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POLTICA OPERRIA: H FUTURO? 49
Trabalho informal:os fios (in)visveis daproduo capitalista
MARIA AUGUSTA TAVARESPROFESSORA DO DEPARTAMENTO DE SERVIO SOCIAL
DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
O trabalho informal no um fenmeno novo no mundo do
trabalho,especialmente no Brasil, onde a dualidade e a
heterogeneidade do mercadode trabalho so problemas
histrico-estruturais. Entretanto, os ajustes estru-turais impostos
economia pelo regime da acumulao flexvel so portadoresde mudanas,
dentre as quais o trabalho informal se coloca como uma ten-dncia
que deve ser considerada: 1) pelo carter que contemporaneamentelhe
atribudo por organizaes financeiras internacionais da estatura
doBanco Mundial e do Fundo Monetrio Internacional (FMI),1 as quais
emboradeclarem que os problemas sociais decorrentes do desemprego
so efeitoscolaterais indesejveis,2 tm demonstrado por eles um
surpreendente in-teresse; 2) pela sua indiscutvel tendncia
expanso;3 e 3) pelo modo comovem se relacionando com o capital.
No que se refere ao interesse das instituies financeiras
pelosextremamente pobres, no tenhamos a ingenuidade de pensar que
houvequalquer mudana na sua funo. Ao contrrio, enquanto
patrocinadorasde um programa Programa de Ajuste Estrutural (PAE) ,
que privilegia aeficincia, a produtividade, o comrcio e a troca
internacional, tendo como
1 O Banco Mundial e o FMI tm recomendado a expanso do setor
informal como uma contratendnciaao desemprego, que se coloca entre
as aes complementares s polticas de proteo social para
osextremamente pobres.
2 A expresso do FMI-Banco Mundial, apud Michel Chossudovsky. A
globalizao da pobreza: impactosdas reformas do FMI e do Banco
Mundial. So Paulo: Moderna, 1999, p. 64.
3 O Relatrio sobre Emprego no mundo (BIT/1998-1999) assinala que
nos pases em desenvolvimentoa maioria dos empregos novos so criados
no setor informal, que j ocupa aproximadamente 500milhes de
pessoas.
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conseqncia o desemprego em massa e a reduo das polticas sociais,
oque se torna bvio a sua necessidade de legitimao. Contudo, as
aesdos programas estatais que antes incentivavam o setor informal
foramarrefecidas em alguns casos e, em outros, completamente
eliminadas, en-quanto a instncia intermediadora da proteo social se
desloca do Estadopara as organizaes no-governamentais (ONGs)
mediante modestos inves-timentos que, sob uma pretensa proteo
social, objetivam conter os nimosdas populaes despossudas que se
organizam, podendo pr em risco aspolticas de ajustamento.
Esse deslocamento do desenvolvimento para a luta contra a
pobreza, fazcom que o emprego deixe de ser uma questo econmica para
ser umaquesto social, sem que a racionalidade do capital em nada se
altere.4
Acumular continua sendo o seu propsito, e, exatamente por isso,
precisofazer ajustes, no sentido de que o fim capitalista no deixe
de ser alcanado.Ou seja, deslocam-se os trabalhadores, mas a lgica
da acumulaopermanece. No importa ao capital como essa mudana se
reflete na classetrabalhadora. A sociedade tem que ser modelada de
maneira tal a permitirque o sistema funcione de acordo com as suas
prprias leis.5
Segundo Marx, a fora de trabalho a nica mercadoria que
quandoconsumida produz valor, portanto, no existe capital sem
trabalho, embora,historicamente, no cenrio montado pelo capital, s
vezes quase todos ostrabalhadores tenham papis definidos e, em
outras, como agora, grandeparte seja transformada em meros
figurantes. Isso, no entanto, no altera alei fundante do capital: o
motivo que impulsiona e o objetivo que determinao processo de
produo capitalista a maior autovalorizao possvel docapital, isto ,
a maior produo de mais-valia, portanto, a maior exploraopossvel da
fora de trabalho pelo capitalista.6
Sob essa orientao, em que a base do raciocnio permanece a mesma,
osetor informal assume, historicamente, configuraes
completamenteopostas. Quando o capitalismo partilhava a idia de que
a sua organizaoprodutiva, regulada pelo livre mercado, se
expandiria de forma equilibrada,
4 Deve-se ressaltar que esse enfoque da questo social
completamente oposto nossa perspectiva.
5 Karl Polanyi. A grande transformao; as origens da nossa poca.
Rio de Janeiro: Campus, 1980, p. 72.
6 Karl Marx. O capital. So Paulo: Abril Cultural, 1983, p.
263.
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homognea e amplamente integradora, o setor informal era visto
comosinnimo de atraso. Assim, o desenvolvimento do capital acabaria
por elimin-lo. Mas quando a mesma economia de livre mercado se
revela incapaz daintegrao prometida, o setor informal reivindicado,
no porque o seudesempenho contribua de algum modo com a acumulao
capitalista, mascomo uma ao complementar proteo social.
Essas determinaes ideolgicas, que traduzem o oportunismo da
razoliberal, nos conduzem a concordar com Lautier7, quando nega
qualquerpertinncia noo de setor informal, e afirma a existncia de
empregosinformais, de trabalho sob relaes informais, o que no
significa estar margem do capital. a prpria estrutura capitalista
que imprime essecarter, pelo qual se explica a expanso do trabalho
informal e o modocomo parte dele, mediada pelos processos de
terceirizao, se articuladiretamente ao capital.
A partir do espao de movimentao oferecido s empresas pelas
polticasflexibilizadoras, o trabalho formal com as regulaes que
ainda o caracterizamest desaparecendo. Ora, criar emprego no funo
do capital. Mas este,j o sabemos, no existe sem trabalho. No o
trabalho que utiliza os meiosde produo; so os meios de produo que
utilizam o operrio.8 Ser ca-pitalista implica comandar o uso dos
meios de produo, isto , a prpriaproduo. Para que os meios de produo
funcionem, o capital necessita dotrabalhador, que acrescenta ao
objeto do trabalho novo valor, por meio doacrscimo de determinado
quantum de trabalho, abstraindo o contedodeterminado, a finalidade
e o carter tcnico do trabalho.9 Submetida sleis de mercado, a fora
de trabalho tem que se sujeitar oferta e procura,sendo ora
reivindicada, ora rejeitada, como qualquer bem que produzidopara a
venda. Na medida em que o aumento da produtividade e a
desre-gulamentao das relaes de trabalho contribuem para a
disponibilidadecrescente da fora de trabalho procura de emprego e
para fragilizar asnegociaes coletivas, o trabalho formal, estvel,
em tempo integral e so-cialmente protegido tende a ser uma
categoria do passado. Esse recuo no
7 Bruno Lautier. LEtat et linformel. Paris: LHarmattan,
1991.
8 Karl Marx.Captulo VI (Indito). So Paulo: Cincias Humanas,
1978, p. 19.
9 Karl Marx. O capital. Op. cit., p. 165.
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aparato jurdico de proteo ao trabalho evidencia que as
conquistas dostrabalhadores, na ordem burguesa, no passam de
concesses momentneas,com o que se revela a inviabilidade do
trabalho compartilhar poder com seuantagonista estrutural.10
Portanto, qualquer argumento que defenda aautonomia do setor
informal no se funda na prtica social.
Acerca da expanso e do modo como o trabalho informal est se
rela-cionando com o capital, pode-se inferir que, caso essa
tendncia persista, aeconomia informal deixa de ser intersticial,
como quer a teoria da subordi-nao,11 para assumir explicitamente a
sua funcionalidade ao sistema. Talpossibilidade nos impele a
desmontar essa rede que torna invisveis os fioscom os quais o
trabalho informal articulado produo capitalista. Deve-se observar
que o trabalho informal no comporta apenas ocupaes excludasdo
trabalho coletivo, e menos ainda, que se restringe s atividades de
estritasobrevivncia. Toda relao entre capital e trabalho na qual a
compra dafora de trabalho dissimulada por mecanismos, que
descaracterizam acondio formal de assalariamento, dando a impresso
de uma relao decompra e venda de mercadorias consubstancia trabalho
informal, emboracertas atividades desse conjunto heterogneo
divirjam no comportamento.Como as referncias conhecidas para
regular o emprego esto perdendo suapertinncia, a tipologia
formal/informal se torna insustentvel, a no serque se tenha um
conceito de formalidade, cuja base para ser trabalhadorformal seja
to-somente estar diretamente empregado por meios de
produotipicamente capitalistas, embora submetido mesma desproteo
social queo trabalhador informal.12
Deve-se, portanto, recusar a idia de que o trabalho informal se
restringes atividades de sobrevivncia. Assim, vamos analis-lo,
tendo em vista a
10 Cf. Istvan Mszros. Beyond capital. Londres: Merlin, 1995.
11 Teoria formulada em 1980, segundo a qual o setor informal uma
forma de produo subordinadae intersticial produo capitalista. Nessa
viso, o espao econmico onde o setor informal atua destrudo, criado
e recriado pelo movimento da acumulao capitalista. Paulo Renato C.
Souza. Salrio,e emprego em economias atrasadas. Campinas:
Unicamp/IE, 1999.
12 Nos Estados Unidos e Reino Unido, por exemplo, a regulamentao
das normas de trabalho inexistente nos itens: jornada de trabalho,
contrato por tempo determinado, salrio mnimo, proteoao emprego e
direitos de representao dos trabalhadores. Cludio S. Dedecca.
Racionalizaoeconmica e trabalho no capitalismo avanado. Campinas:
Unicamp/IE, 1999, p. 214.
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sua tendncia expanso e como esta se realiza na interioridade do
sistemacapitalista. o que faremos a seguir.
Trabalho informal e totalidade
O novo milnio inaugura a era do trabalho informal. Antunes
defende atese de que o capital necessita cada vez menos do trabalho
estvel e cada vezmais das mais diversificadas formas de trabalho
parcial ou part-time, terceirizado,que so, em escala crescente,
parte constitutiva do processo de produocapitalista.13 Se
comprovada essa tese, possvel prever srias conseqnciaspara a
sociedade. Lembremo-nos que o debate acerca da informalidade,
doponto de vista da literatura econmica dominante, tende geralmente
a discuti-la enquanto unidade ou empresa (pequena ou micro), e no
enquantotrabalho. Desse modo, fica mais fcil negar a produtividade
de certos trabalhosrealizados informalmente, mas diretamente
articulados produo capitalista.Essa forma de organizar a produo, ao
mesmo tempo fragmenta o trabalho eobriga-o a assumir a condio que
aparenta. Com isso, certamente no seanula a mais-valia, mas a sua
dissimulao serve de argumento para preservara explorao em escala
cada vez mais ampliada, conduzindo a pensar queestamos a caminho de
uma organizao da produo capitalista, onde todossero capitalistas.
Ou, talvez, pretenda-se negar a produtividade do trabalhopelo
obscurecimento da participao de trabalhadores informais no
trabalhocoletivo, o que os faz parecer meros vendedores de
mercadorias, cuja relaocom o capital se restringe esfera da
circulao.
Para discutir essas hipteses, impe-se o austero caminho da
crtica. Ou,numa palavra, a totalidade. Porque, segundo Lukcs, A
categoria datotalidade significa, (...) por um lado, que a
realidade objetiva um todocoerente de que cada elemento est de uma
maneira ou outra em relaocom cada outro elemento e, por outro lado,
que essas relaes formam naprpria realidade objetiva, correlaes
concretas, unidades, ligadas entre side maneiras inteiramente
diversas, mas sempre determinadas.14
13 Ricardo Antunes. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a
afirmao e a negao do trabalho. So Paulo:Boitempo, 1999, p. 119.
14 Gyorgy Lukcs. Realismo e existencialismo. Lisboa: Arcdia,
1960, p. 282-283.
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Sob essa orientao, estamos assumindo a tarefa de desvelar as
deter-minaes ideolgicas que fundam a concepo setorialista, tendo em
vistaconhecer o trabalho informal e seus nexos com o capital. A
busca desse objetivoimplica precisar certos contornos da relao
capital, uma vez que as imprecisese generalizaes tm contribudo com
o surgimento de concepes tericasque, alm de no traduzirem o real,
do lugar a formulaes que preservame aprofundam a subordinao do
trabalho ao capital.
A propsito, em 1995, o Relatrio Boissonat, concluiu que, no
horizontede vinte anos, o emprego continuaria sendo um meio
essencial de inserosocial. Portanto, se a tecnologia economiza
trabalho, melhor desdobrar osempregos existentes para que todos
tenham um, do que d-los a uns e privarpermanentemente outros.15
Essa recomendao suscita algumas questes:qual o conceito que est
sendo atribudo a emprego? Trabalho e empregoso sinnimos? O
trabalho/emprego seria formal ou informal? Produtivo ouimprodutivo?
Full time ou half time?
No referido relatrio, observa-se que o trabalho tratado na sua
dimensopuramente econmica, enquanto trabalho abstrato que estrutura
a sociedadeindustrial na Frana, a tal ponto que o termo trabalho
freqentementeutilizado como sinnimo de emprego.16 a mesma dimenso
econmicaque tambm focalizamos, mas, obviamente, na perspectiva
crtica que nosorienta, no identificamos trabalho a emprego. A viso
de totalidade permiteobservar que o pano de fundo do cenrio em que
se movem as formas detrabalho a flexibilizao, a qual atravs da
terceirizao combina de modoinovador prticas que o capital j
experimentara no passado, com as moder-namente conhecidas. Essa
rearrumao faz surgir a empresa flexvel, mate-rializada pela
diversidade de status de assalariados. A mudana visvel que o
conjunto de trabalhadores necessrios a um dado processo de
trabalhono precisa mais ser simultaneamente reunido no mesmo local.
Mas flexibilizarno significa apenas externalizao de funes. A
reconfigurao da empresae do emprego portadora de questes tericas
fundamentais para a sociedade,pois sendo o trabalho uma relao
social, no h como separar a sua funoeconmica do contexto social em
que o mesmo se desenvolve.
15 Jean Boissonat. Le travail dans vingt ans. Paris: Odile
Jacob, 1995, p. 313.
16 Idem, p. 41.
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A flexibilidade do trabalho alm de, a curtssimo prazo, se
refletirnocivamente na vida profissional e social, tambm fomenta a
ordem ideo-lgica dominante, distanciando cada vez mais o horizonte
revolucionrio.Neste sentido, os defensores do capital assumem a
tarefa de esconder ascontradies do sistema e de realar a superfcie,
como se esta fosse a essncia.Os recursos da informtica somados
maleabilidade decorrente dadesregulamentao tendem a tornar o
trabalho mais informal, e em algunssegmentos, virtual, contribuindo
para que as fronteiras da relao capital setornem menos perceptveis.
Na esteira da economia vulgar, o capitalismocontemporneo engendra
situaes que obscurecem as fronteiras entreatividade industrial e
servios, entre trabalho produtivo e improdutivo, entretrabalho
formal e informal, e ainda, entre emprego e desemprego.
Graas aos mecanismos oferecidos pela flexibilizao, o capital
temtransformado relaes formais em informais, o que, por conseqncia,
embotaoutras relaes. Nessa passagem, em certos casos, o que venda
direta detrabalho vivo assume a aparncia de venda de mercadoria.
Com isso, torna-se evidente que pela deslocalizao do trabalho
nega-se a categoria tempode trabalho e, por conseguinte, a
subordinao do trabalho ao capital.Contudo, essa deslocalizao, que
os neoliberais traduzem comoindependncia, apenas cria a iluso de
que o trabalhador adquiriuautonomia, simplesmente porque no sai de
casa e no sofre uma vigilnciadireta, como ocorre na empresa. Na
verdade, o suposto trabalhoindependente executado segundo uma
obrigao por resultados, portanto,sob rigoroso controle e sob maior
explorao. Trata-se to-somente de umafalsa autonomia, marcada pelo
desassalariamento e pela precariedade, masonde o tempo de trabalho
socialmente necessrio continua determinante.Idntico equvoco pode
ser verificado nos segmentos do trabalho virtual,onde os
teletrabalhos so apontados como ocupaes com status deindependncia.
No entanto, todos esses trabalhos esto ligados a uma
ordemtecnolgica, capaz de exercer controle sobre cada minuto da
atividade.
Nesse terreno sombrio, os tempos fluidos do trabalho ainda
cumprem atarefa de falsear os indicadores de emprego. Se antes
havia dvidas quantos estatsticas acerca do mercado de trabalho,
agora elas so ainda menosconfiveis, porque cada vez menos ntida a
diferena entre emprego edesemprego. Para alguns pesquisadores, os
indicadores tradicionais de desem-
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prego no so mais suficientes para medi-lo, sendo necessrio
agregar outros.Cada vez mais o desemprego aparece como um fenmeno
complexo eheterogneo que escapa capacidade de mensurao dos
indicadorestradicionais para anlise do mercado de trabalho.17
Inscreve-se a a subuti-lizao da fora de trabalho, que acobertada
pelos contratos de trabalhoparcial ou determinado, e que escapam
aos indicadores tradicionais refe-renciados.18 A estes, pode-se e
se deve acrescentar o trabalho informal,no porque se queira que
qualquer ocupao seja vista como emprego. Oque se quer enfatizar que
certas ocupaes exercidas precariamente, svezes mediante a forma de
trabalho domiciliar, fazem parte do trabalhocoletivo. Algumas
grandes indstrias, no Brasil e no mundo, tm mudado afisionomia do
trabalhador coletivo, na medida em que o capital se relacionacom
seus opositores, como se ao invs de comprar fora de trabalho
estivessecomprando outra mercadoria. Essa explorao do trabalho na
esfera da mais-valia absoluta apenas uma das estratgias, entre
tantas outras, sob o mesmoregime, que podem articular grande
indstria e trabalho informal. Torna-senecessrio, portanto,
demonstrar que a simples rearrumao das formas novas e/ou velhas no
s no alteram o contedo da relao capital, comopreservam e
intensificam a explorao do trabalho. Em outros termos,reafirmamos
que seja qual for a organizao do trabalho nesta ordem,permanece
inalterada a lei do valor.
A lei do valor: mo invisvel que tece a relao capital
A produo capitalista tem como fim a mais-valia. Isto , seu
objetivo que cada produto contenha o mximo possvel de trabalho no
pago, o queequivale a dizer que, nesta sociedade, um quantum maior
de trabalho que osocialmente necessrio torna a produo inadequada
lei do valor. SegundoMarx, essa tendncia imanente da relao
capitalista no se realiza de maneiraadequada (...) enquanto no se
tenha desenvolvido o modo de produoespecificamente capitalista e,
com ele a subsuno real do trabalho ao capital.19
17 Cludio Dedecca. Op. cit., p. 198.
18 Idem, p. 216.
19 Karl Marx. Captulo VI. Op. cit., p. 69.
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A mais-valia absoluta, sozinha, no suficiente para uma produo
cujo fimdeve se realizar em si mesma. Assim, a lei do valor
revoluciona os meios deproduo e, conseqentemente, os processos do
trabalho e os agrupamentossociais, tornando o modo de produo
especificamente capitalista a formageral socialmente dominante do
processo de trabalho. Contraditoriamente,o capital ope trabalho
manual e trabalho intelectual ao mesmo tempo emque o carter
cooperativo se impe como condio necessria do prprioprocesso de
trabalho. Diviso e cooperao do trabalho so condiesfundamentais
produtividade do trabalho, cuja existncia se expressamediante uma
atividade combinada, uma totalidade, embora os componentesdessa
totalidade sejam estranhos entre si. claro que, o objetivo
dessaassociao promovida pelo capital, est direcionado to-somente ao
produtodo trabalho, ao aumento da fora produtiva do capital. A fora
coletiva dotrabalho, sua condio de trabalho social, por fim a fora
coletiva do capital.20
Cabendo ressaltar que, Para trabalhar produtivamente, j no
necess-rio, agora, pr pessoalmente a mo na obra; basta ser rgo do
trabalhadorcoletivo, executando qualquer uma de suas
subfunes.21
Com isso, no s o trabalhador que produz o contedo material da
riqueza trabalhador produtivo, mas sim, todos os trabalhadores que
produzem mais-valia,22 bem como o fato do modo de produo
especificamente capitalista sera forma social dominante no exclui
da relao capital o seu ponto de partida a mais-valia absoluta. Ao
contrrio, alm de se desenvolverem diferentesmodos de articulao
entre os dois regimes de explorao, ainda h situaesem que a
intensidade das operaes produtivas se insere em formas de
trabalhocomplexo, tornando a mais-valia absoluta inseparvel da
mais-valia relativa.Para Bernardo, o prprio processo de mais-valia
relativa na produo da forade trabalho implica a permanente remisso
de amplos setores de trabalhadorespara sistemas em que facilmente
pode vigorar a mais-valia absoluta.23
20 Karl Marx. O capital. Op. cit, p. 86.
21 Idem, p. 105.
22 Se for permitido escolher um exemplo fora da esfera da produo
material, ento um mestre-escola um trabalhador produtivo se ele no
apenas trabalha as cabeas das crianas, mas extenua asi mesmo para
enriquecer o empresrio. O fato de que este ltimo tenha investido
seu capital numafbrica de ensinar, em vez de numa fbrica de
salsichas, no altera nada na relao Idem, p. 105-106.
23 Joo Bernardo. Economia dos conflitos sociais. So Paulo:
Cortez, 1991, p. 114.
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Essa articulao que explica a existncia combinada e concomitante
dediferentes estgios tecnolgicos no interior do mesmo conjunto de
processosprodutivos torna indiscutvel que desenvolvido e atrasado
so momentos deuma mesma unidade, ou mais precisamente, do modo de
produo capitalista., pois, sob essa viso de totalidade que
pretendemos desvelar as mediaesque consubstanciam o trabalho
coletivo na era da acumulao flexvel, doqual, em alguma medida, o
trabalho informal participa.
A partir da reduo da necessidade de trabalho vivo e das
relaesformais de assalariamento, alguns autores compartilham a idia
de que ocapitalismo no pode mais ser apreendido mediante as mesmas
categoriasque consubstanciam a anlise clssica do nosso pensador. Os
que defendemessa concepo, embasados em mudanas na organizao do
trabalho, quese respaldam nas polticas de flexibilizao e
desregulamentao, tomam ofenmeno como essncia e tratam partes como
se estas representassem atotalidade. Dentre os equvocos decorrentes
dessa parcialidade, carac-terstica do pensamento liberal, queremos
ressaltar que nem a generalizaodo trabalho improdutivo nem o
deslocamento do trabalho formal para oinformal eliminam a
produtividade do trabalho nos termos postulados pelateoria
marxiana. As simples alteraes que tm ocorrido na forma nocancelam a
vigncia da lei do valor. Assim, o desaparecimento do trabalhoformal
no implica o fim do regime de assalariamento, base da
produocapitalista, visto que permanecem as mesmas regulaes no
contedo dotrabalho executado sob relaes informais. A maior aplicao
da cinciaamplia a fora produtiva do capital, mas no elimina a
necessidade dotrabalho vivo, bem como o simples deslocamento do
trabalho do interiorda fbrica para a clandestinidade no anula o seu
carter combinado.
Que no se tenha dvida quanto impossibilidade de violao da lei
dovalor na ordem capitalista, seja qual for o modo como
empiricamente seexpressem as suas relaes. Por isso, sem que se
desconsidere a aparncia,deve-se tom-la apenas como ponto de partida
para desvelar a real funode cada uma das manifestaes assumidas pela
organizao do trabalho nacontemporaneidade. No se deve esquecer que
a premissa de o produtoconter o mximo possvel de trabalho no pago s
pode ser alterada paramais. Nesses termos, realizar no mercado um
produto que incorpore umquantum de trabalho maior que o socialmente
necessrio, como ocorre na
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TRABALHO INFORMAL: OS FIOS (IN)VISVEIS DA PRODUO CAPITALISTA
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24 Fenmeno que chamou a ateno do mundo, na dcada de 1970, a
partir do qual se difunde aforma de produo que ficou conhecida como
especializao flexvel. As experincias industriaisdescentralizadas e
informais, que passaram a ser chamadas de Terceira Itlia,
contriburam para osurgimento de distritos industriais, para os
quais se voltaram as atenes de pesquisadores nomundo inteiro.
Beccatini descreve o distrito industrial como sendo um grande
complexo produtivoonde a coordenao das diferentes fases e o
controle da regularidade de seu funcionamento no sosujeitos a
regras pr-estabelecidas e a mecanismos hierrquicos (como o caso de
uma grandeempresa privada ou dos agrupamentos soviticos) mas ao
contrrio so submetidos ao jogoautomtico do mercado e a um sistema
de sanes sociais infligidas pela comunidade. A contigidadepermite
ao sisema territorial das empresas, isto , ao distrito industrial,
basear seus clculospraticamente nas economias de escala ligadas ao
conjunto do processo produtivo, sem perdertodavia sua flexibilidade
e sua adaptabilidade aos diversos acasos do mercado, graas
segmentaodesse processo. G. Beccatini. Les distrites industriels en
Italie. In: M. Maruani et all. La flexibilit enItalie: dbats sur
lemploi. Paris: Syros/Alternatives, 1998, p. 263-264.
chamada economia informal, implica um alto grau de explorao do
trabalho,o que destri o argumento da independncia e da autonomia
que se atribuia esta. Se existe uma mo invisvel que rege a produo
capitalista, esta ,sem dvida, a lei do valor. A sobrevivncia da
produo numa escala socialque no tenha perdido a relao com o
indivduo e com a sua famlia ficasujeita a atuar em reas que no
tenham substitutivos no ncleo formal, oque muito raro, ou a
submeter-se gesto do grande capital. A exemplo, o que ocorre hoje,
em certos ramos do comrcio, onde pequenos capitalistasse associam
para serem abastecidos por uma central de compras que,
podendoadquirir produtos a um preo melhor, lhes empresta o nome,
pelo qual cobrauma significativa porcentagem.
Ora, se o capital atua to astutamente nos ramos de que depende
parasua realizao, no pode ser menos eficaz na esfera produtiva,
onde nasce.Fenmenos como a Terceira Itlia24, e outros exemplos
menos famosos deorganizao autnoma do trabalho, que a economia
liberal tenta nos imputarcomo uma experincia de trabalho espontneo,
livre das determinaescapitalistas constituem apenas mais uma
estratgia de legitimao medianteformas que parecem propiciar o
reencontro do trabalho manual com ointelectual. Entretanto, sendo a
produo especificamente capitalista aforma social dominante, no h
como escapar da sua determinaofundante. Com isso no estamos
afirmando que todo trabalho produtivopara o capital, mesmo porque a
coexistncia entre trabalho produtivo eimprodutivo forma um todo
estruturado dialeticamente, cujo movimento
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60 MARIA AUGUSTA TAVARES
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determinado pelo processo global de desenvolvimento da
acumulaocapitalista.25 Tambm no pretendemos anular a existncia de
certasocupaes de estrita sobrevivncia, que no interessam ao capital
nem emtermos produtivos nem improdutivos. O que se quer tornar
claro que,sejam quais forem os mecanismos utilizados para
obscurecer os contornosda relao capital, apenas o tempo de trabalho
socialmente necessrioconta como formando valor.26 Esta lei
capitalista igualmente vlida paraas mercadorias em geral, no
importando se foram produzidas pelo trabalhoformal ou informal.
25 Francisco Jos S. Teixeira. Anlise crtica do mercado de
trabalho de Fortaleza luz das categorias detrabalho produtivo e
improdutivo. Fortaleza: Sine/CE, 1988, p. 32.
26 Karl Marx. O capital. Op. cit., p. 157.
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