OS HIGIENISTAS E A EDUCAO FSICA:
A HISTRIA DOS SEUS IDEAIS
por
Edivaldo Gois Junior
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Dissertao de Mestrado Apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao Fsica da
Universidade Gama Filho Como Requisito Parcial obteno do Ttulo de Mestre em Educao Fsica
Rio de Janeiro, Maro de 2000
Dedico a Soraya e minha famlia
Homenagem ao professor Primeiramente eu gostaria de declarar meu amor a esta profisso. Algumas vezes
desacreditada, outras creditada, no importa, o que interessa que escolhi este ofcio, e tenho muito orgulho dele. Contudo este amor no por acaso, pois teve origem no trabalho daqueles outros, que um dia foram e so meus professores. Foram eles que ensinaram-me a gostar e optar pelo magistrio. Eram e so to talentosos, que me despertaram admirao. Ento perguntei a mim mesmo: por que no? E estou aqui hoje escrevendo este texto cafona que antecede minha dissertao de mestrado. Pensei, desta forma, que seria justo homenagear aqueles que me ajudaram no caminho da Educao.
Aos sete anos eu entrei em uma escola para at hoje, dezessete anos depois, nunca mais sair. Naquele ano, 1983, eu observava com certa preocupao aquelas crianas chorando copiosamente, no querendo de forma alguma deixar a me e ficar com uma senhora desconhecida. Esta senhora era uma professora, a primeira que tinha visto em toda minha vida, pelo menos que me lembre. Passado algum tempo, estvamos todos ns, chores ou no, em uma sala de aula. Dentro daquele ambiente, aquela senhora, que me lembro o nome, era Yolanda, nos ensinava as coisas mais simples como escrever, ler, desenhar. Porm o mais simples o mais complicado, que talento e pacincia tinha aquela senhora, que por inmeras vezes pegava na mo de cada um, sem excluir ningum, mesmo aqueles que no tinham interesse. Eu tenho muitas lembranas para contar da Professora Yolanda, que certamente j faleceu, pena que o espao e tempo sejam pequenos agora.
Outro professor importante era o Joel. Sua disciplina era Educao Fsica, sua pedagogia era tecnicista, como era comum. Contudo o tecnicismo no o desqualificava, pois valores como cooperao, amizade, eram muito valorizados em sua aula. Lembro que quando disputvamos os campeonatos escolares, e um parceiro errava um passe, ou uma jogada simples, ele exigia que ns dssemos apoio ao menino. Ele foi um professor muito importante na formao de seus alunos, ensinando valores como a solidariedade.
J na faculdade, eu conheci um professor um pouco louco, um maluco beleza. Seu nome: Antnio Geraldo Magalhes Gomes Pires. Eu devo muito a este professor, pois ele acreditou mais do que ningum em meu potencial. Fora este aspecto, que didtica ele possui. impossvel no prestar ateno, no entender o tema mais complicado se ele est na frente do quadro-negro. Sua aula um espetculo, gestos, bocas e caras, andando o tempo todo para l e pra c. Transparncias nem pensar, s o giz basta. Para ele, transparncia sofisticada estratgia de professor sem talento. Eu tento seguir seu exemplo, mas no todo mundo que tem seu carisma.
Na faculdade no interior de So Paulo, tambm, eu tive o prazer de ser orientado por um tal de Pedro Pagni. Quantas histrias eu tenho para contar desse cara. O fato que em 1995, eu buscava, destemperadamente, algum que me pudesse orientar em Histria da Educao Fsica, ento me indicaram o Pedro, que no era meu professor. Ento fui procurar o tal do Pedro, entrei no restaurante universitrio, sentei na mesa do professor, e fiz todo um discurso e perguntei: e ento, Professor? Ele respondeu: Acho interessante, por que voc no procura o Pedro? Eu tinha me enganado de pessoa, o cara do cavanhaque era o Geraldo, que mais tarde foi meu professor e que j homenageei neste texto. O engano foi uma gafe, contudo ele me indicou que o Pedro ia palestrar naquele dia, foi quando o conheci. Disse ao Pedro que queria estudar a Educao Fsica na Grcia Antiga. Minha primeira leitura indicada por um orientador foi o Paidia, umas mil pginas, acho que ele queria que eu desistisse, isto no aconteceu. Nos trs anos em que ele me orientou eu aprendi muito. Existe muito do Pedro nesta dissertao.
No mestrado, eu conheci melhor uma cidade e uma pessoa maravilhosa. Um sotaque muito reconhecvel, jeito latino, um argentino meio desconfiado, fumando sem parar, me entrevistava na seleo do mestrado. Achava que ele no tinha ido com minha cara. Acho que me enganei, alm de ter passado na seleo, acabei sendo seu orientando, e que sorte a minha. No s pelo intelectual que ele , pelo professor dedicado, pelo profissionalismo, qualidades que divide com o Antnio Jorge Soares, mas pelo amigo que se revelou. Eu s tenho palavras carinhosas para este amigo. Obrigado Hugo Lovisolo.
Foi esta maneira muito simples que encontrei para dizer obrigado a estes profissionais, que piegas no? GOIS JUNIOR , E (2000) . Os higienistas e a Educao Fsica: a histria de seus
ideais. (Dissertao de Mestrado). Rio de Janeiro: PPGEF, Universidade Gama
Filho.
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Orientador: Prof. Dr. Hugo Lovisolo
RESUMO
Esta dissertao tem como objetivo refletir sobre a homogeneidade
ou heterogeneidade do discurso do movimento higienista e sua influncia
sobre a Educao Fsica. Para isto, enfatizamos a anlise de discursos tericos e
propostas de interveno dos higienistas. Chegamos concluso que havia uma
mentalidade heterognea e difusa entre os mesmos. Sendo que suas propostas
iam da regulamentao dos casamentos entre indivduos mais aptos,
esterilizao, at a democratizao da sade e da educao, ambas estratgias
divulgadas por peridicos da Educao Fsica. Assim sendo, o que pode
caracterizar os higienistas o interesse comum na divulgao de hbitos
higinicos, normas profilticas e cuidados com o corpo. Seus objetivos no eram
simplesmente atender os interesses de determinada classe social, mas sim, fazer
que seus conhecimentos cientficos pudessem melhorar a vida de todos. Isto
ficou claro a partir da anlise de documentos que despertam a ateno pelo
carter reivindicatrio do discurso de vrios higienistas, que apontam a
necessidade urgente da interveno nos problemas sociais da sociedade em
voga.
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GOIS JNIOR, E (2000). The higienistas and the Physical Education: the history
of its ideals. (Master Dissertation ). Rio de Janeiro: PPGEF, Gama Filho
University.
Adviser : Prof. Dr. Hugo Lovisolo
ABSTRACT
This dissertation has as objective to contemplate on the homogeneity
or heterogeneity of the speech of the " movement higienist" and its influence on
the Physical Education. For this, we emphasized the theoretical and proposed of
intervention of the higienists analysis of speeches. We reached the conclusion
that there was a heterogeneous and diffuse mentality among the same ones. And
its proposals went of the regulation of the marriages among more capable
individuals, sterilization, until the democratization of the health and of the
education, both strategies disclosed by newspapers of the Physical Education.
Like this being, what can characterize the higienistas it is the common interest
in the popularization of hygienic habits, medics norms and cares with the body.
Its objectives were not simply to assist the interests certain social class, but yes,
to do that its scientific knowledge could improve the life of everybody. This was
clear starting from the analysis of documents that you/they wake up the
attention for the character chritical of the speech of several higienists, that aim
the urgent need of the intervention in the social problems of the society in vogue.
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NDICE
CAPTULO Pgina
INTRODUO..................................................................................- Problema e posio - Delimitando o objeto - Caminhando para uma hiptese - Metodologia - Relevncia e Justificativa - Revisitando a historiografia da Educao Fsica - O que o leitor pode esperar desta dissertao
001
1 O MOVIMENTO HIGIENISTA NA EUROPA..................... - Do contexto - Industrializao - A urbanizao e as epidemias - Uma nova filantropia - O paradoxo do Liberalismo - O idealismo do movimento higienista - O motor humano - Desenvolvimento e debates da Medicina
019
2 OS HIGIENISTAS DO BRASIL............................................... - Brasil : incio do sculo XX - Abandono do povo: as epidemias - Pessimismo em relao raa e ao povo - A resposta nacionalista - Discusso intelectual sobre os problemas do Brasil - Os higienistas: crtica da sociedade e polmica racial - O movimento higienista: seus contrastes e suas complexidade - Como mudar? A interveno higienista
060
3 A EDUCAO FSICA E OS HIGIENISTAS......................... - O exemplo francs - Os intelectuais brasileiros, os higienistas e os mtodos ginsticos no Brasil - O melhor mtodo - Outras propostas, os mesmos objetivos - A Educao Fsica e as teorias higienistas - Precisamos nos legitimar
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CONSIDERAES FINAIS........................................................... 166
BIBLIOGRAFIA BSICA.............................................................. 169
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INTRODUO
" enquanto houver
historiadores, suas explicaes sero
incompletas, pois nunca podero ser uma
regresso ao infinito(Veyne, 1995, p.56.).
Problema e posio
Em meados do fim do sculo XIX e incio do sculo XX, surgia um novo
discurso. Suas propostas residiam na defesa da Sade Pblica, na Educao, e no
ensino de novos hbitos. Convencionou-se cham-lo de movimento higienista. O
movimento tem uma idia central que a de valorizar a populao como um bem,
com capital, com recurso talvez principal da Nao (Rabinbach, 1992). O movimento
se expandiu pelo mundo e chegou ao Brasil, embora mediante reapropriaes e
reinterpretaes.
Preconizando normas, hbitos, que colaborariam com o aprimoramento
da sade coletiva, do povo, da raa. Nas ltimas dcadas, a interpretao do
movimento higienista foi abertamente crtica, sobretudo nas obras de histria da
Educao Fsica geradas a partir dos anos oitenta. O argumento central dos crticos
baseou-se um duas operaes: mediante a primeira o movimento higienista foi
homogeneizado, considerado como um discurso e uma prtica de carter unitrio;
pela segunda, foi considerado como agindo em bloco a servio dos interesses das
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classes dominantes. De fato, a homogeneizao estaria a servio da segunda
operao, de sua considerao em bloco como sendo funcional para os interesses das
classes dominantes. A crtica depende da homogeneizao, ela seu pressuposto
lgico.
Esta dissertao pretende mostrar que o movimento higienista era
altamente heterogneo sob o ponto de vista terico (fundamentos biolgicos e
raciais), ideolgico (liberalismo e anti-liberalismo). J no campo das medidas ou das
polticas pblicas de educao, sade, habitao e trabalho, entre outras,
encontramos uma maior unidade. Isto no de se estranhar. bem conhecido o fato
que embora contrapostos em termos de adeso, as teorias bacteriolgica e dos
miasmas, na prpria Europa, propuseram as mesmas medidas profilticas. Sobre
este exemplo voltaremos adiante, aqui apenas pretendemos indicar para o leitor que
teorias explicativas diferentes podem levar a prticas de interveno semelhantes.
Outra preocupao nossa, mediante a descrio desse objeto de estudo,
foi a questo do posicionamento. Embora sejamos crticos dos crticos, ou seja,
reelaboremos as crticas, tentamos evitar as predefinies partidrias e ideolgicas.
No porque as excluamos, mas porque tentamos controla-las metodologicamente. O
envolvimento com o objeto de estudo no significa a assuno da parcialidade. As
leituras de, entre outros, Eric Hobsbawn e Quentin Skinner fortaleceram em ns a
confiana em podermos orientar-nos pela procura da imparcialidade, embora ela
jamais seja absoluta. Autores, que se no nos deram um modelo metodolgico, nos
deram indicaes de como realizar a tarefa de contar a Histria. Nosso orientador
Hugo Lovisolo, por exemplo, sempre cita o argumento de Thomas Merton: se de fato
impossvel um ambiente estril, poderamos fazer cirurgias nos esgotos. Contudo,
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sbia e praticamente procuramos os ambientes cirrgicos mais estreis possveis.
No acreditamos que as coisas sejam diferentes no campo da histria e das cincias
sociais
Em Hobsbawn, primeiramente, percebemos a importncia da
imparcialidade ou iseno1. Este autor recomenda: muito importante que os
historiadores se lembrem de sua responsabilidade, que , acima de tudo, a de se
isentar das paixes de identidade poltica - mesmo se tambm as sentirmos.
(Hobsbawn, 1998, p.20). O que ele nos quer ensinar que uma histria deve ter
universalidade, e no identidade de um grupo poltico, racial. Por exemplo, uma
histria pode ser contada para os que pretendem revolucionar o mundo, outra para
quem pretende reformar, outra para quem conservador. Uma histria para os
judeus, outra para os alemes. Hobsbawn pensa que a construo dessas histrias de
identidades (polticas, nacionais, raciais) podem fazer com que a Histria perca sua
universalidade, tornando-se uma histria de identidade. Muitos pesquisadores
voltam-se ao passado procurando uma legitimao para seus atos no presente. Eles
utilizam a histria para justificar suas posies (Hobsbawn, 1998).
Ensina-nos, tambm Quentin Skinner:
Quando digo que a tarefa do historiador a do
anjo registrador quero dizer que sua aspirao deve ser a de
recapturar o passado nos seus prprios termos deixando de
lado, no possvel, as dvidas ps-modernistas quanto total
viabilidade disso. (...) O que quero dizer que nossos valores
devem nos motivar a escolher os assuntos que queremos
1 Da mesma forma nos orientou Antnio Jorge nas suas aulas sobre Popper.
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estudar. Mas, uma vez feita a escolha, a recuperao do
passado exige grande imparcialidade.(Skinner, 1998, p.7)
Com esta passagem podemos entender que a escrita da histria exige
imparcialidade. Deste modo, ao descrevermos o discurso do movimento higienista
brasileiro, optamos nem por defend-lo, nem por atac-lo, mas sim, vislumbrar sua
complexidade, seus prprios termos no seio da sociedade que se formou entre as
ltimas dcadas do sculo passado e as primeiras deste, ou seja, no seu prprio
contexto.
medida que o trabalho se intensificava, percebamos que havia matizes
de valores da poca que eram diversos dos da sociedade atual, o que ocasionou mais
obstculos na sua caracterizao. Vimos que o discurso higienista, tambm era fruto
de uma sociedade em processo de industrializao, o que acarretou certas nfases na
questo do preparao do trabalhador, na urbanizao, no controle de novas doenas
epidmicas e ocupacionais. Ou seja, o discurso higienista voltava-se para questes
pertinentes ao seu tempo, aos valores da poca como trabalho, disciplina,
interveno. Como qualquer discurso datado, por isso, sua interpretao
descontextualizada apenas pode produzir anacronismos. Descobrimos que ignorar
este contexto e valores da poca, comprometeria esta narrativa. Segundo Gramsci,
devemos ter historicidade, que ter a conscincia da fase de desenvolvimento de
nossos tempos e do fato de que ela est em contradio com outras concepes de
outros tempos." (Gramsci, 1978, p.13) Enfim, ns no poderamos julgar
pensamentos e atitudes envolvidas por valores que s vezes so contrrios aos
valores de hoje. Tentamos olhar para o passado sem pr julg-lo.
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partir destas dificuldades encontradas por ns, tentamos desenrolar
nosso objeto de estudo. Vimos que os problemas estavam apenas comeando.
Delimitando o objeto
A primeira dificuldade revelou-se na delimitao do recorte histrico.
Seria muito difcil determinar uma data que fosse considerada como a inicial e a
terminal na vigncia do discurso higienista, estabelecendo sua periodizao.
Poderamos ter adotado uma periodizao determinada pela histria poltica, isto
seria possvel caso considerssemos este discurso como especfico das tendncias
ideolgicas do sculo XIX e, menos ainda, como Ghirardelli entendeu, como
especfico produto do liberalismo (Ghiraldelli, 1988). Contudo, quando examinamos
as fontes, esta prerrogativa no se manteve pois, no caso brasileiro, sua consolidao
se deu em plena Ditadura Vargas, momento brasileiro caracterizado pelo domnio
ideolgico das tendncias centralizadoras, no-liberais. Nos parece mais coerente,
determinar um marco inicial baseado em ocorrncias que tornaram possvel a
demanda do movimento higienista europeu, como a industrializao, a
urbanizao, a bacteriologia e a fisiologia, a filantropia e as diversas ideologias que
militam na segunda metade do sculo XIX, como o liberalismo mas, tambm, o
socialismo. Com isto, podemos adotar este recorte temporal inicial na segunda
metade do sculo XIX e o corte final, por deciso da dinmica da pesquisa, corte por
certo arbitrrio, em 1945. Pretendemos, no futuro, alongar a pesquisa para o nosso
presente.
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A segunda dificuldade foi definir o que era um higienista. As definies
enciclopdicas eram muito restritas, definindo-os como estudiosos da Higiene, como
mdicos sanitaristas. Porm o movimento higienista era muito mais amplo.
Contava com apoio de educadores, polticos, advogados, engenheiros, instrutores de
ginstica. Enfim, uma gama bastante diversa de profisses foi influenciada pelos
pressupostos higienistas. Assim, no entendemos os higienistas como apenas
mdicos. Ento, pensamos em caracteriz-los como intelectuais que tinham em
comum o desejo de melhorar as condies de sade coletiva da populao brasileira.
Somente dentro deste modelo podemos dar uma certa unidade aos higienistas.
Contudo a tarefa no era to simples, pois o que um intelectual?
Em Gramsci encontrada a definio mais usual de intelectual. Em sua
obra Os intelectuais e a organizao da cultura, ele defende a existncia de dois
tipos especficos de intelectuais: os intelectuais tradicionais e os orgnicos. Os
primeiros teriam o papel de manter e justificar o constitudo. J os intelectuais
orgnicos, defenderiam determinadas classes sociais, organizando seus interesses,
aumentando seu poder.(Gramsci, 1978a) Esta tipologia acaba criando duas
polarizaes, uma entre o orgnico e tradicional, e outra entre os defensores das
classes dominantes e das classes dominadas. Dentro desta lgica, um intelectual est
favor ou contra os interesses dos trabalhadores ou empregadores. Contudo,
percebemos que seria muito difcil caracterizar o movimento higienista e seus
intelectuais dentro desta perspectiva. No poderamos caracteriz-los como
intelectuais orgnicos favorveis ou contrrios aos interesses dos trabalhadores, sem
imputar-lhes uma homogeneidade de discurso inexistente. Em outras palavras, esta
histria no poderia ser narrada com viles e mocinhos.
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Neste sentido, tornou-se mais interessante o uso da definio de Hugo
Lovisolo. Segundo ele, o que caracteriza um intelectual seu desejo de formar mais
intelectuais, ou seja, tornar a sociedade mais crtica e intelectualizada. Com esta
definio, podemos considerar os higienistas como intelectuais, e muitos outros que
no se adaptam tipologia gramsciana. Deste modo, para Lovisolo, podemos
compreender porque os educadores fsicos, que tambm se consideram intelectuais,
procuram que o atleta seja criticamente consciente de seus movimentos fsicos e dos
jogos sociais e polticos que participam. Na verdade, eles esto tentando
intelectualizar aquela prtica. Em seus termos, do mesmo modo:
Os mdicos que insistem para que conheamos e
administremos criticamente nosso prprio organismo para
crescermos em autonomia. Em todos os casos, o pensar por
si mesmo, o ser intelectualmente adulto est presente. Parece-
me que este o bojo da tradio na qual os intelectuais so
emotivamente formados e talvez seja esta a grande ligao com
o cotidiano e com os diferentes segmentos da sociedade. Em
definitiva, autores crticos dos intelectuais, como Foucault,
Bourdieu ou Habermas procuram, nem sempre explicitamente,
que pensemos por ns mesmos, autonomamente, de forma
emancipada. Eles tambm querem reproduzir intelectuais.
(Lovisolo, 1998a, p.7)
Se os intelectuais tem em comum o desejo de formar outros, seria difcil
no considerar os higienistas como tal. Eles tinham um discurso heterogneo, e s
vezes oposto, contudo tinham algo em comum: o desejo de educar a populao nas
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normas higinicas. Eles tinham a misso de convencer e racionalizar muitas prticas,
por exemplo a Educao Fsica, a classe dirigente, da importncia da Educao
Higinica.
Fora esta caracterizao, Lovisolo, ainda identifica outras categorias
dentro do termo intelectual. Segundo ele, existem os intelectuais academicistas e os
intervencionistas/cientificistas (Lovisolo, 1997).
Os primeiros so aqueles interessados no saber pelo saber, no se
preocupando imediatamente com a aplicao de suas descobertas tericas, separando
o poltico do cientfico. J os intervencionistas propem a reestruturao do mundo
partir da cincia, postulando a necessidade de um conhecimento til para a
sociedade. Estabelece formas de interao com o povo, tentando conduzi-lo, educ-
lo, conscientiz-lo (Lovisolo, 1997).
Os higienistas se definem como intervencionistas na medida que usam
suas pesquisas para indicar as melhores formas de evitar a doena, quando procuram
explicaes econmicas, sociais, biolgicas, para o estado de doena do povo.
Quando prope estratgias, ainda que de forma difusa, para o equacionamento de
problemas da Sade Pblica.
Podemos, ento, desta forma, encarar os higienistas como intelectuais
cientificistas que tinham como ideal o melhoramento das condies da Sade
coletiva e individual, atravs do encaminhamento de propostas de interveno, que
por muitas vezes iam em direes opostas, mas queriam alcanar este mesmo
objetivo.
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Caminhando para uma hiptese
Se tivssemos o intuito de analisar os higienistas como intelectuais
dentro da tipologia gramsciana, teramos que defini-los como intelectuais orgnicos,
e ento teramos que enfrentar o problema de definir a favor de qual classe social
teriam atuado. A historiografia dos anos oitenta optou por esse modelo e tambm
optou, com argumentos pouco slidos, em defini-los como intelectuais a servio das
classes dominantes. Nesta viso, os higienistas seriam defensores do capital. Seu
discurso e ao, homogneo ou unitrio, seria determinado pelos interesses das elites
sociais. Ainda em uma perspectiva gramsciana, poderiam ser montados argumentos
que salientassem sua participao como defensores dos trabalhadores e opositores do
Capital. Ou seja, a tipologia de Gramsci levaria na direo de um jogo no qual
estamos obrigados a distinguir e agrupar os defensores de um e outros, opressores e
oprimidos. Consideramos, a partir da leitura de seus escritos e da avaliao de suas
aes, que a tipologia cria uma polarizao que se torna difcil conceber na anlise
do discurso dos higienistas.
Seria mais preciso caracteriz-lo como um discurso heterogneo, que por
muitas vezes, mediava os interesses entre as classes sociais, sem necessariamente
assumir os interesses dos opressores ou dos oprimidos. Se as coisas ocorreram desse
modo, teramos, ento, que pensar a possibilidade que alm dos interesses dos
oprimidos e opressores podiam tambm estar em jogo os interesses dos prprios
intelectuais. Assim, os interventores intelectuais estariam interessados em construir
uma sociedade que favorea aos intelectuais. Acredito que seja esta a hiptese que
pode ser derivada do trabalho de Lovisolo citado anteriormente.
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Em termos concretos partiremos da hiptese de que os ideais do
movimento higienista no eram determinados pelos interesses da camada
dominante, embora em sua funo de mediadores os levassem em conta.
Desta forma, a hiptese central que ser defendida neste estudo que o
discurso de vrios higienistas, que influenciaram a mentalidade da poca, chegando
at nossos dias2, e de modo particular aos discursos e a interveno da Educao
Fsica, partilhavam do intuito de cuidar melhor da populao atravs de uma
interveno estatal, melhorando sua sade, tendo como estratgias s vezes a
esterilizao, regulamentao dos casamentos e, em outras, a conquista de direitos
trabalhistas, a defesa da democratizao da Sade e da Educao, enfim, constituindo
um iderio heterogneo, que atingiu diversos setores da sociedade, como a Educao
Fsica. No fundo, tratava-se de fazer uma populao mais sadia, mais disciplinada,
mais educada e, porque no, fsica e intelectualmente mais preparada.
Metodologia
Esta pesquisa qualitativa, de modelo bibliogrfico, tem por objetivo
estudar fontes primrias e secundrias sobre o tema.
As tcnicas de pesquisa consistem na anlise de documentos do perodo:
Adotamos como fontes primrias, trabalhos de intelectuais brasileiros da
primeira metade do sculo XX, como Monteiro Lobato (1961, 1961a, 1961b),
Fernando de Azevedo (1920, 1933, 1950, s.d.) Affonso Celso (1943), Manoel
Bonfim (1905, 1926, 1996), Alberto Torres (1982, 1990), Oliveira Vianna (1959),
2 Nos dias de hoje o prprio movimento das sade pode ser considerado como derivado do discurso higienista do incio do sculo.
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Pena Belisrio (1923), Afrnio Peixoto (1913, 1938), Miguel Couto (1932, 1933), e
outros. Assim como, atas de congressos de Higiene, manuais de Higiene, peridicos
da poca, tradues de Inezil Penna Marinho (s.d, s.da,) dos mtodos ginsticos.
Do mesmo modo adotamos, diversas fontes secundrias que deram
suporte s nossas interpretaes, principalmente na descrio do movimento
higienista na Europa, onde tivemos como base principal, os trabalhos de Anson
Rabinbach (1992), Jacques Donzelot (1980), Georges Vigarello (1985), George
Rosen (1994). No caso brasileiro, nos interessaram, principalmente, trabalhos de
Gilberto Hochman & Nzia Trindade (1996), de Thomas Skidmore (1989, 1998),
Vera Marques (1997), Dante Moreira Leite (1976), e outros.
Relevncia e Justificativa
Esta pesquisa torna-se justificvel e relevante na medida que contrape a
idia dominante em nosso campo sobre o movimento higienista, que algumas
vezes considera a Educao Fsica dita higienista como uma prtica autoritria ligada
ao militarismo e aos mdicos. Tendo a idia de progresso em mente, julgam que a
Educao Fsica hoje e o movimento de sade so melhores, progrediram. Ou seja,
acredita-se que as orientaes da Educao Fsica progrediram e ainda progridem.
H, no entanto, aqueles que quando escrevem a histria da Educao
Fsica, passam a idia de que o movimento higienista representou um mal e, que o
mal ainda persiste, embora possam postular que o progresso ainda deve ser alcanado
no desenvolvimento, por exemplo, de uma conscincia crtica.
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Diferentemente dessas perspectivas, queremos entender o movimento
higienista destacando seus ideais, motivaes, interaes sociais. Para, ento,
observarmos at que ponto esta idia de progresso se sustenta.
Nosso trabalho busca a crtica do que j foi contado na historiografia da
Educao Fsica, respaldando outras interpretaes para sua a histria.
Revisitando a historiografia da Educao Fsica
Na dcada de noventa algumas crticas foram elaboradas com o intuito de
relativizar muitas das teses da historiografia da Educao Fsica da dcada de oitenta.
Pedro ngelo Pagni (1995), Alberto Pillati (1994), Ademir Gebara (1994), e mais
recentemente, na ocasio da orientao deste trabalho, Hugo Lovisolo (1998)3
apontaram muitas lacunas na produo da Histria crtica (como ficou conhecida
a historiografia da dcada de oitenta).
A tese principal desta historiografia representada, principalmente, por
Lino Castellani Filho (1988), Paulo Ghiraldelli Jnior (1988) e Carmem Lcia
Soares (1990), com os seguintes textos: Educao Fsica no Brasil: uma histria
que no se conta; Educao Fsica Progressista; O pensamento mdico
higienista e a Educao Fsica no Brasil: 1850-1920, que a teoria e a prtica dos
higienistas e dos professores/instrutores de Ginstica/Educao Fsica era
3Ademir Gebara (1994) e Lus Alberto Pillati (1994) questionaram a questo da periodizao poltica adotada pela Histria Crtica. Pedro ngelo Pagni no Histria da Educao Fsica no Brasil: notas para uma avaliao(In: FERREIRA NETO, As Cincias do Esporte no Brasil) faz uma crtica sobre a produo de Fernando de Azevedo, Inezil Penna Marinho e Lino Castellanni Filho sobre histria da Educao Fsica, ressaltando lacunas na historiografia destes autores. Hugo Lovisolo no Histria Oficial e histria crtica: pela autonomia do campo ( In: Coletnea do VI Congresso Nacional de Histria da Educao Fsica, Rio de Janeiro, UGF, 1998) v semelhantes essas duas formas de escrever histria na Educao Fsica Brasileira, pois estiveram da mesma forma preocupadas mais com a legitimao de uma pedagogia do que com a reconstruo da histria.
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determinada pelos interesses das classes dirigentes. A este respeito Francisco
Caparroz, afirma, com propriedade que,
"No que as condies a este respeito estivessem
totalmente equivocadas ou que no se devessem operar anlises
neste sentido, no se trata disso, mas sim de mostrar que operar
anlises nica e exclusivamente nesta perspectiva pode levar
fatalmente a certos reducionismos, como acreditar que o
processo histrico totalmente determinado pela
macroestrutura, o que levaria ento a crer, que no h espaos
para as contradies e conflitos, j que h apenas e to somente
um movimento (paradoxalmente) esttico e linear de
reproduo da ideologia dominante." (Caparroz, 1997, p.74-5)
Concordamos com a anlise de Caparroz. No precisamos desconsiderar
as interpretaes desses autores, mas devemos testa-las, no simplesmente, aceit-las
como verdades absolutas.
Por exemplo, Castellani considerou, baseado em um livro de Jurandir
Freire Costa, que os higienistas colaboravam em um projeto racista de supremacia
da raa branca e, tambm, de opresso da classe trabalhadora. Com comprovamos
nesta passagem:
Os mdicos higienistas, ento, atravs da
disciplinarizao do fsico, do intelecto, da moral, e da
sexualidade, visavam ...multiplicar os indivduos brancos
politicamente adeptos da ideologia nacionalista... por isso
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que nos cumpre dizia o Dr. Joaquim Jos dos Remdios
Monteiro, citado por Jurandir envidar todos os esforos para
o melhoramento da gerao atual pela garantia da procriao,
pela educao fsica... Educao Fsica associada Educao
Sexual, a qual segundo os higienistas deveria transformar
homens e mulheres em reprodutores e guardies de proles e
raas puras...4
Castellani baseado nesta citao considerou o movimento higienista
unido na questo da superioridade da raa branca, atribuindo a este movimento um
discurso unvoco e homogneo. Demonstraremos nesta dissertao, que por muitas
vezes, higienistas como Fernando de Azevedo, Miguel Couto e outros, teceram duras
crticas a esta ideologia.
Outra crtica, desta vez da autoria de Hugo Lovisolo, caminha no mesmo
sentido medida que considera que uma histria narrada sem uma maior
imparcialidade, como foi feito na dcada de oitenta, est sujeita a acreditar que
questes como: de que lado est a histria narrada? a quem defende? quais so seus
heris? qual sua moralidade ou sua poltica? tem mais importncia, enquanto
critrios de aceitabilidade, do que a consistncia da narrativa, das provas fatuais, da
originalidade no tratamento dos materiais da histria. O problema, ento, no
porque ou com qual intencionalidade se pensa que os ideais higienistas alienavam o
povo ou eram funcionais ao liberalismo. O problema como se demonstra essa
convico. No se trata de expulsar as convices, trata-se de afinar o como. Nos
termos de Lovisolo:
4 CASTELLANI FILHO. Op. cit., p.44. COSTA, Jurandir Freire. Ordem mdica e norma familiar.
19
Os autores e as produes da "histria crtica" da
educao fsica tornaram-se parte dos dogmas e seus autores,
citados e recitados, por vezes contra sua vontade, parece que
esto alm da crtica terica e emprica. A citao dogmtica
pode ser resultado de que estamos, alguns dos de dentro, com
disposies favorveis para aceitar como vlida e boa sua
narrativa da histria dos esportes e da educao fsica. Uma
narrativa altamente ideologizada pelas preocupaes de
denunciar "projetos" e "aes" de dominao e de justificar os
contraprojetos, por vezes supostos, de emancipao dos grupos
historicamente subordinados ou dominados. Esta sem dvida
uma dimenso da histria, contudo, no a nica nem sempre a
mais relevante. Assim, a histria crtica inventa sua prpria
reduo histrica para se contrapor a outros reducionismos.
Reproduz, em espelho deformado, aquilo que pretende
combater. (Lovisolo, 1998, p.57)
Esta historiografia, segundo Lovisolo, preocupou-se mais em revisar
trabalhos da historiografia da Educao5 que fossem de encontro s suas
interpretaes, do que a reconstruo da histria de uma forma consistente. Assim,
por exemplo, ainda segundo Lovisolo, a histria crtica no poderia ter ignorado que
os fisiologistas e higienistas, no sculo passado na Europa e no Brasil, foram aliados
importantes da classe trabalhadora (Lovisolo, 1998). Pois, despertaram o pblico
para a idia de que um povo sadio e educado um capital de inestimvel valor para o
pas, dando fundamento a reivindicaes dos trabalhadores, ajudando-lhes a
Rio de Janeiro, Graal, 1983, p.213.
20
consolidar a idia de que Sade e Educao deveriam ser prioridades do Estado.
Defenderam a reduo da jornada de trabalho como medida profiltica no combate s
doenas ocupacionais. Enfim, por diversas vezes, colaboraram na melhoria das
condies de vida da populao em geral, como demonstraremos nesta dissertao.
A historiografia comentada nesta crtica, tambm, parte do pressuposto
de que a populao em geral no pode resistir a ideologia dos governos. Se o
governo liberal, todos passam a ser influenciados a ter um pensamento liberal. Se
transportarmos esta lgica para nossos dias entenderamos que o pensamento dos
professores de Educao Fsica era autoritrio at 1985 e passou a ser neo-liberal?
Neste sentido, Max Weber pode nos ensinar que o indivduo deve estar
no centro da problemtica. No seu trabalho mais paradigmtico mostra, por exemplo,
que o desenvolvimento do capitalismo vai depender da mentalidade das pessoas.
Temos que entender que o protestantismo no foi criado para ser funcional ao
capitalismo, mas em uma lgica de interao entre os atores sociais contribuiu na
consolidao do esprito capitalista. Nas suas palavras: "...o racionalismo
econmico, embora dependa parcialmente da tcnica e do Direito Racional, ao
mesmo tempo determinado pela capacidade e disposio dos homens em adotar
certos tipos de conduta racional." (Weber, s.d., p.11)
Finalizando, ressaltamos que uma interpretao comum todos os
autores que o movimento higienista atendia aos interesses da camada dominante
da populao. Defenderemos a tese que esta relao mais complexa, mais
weberiana, procurando afinar esta reflexo.
5 Demerval Saviani (1983), Maria Lusa Santos Ribeiro (1982), Otaza Romanelli (1984), Libneo (1985), Alcir Lenharo (1986), Jurandir Costa (1983 ), Edgar de Decca (1988).
21
O que o leitor pode esperar desta dissertao
No primeiro captulo, faremos uma reviso de literatura com o intuito de
construir o cenrio europeu em que o movimento higienista se moldou. Portanto
usaremos as interpretaes de historiadores europeus que discutiram o tema. Nestes
autores procuraremos a descrio das condies de vida na Europa antes do
movimento higienista. Perceberemos, ento, que a crise que vivia esta sociedade
produziu uma mentalidade de mudana. Descreveremos este discurso, enfocando
seus objetivos, seus ideais. Tambm saberemos como a Sade Pblica era tratada,
para entendermos que o Estado no atendia as demandas da Sade, sendo assim, o
povo encontrava-se em um estado de abandono. Ento surgem diversos movimentos
sociais defendendo e exigindo a interveno do Estado nas questes sociais. Entre
estes, existia um movimentos de intelectuais reformadores, mdicos, educadores, que
constitua o grupo higienista agindo em diversos setores da sociedade.
Em segundo lugar, veremos se no Brasil as condies do trabalho, do
ensino, da sociedade se diferenciavam das condies europias. O quadro que ser
descrito no diverso do europeu, porm observaremos determinadas nfases no
discurso higienista brasileiro. Encontraremos outros postulados, como a idia de que
o povo estava doente e abandonado que substituiria a mentalidade que pregava
que o povo brasileiro era debilitado racialmente por suas caracterstica genticas
herdadas de raas inferiores. Estas teses eram discutidas entre os intelectuais
brasileiros, que influenciaram o movimento higienista no Brasil. Como era este
debate? Como influenciou os higienistas? So indagaes respondidas nesta
dissertao.
22
Ento, finalmente, analisaremos as fontes primrias da Educao Fsica,
onde destacaremos o discurso higienista.
Finalmente, ratificaremos outras interpretaes sobre a histria da
Educao Fsica relacionada ao movimento higienista.
23
MOVIMENTO HIGIENISTA NA EUROPA
Do contexto
Para entender a influncia do movimento higienista no Brasil e na
prpria Educao Fsica, deveremos comear descrevendo, de forma sinttica, o
contexto no qual suas idias tiveram origem e ganharam repercusso. Pareceu-nos
pertinente consultar obras de historiadores europeus que revelassem os aspectos do
24
movimento para, posteriormente, estabelecer suas relaes com o movimento no
Brasil, tentando aprender tanto semelhanas quanto diferenas.
O que podemos perceber, inicialmente, que o movimento surgiu em um
contexto de crescimento do capitalismo industrial, manufatura e grande indstria, na
Inglaterra, Frana e Alemanha. O quadro de constante crescimento da indstria e da
pobreza constituram um cenrio propenso s reformas de vrios setores da
sociedade. Nesse mesmo contexto, Marx, no Capital, elaborou sua famosa lei da
pauperizao crescente do proletariado.6 Assim, as relaes entre trabalhadores e
industriais, com alta explorao e srios problemas de sade, influenciaram na
construo de um iderio que pretendia torn-las mais justas (Rabinbach, 1992).
Mas este no o nico aspecto que caracteriza o contexto at o sculo
XVIII. Inicia-se, tambm, um novo discurso de valorizao da populao,
caracterizando uma mudana na filantropia, que comea a ser adotada por novos
governos liberais na Inglaterra e Frana.
Posteriormente, analisando o sculo XIX, constataremos que o
movimento higienista j se encontrava em alicerces slidos. Vrios profissionais
de diversas reas comeam a disseminar seu discurso de melhoria dos padres de
vida. O argumento de autoridade deste iderio eram as pesquisas cientficas que
comprovavam a urgncia na interveno da sociedade nos problemas da populao.
Como resultado deste processo, o surgimento da cincia do trabalho colaborou na
reduo da jornada, intervalos, melhores condies de vida para o trabalhador
(Rabinbach, 1992).
6 Lembramos que a primeira edio do Capital de 1868. Sobre a manufatura e a grande indstria e suas condies de operao e vida dos trabalhadores sua obra continua sendo uma excelente fonte.
25
Outro aspecto relevante neste contexto o resultado da urbanizao, que
causa novas doenas e epidemias (Rosen, 1994). Uma demanda que no ignorada
pelos mdicos, que defendem diferentes formas de prevenir e tratar as molstias. E,
isto, exige pesquisas, que contriburam para o desenvolvimento da cincia no campo
da medicina e da Sade Pblica.
Sendo assim, a cincia passa a determinar a melhor forma para cada um
cuidar de seu corpo, em um projeto de mudanas de hbitos em relao ele
(Rabinbah, 1992).
Todos estes aspectos colaboraram na efetivao da idia de que a
populao era a grande riqueza da nao.
Industrializao
O sculo XVIII marcou na Inglaterra o desenvolvimento das tecnologias
industriais. Modificando profundamente o panorama social e econmico do pas.
Segundo o historiador francs Andre Alba (1986), a Inglaterra passou de
pas agrcola, onde predominava a mdia propriedade, para um pas de grandes
propriedades, de agricultura renovada, para por fim tornar-se a potncia industrial
daqueles anos.
Os ingleses que trabalhavam, principalmente, com l, com o
desenvolvimento do comrcio internacional, comearam a trabalhar com tecidos de
algodo. Ao mesmo tempo, uma srie de aperfeioamentos tcnicos aumentaram
cada vez mais a produo. Com o surgimento dos teares, nasce o maquinismo. A
indstria metalrgica, tambm, teve um crescimento considervel. O ferro
26
trabalhado de forma cada vez mais eficaz. As tecnologias iam se aperfeioando, at
que, aproximadamente, em 1780, Watt pautando-se em pesquisas anteriores de
Papin e Newcomem, cria a mquina vapor (Alba, 1986, p. 210).
O desenvolvimento dessas tecnologias possibilitaram Inglaterra a
supremacia no campo da indstria. Fato que gerou riquezas, aumento da
produtividade e da produo.
Principalmente, a Inglaterra, mas tambm a Frana, tinham a sua
disposio a tecnologia necessria para o desenvolvimento da indstria. E, foram os
dois pases que primeiro sentiram as conseqncias sociais da industrializao. Ainda
no preparados para o trabalho industrial, os trabalhadores do campo perderam seus
empregos na zona rural. As pequenas propriedades tambm perderam representao
econmica. Muitos trabalhadores rurais migraram para as cidades na Inglaterra.
Segundo Alba (1986, p.257), se fazia uma imensa concorrncia entre os
trabalhadores, portanto os salrios eram muito baixos. O desemprego tornar-se-ia um
problema de propores imensas, aumentando a pobreza.
Este aumento da pobreza, que assolava a Inglaterra desde o fim da Idade
Mdia, passou a ser a preocupao central de alguns autores na Europa. George
Rosen nos mostra que vrios projetos foram elaborados para amenizar o problema.
Em 1601 a lei Elisabetiana tornou-se a base da administrao inglesa da Lei dos
Pobres. (Rosen, 1980)
Inicialmente, ela delegava o cuidado dos pobres s comunidades locais.
Como as parquias, que tiveram a incumbncia de atender esta demanda. Segundo
Rosen:
27
A despeito de vrias aes, porm, o problema da
massa de trabalhadores, permaneceu sem soluo. Na segunda
dcada do sculo XIX, a pobreza e o infortnio social se
espalhavam mais do que nunca, em virtude das mudanas na
agricultura e na indstria.(Rosen, 1994, p.153)
No sculo XVIII, a pobreza cada vez mais passou a ser encarada como
uma doena social. Interessante observarmos que o trabalho nesta poca visto
como uma virtude moral, e o cio um vcio. Se o indivduo est ocioso, por falta de
vigor moral. A pobreza era encarada como um vcio individual e eticamente
condenvel.
No Antigo Regime, os Hospitais Gerais eram recluses para os
vagabundos. A esmola, as companhias de caridade eram ineficazes no combate
pobreza.
Existiam projetos, datados desde o sculo XVII, propondo a utilizao da
fora de trabalho dos pobres. Rosen cita os mais relevantes da Inglaterra. Estes so
os trabalhos de Samuel Hartlib, Willian Petty e Jonh Graunt.
Samuel Hartlib, segundo Rosen, estava interessado em propostas de
reforma econmica e social. Em 1641, publica A Description of the Famous
Kingdom of Macaria. Nesta obra o autor demonstra vrios experimentos sobre
remdios obtidos atravs das experincias cientficas. Ele tambm defendia que
alguns padres teriam mais utilidade s comunidades se adquirissem mais
conhecimentos sobre a arte de curar. Hartlib v no padre, que atende aos pobres, a
possibilidade de dar uma ateno mdica mais preparada s classes populares. E
porque no o mdico? Esta classe era inacessvel aos pobres, pois seus servios
tinham um alto custo econmico, sem falar que existiam em pequeno nmero.
28
Autores da esquerda tambm adotaram esta proposta de ateno mdica por conta
dos padres, como exemplifica Rosen com Gerrard Winstanley. Este era membro do
Partido Democrtico Popular conhecido como levellers (Rosen, 1980). Hartlib
tambm desenvolveu outro plano de ateno aos pobres, onde propunha uma lista de
mdicos dispostos a prestar servios gratuitamente.
Outro autor citado por Rosen Petty. As propostas de Petty estavam
coerentes com uma tendncia do puritanismo de esquerda e direita, que era um
desejo pragmtico de aplicar os conhecimentos s necessidades prticas e imediatas
da sociedade. Ele prope um hospital onde os mdicos dariam e receberiam
instrues. Este seria bem equipado, comandado por um mdico mais experiente, que
dissecaria os corpos e supervisionaria s pesquisas experimentais sobre s doenas.
Esta inclinao para a elaborao de projetos o incio da composio de uma
estrutura terica e prtica dentro do qual os problemas sociais da sade seriam
enfocados no sculo XVIII e XIX no movimento higienista. Petty tambm foi
pioneiro em estudos aritmticos de medio dos fatores sociais e econmicos da
populao.
Graunt tambm seguiu esta orientao estatstica de anlise dos fatores
sociais. Ele comeou a considerar os nmeros de morte e nascimento em relao s
doenas, chegando vrias concluses. Entre suas descobertas percebeu que o
nmero de mortes no campo era menor em comparao com a cidade. Fazendo estas
descobertas, demonstrou a utilidade da aritmtica poltica de Petty. Todavia, ainda
foi este ltimo que deu a maior contribuio a esta rea. Petty percebeu que no
bastava considerar a fertilidade natural e a populao como condies primordiais de
alcance da prosperidade econmica, era preciso ultrapassar os obstculos ao
29
desenvolvimento da populao. Achava necessrio criar condies sociais
necessrias ao desenvolvimento da populao, capazes de promover a sade e
prevenir a doena. E para ele, o Estado tinha o dever de criar estas condies.
Vimos que as polticas de Sade Pblica at o incio do sculo XVIII na
Inglaterra eram inestruturadas, entregues aos poderes locais sem recursos para
investir na sade.
A urbanizao e as epidemias
Outro problema gerado pela industrializao era a urbanizao sem
planejamento. A medida que os trabalhadores do campo migravam paras as cidades
encontravam condies higinicas precrias. Antes estavam isolados no campo,
portanto a transmisso das doenas era dificultada. Mas agora estavam todos juntos
em ambientes insalubres. Para os mdicos isto significou uma maior proliferao das
enfermidades.
No havia saneamento bsico apropriado. Somente partir do sculo
XVII, o Estado passou a cuidar deste problema. Anteriormente, isto cabia aos
indivduos. Mesmo assim o Estado no cumpria seu dever, segundo Jonh Stow, h
muito negligenciada e forada a ser um canal, muito estreito e imundo, ou por
completo obstrudo (STOW apud ROSEN, 1994, p.100)
De fato as epidemias se proliferaram pelas cidades. Surgindo novas
doenas. Segundo Rosen, Rudolf Vircow elaborou uma teoria segundo a qual a
doena epidmica seria uma manifestao de desajustamento social e cultural. Ele
defendia que com o novo contexto histrico apareciam novas doenas epidmicas.
30
Nos sculos XVI e XVII, entre estas novas doenas estavam o suor ingls, o tifo
exantemtico, o escorbuto, e outras (Rosen, 1994)
O suor ingls apareceu repentinamente no meio dos soldados ingleses, e
rapidamente espalhou-se pela populao. Os principais sintomas eram febre alta,
dores no corpo, profunda angstia. Incidiu em muitos ingleses. Em Londres,
segundo Rosen, matou em uma semana dois prefeitos e seis vereadores. Da mesma
maneira que surgiu a doena desapareceu de repente, para retornar em outras
ocasies (Rosen, 1994)
O raquitismo foi outra doena que se alastrou pela Inglaterra. Rosen
observa que esta doena transformou-se em uma ameaa para a sade das crianas.
No se tem certeza de que o raquitismo teve origem no sculo XVII, mas a causa da
manifestao e aumento da incidncia da doena, nos conta Rosen, tem origem na
severa presso econmica e terrvel pobreza, em especial no sul da Inglaterra
(Rosen, 1994, p.80). O raquitismo poderia ser evitado pelo consumo de clcio,
fsforo e vitamina D. Mas como o leite (rico nestes componentes) estava sendo
pouco consumido, pois os preos estavam altos e o desemprego aumentava
abruptamente, a populao se absteve de seu consumo, possibilitando a incidncia da
enfermidade.
Na Frana a industrializao comea efetivamente no sculo XIX,
trazendo os benefcios, mas tambm os problemas enfrentados na Inglaterra. Durante
o sculo XIX este pas enfrentou muitos problemas referentes sade pblica. A
urbanizao apressada e sem estrutura condicionou os novos operrios a pssimas
condies de vida. Rosen observa a semelhana dos stos lotados de pessoas em
Manchester e Liverpool aos de Lille e Ruo.
31
Essas pauprrimas condies de vida despertaram uma mentalidade de
reao contra este quadro. Diversos escritores, mdicos, filsofos, comearam um
discurso de melhoria de vida da populao. Sem duvida esta mentalidade que
comea a ser construda vai dar suporte ao movimento higienista.
Como podemos observar at agora neste captulo, os governos
praticamente no se preocupavam com a populao. No existe uma poltica nacional
de sade que pudesse cuidar dos problemas da preveno, da nutrio, da habitao,
do saneamento. Neste momento surge uma mentalidade de interveno nesta situao
de extrema pobreza . Este discurso cria os alicerces do movimento higienista, que
usaria a autoridade cientfica para convencer governos, industriais e a prpria
populao. Observem este discurso do poeta francs Charles Baudelaire:
Como pode algum seja de que partido for, e
sejam quais forem os preconceitos sobre os quais se criou, no
se sensibilizar diante dessa multido doentia que respira a
poeira das fbricas, engole a penugem de algodo, tem seus
organismos saturados com chumbo branco, mercrio e todos os
venenos necessrios criao de obras de arte, e dorme, em
meio a vermes, em bairros onde a maior e a mais simples das
virtudes humanas se aloja ao lado dos vcios mais
emperdernidos e do vmito do penitencirio? (BAUDELAIRE
apud ROSEN, 1994, p.188)
Esta mentalidade parece atingir diversos segmentos profissionais. A
busca do melhor por meio da interveno, influenciou a Filantropia em novas
maneiras de cuidar do povo, como veremos seguir.
32
Uma nova filantropia
O crescimento da pobreza constrangia o Antigo Regime. E, a pobreza
continuou depois da Revoluo Francesa. Contudo, a estratgia para cuidar da
populao mudou no discurso da filantropia. Se antes a filantropia se resumia a um
assistencialismo, ela busca agora o aconselhamento. O objetivo prometido pela
Filantropia ensinar o povo a se cuidar.
Para exemplificar como se procede o tratamento do cuidar do povo,
tomemos as metforas de Paul Veyne. Ele d o exemplo dos motivos que levaram ao
fim dos espetculos dos gladiadores no Imprio Romano.
Por que os combates entre os gladiadores terminaram no sculo IV?
A resposta evidente para isto aponta para o fato dos imperadores
tornarem-se cristos, portanto no aceitariam a gladiadura. Mas o autor responde:
"no nada disto" (Veyne, 1995) .
Na opinio de Veyne no o cristianismo a causa do fim das lutas, mas
sim, a mudana das prticas governamentais em relao ao povo.
Estas prticas poderiam considerar o povo como um rebanho: que
morava nas terras do dominador. O povo vive bem se as circunstncias forem
favorveis ao imperador, levando seu rebanho em uma determinada ordem, ao
mesmo tempo, embrutecendo seus sditos. Ele no quer que seu rebanho enfraquea.
Outra prtica seria tratar seu povo como crianas: O imperador iria
considerar seus sditos como indefesas crianas.
33
E a ltima tratar o povo como um fluxo de guas, que guiam-se por si
prprias. A funo do Estado s fiscalizar este fluxo. Veyne identifica esta prtica
no Welfare State.
No caso do Imprio Romano, o lder deste considerava o povo como um
rebanho, e no queria que este enfraquecesse, determinando o que era melhor para o
povo. Sendo assim, permitia as lutas que familiarizavam a populao com o sangue e
a morte.
At que o Senado de Roma desfeito. Isto pode ter originado pavor na
populao. Deste modo, o imperador no consegue ver limites em seu governo, e
comea a agir de forma paternalista. Considera seu povo como crianas que devem
ser afastadas da imoralidade. Estes imperadores paternalistas julgam o assassinato
gratuito da gladiatura uma imoralidade mais grave que o teatro. D-se desta maneira
o fim da gladiatura no decorrer do sculo IV. Portanto, segundo Veyne, so trs
formas de cuidar do povo por parte dos governos. (Veyne, 1995)
Aqui est nosso problema. A Filantropia v o povo europeu do sculo
XVIII como imorais. Ela quer afast-lo dos vcios, educar, modificar seus hbitos. O
povo passa a ser pensado como uma criana que no sabe o que bom, ento, o
filantropo pretende ensin-lo a viver. Racionaliza que isto far o povo crescer e
ganhar autonomia, podendo se sustentar sem o auxlio financeiro dos governos.
Para isto usa duas estratgias: ensinar, principalmente, a criana; e
plantar o hbito de poupar dinheiro.
Jacques Donzelot nos mostra que a Filantropia incorporava uma
mentalidade de economizar gastos pblicos e conservar energias humanas em prol
34
do Estado. Era preciso convencer o Estado a intervir efetivamente sobre a pobreza,
gerando uma riqueza nacional.
Na extremidade mais pobre do corpo social, o que denunciado a
irracionalidade da administrao dos hospcios. Estes cuidavam de muitas crianas
abandonadas. O Estado por sua vez, segundo os filantropos, se beneficiava pouco
da criao de uma populao que s excepcionalmente chegaria a uma idade onde
poderia reembolsar os gastos que provocou. Trata-se, neste caso, da ausncia de uma
economia social. (Donzelot, 1980)
O Poder judicirio denunciava que existiam um nmero considervel de
crianas mal cuidadas e que escapavam de toda e qualquer autoridade. No queriam
coloc-las na priso. Orientavam seus funcionrios para fazerem o necessrio para
que os pais cumprissem seus deveres. Eles no podero vos rechaar pois
acabamos de promulgar uma srie de leis de proteo a infncia que vos autorizam
a passar por cima da autoridade paterna.7
Conservar as crianas significaria por fim aos malefcios da imoralidade.
Poderamos agrupar sob a etiqueta de "economia social" todas as formas de direo
da vida dos pobres com o objetivo de melhorar suas condies de vida, de obter um
nmero desejvel de trabalhadores com o mnimo de gastos pblicos. Em suma, o
que se convencionou chamar de filantropia.
A filantropia preocupava-se em formar moralmente o homem. Por
exemplo, segundo Donzelot, o que perturbava a moralidade das famlias eram os
filhos adulterinos, os menores rebeldes, as moas de m reputao, enfim, tudo o que
poderia prejudicar a honra familiar, sua reputao e sua posio. Em compensao, o
7 Donzelot cita uma fala de um juiz, 1980, p.138.
35
que inquieta o Estado o desperdcio de foras vivas, so os indivduos inutilizados
ou inteis. (Donzelot, 1980) A filantropia tenta dar conta dos dois aspectos. Ela tenta
conter um excesso de liberdade, o abandono nas ruas. Instauram tcnicas que
consistem em limitar esta liberdade, em dirigir as crianas para espaos de maior
vigilncia, ou seja, a escola e a habitao familiar, tendo o objetivo de controlar e
inculcar novos hbitos.
Essa estratgia de educao, alm da conservao das crianas, pretendia
ensinar o povo a poupar. Assim, ao invs de um direito assistncia do estado, cujo
papel seria aumentado, vindo a perturbar o jogo dessa sociedade, ela pretendia
fornecer os meios para o povo alcanar uma futura autonomia atravs do ensino da
virtude da poupana. Por parte do Estado, o papel seria sancionar, atravs de uma
tutela cuidadosa, as demandas de ajuda que ainda permanecessem, j que elas
constituiriam indcio flagrante de falta de moralidade. (Donzelot, 1980)
A filantropia prega o conselho eficaz em vez da caridade humilhante,
norma preservadora no lugar de represso destruidora.
isso que os filantropos se prope a mudar, fazendo da incitao a
poupana a chave mestra do novo dispositivo da assistncia.
O Paradoxo do Liberalismo
Podemos, agora, refletir um pouco sobre os paradoxos desta mentalidade
que vem se construindo aos poucos at desembocar no movimento higienista.
Temos um problema aqui. Como fica o papel do Estado na interveno?
Vimos que comea a se sedimentar um discurso de melhoria das condies de vida, o
36
que s se sustentaria com a interveno do Estado. J a Filantropia quer reduzir o
papel do Estado assistencialista, quer que o povo aprenda a se cuidar sozinho, mesmo
que para isto seja necessria a interveno do Estado atravs de uma Educao
moralizadora. Mesmo de maneiras diferentes, os dois convidam o Estado a modificar
uma realidade caracterizada pelas ms condies de vida.
Eles fazem isto porque o Estado no cumpre seu papel de atender as
necessidades bsicas da populao. Ele no intervm. Com a Revoluo Francesa,
que significou o advento do Liberalismo Econmico, as polticas pblicas de sade
estavam fadadas ao abandono. Se antes em governos absolutistas, o Estado no se
manifestava efetivamente em relao a estas questes, imaginem agora com o Estado
Mnimo do Liberalismo, onde os gastos dos governos devem ser reduzidos. Mas
aqui que a Histria se torna surpreendente. O Liberalismo promoveu o crescimento
do Estado, quando atendeu s solicitaes do movimento higienista para a
construo de polticas pblicas de sade.
Segundo Rosen, Robert Owen tinha antevisto, nos primeiros anos de
Revoluo Industrial, a necessidade de ao do Estado para pr freio em algumas das
conseqncias da liberdade econmica:
A difuso geral de manufaturas em um pas gera
um novo carter em seus habitantes; e como esses carter se
molda sobre um princpio muito nocivo felicidade individual
ou geral, produzir os males mais lamentveis e permanentes, a
no ser que essa tendncia seja neutralizada pela interferncia
de leis. (Owen apud Rosen, 1994, p.172)
37
O discurso higienista vai convencer os governos da necessidade da
interveno do Estado. Mesmo este sendo Liberal.
Estas interpretaes mostram que somente a Histria Poltica no d
conta da descrio de todo o contexto histrico. Parece-nos que revela, neste caso, a
ponta desta montanha de gelo. Contudo, toda a histria tem seus limites. No
queremos criar um antagonismo entre histria poltica e histria social. At mesmo
quem comeou com a micro-histria (uma das possibilidades da histria social)
contando a realidade por baixo em O queijo e os vermes8, como Carlo Ginzburg9,
se preocupa com o fato deste modelo se efetivar como o nico modo de escrever
histria10, segundo ele, no podemos esquecer a histria poltica. Contudo devemos
admitir que a histria social tem mais a contar sobre o objeto Sade pblica.
Conforme o objeto de estudo, tanto a histria social como a histria poltica do
conta de determinados aspectos. Todos importantes para compreendermos a
realidade.
8 Publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 1976. 9 Carlo Ginzburg, historiador italiano, autor da obra O queijo e os vermes onde inaugura uma concepo de histria preocupada com a viso de determinado ator social sobre a realidade, o que se convencionou chamar micro-histria. Este modelo ganhou fora dentro da histria social, o que preocupa este autor que considerar este modismo perigoso, pois no podemos esquecer a histria poltica.
38
O idealismo do movimento higienista
No incio do sculo XVII, as doenas ocupacionais comearam a ser
temas de obras mdicas. Ramazzini11 publicou o primeiro tratado geral sobre
doenas dos trabalhadores.
A classe trabalhadora da indstria crescia vertiginosamente na Europa.
Devido este fato, estes trabalhadores foram os primeiros, juntamente com os
mineiros e marinheiros, a terem seus ofcios investigados pela Medicina. Mas o
clssico de Ramazzini foi De Morbis Artificum Diatriba (Discurso sobre as
doenas dos artfices). Este autor dedicou-se a chamar a ateno para necessidade de
prevenir as enfermidades dos trabalhadores, estudando mais de quarenta profisses.
As jornadas de trabalho eram intensas e tomavam quase todo o dia. O
trabalhador esgotava-se em pouco tempo, ocasionando vrias enfermidades, falta de
disposio, que eram encarados como tendncia ociosidade, como falta de virtude
para o trabalho, e no uma doena.
A produo industrial era, na Inglaterra, central para a atividade
econmica. Portanto, o trabalho ocupava posio de destaque nas preocupaes da
sociedade.
No sculo XVIII e XIX, o trabalho industrial j representava o centro das
preocupaes sociais e econmicas. Era ele que iria garantir a riqueza da nao. E
qualquer infortnio que fosse causado ao trabalho era fonte de discusses. Neste
10 Cf. Ginzburg apud Maria Pallares-Burke. Descobertas de um Espectador, Folha de So Paulo, caderno mais, 13 de junho de 1999. 11 George Rosen cita este autor por sua obra A doena dos trabalhadores, So Paulo, Fundacentro, 1985.
39
quadro o trabalhador passa a ser importante, o gerador das riquezas, portanto deveria
ser cuidado:
Uma populao grande e sadia estava no centro
do interesse dos aritmticos polticos porque era um meio,
essencial, para se aumentara riqueza e o poder da nao do
Estado. Em conseqncia, estadistas, legisladores,
administradores, mdicos, homens de negcio reconheceram
suas responsabilidades ante o povo. Responsabilidade, por
exemplo, pelos cuidados da sade, pela preveno das doenas,
pela assistncia mdica aos necessitados. (Rosen, 1994, p.95)
O sculo XIX, como nenhum outro, colocou em pauta o corpo e seus
cuidados. Foi neste sculo que o homem tentou identificar a importncia e os limites
do corpo. Mais do que isto, foi a poca de debate em defesa de uma melhoria das
condies de vida do trabalhador industrial. Para retratarmos esta poca
explicaremos os ideais populacionistas e a idia da fadiga. So todos tpicos que
levam o homem a cuidar de seu corpo, buscando novas formas de preserv-lo.
No sculo XIX, dois pensamentos colaboram com o discurso do corpo
como uma mquina. So estes: a idia populacionista; e a descoberta da fadiga. Estes
dois eventos apoiados pelas descobertas cientficas no campo da fisiologia
sustentaram o discurso do movimento higienista na Europa.
Mas em que consistem estas representaes que constituram a base do
pensamento higienista?
Comearemos pela a idia populacionista.
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Cada homem fazia parte da fora social, que por sua vez dependeria da
qualidade e quantidade dos trabalhadores. Ento, a riqueza de uma nao media-se
pelo nmero de trabalhadores que ela poderia ter. A idia populacionista defendia a
livre procriao, que garantiria uma maior fora social.
Portanto, cada mulher e cada homem visto como um capital da nao.
Imaginem uma mquina que por falta de cuidados quebra-se, isto
representa um prejuzo. Se o corpo do homem passa a ser visto como uma riqueza,
qualquer adversidade que faa este homem adoecer ou falecer representa um prejuzo
irreparvel para a fora social da nao. Com isto, surgem discursos que defendem o
cuidado e a relevncia de cada trabalhador para o pas.
Se os seres humanos passam a ser vistos como o capital da nao, como
recursos, devem ser cuidados. neste contexto que descoberto o conceito de
fadiga, que fundamental para a melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores.
A fadiga parece ser o termo do sculo XIX para expressar o que
sentimos hoje quando dizemos que estamos com estresse. Estamos esgotados, a
vida conturbada nos deixa abatidos. Da mesma forma, o trabalhador industrial do
sculo passado sentia a fadiga, que parecia limitar a produo.
Anson Rabinbach em The Human motor nos explica como deu-se esta
descoberta dos limites do homem. Segundo ele, os primeiros sinais de uma mudana
na percepo de trabalho aparecem na literatura mdica em 1887. Os mdicos
comearam a considerar o excesso de trabalho como causa de degeneraes fsicas.
Esta literatura apontou a fadiga como o sinal principal da recusa do corpo em aceitar
as disciplinas da sociedade industrial moderna. Se a fadiga existiu antes da sociedade
moderna, ainda no havia aparecido como um termo mdico, nem recebeu ateno
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significante. Em 1870, porm, um discurso mdico novo comeou a desenhar a
topografia de fadiga e colocar marcos em seu terreno previamente inexplorado.
(Rabinbach, 1992)
Rabinbach cita mdicos que comearam a publicar artigos tematizando a
fadiga. A definio de fadiga do francs Carrieu defende que o uso exagerado dos
elementos anatmicos causam problemas, muitas vezes irreversveis ao organismo.
A imagem moderna da fadiga revela a crescente preocupao do homem
com sua sade e com a sade do trabalhador. A doena, a invalidez, ou a morte
representam imediatamente uma perda para a economia do pas.
A fadiga era o grande mal, com ela no se produzia, desanimando os
trabalhadores, representando prejuzo.
Lovisolo encontra na obra de Comnio (1592-1670), no sculo XVII, a
idia de fadiga. Ele preocupado com os processos educacionais, via que a fadiga
atrapalhava a absoro dos contedos. Observava que longas horas de estudo sem
descanso comprometia a eficincia e produtividade do estudo. Dois sculos antes da
fadiga se tornar o centro das pesquisas sobre o trabalho, este pedagogo j a
identificava como um mal que deveria ser evitado na Escola que idealizou. (Lovisolo,
1999).
Rabinbach busca em Nietzsche explicaes para esta idia de fadiga no
sculo XIX. Segundo este ltimo, e outros pensadores desta poca, a fadiga foi
identificada com a prpria modernidade. A desintegrao caracteriza este tempo, e
tambm a incerteza: nada est firmemente em seus ps ou em uma f dura, um vive
para o amanh porque o dia aps o amanh duvidoso. Tudo em nossa vida
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escorregadio e perigoso, e o gelo que nos suporta tornou-se finamente arriscado,
onde ns andamos, logo ningum poder andar (Rabinbach, 1992).
No pensamento do sculo XIX, a noo de fadiga representava um
pessimismo em relao ao futuro da humanidade.
A idia de conservao da energia e da entropia, tambm, acarretaram
uma grande preocupao com o esgotamento destas energias, que resultaria em uma
situao apocalptica. Por exemplo, Balzac planejou escrever uma patologia da vida
social, para mostrar como o estoque de foras dos homens diminuda por
demasiada despesa do esforo. A descoberta da entropia atestou uma viso
pessimista da natureza, em que, a quantidade disponvel de energia estava
diminuindo continuamente.
Esta idia de energia que deve preservada, tambm foi apoiada pelas
descobertas cientficas da fisiologia. As descobertas da termodinmica.
Anson Rabinbach explica que no sculo XIX, depois de controvrsias
entre fisiologistas da poca, aplicou-se o princpio de conservao de energia no
corpo humano. Este princpio mostrou que atravs da respirao e ingesto de
substncias qumicas (como gorduras e protenas), os msculos absorviam calor do
meio externo, transformando este combustvel em energia, ou seja, transformando
energia em energia a ser utilizada.
O msculo uma ferramenta por meio da qual a transformao de fora
efetuada. Mas no a prpria energia, esta ser absorvida do meio externo. Ento,
uma nutrio apropriada cuidaria da melhoria das foras, a capacidade de produzir
aumentaria.
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Da mesma forma que a mquina precisava de um combustvel para seu
funcionamento, no seria diferente com a mquina mais complexa da histria, ou
seja, o motor humano. A mesma metfora que tinha sido inaugurada no sculo XVI
por Descartes, que dizia que o corpo do homem era como uma mquina. Vejamos a
seguinte passagem deste filsofo:
O que no aparecer de maneira alguma estranho
a quem, sabendo quo diversos autmatos, ou mquinas mveis,
a indstria dos homens pode produzir, sem aplicar nisso seno
pouqussimas peas, em comparao grande quantidade de
ossos, msculos, nervos, artrias, veias e todas as outras partes
existentes no corpo de cada animal, considerar esse corpo uma
mquina que, tendo sido feita pelas mos de Deus,
incomparavelmente mais bem organizada e capaz de
movimentos mais admirveis do que qualquer uma das que
possam ser criadas pelo homem. (Descartes, 1999, p.11)
As novas descobertas da fsica, especialmente a termodinmica, e da
fisiologia do sculo XIX legitimaram o discurso higienista, que adotou a estratgia
da metfora do motor humano para realizar seus objetivos.
Foram os higienistas que pregaram novidades no cuidar do corpo.
Novidades que prometiam alcanar um melhor bem-estar para a vida quotidiana, que
afastariam as epidemias, que tornariam os homens mais dispostos para o trabalho,
que buscariam riquezas para o pas.
A metfora da mquina humana formou parte de uma estratgia de
popularizao dos novos hbitos higinicos. Que pretendiam responder questes
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como: Como atingir os trabalhadores da indstria? Como melhorar as condies de
vida da populao em geral?
Um dos papis centrais da metfora do homem-mquina foi o de
convencer os capitalistas a cuidar de seus recursos humanos.
O motor humano
O contexto histrico legitimou a necessidade de cuidar do trabalhador.
Rabinbach elenca vrias comprovaes empricas desta tese na Europa, como
veremos neste captulo.
Durante as ltimas dcadas do sculo XIX, o liberalismo europeu
alinhou-se com as doutrinas cientficas da conservao da vida. Seus pilares gmeos
eram medicamento e biologia. A higiene social sancionou a viso de que a sociedade
seria melhor atravs da noo de equilbrio. Para os reformadores, era a sociedade
um delicado organismo, cujas funes dependiam da interveno estatal. Estatsticas
sociais poderiam atestar o custo da negligncia em relao s condies sociais,
como tambm para os benefcios potenciais de remover seus efeitos danosos. Teorias
cientficas foram adotadas atravs dos estudos estatsticos para enfatizar as razes
sociais da doena. O discurso higienista pregava a melhoria na sade, a longevidade,
e a conservao do trabalhador, que poderiam aumentar as foras produtivas da
nao. Na obra de Louis Querton (1905), o catecismo da energia social era patente.
Reunindo argumentos biolgicos, estatsticos, e sociolgicos, para apoiar o aumento
da interveno estatal para a construo, conservao, e encarecimento da mquina
humana.
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O Solidarismo, uma doutrina desenvolvida por Lon Bourgeois,
enfatizava a moral mtua e coletiva, as obrigaes sociais de todos os scios
produtivos da sociedade. Reformas que poderiam reduzir a explorao, promover a
produtividade, aumentando a justia social.
Em 1900, em uma exposio em Paris, o ministro socialista do comrcio,
Alexandre Millerand, apontou os resultados positivos de tais agrupamentos
incentivadores da defesa social, aumentando a solidariedade social. Segundo ele, as
reformas reduziram as fraquezas individuais, permitindo superar os obstculos do
ambiente.
Economistas do Solidarismo, inclusive Charles Guide, Charles Rist, Paul
Cauws, e Raoul Jay, fundaram uma revista onde enfatizavam os custos sociais da
sade debilitada do trabalhador. Este peridico criticava os baixos padres de vida da
populao, o que causava uma queda na produtividade pessoal do trabalhador. O
Solidarismo era a base ideolgica dos reformadores republicanos, que acreditaram
que melhorando a sade dos trabalhadores, melhorariam a produtividade e
preservariam o capital da nao. Raoul Jay resumiu o clculo essencial do
positivismo social francs em 1904. Para ele, uma nao que permitisse a destruio
ou reduo das foras mentais e fsicas dos trabalhadores manuais faziam um
pssimo planejamento. Essas foras fsicas e morais so uma parte do capital
nacional como as mquinas. O industrial que para reduzir os custos de produo, no
faz a manuteno das mquinas, seria considerado um tolo. Segundo ele, se ns no
pensamos o mesmo de um industrial que impe um trabalho excessivo aos
trabalhadores, paga um salrio insuficiente, porque ns sabemos que ele nunca ter
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que consertar o dano causado pela negligncia criminal de deteriorar a sade do
indivduo. O dano assumido pela nao. (Rabinbach, 1992)
O interessante observarmos, que o movimento higienista elabora uma
estratgia para convencer os governos e empresrios baseada no produtivismo. Mas
seu interesse no colaborar em uma maior explorao do povo. Eles estavam
preocupados, tambm com a sade da populao. Pois se no fosse assim, o quadro
de explorao do sculo XVII poderia ser mantido. Quando um trabalhador
adoecesse, e tivesse sua produo diminuda era fcil substitu-lo devido s altas
taxas de desemprego. Deste modo, a produtividade se manteria. Mas os higienistas
querem regular esta explorao com o objetivo de diminuir a pobreza, melhorando as
condies de vida.
O poder operrio deveria ser visto, segundo os higienistas, como um
capital da nao.
Em meados de 1900, a cincia de trabalho se tornou uma arma intelectual
poderosa no arsenal dos reformadores de classe-mdia. Na atmosfera de intenso
debate sobre a durao da jornada de trabalho, nos riscos sade do trabalho
industrial, nas controvrsias em cima de salrios e normas de trabalho, a cincia do
trabalho comeou a representar um papel importante nos esforos dos reformadores
liberais em mediar o conflito social. Armand Imbert, em um estudo, tentava
estabelecer uma soluo mais eqitativa do conflito entre trabalho e capital. Em
1903, no Congresso de Bruxelas de Higiene e Demografia, os lderes do movimento
de higiene social americano e europeu uniram-se para debater como a cincia de
trabalho poderia ultrapassar os limites do laboratrio, formando polticas e
legisladores com argumentos em defesa dos mtodos especficos para a organizao
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de trabalho. Quatro anos depois quando o delegados do congresso voltavam a se
encontrar em Berlim, os cientistas e reformadores queriam que o Estado cooperasse
na aplicao da cincia de trabalho para reduzir fadiga, acidentes, e as horas de
trabalho.
A preocupao destes reformadores refletiam as ansiedades de uma
sociedade que entrava na idade industrial. Mas tambm mostrou as realidades de uma
fbrica nova, mecanizada, nascida no auge da Revoluo Industrial. Os argumentos
contra a fadiga, favor da qualidade do ambiente de trabalho, pautavam este
contexto. Imbert via na reduo da jornada de trabalho uma forma de aplicao da lei
da Conservao da energia, que para ele, no se aplicava a um msculo, mas sim,
sociedade como um todo (Rabinbach, 1992). Os deterioradores do motor humano
que causavam danos ao trabalhador, substituam a mo-de-obra facilmente, deixando
ao Estado as conseqncias das doenas. Por estas razes, a cincia experimental era
impretervel no papel de achar uma soluo verdadeiramente eqitativa para estes
conflitos.
Uma questo que pode ser colocada neste momento como alguns
pensadores de esquerda daquela poca viam estes ideais higienistas. Ser que eram
to rigorosos como os marxistas da Educao Fsica em suas crtica?
Muitos socialistas europeus compartilharam o universo mental do
movimento higienista. Mesmo se eles s vezes fossem cticos em relao aos
motivos das reformas liberais. Mas em face do quadro de abandono em que se
encontrava a populao, a necessidade da interveno estatal era uma questo que
superava as barreiras ideolgicas. Segundo um sindicalista francs, a solidariedade
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entre os indivduos ferida pela explorao e pelo o esgotamento pessoal, com isto a
energia de produo est correspondentemente reduzida. Um panfleto que circulou
com o ttulo Travail et sumenage (Trabalho e Esgotamento) reivindicou contra o
esgotamento das energias, como regra na experincia do trabalho. Alguns
economistas, e at mesmo empresrios industriais, compartilharam esta percepo do
poder operrio como um recurso nacional precioso. O discurso em preservar o poder
operrio como a soluo para as questes sociais, emergiram gradualmente, ao
trmino do sculo XIX, em um espao entre o sindicalismo e o liberalismo. Depois
de 1900, a conservao da energia foi aplicada a vrios assuntos sociais: a jornada
de trabalho, acidentes industriais, seguro de sade, a durao do servio no exrcito,
o mtodo formal de educao, e o papel de mulheres na fora operria. Na Frana e
na Alemanha, no perodo at o Primeira Guerra Mundial, a cincia do trabalho
contribuiu a uma constelao nova de conhecimentos e polticas dedicadas a
conservar a energia do corpo social. (Rabinbach, 1992)
Se pensarmos que estas comprovaes empricas de que, na Europa, a
cincia do trabalho legitimou as lutas sindicais, podemos refutar interpretaes que
vislumbram o movimento higienista como apenas um aliado dos interesses
dominantes, embora pudessem existir convergncias e at elas serem enfatizadas
para se atingirem os objetivos .
Muitos empresrios e economistas, segundo Rabinbach, resistiram, no
entanto, as propostas dos higienistas. Diziam que os custos dos salrios mais altos
para o Capital fariam a indstria perder competitividade. Outros diziam que com
menos horas de trabalho, o trabalhador iria mais freqentemente para a botequim,
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consumiria mais bebidas alcolicas e ento chegaria ao trabalho sem condio para
produzir.
Em contrapartida, os higienistas explicitavam exemplos que provavam o
crescimento da produtividade com a reduo da jornada e aumento do salrio. O
economista Lujo Bretano acreditava neste pressuposto, argumentando que com o
aumento dos salrios, o trabalhador ganharia em satisfao e bem-estar, refletindo
este benefcios em maior produtividade. (Rabinbach, 1992) Este discurso no foi
aceito sem muita resistncia, como do economista alemo Wilheim Hasbach. No
entanto, cresceu o nmero de obras que defendiam a melhoria nas condies de
vida dos trabalhadores e a reduo do tempo de trabalho.
Na Alemanha, um exemplo que defendia a melhoria das condies de
trabalho e de vida a obra O Comrcio de Algodo na Inglaterra e no Continente,
uma pesquisa das indstrias de algodo inglesas e alems, escrita em meados de
1890 por Gerhard Schulze-Gvernitz. Para ele, a superioridade fsica da operao de
fbrica inglesa quando comparada com o Continente reconhecida pelos alemes da
mesma maneira que a prpria superioridade fsica deles (Rabinbach, 1992). Sua
anlise atribua esta superioridade a salrios mais altos e aumento do consumo.
Ainda, parafraseando este autor, o investimento que a indstria inglesa fez em sade
almejava, principalmente, um padro melhorado do viver. O progresso enorme na
nutrio do trabalhador, que a Inglaterra viu durante o sculo XIX, o fator mais
importante favorvel capacidade para competio da indstria inglesa. (Rabinbach,
1992)
Outro exemplo a ser citado o da Gainsborough Commission, que
quando completou sua investigao na Alemanha, concluiu, em 1905, que para a
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comprovao das teses dos reformadores alemes, que apesar de horas mais longas, o
trabalhador daquele pas era inferior ao trabalhador ingls em produtividade pessoal.
Uma comparao detalhada dos germnicos com os trabalhadores americanos,
administrada no mesmo ano, mostrou resultados semelhantes.
John Rae, um economista socialista britnico, defendia a experincia
europia na Jornada de Oito Horas. Segundo este, era possvel para os fabricantes
da Europa melhorar a capacidade de cornpetio deles como foi feito na Inglaterra,
reduzindo as horas de trabalho.
Outra desvantagem que poderia diminuir a produtividade, era uma
nutrio no adequada do trabalhador. Estudos foram feitos comparando
trabalhadores de vrios pases com os ingleses. Descobriu-se que a nutrio inglesa
baseada em rosbife era superior do francs baseada em sopa e vegetais, portanto
pobre em protenas. Hector Denis, reformador socialista , discutiu na Cmara belga
de Deputados, que era possvel expressar a quantia de poder operrio em calorias de
energia. mile Waxweiler, analisando a dieta do trabalhador americano, tambm
observou que o trabalhador nos Estados Unidos tinha um rnodo de vida mais alto
que o competidor europeu, e assim, mais condies favorveis para a expanso da
fora produtiva.
No s a energia fsica foi melhorada pela elevao do padro de vida,
tambm foi ampliada a capacidade mental. O progresso enorme na nutrio do povo,
que a Inglaterra viu durante este sculo, um elemento relevante ao aumento da
capacidade de competio da indstria inglesa.
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O discurso do solidarismo higienista e o discurso socialista elaboram
argumentos para convencer os governos e empresrios da necessidade do aumento
dos salrios, da reduo da jornada e da melhoria das condies de vida.
Com a ascenso na economia da Alemanha e Frana, depois de 1895, o
dia de oito horas se tornou, segundo Rabinbach, a demanda universal do movimento
operrio internacional, superando at o assunto do salrio.
Os socialistas europeus viram o dia de oito horas como o oferecimento de
numerosos benefcios permanentes, como proteo contra a explorao excessiva,
um lazer mais produtivo, e salrios no final das contas mais altos. A celebrao de
Dia Primeiro de Maio em nome do dia de oito horas, em 1889, dirigiu o movimento
internacional dos trabalhadores a esta meta: a reduo da jornada de trabalho. Como
Cross discute, o movimento das oito horas era o resultado trinta anos de luta poltica
e ideolgica. Que teve o apoio das investigaes cientficas dos higienistas, que
reivindicavam o cuidado com trabalhador.
Com tanto movimento e argumentos favorveis, os empresrios
comearam a fazer experincias no exemplo ingls, reduzindo a jornada de trabalho.
Depois de 1890, um nmero de pequenos industriais comearam um
experimento com a semana de trabalho encurtada, para deste modo, observar os
nmeros da produtividade. Estes esforos foram empreendidos por razes
econmicas, mas tambm era pretenso que eles servissem como modelos para
outros industriais. Um experimento particularmente influente era o do industrial
belga e engenheiro L.C. Fromont. Ele tentou aplicar a doutrina da conservao de
energia aos seus trabalhadores. Ele contou sua experincia com a jornada de dez
horas em dois turnos. Observou que os trabalhadores sempre estavam sonolentos,
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desatentos, intoxicados. Os trab