prticas sociais dominantes, conforme o sentido dado por
Castells (op. cit.), so as que esto inseridas nasestruturas sociais
dominantes, o seja, aqueles arranjos de organizaes e instituies
cuja lgica interna joga umpapel estratgico na configurao dessas
prticas sociais e da conscincia da sociedade em geral.
-
26-15
mesma hora. Que ficaria diferente com a padronizao do "Universal
Time" (UT) como o nico
horrio mundial? Formalmente mudaria s o modo de nomear as horas,
ou melhor, o sentido
denotado e conotado pelo "nome" de cada hora. O sol deixaria de
sair em todos os lugares mais
ou menos s "seis" para aparecer em alguns s "trs" e em outros s
"vinte e trs"; porm, cada
dia, cada ms e cada ano comeariam num mesmo momento para todos e
no mundo todo.
O "presente global"
Resultou um pouco absurdo constatar recentemente que o mundo no
entrava no novo
milnio, mas que "ia entrando". Isto, obviamente, se aceito como
o foi em geral que o
milnio j mudou e que no o far na verdade no prximo reveilln.
Vale a pena voltar ento ao
dito por Sandford Fleming no Smithsonian Report de 1886: "o
domingo realmente comea no
meio do sbado e dura at a metade da segunda feira.." Cada evento
pode acontecer em dois
meses diferentes ou inclusive em anos diferentes... Ao passar do
31 de dezembro de 1999 ao 1
de janeiro de 2000, teve-se o estranho e certamente disparatado
privilgio de ficar
simultaneamente em dois milnios; num fisicamente e no outro (o
milnio anterior ou posterior,
dependendo onde se estivesse ou a hora que fosse) pela televiso.
O Sistema de Fusos Horrios
mostrou finalmente suas limitaes e a mudana do milnio, como um
paradoxos do destino num
mundo que se diz globalizado, teve que obedecer aos tempos
locais. Dessa forma, a mudana do
milnio aconteceu em uma espcie de "eterno presente" que durou 24
horas. A transmisso
televisiva mostrou ento "ao vivo" o que acontecia nos 24 fusos
horrios. Para muitos, aquela foi
uma surpreendente experincia de dilao do tempo; para outros, a
toma da conscincia pessoal
da existncia de outras temporalidades no mundo e, para a
indstria do entretenimento, uma
excelente oportunidade de capturar audincia. Com a adoo
generalizada do UT, ou seja, com a
padronizao do horrio mundial sob o tempo universal, a situao
teria sido diferente. A
mudana haveria acontecido, como era lgico esperar, num instante.
O mundo entraria (todo ele)
no novo milnio; e, para mostrar como foram as celebraes em cada
lugar haveria sido preciso
apelar indefectivelmente ao passado... lembrar.
Em clave terica pode se dizer que na atualidade o presente
estendeu-se espacialmente
at abraar o globo; transformou-se num "presente global", como
afirma Barbara Adam.20 A
autora no prope exatamente a necessidade de tipo "tcnica" de
ajustar todos os relgios do
-
26-16
mundo numa mesma hora. No entanto, segundo ela, a idia dum
presente global enfatiza a
vivncia crescentemente compartilhada de que os habitantes do
mundo encontram-se num
mesmo tempo comum a todos. Assim, o presente social converteu-se
num "presente global", e
isso foi possvel pela capacidade se simultaneidade global
alcanada atravs das novas
tecnologias. Adam salienta que:
"A existncia de tal presente global significa no meramente que
as reunies de negciospodem acontecer entre pessoas em Bangkok, Bonn
e Boston sem que nenhum dos participantesprecise deixar sua
escrivaninha. Significa tambm que os eventos numa parte do mundo
podemter efeitos quase instantneos do outro lado do planeta e suas
ressonncias atravs de toda arede. Alm disso, estes processos esto
em grande medida fora do controle de quem estoenvolvidos
direitamente neles porque a combinao da instantaneidade da
comunicao com asimultaneidade das relaes mantidas pela rede, no
funciona j sob os princpios do tempo dorelgio e da interao
mecnica."21
A existncia de um presente global implica efeitos instantneos e
esses efeitos
instantneos precisam serem regulados, planificados e coordenados
com outra dinmica,
diferente da que serviu sociedade durante os ltimos cem anos. A
modernidade significou e
significa profundas transformaes sociais. A dimenso do tempo e
do espao no ho ficado
fora de seu influxo, escapando primeiro de seu carter
eminentemente local e agora, de uma
memria construda predominantemente em torno do nacional. Nem o
local nem o nacional
desaparecem; mudam sim o princpio estrutural que articula as
relaes entre essas dimenses e
o global. A modernidade segue seu curso e o mundo torna-se uma
unidade, no somente em
termos polticos e econmicos mas tambm termos de construo
cultural.
H quase uma dcada, Renato Ortiz perguntava-se se a consolidao de
um world system
no implica na construo de um universo cultural correspondente. A
partir da definio de
civilizao de Marcel Mauss, entendida como um complexo
sociocultural que contm em seu
interior um conjunto de fenmenos sociais comuns a diversas
sociedades, Ortiz coloca a
pergunta de se na medida que a rea de interao entre os homens
abrange o globo como um
todo, no estaremos diante de uma "civilizao" mundial. Ele
dizia,
Quero argumentar que o espao e o tempo da modernidade no
conhecem fronteiras;eles se baseiam em princpios como circulao,
racionalidade, funcionalidade, sistema,desempenho. Neste sentido
diferem da noo de espao e de tempo da memria nacional.Enquanto esta
ltima se restringe ao mbito das sociedades especficas, ou para
falar comoMauss, s "civilizaes nacionais", a modernidade envolve
uma rea geogrfica extra-
20 Adam (1995a), Adam(1995b).21 Adam (1995a): 113).
-
26-17
fronteiras. Ela inaugura um tipo de civilizao que nos anos
vindouros ir se transformar numacultura mundial.22
Hoje, num contexto em que a cultura mundial e a existncia de um
"presente global" so
realidades cada vez mais prximas, pode se esperar que a
modernidade se desvie de seus
princpios de circulao, racionalidade, funcionalidade, desempenho
e sistema para adaptar-se ao
tempo "verdadeiro" do lugar, o horrio da sada e do pr do sol?
Continuaro prevalecendo os
tempos locais quando as prticas dominantes so crescentemente
globais? Entretanto, no
somente trata-se aqui do carter impositivo que possam ter
algumas das prticas ou o alto
desempenho das tecnologias nas que se apiam, mas a idia de que
vivemos num presente global
conexa ao conceito de "sociedade de risco".23 Nesta linha de
pensamento trata-se obviamente
no do risco de uma sociedade em particular mas dos riscos da
humanidade como conjunto.
Diante dessa perspetiva, a idia de compartilhamos um presente
com o resto da humanidade
toma fora quando amplia-se a conscincia de que indefectivelmente
vai haver um "futuro
global" para todos, alm da colocao, a nacionalidade, as posies
polticas ou o tempo que
marquem os relgios em cada lugar. Esta viso implica mudanas
substanciais nas formas de
organizao, gerenciamento e desenvolvimento sociocultural dos
povos do mundo.
Com o presente globalizado, finaliza Adam a responsabilidade
estende-se alm dos
representantes locais e dos governos locais e instala-se no
indivduo: a impossibilidade de
escapar [do planeta] conecta o global com o local e pessoal. dai
que este ecumenismo global
demanda que a predio, a ao e o controle baseiem-se sobre
princpios temporais diferentes.24
Diante dessa situao, a necessidade, por exemplo, de um sistema
internacional de justia
com jurisdio para alm dos limites dos Estados nacionais comea a
ficar mais evidente e a
ganhar maior consenso. Voltando para o juzo de Dorchester de
1858 citado por Whitrow e j
aludido, qual ser a hora que reger os processos? Repetir-se- num
contexto global a espera de
mais de vinte anos para aceitar, na Inglaterra do sculo
dezenove, a hora nacional? As leis que
regulamentam esses processos regero a partir de um mesmo momento
para todo o mundo e em
todo o mundo, ou ser escolhido um lugar (e sua hora) para marcar
sua vigncia e alcances?
22 Ortiz (1991: 244-245).23 De fato Barbara Adam tem como
referencia fundamental o pensamento de Ulrich Beck e em particular
sua obra jclssica Risk Society. Towards a New Modernity (1986),
London, Sage, 1992.24 Adam (1995a:115,123).
-
26-18
Num sentido mais geral, possivelmente a discusso sobre o sentido
de continuar
dividindo o mundo (que quer ser pensado como global) em zonas
horrias, no tenha sido
colocada ainda entre os muitos temas derivados dos processos de
globalizao. Um sistema de
justia internacional ainda uma proposta para o futuro e as redes
de alta velocidade esto por
enquanto em sua fase de construo inicial; porm, a discusso sobre
a unificao horria uma
discusso antecipada? No sculo XIX, os Estados nacionais
demoraram na adoo do horrio
mundial porque ele punha em jogo a soberania de cada um deles
sobre o tempo. Foram precisas
ento fortes presses da sociedade civil para que a "modernidade",
para dar-lhe algum nome,
pudesse continuar avanando. O cenrio num futuro prximo pode ser
que no seja muito
diferente. Por enquanto, basta somente com olhar no horrio de
operaes do Nasdaq para
lembrar das tabelas de converso que foi preciso construir para
coordenar os horrios dos trens,
h mais de cem anos,...
Nasdaq Trading Schedule25Regular Trading Session ScheduleThe
Nasdaq Stock Market Trading SessionsRegular Trading Hours from 9:30
a.m. to 4:00 p.m. eastern timeAfter Hours from 4:00 p.m. to 6:30
p.m. eastern timeThe Nasdaq International Market SessionFrom 3:30
a.m. to 9 a.m. eastern timeSelectNet Pre-hours Trading SessionFrom
9:00 a.m. to 9:30 a.m. eastern timeThe Nasdaq Stock Market Regular
Trading SessionFrom 9:30 a.m. to 4:00 p.m. eastern timeSelectNet
After-hours SessionFrom 4:00 p.m to 5:15 p.m. eastern time
Please note: Closing price information reported externally by
Nasdaqto market data vendors and the media is based on the price at
4:01 PM ESTwhen the market officially closes, and is not affected
by other sessions.
...e se perguntar porque continuam
dependendo hoje as bolsas do tempo solar mdio das cidades se
suas transaes so realizadas
atravs dos fluxos de informao que transitam o tempo todo e por
todo o mundo pelas redes?
Sincronizao das prticas globais, desincronizao das locais
Acima foi formulada a hiptese de que a sociedade informacional
estaria se
encaminhando para uma crescente sincronizao de suas prticas
globais e paralelamente estaria
25 Copiado da pgina do Nasdaq na Internet
(http://www.nasdaq.com/About Nasdaq/NasdaqTrading
Schedule.htm).
-
26-19
se produzindo uma desincronizao das locais. interessante
deter-se neste ponto e explorar o
argumento no que diz respeito, por exemplo, organizao do
trabalho e de suas rtmicas
cotidianas. Como seriam redefinidas elas num mundo que tenha
unificado seus horrios? Para
isso, necessrio antes de mais nada, revisar as caratersticas e
tendncias que apresenta o
trabalho e sua relao com o tempo na sociedade atual.
No clssico ensaio sobre o tempo e o capitalismo no mundo
industrial, E.P. Thompson
dizia:
As sociedades industriais maduras de todo tipo distinguem-se
porque administram otempo e por uma clara diviso entre "trabalho" e
"vida".26
Continua sendo isso verdade na sociedade informacional? Para
Manuel Castells, a
tendncia que parece ser a dominante nos setores mais dinmicos da
sociedades avanadas, a
da diversificao geral do tempo de trabalho.27 Conforme demostram
os estudos por ele citados,
as categorias de trabalho de maior crescimento so o trabalho
temporal e o trabalho de tempo
parcial. Pode-se observar que entre um quarto e um tero da
populao empregada dos principais
pases industrializados incluindo a dos empregados autnomos no
seguem o padro clssico
de trabalho de tempo integral com horrios de trabalho regulares.
Soma-se a isso que uma
proporo considervel de trabalhadores de tempo integral
provavelmente a maioria
pertencente fora de trabalho profissional est se orientando para
horrios de trabalho
flexveis, geralmente aumentando sua carga de trabalho. A
tendncia que cada trabalhador
gerencie seu tempo de trabalho. As tarefas, por sua parte,
tornaram-se mais flexveis na sua
organizao temporal, o que no significa que sejam menos intensas,
mas em geral ocorre o
contrrio. Est se introduzindo uma transformao fundamental do
trabalho prpria da
reestruturao das empresas e organizaes, a que possvel pelas
tecnologias da informao e
estimulada pela concorrncia global. Trata-se da individualizao
do trabalhador no processo de
trabalho, sugere Castells. Entretanto esse indivduo trabalhador
encontra-se confrontando por
isso mesmo com diversas temporalidades. Por um lado, aquelas nas
quais se organiza a empresa
e, por outro, as prprias de sua vida privada e familiar. Da que
a heterogeneidade das rtmicas
quotidianas numa sociedade com similar participao de ambos
gneros em sua fora de trabalho
impe um ajuste drstico dos acordos familiares. Isso no
necessariamente negativo pelo fato
26 Thompson (1984: 288).27 Castells (1996: 265, 442-445), Daz
Isenrath (1999: 145-146).
-
26-20
de que uma maior flexibilidade no tempo de trabalho pode
disponibilizar mais tempo para
compartilhar em casa. No entanto, fica claro que impe-se uma
nova articulao entre o tempo
da vida e o tempo de trabalho na Sociedade Informacional,
diferente da conhecida pelo
industrialismo estudado por E. P. Thompson. Misturam-se o
trabalho e a vida e conseguem se
reacomodar dependendo das possibilidades, interesses e,
sobretudo, os acordos que cada
indivduo estabelea com quem interatua em seu trabalho ou em seu
lar.
Esquematicamente poderia se dizer que a Revoluo Industrial
caracterizou-se por
"sincronizao versus flexibilidade". Significou todo um processo
de disciplinamento dos ritmos
irregulares do trabalho prprios da indstria manufatureira
domstica anterior na qual
alternavam-se os ritmos de trabalho intensos com a ociosidade. A
flexibilidade nas lavouras teve
que desaparecer frente s exigncias de sincronizao dos processos
de produo complexos e
com uma intrincada subdiviso de trabalho, qual deviam se
meticulosamente ajustados.28 Num
sentido oposto, a Revoluo Informacional pode ser pensada como o
fim dos antagonismos entre
sincronizao e flexibilidade. Hoje, as novas tecnologias permitem
integrar as contribuies de
vrios trabalhadores realizadas em tempos diferentes. Pode se
pensar em trminos de
"sincronizao e flexibilidade". Isso significa que possvel
sincronizar tarefas com ritmos
irregulares de trabalho: sincronizar a flexibilidade e trabalhar
com uma sincronizao flexvel,
reprogramvel a cada momento.
No sculo XIX, por exemplo, a pontualidade tornou-se um valor
imprescindvel para a
concatenao dos servios. No sculo XXI ela no pode deixar de ser
importante, pois
continuar havendo uma grande quantidade de atividades que
precisaram ser coordenadas.
Contudo, vai se tratar cada vez mais de pontualidade entre
indivduos; de exatido diante dos
compromissos estabelecidos com outros na coordenao feita "pessoa
a pessoa" (pela rede ou
no), e no diante de grandes instituies como a estrada de ferro
ou a fbrica. importante
destacar aqui duas dimenses do tempo de trabalho na sociedade
informacional que geralmente
so confundidos. Uma a dimenso intemporal, "sempre presente" dos
servios "on demand", a
outra a da interao em tempo real. Por uma parte os trabalhos
flexibilizam-se porque existem
sistemas informticos que, como foi j salientado, permitem
integrar em qualquer momento os
trabalhos individualmente realizados em forma "assincrnica"
seguindo os tempos prprios de
cada trabalhador. Essa dimenso poderia ser chamada de dimenso
"base de dados": o sistema
est sempre "on line" esperando para dar ou receber informao. o
que acontece quando
28 Thompson (259-261, 266).
-
26-21
navega-se pela Internet (tudo est ali, em qualquer momento e
todos os dias) ou quando so
utilizados servios que, embora que atendidos por pessoas, tm seu
"corao" nas bases de dados
sobre as que esto montados ( o caso dos servios de assistncia ao
viajante ou do auxilio
mecnico das seguradoras, alm de outros). A outra a dimenso
"rede" que implica a
coordenao das tarefas entre quem trabalha de diferentes lugares
fsicos e que precisa portanto
da "pontualidade flexvel" dos acordos pessoais; a primeira
dimenso a tecnologicamente mais
desenvolvida at o presente e a que permitiu a proliferao de
muitos dos servios "on demand"
e durante as 24 horas que existem hoje. A segunda tem sido
conhecida somente em uma fase
muito rudimentria de seu desenvolvimento. Porm, a ltima a que
mais vai se desenvolver no
futuro prximo quando se estandardizarem as redes de alta
capacidade de transmisso do tipo da
Internet2 e multiplique-se, entre 100 e 1000 vezes, a
performance das redes atuais.
A unificao da hora mundial avana no sentido da sincronizao
flexvel que demanda o
trabalho hoje, favorecendo ao nvel dos indivduos, a coordenao
das tarefas que requerem da
co-presencia. A nvel social, UT significa facilitar a
sincronizao das prticas globais. Sem
dvidas, trata-se no s de outra maneira de organizar o trabalho
mas de outra forma do social.
Com UT, a socializao dos indivduos ir alm dos constrangimentos
da contigidade fsica.
Partindo da perspectiva das comunidades locais, o que se produz
uma inevitvel
desincronizao de suas prticas e diluio no necessariamente
desapario de muitos dos
significados, hbitos, e rituais compartilhados por seus
habitantes. Estas perdas acontecem na
busca da construo de uma cultura mundializada e de um novo
sentido de pertencimento a uma
sociedade global. Em contrapartida, surgem novos arranjos
sociais como o possvel
"povoamento" das 24 horas do dia como espao de trabalho e
sociabilidade. A utilizao da
mesma hora no mundo todo faz sumir definitivamente as balizas
que tradicionalmente tem
demarcado o ordenamento temporal. Trata-se do fim dos momentos
profanos e dos momentos
sagrados, dos tempos de trabalho e dos tempos de descanso
impostos desde a sociedade local.
So agora os indivduos que ajustam seus horrios conforme suas
prticas e relaes. assim
que, designificadas as horas das prticas em que elas so
realizadas, resulta mais fcil pensar que
o espao da noite possa ser apropriado como tempo aproveitvel num
mundo cada vez mais
povoado. Haveria menos infra-estrutura ociosa e mais postos de
trabalho disponveis num
planeta que superou j os 6 bilhes de habitantes.
Esse quadro futurista pode resultar chocante hoje. A imagem do
ciclo solar como
"natural" muito forte para ns ainda. Porm nossa sociedade deixou
j, a partir de Edison em
1879, de depender da luz do sol! Alm disso, muito do que at faz
poucos anos parecia sacrlego
-
26-22
agora acontece com total normalidade: todos os supermercados
trabalham os domingos e muitos
deles tambm 24 horas! Em termos mais gerais pode se dizer que,
pela convergncia da evoluo
histrica e a mudana tecnolgica, est se entrando num padro
puramente cultural de interao
e organizao social. Um mundo governado por UT acabaria com a
distribuio das atividades
em relao luz solar e tornaria mais fcil repartir os trabalhos ao
longo do dia (manh, tarde e
noite). A "fluidez" do dia UT estaria em consonncia com os
fluxos que circulam pelas redes e
que permitem novos arranjos (acordos?) entre o local e o global,
entre trabalho e vida privada.
Tempo homogneo e tempo heterogneo. Tempo privado e tempo
uniforme e pblico.
Stephen Kern salienta que entre 1880 e 1918:
A introduo do Tempo Standard Mundial teve um impacto enorme na
comunicao, a
industria, a guerra e a vida quotidiana das massas; mas a
explorao de uma pluralidade de
tempos privados foi a contribuio histrica mais particular deste
perodo. A acometida sobre o
tempo universal, inaltervel e irreversvel, foi a fundao
metafsica de um desafio cultural
amplo s noes tradicionais da natureza do mundo e do lugar do
homem nele. A afirmao do
tempo privado interiorizou radicalmente o lugar da experincia.
Erodiu as vises convencionais
sobre a estabilidade e a objetividade do mundo material e da
habilidade da mente para
compreend-lo... se existem tantos tempos privados como
indivduos, ento, cada pessoa
responsvel pela criao de seu prprio mundo em cada momento, e est
sozinho nesta
criao.29
Que aconteceria com a aceitao do Tempo Standard Mundial como
horrio nico para o
mundo todo? Pelo que foi analisado, seria razovel pensar que o
quadro apresentado por Kern
poderia se intensificar. A unificao da hora levaria ao seu mximo
grau a homogeneizao do
tempo pblico: UT regeria efetivamente no mundo todo; o planeta
contaria com uma nica
medida da durao e da sucesso; os dias, os meses e os anos
comeariam num mesmo instante
em todos os pontos do planeta. Paralelamente a esse tempo
homogneo compartilhado por todos,
cada indivduo seria mais do que nunca arquiteto de seu prprio
tempo e responsvel por sua
criao. A pluralidade dos tempos privados seria assim realmente
efetiva.
H mais de um sculo, novelistas como Wilde, Proust, Kafka ou
Joyce da mesma forma
que socilogos, psiclogos e fsicos, geraram um grande debate em
relao condio de
29 Kern (1983: 314).
-
26-23
homogeneidade e heterogeneidade do tempo. Diante da novidade
histrica da padronizao e
racionalizao deste pelo sistema de fusos horrios uniformes,
examinaram e enfatizaram as
diversas formas nas que os indivduos criam tempos diferentes,
tantos como existem estilos de
vida, sistemas de referncia e formas sociais.30 Nos ltimos anos,
passou-se por um intenso
processo de individualizao das referencias. A comunidade perdeu
em boa parte sua capacidade
como mediadora simblica e os indivduos, em muitos casos,
ligam-se direitamente com o
global. "O local", por sua vez, inclui no somente a localidade
regional mas tambm os aspetos
ntimos de nossas vidas pessoais.31
Finalmente, no sculo XXI, Newton e Einstein parecem se
reconciliar. A existncia de
um tempo absoluto (ao menos construdo socialmente por
necessidade de organizao e
simplicidade) e de infinidade de tempos relativos, tantos como
indivduos ho no planeta, sugere
a resoluo do eterno paradoxo sobre a natureza do tempo: absoluto
/ relativo, homogneo /
heterogneo, pblico / privado.32 UT, "Universal Time", parece
disposto a conciliar todos em um
s, os tempos dos indivduos e o tempo do mundo.
Concluso:
A histria da racionalidade moderna parece mostrar uma tendncia
na qual as prticas
locais cedem terreno s globais. Essa tendncia apareceu com
clareza na anlise das mudanas
acontecidas na determinao da hora nos ltimos duzentos anos e,
ainda mais, nas que parecem
se estar produzindo na atualidade. Um exemplo so os planos que j
se anunciam para a criao
do "GEM", sigla em ingls para o futuro mercado global de aes. Um
non-stop global market
que funcionar as 24 horas e ser composto por ao menos nove das
actuais maiores bolsas do
mundo, desde a Bolsa de Nova York de Tquio. Os mercados de
valores, surgidos no mbito
da cidade, espalham-se por toda a Europa a partir do sculo XVI.
Quando ao final do XVI
tornam-se objeto de estudo de Max Weber, existiam j em todas as
principais cidades do Velho
Continente e estavam sendo criadas em outras como Buenos Aires e
Mxico. O que merece
destaque, porm, que at o presente, as bolsas de valores pareciam
indissociveis da cidades
nas que eram criadas, tanto quanto o mundo urbano e a
racionalidade moderna do surgimento do
esprito capitalista. O espao da cidade parece no poder conter
mais o desdobramento desta
30 Kern (1983: 15-19, 31-35).31 Guiddens (1994: xii).32 Segundo
Whitrow, o que Einstein demostrou , em ltima instncia, que a
simultaneidade um conceito mais"privado" que "pblico" (1988:
187).
-
26-24
lgica. Da mesma forma, a lgica do capitalismo parece tambm no
poder ser contida no tempo
local da cidade. neste contexto, e radicalizando algumas das
tendncias que apresenta a
modernidade globalizada diante do sculo XXI, que considera-se
pertinente discutir como seria o
mundo depois de um novo processo de estandardizao horria.
Um dos eixos principais deste trabalho foi a intromisso no espao
local de outras
temporalidades: no sculo XIX com as ferrovias e o telgrafo e, na
atualidade, com as
tecnologias da informao. De alguma forma se est hoje novamente
como em 1830. Naquela
poca conhecia-se j da existncia da locomotiva a vapor e era
possvel, em boa parte, imaginar
seu enorme potencial. Entretanto, no se sabia ainda como se
veria o mundo desde os trilhos do
trem. muito difcil diagnosticar o que significar exatamente ter
redes com uma capacidade de
transmisso 1000 vezes maior das conhecidas hoje. Contudo, no
possvel negar as
conseqncias decisivas que essa mudana tecnolgica ter na forma em
que o social ser
organizado no futuro imediato ou, em outras palavras, em como o
mundo ser visto nos
prximos anos a partir das redes de alta velocidade.
A partir do comeo da modernidade, est-se imerso num longo
processo histrico
de "esvaziamento" do tempo local de seus significados. Esses
significados estavam unidos
originariamente s rtmicas quotidianas do lugar mas hoje o esto
cada vez em menor medida.
Parece se estar passando do tempo das comunidades ao tempo dos
indivduos e da coordenao
dos deslocamentos, que caracterizou a os ltimos dois sculos,
coordenao das localidades. Se
assim for, o futuro prximo pode estar marcado novamente pela
necessidade de padronizao
horria, a que seria agora sob um horrio nico: "UT". Isso no quer
dizer que as prticas locais
deixaro de existir, mas que ao passar a serem organizadas desde
outro espao e desde outra
temporalidade mudar seu sentido estrutural. possvel ento que o
espao, to comprimido
desde as viagens de descobrimento, tenda a se dilatar no tempo e
sejam povoadas as horas da
noite. No entanto, continuar existindo o social num mundo de
tempos privados individuais onde
todas as horas e todas as datas sero "liberalizadas" das funes e
compromissos sociais e
"flexibilizadas" para a coordenao das tarefas e a sincronizao
dos encontros entre
indivduos?
Quem sabe se finalmente se chegue concluso de que o tempo do
lugar era o nico
reduto do espao, daquele espao fsico, local, simbolizvel. Talvez
seja preciso ento sair em
busca do resgate do social num mundo de tempos privados
individuais. Porm, este um
problema de uma outra ordem ao que foi delineado pelo avano da
racionalidade moderna que se
-
26-25
procurou examinar aqui; o que parece indicar a UT como a
continuao lgica desse processo
em curso, "o prximo passo a seguir", "a nova meta a
atingir".
Referencias bibliogrficas:
*ADAM, Barbara (1995a) Timewatch. The Social Analysis of Time.
Cambridge, Polity Press.
*---------------------(1995b)."The temporal landscape of
global/izing culture and the paradox ofpostmodern futures" en ADAM,
Barbara & Stuart ALLAN, Theorizing Culture. Aninterdisciplinary
critique after posmodernism. Londres, UCL Press.
*ATTALI, Jacques (1982). Histoires du temps. Paris, Fayard.
*CASTELLS, Manuel (1996). The Rise of the Network Society, Vol.
1 de The Information Age: Economy,Society and Culture. Oxford,
Blackwell, 2 ed., 1997.
*----------(1997). The Power of Identity, Vol. 2 de The
Information Age: Economy, Society and Culture.Oxford,
Blackwell.
*----------(1998). End of Millennium, Vol. 3 de The Information
Age: Economy, Society and Culture.Oxford, Blackwell.
*CHESNAIS, Franois (1994). A mundializao do capital. So Paulo,
Xam, 1996.
*CHESNEAUX, Jean (1989). Modernidade-Mundo. Petrpolis, Vozes,
1995.
*DIAZ ISENRATH, Cecilia (1999). Tiempo social y rtmicas
cotidianas. Cambios en la determinacin ,percepcin e imaginario del
tiempo. Mendoza, Tesis de Licenciatura en Sociologapresentada en la
Facultad de Ciencias Polticas y Sociales, U.N.Cuyo.
*FORD, Henry (1954). Minha vida e minha obra em Os principios da
prosperidade. Ro, Brand.
*GIDDENS, Anthony (1994). "Foreword" en FRIEDLAND, Roger y
Deirdre BODEN (ed.) NowHere.Space, Time and Modernity. Londres,
University o California Press.
*HARVEY, David (1989). A condiao ps-moderna. Uma Pesquisa sobre
as Origens da MudanaCultural. San Paulo, Loyola, 1992.
*KERN, Stephen (1983). The Culture of Time and Space 1880-1918.
Cambridge, Massachusetts, HarvardUniversity Press.
*ORTIZ, Renato (1991). Cultura y modernidade. A Frana no sculo
XIX. San Paulo, Brasiliense.
*WHITROW, G.J. (1988). O tempo na histria: concepes do tempo da
pr-histria aos nossos dias. Rode Janeiro, Jorge Zahar Editores,
1993.
*THOMPSON, E.P. (1984) "Tiempo , disciplina de trabajo y
capitalismo industrial" en Tradicin,revuleta y conciencia de clase.
Barcelona, Crtica.
KorisnikHighlight
Edited by Foxit ReaderCopyright(C) by Foxit Software
Company,2005-2008For Evaluation Only.
-
26-26
* TURNER, Philip (1991). Capital Flows in the 1980: A Survey of
Mayor Trends. BIS Economic PapersN 30, 04/99.