1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X “ADMINISTRANDO O LAR”: A PERCEPÇÃO DE UMA “CULTURA DOMÉSTICA” E OS DESAFIOS DO TRABALHO DOMÉSTICO REMUNERADO Thays Monticelli 1 Resumo: Esse artigo propõe analisar a percepção das patroas em relação aos cuidados domésticos e, principalmente, as suas expectavas, desejos e compreensões de “eficiência” ao contratar uma trabalhadora doméstica remunerada. Através da pesquisa realizada durante os anos 2015 e 2016, sobre as lógicas e desafios elencados pelas empregadoras de trabalhadoras domésticas remuneradas, percebi que havia uma constante sobre a maneira de se pensar e fazer o doméstico. Essa “cultura doméstica” foi percebida na análise de manuais para donas-de-casa da década de 70, pesquisas sobre o trabalho doméstico remunerado, documentários e filmes contemporâneos, assim como blogs de boas maneiras. Frente a todo esse material, situados em diferentes momentos históricos, foi percebido, na narrativa das patroas, representações do que seja uma casa bem limpa e organizada, uma comida bem feita, uma mesa bem servida, como uma trabalhadora doméstica deve ser e estar, quais os lugares não são pertencentes a elas, entre outras práticas cotidianas domésticas que historicamente hierarquizam, reproduzem aspectos da servilidade e impedem que novas formas de pensar o fazer doméstico sejam concretizadas. Essa realidade reafirma posições da divisão sexual do trabalho e de classe estritamente vinculadas às desigualdades de gênero, trazendo desafios analíticos sobre a interconexão entre o care as posições de poder, e como elas constroem subjetividades. Palavras-chave: patroas; empregadoras; trabalho doméstico; trabalho doméstico remunerado; cuidado No dia 25 de Março de 2015 aconteceu na cidade do Rio de Janeiro um curso de Atualização para Secretárias do Lar. A organizadora do evento, Lisa Mackey, envolveu-se em uma polêmica midiática ao dar uma entrevista para Cleo Guimarães – colunista do Jornal OGlobo – ao responder algumas questões sobre os objetivos propostos pelo curso, dizendo: “as empregadas perderam a noção do limite. Teve uma que pedi para chegar 7h30 e botar a mesa do café. Ela disse para mim: eu não! Imagina se eu vou botar mesa de café para madame! Essa falta de limite foi muito lembrada também na pesquisa que fiz”. (GUIMARÃES,2015, n.p). Lisa Mackey fez uma pesquisa com 150 patroas entre 35 e 45 anos para mapear as principais demandas que envolviam “falhas” das trabalhadoras domésticas remuneradas, entre essas falhas ela listava, por exemplo, “empregada que pendura pano de prato no ombro, que fala muito no celular e depois diz que não deu tempo de passar a roupa, que se recusa a usar touca e uniforme ou que ficam falando das 1 Doutora pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná. Tem trabalhado especificamente com as questões que envolvem o trabalho doméstico remunerado, atuando em temas como: gênero, trabalho, família, divisão sexual do trabalho, emoções e direito. Atualmente é integrante da pesquisa DomEQUAL, coordenada pela Università Ca’Foscari Venezia/Itália.
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OS DESAFIOS DO TRABALHO DOMÉSTICO REMUNERADO Resumo · 2018. 1. 17. · sobre o trabalho doméstico remunerado, documentários e filmes contemporâneos, assim como blogs de boas
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
“ADMINISTRANDO O LAR”: A PERCEPÇÃO DE UMA “CULTURA DOMÉSTICA” E
OS DESAFIOS DO TRABALHO DOMÉSTICO REMUNERADO
Thays Monticelli1
Resumo: Esse artigo propõe analisar a percepção das patroas em relação aos cuidados domésticos
e, principalmente, as suas expectavas, desejos e compreensões de “eficiência” ao contratar uma
trabalhadora doméstica remunerada. Através da pesquisa realizada durante os anos 2015 e 2016,
sobre as lógicas e desafios elencados pelas empregadoras de trabalhadoras domésticas remuneradas,
percebi que havia uma constante sobre a maneira de se pensar e fazer o doméstico. Essa “cultura
doméstica” foi percebida na análise de manuais para donas-de-casa da década de 70, pesquisas
sobre o trabalho doméstico remunerado, documentários e filmes contemporâneos, assim como blogs
de boas maneiras. Frente a todo esse material, situados em diferentes momentos históricos, foi
percebido, na narrativa das patroas, representações do que seja uma casa bem limpa e organizada,
uma comida bem feita, uma mesa bem servida, como uma trabalhadora doméstica deve ser e estar,
quais os lugares não são pertencentes a elas, entre outras práticas cotidianas domésticas que
historicamente hierarquizam, reproduzem aspectos da servilidade e impedem que novas formas de
pensar o fazer doméstico sejam concretizadas. Essa realidade reafirma posições da divisão sexual
do trabalho e de classe estritamente vinculadas às desigualdades de gênero, trazendo desafios
analíticos sobre a interconexão entre o care as posições de poder, e como elas constroem
subjetividades.
Palavras-chave: patroas; empregadoras; trabalho doméstico; trabalho doméstico remunerado;
cuidado
No dia 25 de Março de 2015 aconteceu na cidade do Rio de Janeiro um curso de
Atualização para Secretárias do Lar. A organizadora do evento, Lisa Mackey, envolveu-se em uma
polêmica midiática ao dar uma entrevista para Cleo Guimarães – colunista do Jornal OGlobo – ao
responder algumas questões sobre os objetivos propostos pelo curso, dizendo: “as empregadas
perderam a noção do limite. Teve uma que pedi para chegar 7h30 e botar a mesa do café. Ela disse
para mim: eu não! Imagina se eu vou botar mesa de café para madame! Essa falta de limite foi
muito lembrada também na pesquisa que fiz”. (GUIMARÃES,2015, n.p). Lisa Mackey fez uma
pesquisa com 150 patroas entre 35 e 45 anos para mapear as principais demandas que envolviam
“falhas” das trabalhadoras domésticas remuneradas, entre essas falhas ela listava, por exemplo,
“empregada que pendura pano de prato no ombro, que fala muito no celular e depois diz que não
deu tempo de passar a roupa, que se recusa a usar touca e uniforme ou que ficam falando das
1Doutora pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná. Tem trabalhado
especificamente com as questões que envolvem o trabalho doméstico remunerado, atuando em temas como: gênero,
trabalho, família, divisão sexual do trabalho, emoções e direito. Atualmente é integrante da pesquisa DomEQUAL,
coordenada pela Università Ca’Foscari Venezia/Itália.
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
tragédias dos lugares onde moram”. (GUIMARÃES,2015, n.p). O curso de Atualização para
Secretárias do Lar tinha o custo de R$550,00, duração de seis horas e apresentava como principais
temas abordados: horário, vestimenta, cuidados pessoais, cuidados com utensílios, higiene na
cozinha e no banheiro, uso de produtos de limpeza, limpeza em geral (cantos, estantes altas e
detalhes), uso de telefone, música e demais comportamentos enquanto trabalha, organização de
geladeira, de armários de cozinha e despensa, dicas para variar o cardápio. Essa qualificação
profissional era necessária, de acordo com Lisa Mackey, porque havia uma incompatibilidade entre
o comportamento de trabalhadoras domésticas remuneradas dentro de seu ambiente de trabalho com
as ordens, desejos e expectativas de suas empregadoras2.
A polêmica nas redes sociais foi gerada especialmente porque o conteúdo desenvolvido no
curso e as declarações da organizadora denotavam perspectivas muito conservadoras, mostrando-se
deslocada em um contexto de mudanças no trabalho doméstico remunerado. É importante lembrar
que o país aprovou em 2013 a Proposta de Emenda Constitucional 478/10, estabelecendo igualdade
de direitos trabalhistas para essa categoria profissional, garantindo para uma grande parcela de
mulheres direitos básicos que combatem diretamente opressões que se vinculavam a este tipo de
trabalho no país, tornando-se um dos países mais avançados em termos de direitos da América
Latina.
De fato, algumas mudanças tornaram-se notórias ao longo dos últimos anos no Brasil, como
por exemplo, a intensa diminuição de trabalhadoras que moram junto à família empregadora, de
jovens que adentram a essa categoria profissional e um pequeno aumento no número de contratos
legalmente firmados entre empregadoras e trabalhadoras. (FRAGA, 2016). Soma-se ainda a esse
contexto uma intensa discussão sobre a maneira como o trabalho doméstico remunerado é
estruturado no Brasil através de filmes, documentários, novelas, revistas, jornais, conversas
cotidianas, etc. Como analisa Fraga (2016), o tema estava “na boca do povo”, seja na articulação de
ideias sobre as dificuldades que as empregadoras encontrariam com a nova legislação, seja nas
denúncias e críticas sobre explorações sofridas dentro das residências brasileiras3 - o que fez causar
2 Estamos assumindo o universo dos empregadores no feminino por duas razões: primeiro que a toda a pesquisa de
campo realizada para a tese foi desenvolvida com mulheres empregadoras, mesmo quando essas eram casadas se
colocavam como as principais responsáveis pela comunicação com a trabalhadora doméstica remunerada. Segundo,
porque assumimos que essa realidade apontada pela pesquisa de campo não é singular, ela se faz presente em quase
todo o território nacional, nos mostrando como o ambiente privado ainda é massivamente feminino. 3 Um exemplo é a página no facebook intitulada “Eu Empregada Doméstica” criado em 2015 por Joyce Fernandes
(feminista negra, professora de história e ex-trabalhadora doméstica remunerada), somando mais de 138 mil pessoas
seguidoras de seus posts. A página conta com relatos e denúncias feitas diretamente por trabalhadoras domésticas
remuneradas. Disponível: <https://www.facebook.com/euempregadadomestica/?fref=ts> Acesso: 04 de mar. 2017.