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Caim e Abel Shirlei Massapust
A tradio sustenta que Caim, o assassino bblico
de seu irmo Abel, o senhor de toda a Famlia. H muita controvrsia
a este respeito dentro da comunidade dos vampiros, posto que no h
nenhum membro que possa garantir com absoluta certeza j haver
encontrado Caim. Certamente, aqueles de Segunda Gerao saberiam, mas
estes j no dizem nada.
Mark Rein-Hagen. Vampiro: A Mscara1.
At hoje muitos tentaram e no conseguiram traduzir Gnese 4:7 de
forma bela
e elegante. O telogo Domingos Zamagna chegou a sugerir que o
problema est na corrupo do livro e no no leitor interessado em
encontrar o espelho da sua ideologia. Da a necessidade de oferecer
ao leigo nada mais que a traduo aproximada de um texto corrompido2.
Contudo s vezes aparecem pessoas de carter singular afirmando no
ter dificuldade em entender o que est escrito. Certa vez, aps
largar a batina e virar bruxo, Alphonse Louis Constant (1810-1875)
desvelou o pretenso segredo:
Caim foi o primeiro sacerdote do mundo. Todavia Abel exercera,
antes de Caim,
uma espcie de sacerdcio e fora o primeiro a derramar sangue.
(...) Ele oferecia ao Senhor, diz a Bblia, os primeiros animais de
seu rebanho; Caim, pelo contrrio, s
oferecia frutas. Deus rejeitou as frutas e preferiu o sangue;
mas ele no tornou Abel inviolvel, porque o sangue dos animais antes
a expresso do que a realizao do
verdadeiro sacrifcio. Foi ento que o ambicioso Caim consagrou
suas mos no sangue
de Abel; em seguida, construiu cidades e fez reis, pois se
tomara sumo pontfice3.
O contexto problematiza a exigncia de YHWH de que todo filho
primognito de
sexo masculino, animal ou humano, fosse sacrificado em sua honra
(xodo 34:19-20) ou substitudo por um sacrifcio expiatrio (Gnese
22:13). Caim, que era lavrador, colheu frutos da terra e ofertou a
YHWH, mas a comida vegetariana no despertou o interesse da
divindade carnvora. Logo depois Abel, que era pastor de ovelhas,
sacrificou os filhos primognitos do seu rebanho (Gnese 4:4). YHWH
olhou para Abel e sua oferta. No olhou Caim e sua oferta. Ento a
verdade se tornou bvia. O irmo menor, Vaidoso (), possua os
requisitos necessrios ao culto, mas Caim no tinha animais. Ele
comeou a demonstrar sintomas de desespero porque ele prprio era um
filho primognito predestinado ao sacrifcio. Caim tinha a obrigao de
morrer ou comprar sua prpria vida, mas a tentativa de resgatar a si
mesmo falhou e ele j no sabia o que fazer. Na literatura paralela o
agricultor recusa veementemente o suicdio e no economiza palavras
para ofender YHWH, dizendo: Eu pensava que o mundo havia sido
criado para a bondade, mas vejo que as boas obras no produzem fruto
algum. Deus governa o mundo usando arbitrariamente o seu
poder4.
No existe justia e nem h juzo. No existe futuro nem vida eterna.
Os bons
no recebem nenhuma recompensa e para os maus no existe nenhuma
punio (Midrash Aggadah 4,8)5.
1 REINHAGEN, Mark. Vampiro: A Mscara. Trd. Sylvio Gonalves. So
Paulo, Devir, 1994, p 52. 2 ZAMAGNA, Domingos. Gnesis. Em: BBLIA DE
JERUSALMA. So Paulo, Paulus, 1995, p 36, nota t. 3 LEVI, liphas. A
Cincia dos Espritos. Trd. Setsuko Ono. So Paulo, Pensamento, 1997,
p 109. 4 GINZBERG. The Tem Generations, notas 15 e 16. Em:
LIFESCHITZ, Daniel. Caim e Abel: A Hagad sobre Gnesis 4 e 5. So
Paulo, Paulinas, 1998, p 35. 5 LIFESCHITZ, Daniel. Caim e Abel: A
Hagad sobre Gnesis 4 e 5. So Paulo, Paulinas, 1998, p 35.
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Ao contrrio do personagem medieval que parece servir de vlvula
de escape para os incrdulos reprimidos dizerem tudo que pensam,
culpando o vilo da estria, o heri bblico nada fala e nada faz alm
de ficar nervoso e cabisbaixo. neste momento que YHWH, olhando para
Abel, fala pela primeira vez com Caim:
Gnese 4:6
Gnese 4:7
Primeiro a divindade questiona porque Caim est deprimido.
Presumimos que,
ao ouvir isso, o humano compreendeu outra premissa bsica da
antiga religio: Deus no olha nos olhos de quem vai viver porque
ningum pode continuar vivendo aps ver sua face (xodo 33:20). YHWH
no estava olhando somente para o altar repleto de carneiros
assados. Deus olhava para Abel e sua oferenda (Gnese 4:4). Pela
antiga lei bblica o primognito era herdeiro universal do patriarca
e os irmos mais novos lhe deviam obedincia. Caim falou com Abel,
provavelmente tentando negociar a compra de uma ovelha, mas este
nada fez, notoriamente sabendo que ele herdaria tudo se o irmo
morresse. Ento, sem nenhum animal para sacrificar no seu lugar,
Caim matou a nica criatura disponvel que, em tese, lhe era
subordinada.
No fim de tudo Caim perdeu a memria e acordou dum estado de
transe semelhante quele que acometia Sanso quando este guerreava,
possudo por YHWH, e depois no conseguia lembrar o fato de ter
matado pessoas. Num livro apcrifo bastante detalhado, Caim tem um
acesso de vampirismo e acorda vomitando sangue. Um texto
corrompido?
Ns levamos at o fim, com cada momento de viglia. Nos deparamos
com este tormento silencioso. Eu sacrificaria. Eu me sacrificaria
por voc. Aqui mesmo, hoje noite. Porque voc sabe que te amo.
Sacrifice. London After Midnight.
Com certeza no h nada mais importante em Gnese 4 do que o
conselho que YHWH deu a Caim. Seria uma lstima se Domingos Zamagna
estiver certo e o texto corrompido. Rabinos tambm problematizaram a
diferena de gneros entre a palavra feminina chatath () e o verbo
masculino rovetz () que a segue semelhana de erro ortogrfico6. Eu
considero isso um indcio de que ali termina uma frase e outra
comea. fato que da para traduzir tudo. S no da para forar um
significado fcil do homem moderno entender. A redao presume um
padro esttico onde as feridas so belas e o sangue uma tinta
sagrada. Considere o costume de decorar a porta da tenda onde vive
um primognito com sangue pincelado com um ramo de manjerona
(Origarum maru) para que YHWH no o matasse (xodo 12:22-23). Como
Caim no tinha animais, e este era seu problema, deveria usar seu
prprio sangue. YHWH disse:
Porque se [Caim] no fez uma bela ferida em si mesmo e se no
embelezou a porta
[pintando-a com sangue, ento far] matana expiatria. Curve-se
para satisfazer tua paixo e ento reine sobre si mesmo.
Philo de Alexandria (20 a.C-50-d.C.) conheceu uma verso onde
efetivamente
"Caim se levantou e cometeu suicdio (Philo. Quod det. Pol. 14).
S que no assim
6 Midrash Genesi Rabbah 22,6 e Tifereth Tzion a Midrash Genesi
Rabbah 22,6. Em: LIFESCHITZ, Daniel. Caim e Abel: A Hagad sobre
Gnesis 4 e 5. So Paulo, Paulinas, 1998, p 35.
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que acaba a estria do texto corrente. A ltima frase dita a Caim,
em Gnese 4:7, parafraseia palavras ditas a Eva, em Gnese 3:16,
quando YHWH explica como acontece o coito, a gravidez, o parto e
como se mantm a hierarquia duma estrutura familiar: Ele [Ado]
reinar sobre voc [Eva] ( ). Voc [Caim] reinar sobre si mesmo ( ).
Ou seja, se Abel morresse Caim reinaria s sobre seus prprios filhos
e descendentes. No reinaria sobre Abel e seus descendentes, mas
pelo menos continuaria vivo. Nos discursos paralelos de YHWH, em
Gnese 3:16 e 4:7, a palavra com certeza descreve o sentimento de
atrao irresistvel que resultou no doloroso parto de Eva, apaixonada
pelo esposo (), e, depois, na tremenda angstia do filho ansioso
pela realizao dum sacrifcio expiatrio (). Vampiro heri Tenho lido
vrios livros de catequese, teologia e apcrifos afirmando que Caim
usou algum tipo de arma branca rudimentar para matar Abel, ao passo
que Gnesis 4:8 diz apenas isto: Caim se lanou sobre seu irmo Abel e
o matou. Antes do fato ambos estavam no campo () onde Caim
cultivava sua horta. Eles conversaram () a respeito do problema,
mas no houve acordo. Seguindo a lgica da estria este lavrador
certamente possua um machado para abrir terreno, uma enxada e um
arado para trabalhar o solo, uma foice para ceifar a colheita, etc.
Tudo notoriamente til para matar seu desafeto com muita eficincia.
Mas est escrito que Caim no usou nada alm de seu prprio corpo para
matar.
O nome de Caim () vem de uma raiz que significa a criao dum
produto industrial. Por exemplo, o vaso de argila manufaturado pelo
oleiro, o machado forjado pelo ferreiro, etc. YHWH criava e
vivificava esttuas de barro. Sabendo disso, Eva pronunciou uma
pardia quando pariu: Eu criei um homem de YHWH (Gnese 4:1). Um
detalhe interessante: Deus nunca falou diretamente com Eva exceto
na ocasio em que explicou a ela como nascem os bebs. Mesmo levando
uma bronca ela conseguiu obter uma audincia e um propsito maior.
Eva estava to feliz que agradeceu pela punio da fecundidade sem a
qual ela nunca sentiria as dores do parto, mas tambm nunca seria
me. (Gnese 3:16). Ento Caim ganhou um nome que significa Criador no
sentido de arteso inventor, em homenagem a YHWH.
Caim um nome muito melhor que Abel (), que significa vaidade e
luto. No qualquer luto, mas as dramticas demonstraes de pesar
prprias dos orientais. Luto cheio de gritos e lagrimas, com pessoas
rasgando as roupas e arrancando os cabelos. Jos fez luto por Jac
durante setenta dias, chorando com todo o Egito. Foi to
impressionante que deram ao lugar o nome de Abel Mesraim, ou seja,
Luto dos Egpcios (Gnese 50:11). Com certeza Eva escolheu o segundo
filho para morrer ou j sabia o que ia acontecer. Caso contrrio no
teria dado um nome to agourento a um filho. (Gnese 4:2). Certos
apcrifos explicam porque a morte de Abel, pelas mos de Caim, no foi
um acontecimento totalmente inesperado para os seus pais. Com
efeito, num sonho, Eva havia visto o sangue de Abel escorrer na
boca de Caim, que o bebia com sofreguido, embora o irmo suplicasse
para no sorv-lo todo7. O episdio de vampirismo se tornou
mundialmente conhecido quando Constantin Von Tischendorf
(1815-1874), o alemo que descobriu o Codex Sinaiticus, realizou a
primeira tentativa de reconstruir um opsculo grego sobre as
Revelaes de Moiss ( ), supostamente escrito no sculo I, mas cujas
cpias existentes no so anteriores ao sculo XIV. Em 1913 o professor
Robert Henry Charles publicou uma verso crtica bilnge pela editora
da Oxford, que at hoje a mais vendida.
7 LIFSCHITZ, Daniel. Caim e Abel: A Hagad sobre Gnesis 4 e 5.
Trd. Bertilo Brod. So Paulo, Paulinas, 1998, p 29.
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2. 1 2 , , . , 3 , , . 4 , . 3 1 .
2 1 Eva falou ao esposo Ado: 2 Meu marido, esta noite sonhei ver
o sangue de meu bom8 filho, Abel, escorrer da boca de Caim, seu
irmo, que o bebia sem piedade.
Ele pediu para deixar um pouco, 3 mas, ao invs de o escutar,
continuou bebendo at o fim. Nem tudo ficou no estmago, pois acabou
vomitando. 4 Ado respondeu a Eva: Vamos sair e ver o que est
acontecendo com eles, caso estejam brigando furiosamente. 3 1 Ambos
saram e encontraram Abel morto pelas mos de Caim9.
Esta traduo aproximada, pois ficaria bastante estranho escrever
que
algum se transformou ( ) enquanto brigava () furiosamente ().
Outras fontes confirmam a persistncia da tradio oral sobre
mordidas. Por exemplo, na pgina 1431 do Qustiones celeberrim in
Genesim (1623), Mersenne menciona que Abelem fuisse morsibus
dilaceratum ad Cain. O telogo Daniel Lifschitz reuniu e resumiu
comentrios da Vida de Ado e Eva 22-23 e do Midrash Genesi Rabbah
22, 8; onde Caim matou seu irmo mordendo-o como uma serpente10.
Caim em frenesi no suplemento de jogo The Book of Nod
(1993).
8 Nesta verso Caim () e Abel (), filhos de Ado () e Eva (), so
renomeados como Diphotos e Amilavs porque o contador de estrias
achou que os protagonistas precisavam de nomes gregos mias
respeitveis, no de alcunhas hebraicas que significam Comrcio ( =
Caim) e Vaidade ( = Abel). Robert Henry Charles opinou que Diphotos
() significa Cheio de Luz e que Amilavs () uma corruptela do armnio
Barekhooh, indicativo de algum bem intencionado. Nas cpias
existentes, Caim recebe um nome varivel. lido no MS.D.; no A; no B
e no C. Abel no AD; em B e no C. 9 CHARLES, Robert Henry. The
apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament in English.
Oxford, 1913, Vol.II, . 138. 10 LIFSCHITZ, Daniel. Caim e Abel: A
Hagad sobre Gnesis 4 e 5. Trd. Bertilo Brod. So Paulo, Paulinas,
1998, p 43.
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Informao oculta
A tua morada est segura, Caim, e o teu ninho firme sobre o
rochedo. Contudo, o ninho pertence a Beor. At quando sers cativo de
Assur?
Nmeros 24:21-24
A mais enigmtica entre as verses que do uma arma branca a Caim
aquela
conhecida por Jos Saramago onde o personagem mata Abel a golpes
de uma queixada de jumento que havia escondido antes num silvado11.
O inconfundvel objeto aparece em trs gravuras assinadas por Lucas
Van Leyden em 1520, 1524 e 152912. Este artista passou nove anos
aperfeioando a cena da morte de Abel ao lado do altar de
sacrifcios, atingido no pescoo pelo estranho porrete com dentes. Em
1524 este mesmo artista demonstrou conhecer detalhes da tradio oral
judaica ao ilustrar a morte de Caim atingido acidentalmente por uma
flecha disparada por Lamech13.
Caim mata Abel usando tal arma invulgar em gravuras impressas
assinadas por Mabuse (Jan Gossaert) por volta de 1520, Johann
Sadeler em 1576 e Jan Lievens em 1640. Parece ser esta a arma
representada num rascunho de Rembrandt van Rijn datado por volta de
1550, embora seja difcil identificar borres de tinta. O verbete
Caim na Wikipdia mostra uma iluminura do sculo XV com a mesma cena
e a mesma arma. Isto no se parece com armas dentadas medievais tais
como a Morgenstern e outras clavas com espeto que passam a impresso
de serem porretes com dentes. Logo, um padro iconogrfico onde Caim
utiliza o recurso encontrado por Sanso na ocasio em que o heri foi
possudo por Ruach YHWH ( ), o esprito de deus, e matou mil homens
(Juzes 15:15). Sanso e Caim ganharam uma novssima arcada dentria
hibrida 14 . Mas por que YHWH teria a idia
11 SARAMAGO, Jos. Caim. So Paulo, Companhia das Letras, 2009, p
34. 12 Hoje tais gravuras se encontram respectivamente nos acervos
do Rijksmuseum, em Amsterdam, do Metropolitan Museum of Art, de New
York, e em 1529 na National Gallery of art, em Washington D.C. 13
Referncia M28417 do catlogo do Museum of Fine Arts, Boston. 14 No
mundo antigo todo tipo de hibrido era chamado de mula (mulus)
porque ningum nunca se deu ao trabalho de definir, por exemplo, os
filhos de lees com panteras, e no dia a dia o que mais se via era o
cruzamento entre a gua e o jumento. No hebraico bblico no existia
termo especfico nem para diferenciar o cavalo (Equus caballus) ou
jumento (Equus asinus) de seus filhos hbridos. Ento tanto pode ser
um jumento como um hibrido destas ou doutras espcies, possivelmente
inclusive em sentido metafrico. Parte da classe sacerdotal temia a
hibridao e tentou proibir a criao de eqinos (Dt 17.16) ou o
sacrifcio ritual de eqinos (2 Rs 23:11), mas a populao no obedecia
porque precisava usar estes animais para montaria e trabalhos no
campo (Isaas 28:28, J 39:19-25).
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estapafrdia de usar um bife de carne ossuda como porrete?
Qualquer pedra seria mais eficaz. Existe, portanto, a possibilidade
duma metfora camuflar a metamorfose15.
Caim mata Abel golpeando com a inequvoca arma de YHWH (Juzes
15:15). Da esquerda para a direita: Iluminura annima (sc. XV).
Gravao de Mabuse (c 1520). Impressos de Johann Sadeler (1576) e Jan
Lievens (1640).
A condenao de Caim ao ostracismo
No pode chover o tempo todo. O cu no pode cair para sempre. E
embora a noite parea longa, suas lgrimas no podem cair para
sempre.
Eric Draven (Brandon Lee). O Corvo (1994).
Sanso era o tipo de mdium que acordava desmemoriado no meio duma
pilha de gente morta. Caim se fez de desmemoriado ou desentendido
quando questionado por YHWH a respeito do que aconteceu j que, pelo
jeito, vomitar sangue ou ocultar cadver no fazia parte do ritual. O
agricultor ainda achava que podia ser vegetariano.
4. 9 E disse o Eterno a Caim: Onde est Abel, teu irmo? E disse:
No sei; acaso o guarda do meu irmo sou eu? 10 E disse: Que fizeste?
A voz do sangue de teu irmo est clamando a Mim desde a terra. 11 E
agora maldito s tu da terra, que abriu sua boca para receber o
sangue do teu irmo, da tua mo. 12 Quando lavrares, o solo no
dar mais a sua fora para ti; fugitivo e vagabundo sers na terra.
13 E disse Caim ao Eterno: to grande o meu delito de no se poder
suportar? 14 Eis que me expulsas hoje de sobre a face da terra, e
da Tua presena no poderei me ocultar. E serei
fugitivo e vagabundo na terra, e acontecer que todo o que me
encontrar matar-me-. 15 E disse o Eterno: Por isso, quem matar a
Caim, sete vezes ser vingado. E o Eterno ps em Caim um sinal para
que no o ferisse quem quer que o encontrasse. 16 E saiu Caim da
presena do Eterno e habitou na terra de Nod, ao oriente do
dem16.
Sangue est no plural, damy chiykh ( ). Se o texto no se referir
a manchas espalhadas por vrias partes do cho, ento este sangue dos
animais sacrificados por Abel ou de Abel e seus sacrifcios. Isto
era um problema para Caim. O corpo delito provava a morte que
deveria ser punida por Ado ou por qualquer outro parente colateral
de sexo masculino. Abel estava longe de ser um adversrio tolo e
fraco. A julgar pelo poder dos nomes sobre as personalidades
mticas, no seria exagero dizer que ele era uma espcie de mestre das
mentiras e dissimulaes17. Nesta cosmogonia existem fantasmas e Abel
se defende intercedendo por si mesmo junto aos seus sacrifcios,
certamente clamando por um vingador de sangue para matar Caim18.
Mas YHWH percebe que precisa ajudar afastando-o da famlia
vingativa
15 Isso explicaria como Sanso, acometido duma sede terrvel,
recuperou o maxilar e operou um milagre para beber, insuflado do
esprito de deus aps jogar a arma fora (Juzes 15:17-19). 16 MELAMED,
Meir Matzliah. Tora A Lei de Moiss. So Paulo, Sfer, 2001, p 10-11.
17 A palavra que originou o nome de Abel aparece noutras partes da
bblia hebraica agregada runa (Isaas 49:4), falsidade (Salmo 31:7),
frustrao (Eclesiastes 4:4), aflio (Eclesiastes 4:8), decepo
(Eclesiastes 4:16) e sofisma (Eclesiastes 6, 11). Hebl () est
sempre em m companhia. Jeremias, os Salmos e principalmente o
Eclesiastes, como tambm J e Isaas, do-nos o pior dos retratos de
seu significado. 18 A palavra hebraica gol, que tem sido aplicada
ao vingador de sangue, um particpio de gal, que significa,
reivindicar ou recuperar. O termo aplicava-se ao parente masculino
mais prximo, que tinha a obrigao de vingar o
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e abenoando-o com uma marca protetora. No final, ao invs de
morrer, Caim foi condenado ao ostracismo ( ) na terra () de seu
pai, Ado (), para expiar a culpa coletiva. A terra, isto , a
humanidade, abriu a boca para beber sangue ( ). Algum devia pagar
por isso19.
O Sacrifcio de Caim, pintado por Amico Aspertini (c.1474-1552).
Ado e Eva esto exaustos e famintos, junto a prato e jarro vazios,
lembrando da expulso dos campos do den. Caim segura um espelho
imaginando a si mesmo sendo sacrificado nas chamas da churrasqueira
do altar.
Pelo menos uma das numerosas verses judaicas deste mito termina
com final feliz. Rabinos descreveram o dia em que Ado encontrou
Caim no exlio e perguntou a respeito da conversa que este teve com
YHWH: Como voc foi castigado? Caim respondeu: Prometi arrepender-me
e foi-me dada anistia. Ouvindo isso Ado se flagelou batendo no
prprio rosto e disse: Eu no sabia que o arrependimento tem tanto
poder! (Psita d-Ra Kahna 11:18)20. Se Ado tivesse pedido desculpas
pelo furto do fruto da rvore do conhecimento do bem e do mal ele
poderia ter feito penitncia ao invs de suportar a maldio hereditria
causadora de velhice e morte. A fbula do corvo
Uma das profecias de profeta Balao faz um trocadilho entre Caim
( = qyn) e ninho ( = qen) comparando o rei em sua cidade
fortificada a um pssaro no ninho. Provavelmente isto diz respeito a
uma cidade de forma redonda semelhante a Tel Dan que, sendo cncava,
parecia um ninho sobre um rochedo. (Nmeros 24: 21).
Uma das fbulas de Rumi (1207-1273) descreve Caim em dvida sobre
o que fazer para ocultar o cadver de Abel. Neste momento ele viu um
corvo vivo carregando um corvo morto pousar no solo e abrir uma
cova para lho ensinar, pois a ave carniceira estava inspirada por
deus. Depois que o corvo vivo terminou de enterrar o corvo
sangue daquele que fora morto. (Nmeros 35:19) Deus disse:
Exigirei de volta vosso sangue das vossas almas... da mo de cada um
que seu irmo exigirei de volta a alma do homem. Quem derramar o
sangue do homem, pelo homem ser derramado o seu prprio sangue.
(Gnese 9:5) O homicida deliberado devia ser morto pelo vingador do
sangue, e no se devia aceitar nenhum resgate por tal assassinato
(Nmeros 35:19-21, 31). 19 Literalmente Gnese 4:11 diz, para Caim,
que a terra abriu a boca para receber os sangues do irmo, das suas
mos ( ). Gnese 4:11 uma bvia metfora, pois a terra, Adamah,
constituda de matria inanimada e no pode fazer nada. Porm sabido
que Adamah () a forma feminina do masculino Adam ou Ado (). Em
Gnese 2:19 o deus oleiro, YHWH, fez esttuas de todos os animais e
tambm do homem. Foi assim que adamah se tornou Adam. Portanto a
terra representa os outros familiares de Abel. 20 BRAUDE, Willian
G. Psita d-Ra Kahna. Philadelphia, The Jewish Publication Societh,
1975, p 499.
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morto, Caim imitou-o e assim aprendeu a cavar sepulturas
(Mathnaw IV:1300-1310)21. Rabbi Louis Ginzberg (1873-1953) explicou
que a variante judaica desta fbula um comentrio ao Salmo 147:9 onde
YHWH alimenta os filhos do corvo ( ) quando os pais lhos
abandonam22. A propsito, curioso notar que na natureza os corvos de
verdade no enterram os mortos. Eles eliminam cadveres comendo a
carnia.
Esprito de Caim transformado em corvo. Desenho de Collin de
Plancy no Dictionnaire Infernal (1863).
A marca de Caim
Est escrito que YHWH ps em Caim um sinal para impedir que ele
fosse ferido por qualquer pessoa que o encontrasse e prometeu que
se algum vingador de sangue vingasse a morte de Abel, matando-o,
ento outros sete vingadores seriam enviados para vingar a morte de
Caim (Gnese 4:15). Noutras palavras, deu carta branca para Enoch,
Irad, Mehuyael, Methushael, Lamech e Yaval chacinarem o resto da
estirpe de Ado e Eva caso Caim sofresse retaliao.
Se eu fosse YHWH jamais escreveria assassino na testa de algum
que, em tese, deveria ser auxiliado e escondido. Eu faria em Caim a
mesma tatuagem () ou corte () tradicional que servia para fazer
demonstraes pblicas de luto e proteger contra atividade paranormal
(Deuteronmio 14:1 e Levtico 19:28). A primeira coisa que algum
pensaria ao v-lo seria: Caim est de luto pela morte do irmo. Ento a
marca confundiria seus perseguidores fazendo-o passar por
inocente... Muitas tentativas de explicar a aparncia da marca que
protegia Caim resultaram em concluses diversas. O Targum Jonathan
descreve o sinal na fronte com a forma de uma das letras do nome de
deus.23 Considerando que uma superstio dos tempos bblicos incentiva
os pais a iniciar nomes de bebs com Yod () ou Yod e He () para
proteger contra o mal olhado e atividade paranormal, notadamente o
Yod () seria a melhor opo24. Caim no fez uma bela ferida em si
mesmo ( ) conforme
21 NICHOLSON, Reynold A. The Mathnaw of Jalluddin Rm:
Translation of Books III and IV. Great Britain, Gibb Memorial
Trust, 1990, p 344. 22 Na variante judaica compilada no Pirk do
Rabbi Eliezer 21:5 (sc. XIII), foi Ado quem aprendeu com os corvos
a sepultar Abel. (LIFSCHITZ, Daniel. Caim e Abel: A Hagad sobre
Gnesis 4 e 5. Trd. Bertilo Brod. So Paulo, Paulinas, 1998, p 44).
Collin de Plancy parece ter interpretado mal essas lendas ao
afirmar rabinos lhe ensinaram que Caim viu um corvo matar outro
corvo esmagando entre duas pedras: "Les rabbins disent que, ne
sachant comment sy prende pour tuer son frre Abel, Can vit venir
lui le diable, qui lui donna une leon de meurire em mettant un
oiseau sur une pierre et en lui crasant la tte avec une autre
pierre. (PLANCY, J. Collin. Dictionnaire Infernal. Paris, Socit de
Saint-Victor & Sagnier et Bray, 1853, p 109). 23 LIFSCHITZ,
Daniel. Caim e Abel: A Hagad sobre Gnesis 4 e 5. Trd. Bertilo Brod.
So Paulo, Paulinas, 1998, p 55. 24 Outra variante de influncia
crist carece de lgica: Um velho midrash descreve a marca de Caim
como uma letra tatuada no seu brao. A proposta de identificao com a
letra hebraica th, em textos medievais, talvez seja inspirada por
Ezequiel 9:4-6 onde deus raspa uma marca nas sobrancelhas de alguns
justos, em Jerusalm, que sero salvos. Caim no foi julgado digno
deste emblema. Contudo o hierglifo do tav, ltima letra do alfabeto
fencio e do proto-hebraico, era uma cruz (); e disto derivou a
letra grega tau () que, de acordo com o Lis Consonantium, de Lucian
de Samosata, inspirou a idia da crucificao. Desde que o tav fora
reservado para identificar os justos, o midrash
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aconselhado desde o incio (Gnese 4:7), mas acabou marcado ()
igual a certos hindus que pintam o terceiro olho com sangue ao invs
de usar p. (Gnese 4:15)
Noutras variantes da lenda o sinal de Caim o designa como membro
de um cl onde se exerce duramente a vingana do sangue. Certa vez
compararam o versculo onde YHWH ps a marca na fronte de Caim (Gnese
4:15) com aquele onde o mesmo YHWH ps chifres () na fronte de
Moisis (xodo 34:35) e deduziu que sempre que deus perambula por a e
se agrada de algum, ele da um par de chifres de presente para a
pessoa. Resultado: Quando Caim foi condenado ao ostracismo,
cresceram-lhe chifres, para amedrontar os animais que pudessem
atac-lo25.
Esquerda: Lamech, cego, se prepara para flechar Caim apontado
por Tubal
Caim. (Ilustrao de Lucas Van Leyden, de 152426). Direita: Caim.
(Arte digital 2009, Kuroi Tsuki e DeviantArt)
Alguns religiosos incapazes de se conformar com a literalidade
da redao da estria que protege o assassino mitolgico sugeriram que
os sete protetores de Caim na verdade seriam sete geraes a serem
contadas at o nascimento daquele que executaria a pena de morte27
porque na lei divina revista e anotada no deveria existir
substituiu a marca de Caim pela letra mais parecida com o tav
tanto no som quanto na forma escrita; chamada th. (GRAVES, Robert
& PATAI, Raphael. Hebrew Myths. United States of America,
Doubleday, 1963, p 96-97). 25 UNTERMAN, Alan. Dicionrio Judaico de
Lendas e Tradies. Trd. Paulo Geiger. Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Editor, 1992, p 54-55. 26 Referncia M28417 do catlogo do Museum of
Fine Arts, Boston. 27 Numa verso foi seu prprio descendente,
Lamech, quem matou Caim com uma flecha aps ter sido erroneamente
informado de que o chifrudo Caim era um animal selvagem. (UNTERMAN,
Alan. Dicionrio Judaico de Lendas e Tradies. Trd. Paulo Geiger. Rio
de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992, p 54-55). O rabino Meir
Matzliah Melamed resume a reviso do mito da seguinte forma: Rashi
explica as palavras Por isso quem matar Caim sete vezes ser vingado
da seguinte maneira: Por isso, quem agora matar Caim, ser
castigado, pois somente aps sete geraes ele dever ser castigado por
ter matado Abel. (...) Conta o Midrash que sendo Lamech cego, saa a
caar com seu filho Tubal Caim, que o guiava e indicava a presena de
caa. O menino confundiu Caim com algum animal e foi assim que
Lamech o matou com uma flechada. Ao perceber o seu erro, feriu a si
prprio e um dos golpes atingiu a cabea de filho, matando-o tambm.
Por isso, suas mulheres o acusavam pelo duplo assassinato e Lamech
se desculpou. (MELAMED, Meir Matzliah. Tora A Lei de Moiss. So
Paulo, Sfer, 2001, p 10, nota 15 e p 12, nota 23). Essa lenda
interessante embora tenha sido mal formulada. Gnese 5:23-24 no cita
os nomes das pessoas que Lamech matou. Seria relevante nomear caso
fossem o tatarav e o filho do assassino. Sobretudo, se Tubal Caim
fosse o menino morto em Gnese 5:23, ele no teria crescido para
exercer uma profisso de adulto em Gnese 4:22. Tambm no est escrito
em nenhuma parte da bblia hebraica que Lamech era cego. Existem
outras verses sobre a morte de Caim. As Crnicas de Jerameel 24:3
sustentam que Lamech no matou o filho. Ele matou somente o tatarav
porque Caim se arrependeu e confessou seu pecado. Ou seja, foi um
suicdio ritual (THE CHRONICLES OF JERAMEEL. Trd. M. Gaster,
-
esse negcio de prescrio, perdo judicial, anistia, etc. Caim s
precisava viver mais um pouco para ter um monte de filhinhos,
netinhos, etc., todos ruinzinhos, necessrios para servir de exemplo
de maldio hereditria e morrer no dilvio. Os perptuos
O Livro da Gnese menciona a data da morte de todos os
personagens exceto a de Caim e seus descendentes. Para complicar
mais o caso, um regente chamado Caim aparece em vrios pontos da
bblia hebraica, a exemplo de Nmeros 24:22, sempre em datas
impossveis nas quais qualquer ser humano normal j teria morrido.
Outras referncias parecem to ambguas quanto discurso do azarado J
reclamando da vida: Por que eu no fui abortado? Por que Caim no me
ajudou? (J 3:12). Ser que ele fez jus ao efeito literal da antiga
bno rei, viva para sempre (Daniel 6:6)? Se a genealogia de Seth
devesse ser levada a srio, ali qualquer um vivia oitocentos anos.
Certa vez o jornalista Hyam Maccoby resolveu ler a Bblia e achou
algo muito estranho:
There can be little doubt that the Cain of the Bible is derived
from the Cain
whom the Kenites regarded as their ancestor and the founder of
their tribe. () The truth is that the line of Seth has no real
existence at all, but is a shadow or reflection of the line of
Cain. For it requires little enquiry to see that the two lines of
Seth and Cain
are really one line, and that the line of Seth was derived from
the line of Cain and not
vice versa. If we examine the names in both lists, we see that
there is only one list with slight variations, for the names are
basically the same in both lists28.
Comparando as listas genealgicas, Hyam Maccoby percebeu que
tanto Caim
quanto Seth tiveram um filho chamado Enoch ()29 que, por sua
vez, teve um descendente chamado Lamech (). Outros quatro nomes
foram corrompidos de forma que Irad () virou Jared (), Mehuyael ()
virou Mahalalel (), Methushael () virou Mathusela (), e o prprio
Caim () virou Cain () que viveu novecentos e dez anos (Gnese 5:14).
como se algum tivesse tentado memorizar sem sucesso todos esses
nomes corrompidos e embaralhados. Dois intrusos foram importados e
adaptados. Seth o deus egpcio que matou seu irmo Osris. Uma
duplicata de Caim. No foi o apelido que o autor da reviso deu ao
heri babilnio Utnapishtim, porque se ele no conseguia memorizar e
pronunciar nem um nome nacional to simples quanto Caim, imagine se
tentasse transliterar o cuneiforme Utnapishtim! Isso parece Arnold
Schwarzenegger. Ningum lembra como se escreve.
Outra semelhana que cada lista termina com um trio de nomes,
ainda que tais nomes no sejam idnticos30. A bigamia de Lamech com
dois filhos primognitos, reconhecimento do direito de herana duma
filha e repartio igualitria de direitos e deveres entre primognitos
e irmos mais novos, foi demais para a cabea do revisor. Caim
ensinou uma coisa que seu tataraneto Lamech aprendeu muito bem:
Regras que determinam punio por vingadores de sangue s atingem a
quem no capaz de se defender da represlia. Pela lei da selva manda
quem pode e obedece quem tem juzo.
Ph.D. London, Oriental Translation Fund, 1899, p 50). O
Testamento dos Vinte Patriarcas diz que Caim morreu no dilvio
(Benjamin 7:4), desprezando o fato de Balao haver aconselhado Caim
em data posterior (Nmeros 24:22). 28 MACCOBY, Hyam. The Sacred
Executioner: Human sacrifice and the legacy of guilt. New York,
Thames and Hudson, 1982, p 17-18. 29 A segunda coluna teria sido
truncada quando o nome de Enoch (), filho de Cain, foi corrompido
para Enosh (), filho de Seth, e depois corrigido de volta para
Enoch (), tataraneto de Seth, donde vem o defeito inicial do
processo de interpolao. A seguir praticamente todo o resto foi
truncado. 30 MACCOBY, Hyam. The Sacred Executioner: Human sacrifice
and the legacy of guilt. New York, Thames and Hudson, 1982, p
18.
-
Lamech disse s suas mulheres:
Ada e Sela, ouvi minha voz, mulheres de Lamech, escutai minha
palavra: Eu matei um homem por uma ferida,
Uma criana por uma contuso. que Caim vingado sete vezes,
mas Lamech, setenta e sete vezes!31 Est escrito que se algum
vingasse o sangue de Abel matando Caim sofreria
vingana por parte do prprio deus. Se algum vingasse o sangue do
homem ou do garoto morto por Lamech sofreria vingana de setenta e
sete defensores do patriarca. Bandido que mata policial no costuma
continuar vivo por muito tempo, mas polcia que mata bandido tambm
no tem sossego nem paz. um crculo vicioso. Ningum nasce certo ou
errado. Todo mundo inocente at que se prove o contrrio. No sabemos
se Lamech matou de forma dolosa, culposa ou em legtima defesa. S
porque tem um menino envolvido no significa que Lamech no corria
perigo. Quem nunca viu um menor de idade assaltar um adulto ou
idoso? Davi matou Golias com um estilingue, arremessando uma pedra
que causou traumatismo craniano. Isto era um brinquedo infantil. No
impossvel que Lamech tenha matado duas pessoas porque teve filhos
primognitos com duas esposas diferentes e preferiu realizar
sacrifcios expiatrios com humanos substitutos ao invs de oferecer
animais ou dinheiro ao templo. Mas ele estava com tanto medo da
represlia que contratou setenta e sete guarda costas. bvio que os
dois mortos pertenciam a famlias, quadrilhas ou gangues perigosas.
igualmente bvio que Lamech tinha muito dinheiro para dispor de
tantos protetores.
O filho primognito de Caim foi Enoch (). Caim edificou uma
cidade que foi chamada pelo nome deste filho (Gnese 4:17). Mais
tarde, em Jud, outra cidade foi chamada Caim em honra ao mitolgico
heri nacional (Jos 15:1,48,57). M. Gaster traduziu isto dum
manuscrito judaico do sculo XIV, do acervo da Bodleian Library:
Caim fecundou Qalmana, sua esposa, e Enosh nasceu. Ele construiu
uma
cidade e a chamou de Enoch, em homenagem ao seu filho. Ele
costumava raptar e
alojar pessoas ali. Ele construiu aquela cidade cercando-a com
muralhas e trincheiras.
Foi o primeiro a fortificar uma cidade deste jeito por medo de
seus inimigos. Enoch foi a primeira entre todas as cidades. (...)
Quando Caim terminou de construir a cidade de
Enoch ela foi habitada por seus descendentes, qe existiam no
dobro do nmero daqueles que saram do Egito. (Crnicas de Jerameel
24:1-332). O filho primognito de Enoch foi Irad (), o de Irad foi
Mehuyael (),
o de Mehuyael foi Methushael () e o de Methushael foi o polmico
Lamech (). Lamech tomou para si duas mulheres: Adah () e illah ().
Ada teve dois filhos chamados Yaval () e Yuval (). O primognito foi
pai dos que viviam em tendas e tinham propriedades rurais naquela
regio, como era costume entre os criadores de rebanhos. O outro foi
pai de todos os habitantes da cidade que tocavam musica usando um
antigo instrumento de corda chamado Kinor () juntamente com os
complexos instrumentos de sopro () que antecederam o rgo
hidrulico.
Zilah teve uma filha, Naamah (), que os comentrios bblicos
afirmam ter sido uma excelente cantora. Ela devia cantar na banda
da famlia da mesma forma que Michael Jackson iniciou a carreira
cantando na banda Jackson Five. Contudo sua ocupao principal era a
tecelagem. Naamah inventou vrios instrumentos usados para tecer e
costurar seda, l e outros tecidos. (Crnicas de Jerameel
24:833).
31 ZAMAGNA, Domingos. Gnesis. Em: BBLIA DE JERUSALMA. So Paulo,
Paulus, 1995, p 36. 32 THE CHRONICLES OF JERAMEEL. Trd. M. Gaster,
Ph.D. London, Oriental Traslation Fund, 1899, p 50. 33 THE
CHRONICLES OF JERAMEEL. Trd. M. Gaster, Ph.D. London, Oriental
Translation Fund, 1899, p 51.
-
O filho de Zilah foi Tubal Caim (), que trabalhava amolando
todas as lminas de cobre e ferro fabricadas por seus conterrneos.
(Gnese 4:17-22) Segundo Rashi, Lotsh Col Chorsh refere-se ao arteso
que afia e lustra artefatos de cobre e ferro, um tipo de
serralheiro e polidor dos nossos dias. O aacalador realiza ambas as
atividades34. Desde ento Caim passou a ser uma espcie de prenome ou
sobrenome de alguns descendentes do pai hipnimo. O sogro de Moiss,
Hber Caim, filho de Hobabe Caim, pertencia a esta famlia (Juzes
4:11). Herv Masson compilou uma lenda de influncia islmica de data
incerta que inclui Hiram Abi, o construtor do templo de Jerusalm,
entre os descendentes de Tubal Caim35. Collin de Plancy afirma que
ainda existiam cainitas no sculo II, mas estes procuravam fazer
tudo que era errado, eram falsos, mal interpretados ou mal
compreendidos36.
Caim rumando para construir a primeira cidade. Gravura de F.
Cormon.
Evoluo dos trabalhos
Comentaristas informam que Caim construiu sete cidades: Enoch,
Mauli, Leeth,
Teze, Iesca, Celeth e Tebbath. Nesta poca sua esposa Themech
teve mais trs filhos: Olad, Lizaph e Fosal. Eles tambm tiveram duas
filhas: Citha e Maac.37 Aps o imenso trabalho de construir a
primeira cidade, Caim se tornou rei. A julgar pelo cargo ostentado
expressamente por Hber Caim, o titulo da nobreza cainita no era o
dum Fara ou Cezar qualquer, mas um impressionante kohen ()38 que
rene os poderes legislativo, executivo, judicirio e eclesistico. Em
toda a Bblia s mais um personagem foi kohen, alm dos cainitas, e
este era Melchizedek (Gnese 14:18) cujo conhecimento e poderio
teria sido invejado por Jesus (Hebreus 7:17).
Os descendentes de Caim tambm trabalharam na inteno de ascender
socialmente. Comentaristas da bblia hebraica informaram que Yaval
inventou trancas de porta em forma de para evitar a entrada de
ladres nas casas, fez cercas e
estbulos para separar o rebanho bovino do ovino, e tambm dos
bois castrados. (Crnicas de Jerameel 24:5). Depois de descobrir a
cincia da msica, Yuval escreveu-a sobre duas estelas, uma de mrmore
branco e outra de barro cozido, porque se a eroso destrusse uma
restaria outra para passar seu conhecimento
34 MELAMED, Meir Matzliah. Tora A Lei de Moiss. So Paulo, Sfer,
2001, p 11-12, nota 22. 35 MASSON, Herv. Dictionnaire Initiatique
(1970). Em: COUST, Alberto. Biografia do Diabo. Trd. Luca
Albuquerque. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1997, p 161. 36 Ele
escreveu: Il y a eu, dans le deuxime sicle, une secte dhommes
effroyables qui glorifiaient le crime et quon a appels canites. Ces
misrables avaient une grande vnration pour Can. (PLANCY, J. Collin.
Dictionnaire Infernal. Paris, Socit de Saint-Victor & Sagnier
et Bray, 1853, p 109). 37 GRAVES, Robert & PATAI, Raphael.
Hebrew Myths. United States of America, Doubleday, 1963, p 94. 38
MACCOBY, Hyam. The Sacred Executioner: Human sacrifice and the
legacy of guilt. New York, Thames and Hudson, 1982, p 14 e 16.
-
posteridade (Crnicas de Jerameel 24:6-7). Tubal Caim forjava
utenslios de guerra e foi artfice em todos os ramos da indstria
siderrgica. Trabalhava com ferro, cobre, estanho, chumbo, prata e
ouro. Ele descobriu a arte de juntar chumbo e ferro para temperar o
ferro e fazer lminas mais afiadas. Ele tambm inventou a pina, o
martelo, o machado e outros instrumentos de ferro. Graas descoberta
da metalurgia os homens comearam a fazer esttuas para o culto
religioso (Crnicas de Jerameel 24:8). Nos dias de Enoch os homens
comearam a ser designados por ttulos de juzes e prncipes, foram
deificados e erigiram templos em sua homenagem, mas no tempo de Reu
todos eles foram depostos. (Crnicas de Jerameel 24:939).
Interpretaes e interpolaes crists
Todo mundo sabe que agora ou nunca Todo mundo sabe que sou eu ou
voc
E todo mundo sabe que voc vive para sempre Ah, quando voc tiver
feito uma linha ou duas
Todo mundo sabe que o negcio podre
Leonard Cohen. Everybody Knows.
O Novo Testamento dos cristos afirma que Abel e Zacaras morreram
no altar
(). Isto era um problema grave e especfico. (Lucas 11:50) Jesus
fala de Abel como vivendo na fundao do mundo (Lucas 11:50). A
palavra grega para mundo Ksmos (). O termo fundao verte a palavra
grega katabol () e significa literalmente lanamento (de semente)
para baixo. Noutra parte lemos que a semente () plantada na terra
literalmente o DNA prprio ou imprprio perante um rgido controle de
qualidade eugnica. Todos os filhos de deus ( ) so incapazes de
errar (). Por outro lado, Caim nasceu incapaz de praticar a justia
() por pertencer linhagem opressora ( ) e ser filho do diabo ( ).
(1 Joo 3:9-12).
Abel () conhecia a verdade () e ofereceu um sacrifcio () melhor
que o de Caim (), sendo por isso rotulado pelo adjetivo dikaious ()
o qual define a observncia de um costume e comumente traduzido como
piedoso e justo. Desta forma ele comprou um super poder: Mesmo
depois de morto ainda fala. (Hebreus 11:4) Abel sofreu uma espcie
de ressurreio espiritual temporria semelhante de Jesus, diferente
da de Lzaro e do filho da viva de Naim.
Os livros apcrifos gnsticos cristos trazem variantes enormes,
montonas e inverossmeis, onde Caim j nasce com o corao duro cheio
de dio por tudo e todos enquanto Abel um religioso compulsivo de
corao manso. Nestas fontes Caim e Abel decidiram casar com a mesma
mulher ao mesmo tempo, quando tinham respectivamente quinze e doze
anos. Caim achava que Luluva era a mulher mais bela do mundo. Abel
nem sabia que pnis no serve s para mijar, mas queria casar com a
irm mais velha s porque o pai mandou. Luluva nasceu com Caim e ele
achava que, por isso, esta era sua esposa predestinada. Quando
chegou aos seus ouvidos a fofoca de que os pais prendiam cas-lo com
uma garota feia e dar Luluva em casamento para Abel, ele lembrou o
antigo costume israelita de dar a viva do irmo morto como esposa ao
irmo vivo e formulou a dvida: Por que pretendeis tomar minha irm e
uni-la em matrimnio com meu irmo? Acaso estarei morto? (Primeiro
Livro de Ado e Eva 78:12)40. Ento aconteceu o episdio da seleo dos
sacrifcios e ele teve a certeza de que havia algo errado. Tudo
termina com o afvel Abel esperando enquanto Caim procura paus e
pedras para espanc-lo at a morte. Uma vez enterrado, o corpo
cuspido pela terra falante que, zombando de Caim, se recusa a
receber o cadver. No
39 THE CHRONICLES OF JERAMEEL. Trd. M. Gaster, Ph.D. London,
Oriental Translation Fund, 1899, p 51. 40 TRICCA, Maria Helena de
Oliveira. Apcrifos II: Os proscritos da Bblia. So Paulo, Mercuryo,
1995, p 126-127.
-
fim de tudo Deus demonstra misericrdia para com Caim e amaldioa
o solo que bebeu o sangue de teu irmo (Primeiro Livro de Ado e Eva
79:22)41. No muito longe dali, escondido na floresta, satans bate
palmas rindo muito de tudo isso.
Instrues da catequese: Concebeu Caim um dio mortal e, devorado
por nefanda inveja, convidou ao irmo para darem juntos um passeio
no campo, e lanando-se ento sobre Abel o matou. (Estampa 1901,
Monsenhor Carlos Couturier)42.
Concluso
Caim um personagem mitolgico e literrio que, tal como inmeros
outros,
existe no mundo das idias desde pocas imemoriais. O conto
original foi prejudicado pela falta de pacincia dos revisores
incapazes de conciliar a genealogia javista (linhagem cainita) com
a sacerdotal (filhos de Seth) e com a influncia helnica que logrou
transformar heri em vilo (Sabedoria 10:1-4). Ele morreu em vrias
verses. Foi ressuscitado mais tarde pelos artistas e transformado
em vampiro em mais de um jogo de videogame e RPG. Assim com existem
vrias verses dos quadrinhos e filmes do Batman, a origem de Caim
tambm possui vrias verses. No h estrias certas ou erradas. Algumas
vieram antes das outras e isto tudo. Caim tem mltiplas
personalidades e inmeras faces. Viver para sempre desde que ns, os
vivos, lembremos dele por toda a eternidade.
41 TRICCA, Maria Helena de Oliveira. Apcrifos II: Os proscritos
da Bblia. So Paulo, Mercuryo, 1995, p 131. 42 COUTURIER, Monsenhor
Carlos. Compendio da Histria Sagrada. Rio de Janeiro, Livraria
Francisco Alves, 1901, p 8.