Os crimes de NapoLeão • ______ =. c Os crimes de Sapoleào é um desalio à visão tradicional de Xapoleão como um génio militar e fundador da França moderna." Le Monde Diplomatique Claude RIBBE ATROCIDADES QUE INFLUENCIARAM HITLER
Jan 19, 2016
Os crimesde NapoLeão
•______ =. c
Os crimes de Sapoleào é um desalio à visão
tradicional de Xapoleão como um génio
m ilitar e fundador da França m oderna."
Le Monde Diplomatique
C l a u d e RIBBE
ATROCIDADES QUE INFLUENCIARAM HITLER
Cento e quarenta anos antes do Holocausto nazista,
Napoleão Bonaparte utilizou câm aras de gás e m b rio
nárias para exterm inar a população civil das A n tilh as,
criou cam pos de concentração na Córsega e em A lba
e restabeleceu o tráfico de escravos, provocando a
morte de m ais de 10 0 m il africanos nas colónias fra n
cesas. Neste polém ico Os crimes de N apoleão , o h isto
riador Claude Ribbe expõe as atrocidades p ion eiras
praticadas pelo im perador da França, anos depois a s
sim iladas por ditadores como A dolf H itler.
ISBN 978-85-01-07758-5
8 5 0 1 0 7 7 5 8 5
A partir de 1802, uma série de atrocidades
contra os africanos e as populações de origem
africana nas colónias francesas teve início.
Por ordem do imperador Napoleão Bonaparte,
milhares foram torturados, massacrados e
escravizados. Apesar de a Revolução ter tornado
ilegais a escravidão e 0 tráfico de escravos oito
anos antes, Napoleão não hesitou em mantê-
los em suas possessões antilhanas. E como a
resistência dos haitianos, após a luta heróica dos
guadalupenses, impossibilitou a aplicação de seu
programa na principal daquelas colónias, então
denominada Saint-Domingue. ele perpetrou
massacres cujo caráter genocida não somente é
inquestionável, como prefigura de modo óbvio
— em especial devido aos métodos empregados
— a política de extermínio executada contra
judeus e ciganos durante a Segunda Guerra
Mundial, quase um século e meio depois.
Ribbe argumenta que alguns dos homens de
Napoleão recusaram-se a seguir suas ordens e
mais tarde descreveram os massacres em jornais
e diários. Em Os crimes de Napoleão, o historiador
incorpora esses relatos relegados pela história
oficial e desenvolve uma tese polémica. Quando
foi lançado na França, onde a figura de Napoleão
é emblemática, o livro foi motivo de intenso
debate. "Quero que os franceses saibam
exatamente 0 que aconteceu naquele período” ,
esclareceu o autor em entrevista a um jornal
britânico. "Quanto ao que Napoleão fez de bom,
isto é irrelevante. Hitler fomentou a construção
de auto-estradas e o desenvolvimento da
indústria automobilística; devemos por isso
desculpá-lo por seus crimes de guerra?"
Em Os crimes de Napoleão, Glaude Ribbe detalha
os métodos brutais empregados pelo soberano
francês para conter as revoltas de escravos.
O objetivo era "exterminar todos os negros
com mais de 12 anos” . Entre os expedientes
utilizados, 0 afogamento, a asfixia em câmaras de
gás embrionárias e os massacres em campos de
concentração. Em um relato perturbador, Ribbe
narra casos particulares e expõe 0 lado mais
sombrio de um dos baluartes da França.
C l a u d e R i b b e é historiador, filósofo e defensor
da memória dos escravos. Durante três anos.
integrou a Comissão Nacional dos Direitos do
Homem francesa.
CAPA: SÉKGIO GAMPANTE
I m a g e m d e c a p a : N a p o l e ã o B o n a p a b t e p o r A n d r e a A p p i a n i
Claude RIBBE
Os Crimes^deNapoLeao
Tradução de S. DUARTE
______________ A ______________E D I T O R A R E C O R D
R IO DE J A N E I R O • SÃO PAULO
2008
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Ribbe, Claude, 1954- R364c Os crimes de Napoleão / Claude Ribbe; tradução de S.
Duarte. - Rio de Janeiro: Record, 2008.
Tradução de: Le crime de Napoléon ISBN 978-85-01-07758-5
1. Napoleão I, Imperador dos franceses, 1769-1821 - Crime contra o escravo. 2. Napoleão I, Imperador dos franceses, 1769-1821 - Influência. 3. Imperadores - França - Biografia. 4. Escravos - Antilhas - História - Século XIX. I. Título.
CDD - 306.3620944 08-0228 CDU - 316.344
Título original em francês:LE CRIME DE NAPOLÉON
Copyright © Editions Privé, 2005 para Le crime de Napoléon
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito. Proibida a venda desta edição em Portugal e resto da Europa.
Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasiladquiridos pelaEDITORA RECORD LTDA.Rua Argentina 171 -R io de Janeiro, R J - 20921-380-Tel.: 2585-2000 que se reserva a propriedade literária desta tradução
Impresso no Brasil
ISBN 978-85-01-07758-5
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Aos que resistem, aos escravos fugitivos, aos que escaparam nos bosques de Guadalupe
e aos rebeldes antilhanos da liberdade.
tu, posteridade! Dedica uma lágrima a nossas desgraças, e morreremos contentes.
Louis Delgrès
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Napoleão, criminoso? Imagine só! A idéia é tão chocante quanto a palavra. Dizem que o número de livros escritos a respeito dele é igual ao número de dias que se passaram depois de sua morte. Será que nenhum desses livros trata de seus crimes? Muitas dessas obras se destinam às crianças. Seria possível que um criminoso lhes servisse de exemplo? E os tratados de história nada diriam a respeito disso? E todos esses institutos, fundações e associações que se apegam ruidosamente à perpetuação da memória do imperador: seria possível imaginar que os eminentes académicos que os sustentam teriam coragem de louvar um culpado? E que dizer desses filmes, no cinema, na televisão, realizados com altas somas do dinheiro público proveniente de impostos ou de adiantamento sobre a receita, que fazem de Napoleão um herói sem defeitos, um modelo para os franceses? Se Napoleão tivesse cometido algo grave, alguém ousaria negá-lo com tal impudência, com tanto desprezo por suas vítimas?
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No entanto, esta não é uma provocação. Nem sequer uma brincadeira. Napoleão, infelizmente, é mesmo um criminoso. E mais: um criminoso da pior espécie, porque o crime não é pequeno. É um crime contra a humanidade— um crime tríplice. Não nos equivoquemos, esta não é uma acusação contra os delitos de um homem já controvertido sob muitos aspectos: a quantidade de mortos que ficou nos campos de batalha, os crimes de guerra cometidos sistematicamente durante as campanhas, os assassinatos, o enriquecimento pessoal. Escritores e artistas — e às vezes não insignificantes: Tolstoi, Goya— já desbravaram o caminho.
O crime de que falo é precisamente o que foi cometido a partir de 1802 contra os africanos e as populações de origem africana deportados, escravizados e massacrados nas colónias francesas. Nelas, Napoleão restaurou a escravidão e o tráfico que a Revolução havia colocado fora da lei oito anos antes. E como a resistência dos haitianos, após a luta heróica dos guadalupenses, tomou impossível a aplicação de seu programa na principal daquelas colónias, a de Saint-Domingue,* ele perpetrou massacres cujo caráter genocida, como veremos, não so
* Assim se chamava a colónia francesa estabelecida na ilha que é hoje compartilhada por dois países independentes: Haiti e República Dominicana. O tradutor conservou a denominação Saint-Domingue nas referências à colónia, pois na época ainda não existiam aqueles dois países. Manteve também os topónimos originais, exceto os mais conhecidos no Brasil, como, por exemplo, Porto Príncipe. (N. do T)
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mente não pode ser posto em dúvida mas prefigura de maneira evidente — especialmente devido aos métodos empregados — a política de extermínio executada contra judeus e ciganos durante a Segunda Guerra Mundial. Sabe-se que em 1945 os estatutos do tribunal militar internacional de Nuremberg qualificaram com clareza a escravização ou a deportação de populações civis como crime contra a humanidade e que o conceito de genocídio, forma extrema do crime, foi utilizado para designar a exterminação programada de um grupo humano. Mas o caráter imprescritível da escravidão e do tráfico já era percebido havia muito. Desde 1778, um magistrado bretão, Théophile Laennec, pai do famoso médico, não hesitou, em corajosa acusação, em denunciar esse vergonhoso tráfico, “contra o qual a humanidade reclamará em todos os tempos seus direitos imprescritíveis”.
No caso de Napoleão, retomando a definição de Nuremberg, trata-se portanto realmente de um crime tríplice, porque o genocídio se acrescenta à escravização e à deportação. O crime é de tal forma imperdoável que provocou mais de dois séculos de mentiras. Isso porque os fatos são bem conhecidos dos historiadores, porém mantidos voluntariamente em silêncio: medo de dizer a verdade, ou pior, aprovação. Nem a escravização e a deportação de cidadãos franceses, nem a escravização e deportação de africanos, nem o genocídio perpetrado contra a população haitiana são explicitamente mencio
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nados nos livros, nos manuais de história, nas obras audiovisuais, nas exposições e tampouco nos espetáculos dedicados a Napoleão. E se por acaso o restabelecimento da escravidão é mencionado, nunca se afirma que as pessoas visadas eram cidadãos franceses. Quanto ao genocídio cometido por Napoleão no Haiti, trata-se de um tabu absoluto.
É verdade que desde a monarquia de Julho os regimes políticos adquiriram o hábito de impor à França o culto do ditador. Adolphe Thiers, por exemplo, que mandou fuzilar 35 mil parisienses da Comuna e tomou-se presidente da República graças à invasão prussiana, é também autor de uma volumosa História do Consulado e do Império. Quando foi primeiro-ministro de Luís Filipe, Foutriquet— esse era seu sobrenome — tratou de cercar Paris de fortes cujos canhões poderiam ser dirigidos tanto contra a cidade quanto para o exterior. Teve também a idéia dos três monumentos parisienses dedicados à glória do aventureiro negrófobo: uma estátua do tirano, cujo sucedâneo ainda se encontra no alto da coluna Vendôme, o Arco do Triunfo e o mausoléu dos Invalides que inspiraria os regimes autoritários do século XX, todos preocupados em santificar seus ditadores depois de mortos.
Para Thiers, além da ajuda por ocasião do nascimento do partido bonapartista na França, o qual, efetiva- mente, iria levar ao poder, durante 22 anos, o sobrinho do “herói”, era preciso dourar novamente a imagem de
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um regime desacreditado e, além das fronteiras, recordar a dimensão colonial de uma França escravista que já sonhava em estender a todo o norte da África, custasse o que custasse, o domínio que pouco antes começara a exercer sobre a Argélia. Apesar do exemplo da Inglaterra,jmdejijiboliçãohav^^França de Luís Filipe ainda se agarrava desesperadamente à escravidão.
A idolatria bonapartista atingiu naturalmente seu apogeu com a ditadura de Napoleão III.
Apesar do advento da República, o país não se curou dessa enfermidade. Hoje em dia, fundações e associações continuam a trabalhar, com apoio da Universidade, de recursos públicos e da televisão estatal, em prol da perpetuação da gloriosa lembrança do homem que restabeleceu a escravidão na França. As associações particulares tampouco descansam. Assim, a herança deixada por Martial Lapeyre, o rei da madeira “exótica”, permitiu o lançamento da Fundação Napoleão, em 1987, que se instalou na suntuosa mansão do mecenas. A Fundação Napoleão é muito ativa na perpetuação da memória de seu herói. Mas os livros e os espetáculos aos quais ela atribui prémios nunca falam de crimes, e a palavra escravidão é geralmente banida ali.
É preciso saber que é na África que a empresa Lapeyre encontra boa parte de sua madeira “exótica” e que — mediante uma de suas filiais na Amazónia — ela
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a revende até mesmo no Haiti, onde a derrubada das florestas começou com a expedição escravista de 1802 e cresceu a partir de 1825, quando a França exigiu, sob ameaça de reconquista, uma indenização de 90 milhões de francos-ouro pelos escravos que os colonos haviam perdido. A madeira era uma das principais riquezas do Haiti. Hoje não resta uma árvore sequer.
Como todos os franceses, fui educado no culto do imperador e, no meu curso escolar, o déficit das deso- nestidades impossíveis de dissimular era compensado com os lucros das instituições que teriam sido legadas por ele à França. Afirmava-se que, após o período conturbado da Revolução, ele teria permitido a consolidação do país. E ainda por cima todos os manuais de história citam o ano de 1802 como um dos períodos mais felizes, o ano da “paz”. Quem não se recorda da imagem de Épinal, que ilustra os livros escolares e mostra o Primeiro Cônsul recolocando a espada na bainha, com o povo ao fundo entusiasmado por ver finalmente terminadas suas vicissitudes? Assim, todos se convencem de que 1802 foi pacífico, quando, nesse mesmo ano, houve uma guerra atroz, uma loucura genocida sem precedentes; quando, nesse mesmo ano, 250 mil franceses foram escravizados. Seus descendentes representam hoje uma parcela que poderia ser estimada em três a quatro por cento da população da França, o que não é insignificante. Mas convencionou-se que não se deve
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falar sobre isso. Não falar nem dos descendentes nem de seus ancestrais. Sua história é um dos maiores silêncios franceses. O mesmo ocorre com a história do povo do Haiti, que ainda sofre na carne por haver ousado resistir ao restabelecimento da escravidão, triunfar e proclamar sua independência. Em 1802 o Haiti era uma parte da França denominada Saint-Domingue. Sua população era essencialmente composta de homens que se haviam libertado a si mesmos, onze anos antes, de armas na mão. A Convenção fez deles cidadãos franceses integrais. Vários eram generais. Seu governador se chamava Pierre-Dominique Toussaint, apelidado Louver- ture. Mas para eles, como para todos os demais franceses “negros” das outras colónias, Napoleão havia resolvido retornar ao antigo regime: o convés do navio negreiro, o ferro em brasa, o chicote, o estupro, a morte rápida no trabalho sob o sol. Tudo isso devido à nostalgia dos velhos tempos, quando cada um dos 500 mil escravos daquela ilha, que era chamada de “pérola das Antilhas”, sustentava seis franceses.
Duzentos anos depois, a República finalmente reconheceu, pela lei de 10 de maio de 2001, que a escravidão era um crime contra a humanidade. Naturalmente, a lei votada não manteve a proposta inicial que previa uma comissão de personalidades qualificadas encarregada “de determinar o preconceito sofrido e examinar as condições da reparação devida por esse crime”. A lei previa
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sanções penais contra quem contestasse o caráter criminoso da escravidão e do tráfico europeu. De fato, a comissão reunida em 14 de janeiro de 2004 em cumprimento da lei ocupou-se sobretudo — laboriosamente — de definir uma data para a comemoração da abolição da escravatura, aparentemente sem saber ou sem querer recordar-se de que essa questão já havia sido resolvida há muito por Pierre Thomany, “homem de cor” e deputado francês por Saint-Domingue no Conselho dos Quinhentos. Desde 3 de fevereiro de 1799, Thomany propusera a
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data de 4 de fevereiro (16 de pluvioso*) para comemorar a libertação geral. Essa data recordava o dia em que, cinco anos antes, a Convenção abolira incondicionalmente a escravidão. Tòussaint Louverture a mantivera e, para marcar a comemoração de 4 de fevereiro de 1801, ele anunciou seu projeto de Constituição para Saint-Domingue, ocupou a parte espanhola da ilha e aí proclamou a liberdade. Napoleão desprezava tanto essa data que, por provocação, seu cunhado Leclerc justamente a escolheu para restabelecer a ordem escravista no Haiti. Na noite de 3 para 4 de fevereiro de 1802 ele desembarcou no Cabo (Cap Haitien),** e o general
*A Revolução francesa abandonou o calendário gregoriano e deu aos meses novos nomes, relacionados ao clima e às colheitas típicas de cada época. (N. do T)* *A cidade de Cap Haitien é referida no original simplesmente como Cap. O tradutor optou por usar em português a palavra Cabo para desig- ná4a. (N. do T.)
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Henry Christophe, apesar de tudo, festejou a abolição incendiando a cidade.
A lei de 10 de maio de 2001 não deixou de estabelecer o caráter juridicamente imprescritível do crime. Portanto, o tempo não pode apagá-lo. Dois séculos? Pouco importa. Tanto mais quando os descendentes dos franceses que Napoleão devolveu, ou quis devolver à escravidão, continuam ainda a sofrer suas consequências. E fácil verificar que os oriundos dos departamentos de ultramar descendentes de escravos não são cidadãos integrais, mas cidadãos integralmente à parte da cidadania, e são de fato cidadãos à parte, sem verdadeira representação numa sociedade mais do que nunca permeável aos preconceitos. Um duplo isolamento os petrificou numa situação de inferioridade social e de abandono que seria inútil tentar negar: isolamento geográfico e isolamento devido à aparência. Isolados, na verdade, em suas ilhas ou em suas selvas. Não como os corsos, e sim muito longe, em algum lugar— não se sabe bem onde — do outro lado dos mares. Quanto à cor de sua pele, ela demonstra suficientemente que não foram assimilados ao povo colonizador. Mesmo quando vêm à França, continuam a ser o que são: “negros”, “gente de cor”. São indesejáveis, exceto em certos prédios de caráter social do setor norte de Paris, onde já ficam outros franceses “diferentes”. Na melhor das hipóteses, contraem dívidas para construir casas.
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São funcionários públicos porque as empresas não querem ter empregados negros, e são proprietários de casinhas compradas a crédito porque na metrópole somente “brancos” conseguem alugar moradias.
Sabe-se que em diversas dessas ilhas que já foram escravistas — especialmente a Martinica — alguns descendentes de colonos consideram questão de honra conservar a pele branca, e portanto permanecem vivendo entre si. Chegam mesmo a exibir o estandarte de seus ancestrais, com quatro serpentes.* É um apartheid que vem desde o século XVII! Pelo menos trata-se de gente de convicções muito firmes.
Os descendentes de escravos são esquecidos, tanto mais porque seus passaportes os declaram cidadãos franceses. Oficialmente, portanto, eles nada têm a reclamar: havendo-lhes sido “outorgada” uma liberdade que na verdade já haviam conquistado, já teriam obtido tudo. A prova é que a República, tão orgulhosa da abolição de 1848, sempre deixa de recordar que considerou legítimo entregar naquela ocasião 126 milhões de firancos-ouro aos senhores de escravos para indenizá-los de algo que alguns funcionários, ainda hoje, não se envergonham em chamar de “espoliação”. Os herdeiros dos africanos seriam quase devedores do passaporte que os policiais da metrópole examinam com suspeita não dissimulada em
*A s quatro serpentes figuram no escudo de armas da Martinica desde o século XVIII. (N. do T)
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Orly ou Roissy. Decididamente, na França, a fim de ter os documentos em ordem, quase valeria mais ser sene- galês ou camaronês do que antilhano, guianense ou da ilha da Reunião. Quando se fala dos “negros” da França, raramente se trata de descendentes de escravos: são preferidos os filhos ou filhos de gente importante dos países subsaarianos dedicados à República, dispostos a reconhecer-se descendentes dos “verdadeiros” negreiros, pois a moda, a partir do século XVIII, nos países escravistas é dizer que esses foram os próprios africanos. Dos dois males, o menor, e a França, afinal de contas, tem menos vergonha de recordar a colonização do que a escravatura. Claro que esta foi abolida, mas o essencial permanece: o racismo, isto é, a aplicação aos homens da noção agrícola de “raça”, que somente serve para a criação de animais. Embora isto possa descontentar aqueles que desejariam inscrever esse flagelo na natureza das coisas e na substância dos homens, a verdade é que não foi o racismo que produziu a escravidão, e sim precisamente oinverso. Quem deseja acorrentar seu semelhante sempre o acusa de ser diferente, e portanto já inferior. Fala-se em “respeitar as diferenças”. Mas não serão os homens todos semelhantes?
O racismo tem uma história. Foi importado para a França pelos colonos das Antilhas na ocasião em que crescia a oposição à escravidão, isto é, exatamente na época da ascensão de Luís XVI ao trono. Na época a contestação
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era tão vigorosa que o próprio rei pensou em abolir essa monstruosa instituição. A reação não se fez esperar, e a debilidade do monarca não tardou em permitir a elaboração de um regulamento discriminatório que Napoleão apreciou gostosamente, a ponto de recolocá-lo em vigor e até mesmo reforçá-lo. Quanto ao racismo, ele lhe daria foros de nobreza e lhe abriria — explícita ou implicitamente — as portas da Universidade.
No entanto, faz pouco tempo que a escravidão é crime imprescritível na França. Mas um crime imprescritível muito peculiar. Não há culpados, e portanto não há castigo. Não há reparações para os descendentes das vítimas, dos quais um quarto é constituído de desempregados, enquanto os herdeiros dos 126 milhões de francos (alguns bilhões de euros de hoje) entregues pela República aos senhores de 1848 não se queixam de uma vida de privações e estão bem representados nos meios dominantes da informação, da cultura e da política. E não só para eles o crime compensa. Que família francesa burguesa cuja opulência seja anterior à primeira metade do século XIX poderia orgulhar-se de não possuir algum ancestral negreiro ou detentor de ações de empresas negreiras, o que dá no mesmo? Que família de Bordeaux que viva honradamente com a produção de vinhos poderia assegurar que não haja alguns cadáveres de “negros” ocultos por trás das garrafas, no fundo de suas adegas? Que banco, que empresa de seguros não tem um pouco do sangue
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e do suor da África ou das Antilhas em seus pergaminhos? Seria interessante estudar as consequências económicas, sociais, culturais e morais da escravidão na França.
Um crime imprescritível, mas que não é proibido contestar nem mesmo negar. Hoje em dia alguns académicos não deixam de fazê-lo, com absoluta impunidade e até com o apoio não dissimulado de mais de uma instituição.
Em suma, porque viveu da escravidão e não quer admiti-lo, porque o Diretório se prostituiu diante de Bonaparte, a França permaneceu racista, como qualquer descendente de escravos pode facilmente verificar ao transitar pelas ruas. No século XXI, nos bairros elegantes de Paris, onde se alinham ainda as antigas residências dos colonos de Saint-Domingue, os “negros” são tolerados somente para atemorizar na entrada dos estabelecimentos comerciais de luxo e as “negras” somente para empurrar os carrinhos dos bebês “brancos”.
A escravidão e o tráfico de pessoas são crimes contra a humanidade, e portanto imprescritíveis. Mas por que acusar Napoleão, que talvez nada mais tenha feito a não ser restabelecer o estado de coisas, sem nada inventar? Sem dúvida, outros poderiam pagar, se não em seu lugar, pelo menos em sua companhia. Talvez quase fosse possível esquecer Napoleão se, à medida que o racismo se banaliza devido à evolução das técnicas de co
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municação e propaganda, não assistíssemos a um estranho renascimento de um fervor bonapartista que coincide exatamente com a admiração pela extrema direita e com o crescimento de seus ganhos eleitorais.
O fascínio dos fascistas pelo ditador francês não é novo. É tempo de advertir aqueles que, nas grandes ocasiões, gostam de colocar o chapéu dos soldados do Primeiro Império de que agora terão de assumir seus inconfessáveis antecessores. Isso porque os dois maiores admiradores de Napoleão foram Adolf Hitler e Benito Mussolini, os quais, como ninguém pode ignorar, fizeram do racismo um programa, mais do que uma doutrina.
Benito Mussolini distinguiu-se ao inspirar II Campo di Maggio (O campo de maio), uma peça de teatro que glorifica Napoleão. Hitler a mandou traduzir para o alemão com o título de Hundert 1age (Os cem dias), para que fosse representada com todo o fausto necessário. Em fevereiro de 1932, durante a estréia, uma solenidade nazista como poucas, ele homenageou a irmã de Nietzsche levando-lhe no camarote uma cesta de rosas vermelhas. A peçaé tão convincente, sem dúvida, que em 1934 Hitler foi co—-------- 7produtor de uma adaptação para o cinema em cooperação com a Itália, sempre com o título de Hundert 1age, dirigida por Franz Wensler, cineasta nazista que trabalhava em colaboração com Goebbels. O próprio Mussolini participou da direção da versão italiana, da qual seu filho foi o produtor. II Campo di Maggb, segundo Mussolini, uma glorifica-
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Ção do fascismo em que Napoleão é explicitamente comparado ao Duce, foi aliás projetado em Ajaccio com grande pompa, em 24 de junho de 2004, por ocasião do Primeiro Salão do Livro Napoleônico, organizado no quadro do bicentenário de sua sagração como imperador!
Poucos dias depois de haver posto a França fora de combate — não a França heróico-fascista de Napoleão que admirava, e sim a França republicana, parlamentar e “negrificada” que desprezava — Hitler deixou discretamente a Bélgica e aterrissou em Le Bourget numa madrugada de um belo verão. Qual era o objetivo dessa viagem? Visitar Paris, ao que se afirma. Sem dúvida, ele esteve na Opera e passeou pela esplanada do Troca- déro, acompanhado pelo arquiteto Albert Speer, adepto da escravização dos judeus, e pelo escultor nazista Amo Brecker. A foto do sinistro bigodudo como turista é famosa. Na verdade, Hitler foi a Paris para realizar um sonho: reverenciar o túmulo de seu mestre, o homem que colocou os “negros” em seu lugar, isto é, os acorrentou, o herói que entregou aos cães os que resistiam e fechou as fronteiras para os que eram livres, o homem glorioso que empreendeu a exterminação dos recalcitrantes usando gases venenosos. Numa palavra, o precursor que, sem dúvida pela primeira vez na história da humanidade, dedicou-se racionalmente à questão de saber como eliminar num mínimo de tempo, com um mínimo de despesas e um mínimo de pessoal, o máximo de pessoas cientificamente declaradas inferiores.
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Sem o precedente de Napoleão, não haveria as leis de Nuremberg. Hitler sabia disso. Sabia o que iria fazer mais tarde com os judeus, que segundo ele descenderiam dos “negros” e teriam utilizado estes últimos a fim de corromper o “sangue ariano”, que era preciso a qualquer custo preservar da mistura. Pois “nunca um homem com alguma instrução argumentou que as espécies não mescladas degenerassem”, como já dizia Voltaire, o mais virulento anti-semita e negrófobo da literatura européia. Hitler, que o lera (conhecemos os ecos através de seus vulga- rizadores, os teóricos do racismo francês), fez desse preconceito uma verdade histórica: “A história mostra com terrível evidência que sempre que um ariano misturou seu sangue com o de povos inferiores, o resultado dessa mestiçagem causou a ruína do povo civilizador.”1
Por isso, naquele 28 de junho de 1940 o Fiihrer envergou seu uniforme de gala e, vestido inteiramente de branco — símbolo revelador —, foi curvar-se, reverentemente, sobre a tumba do imperador, aquele incompreendido que teve a coragem de instaurar um racismo de Estado. Rendia homenagem a Napoleão, digno leitor de Voltaire, e apoiou-se em seu exemplo para conclamar à purificação aquele país que se tomara decadente devido aos Rassenmischer, pois, “se a evolução da França prosseguisse no estilo atual durante mais trezentos
'Mein Kampf (Minha luta).
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anos, os últimos resquícios do sangue franco desapareceriam no estado mulato afro-europeu cuja constituição se encontra em curso”. Para os que não tivessem compreendido essa mensagem, embora explícita, Hitler mandou repatriar alguns meses mais tarde, vindas de Schõnbrunn, as cinzas do Aiglon. Os restos mortais do filho do criminoso foram igualmente depositados nos Invalides, levados por nazistas com capacetes de combate. O Fiihrer foi imitado por dezenas de milhares de soldados da Wehrmacht que se dirigiram em peregrinação a fim de saudar o primeiro ditador racista de todos os tempos, a tal ponto que foi necessário instalar um assoalho falso para que as botas nazistas não estragassem o mármore dos Invalides, como atesta Jean Éparvier, com documentação fotográfica, numa obra publicada por ocasião da Libertação, À Paris sous la botte des nazis (Em Paris sob as botas dos nazistas).
O fato é que Hitler conhecia a história da França melhor do que muitos franceses. A prova é que foi dada ordem de fazer desaparecer a única estátua de “negro” que jamais foi vista numa praça pública parisiense, a do general Dumas, herói da Revolução, nascido escravo no Haiti e primeiro descendente de africanos a tomar-se general do exército francês. Dumas, esse “macaco” que, em 15 de agosto de 1789, seduziu uma mulher “branca”, para cúmulo loura de olhos azuis, no pátio do castelo de Villers- Cotterêts, exatamente onde 250 anos antes Francisco I
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conferiu à língua francesa foros de nobreza por meio do famoso édito. Dumas, esse “vil animal”, que ousou tocá-la e gerar com ela um filho que se tomaria o escritor francês mais lido em todo o mundo. Dumas, que iria comandar sob as ordens de Saint-George a Legião franca dos americanos e do Sul — isto é, de antilhanos e africanos —, um batalhão negro, precursor dos artilheiros senegaleses que a França teria enviado em 1918 para ocupar a Alemanha e violar as “arianas”. Os artilheiros senegaleses que Hitler, na mais pura tradição napoleô- nica, deu ordem para que fossem sistematicamente executados quando capturados vivos, a fim de vingar-se da “vergonha negra” imposta à Alemanha. “A França”, vocifera o admirador de Napoleão em Mein Kampf, “é e será o inimigo que mais temos a temer. Esse povo, que cada vez mais se rebaixa ao nível dos negros, coloca secretamente em perigo, por meio do apoio dado aos judeus em seu objetivo de chegar ao domínio universal, a existência da raça branca na Europa. Pois a contaminação provocada pelo afluxo de sangue negro ao Reno, no coração da Europa, serve bem tanto à sede de vingança sádica e perversa desse inimigo hereditário de nosso povo quanto aos frios cálculos dos judeus, que vêem nisso a forma de iniciar a mestiçagem do continente europeu, e assim, infectando a raça branca com o sangue de uma baixa humanidade, lançar os alicerces de sua própria dominação.”
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O CRIME DE NAPOLEÃO
Dumas! Que símbolo insuportável da “negrifica- ção” francesa! A estátua daquele que os “arianos” da
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Áustria, aterrorizados e humilhados por suas façanhas, chamavam de schwarze teufel, o diabo negro, seria desmontada e destruída pelas autoridades francesas por ordem de Berlim. E isso não é o mais vergonhoso. O mais vergonhoso é que foi preciso esperar mais de sessenta anos após a libertação de Paris (aliás, por tropas vindas da África) para que fosse decidida — a instâncias minhas — a recolocação da estátua em seu lugar. No entanto, em 2002, o escritor Dumas entrou no Panteão. Em certos discursos, porém, foi denominado “mulato” ou quartercm,* conforme a terminologia classificadora de Moreau de Saint-Méry e de negreiros da mesma espécie, preocupados com a “proporção” de “sangue negro” de um indivíduo suspeito de ascendência africana, quando esse indivíduo tem aparência eu- ropéia: suspeita doentia que se encontra nas teorias racistas e anti-semitas do III Reich.
Sim, Dumas entrou no Panteão sem que alguém se dignasse a render a seu pai a brilhante homenagem que ele, no entanto, bem merecia. Exceto no Senado, mas bem distante das câmeras de televisão do Estado, pois, ao que se dizia, os franceses não estavam “preparados”. Ao general Dumas, que arriscou sessenta vezes a vida pela
^Descendente de segunda geração. (N. do T.)
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França, a República recusou — apesar de minha reivindicação — a Legião de Honra a título póstumo. E verdade que a Legião de Honra foi criada por Napoleão na véspera do restabelecimento da escravidão e que, com perfeita lógica, a Quinta República, cuja Constituição, em seu artigo I, afirma solenemente a pertinência da noção absurda de “raça humana”, não poderia condecorar um general negro nascido escravo, ainda que estivesse morto havia duzentos anos. Aliás, os guardiães do templo napoleônico trataram de apagar sua memória. Quando se lê, por exemplo, a maioria das obras dedicadas à expedição ao Egito, é possível questionar seriamente se o general Dumas realmente participou dela e se era mesmo o comandante-em-chefe da cavalaria do Oriente. Quando, por acaso, ele é citado, sua origem não é mencionada. No máximo, fala-se de sua “força hercúlea”, sua “juventude tumultuosa” e seu “caráter inquieto”. Em suma, uma espécie de primata fugido da jaula, difícil de dominar, sem dúvida adepto do sexo e particularmente malcheiroso, como exigem os estereótipos animalescos que fazem brilhar mais do que nunca na França contemporânea os histriões negrófobos e os tribunos populistas.
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II
Em 18 de brumário do ano VIII — 9 de novembro de 1799 pelo calendário gregoriano— NapoleãoBonaparte entrava para a história política. O homem sabia o que queria. Dois anos antes confessara a André-François Miot, embaixador do Diretório na Itália: “O que fiz até agora não é nada [...]. Estou apenas no início da carreira que percorrerei [...]. ANação precisa de um chefe!”1 Um chefe, um duce, um Fuhrer!
Já que havia um lugar a ser ocupado, o “chefe” abandonou no Egito o exército que o Diretório lhe confiara— em condições mais do que discutíveis e aliás discutidas por seus lugares-tenentes Kléber e Desaix, dois ardentes republicanos. Isso não lhes traria sorte. Ambos desapareceriam poucos meses apenas após o golpe de Estado. E no mesmo dia: um deles assassinado em circunstâncias obscuras por um “fanático” evidentemente
‘Miot de Mélito, Mémoires.
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muçulmano e imediatamente empalado; o outro morto ao liderar um ataque na batalha de Marengo (com uma bala francesa pelas costas, dizem as más línguas). O “chefe” regressou à França a fim de tomar o poder da maneira mais brutal e mais grosseira possível. “Tirem essa gente daqui!”, gritaram os homens do caxd mediterrâneo, mostrando os eleitos pelo povo francês como alvos para seus artilheiros. Deve-se dizer que entre esses eleitos havia “negros”: Etienne Mentor e Jean-Louis Annecy. Também havia “homens de cor”: François Boisrond, Jean-François Pétiniaud, Jacques Tonnelier e Pierre Thomany, o homem que ousou solicitar que a data de 4 de fevereiro fosse feriado nacional nas colónias. O Diretório chegara até mesmo a enviar o quarteron Julien Raimond em missão a Saint-Domingue. Essa presença africana no parlamento francês não se reproduziria tão cedo. Desde a Revolução, no entanto, tinha havido uma relativa integração de ex-escravos e seus descendentes na sociedade metropolitana. A emigração de oficiais do Antigo Regime, os distúrbios em Saint-Domingue, a necessidade de retomar Guadalupe aos ingleses possibilitaram a alguns deles carreiras rápidas e prestigiosas no exército republicano, no qual os generais “negros” ou “de cor” não são raros: assim foram os generais-de-divisão Alexandre Dumas e Pierre-Dominique Toussaint Lou- verture e os generais-de-brigada Martial Besse, Baptiste 1’Éveillé, Jean-Louis Villate e André Rigaud. Isso sem
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contar os oficiais superiores originários da África subsa- ariana. Era o início da França “negrificada” que causava náuseas igualmente em Hitler e em Napoleão.
Três antigos escravos marcaram especialmente esse final do século XVIII. Poucos meses antes de 18 de brumário, dois deles saíram de cena. Morreu Joseph de Bologne, o “Cavaleiro de São Jorge”, esgrimista e compositor nascido escravo em Guadalupe que se tomou chefe-de-brigada no comando do 13s de Caçadores. Somente colocara a serviço da Revolução sua espada, e não seu arco de violinista. Mas a homenagem póstuma que a imprensa unanimemente lhe prestou em junho de 1799 revela claramente a opinião da época. Não se percebe nenhuma reserva quanto à origem africana do músico, que no entanto ninguém poderia ignorar.
O amigo do Cavaleiro de São Jorge, o general-de- divisão Alexandre Dumas, nascido escravo no Haiti, foi feito prisioneiro pelo rei de Nápoles, na Itália.
Resta Toussaint Louverture, também nascido escravo dos franceses no Haiti. Esse homem realizou uma façanha que permaneceria fora do alcance de Napoleão: venceu os espanhóis e os ingleses. Estes últimos deixaram pelo menos 50 mil mortos em Saint-Domingue. Nomeado governador da colónia pelo Diretório, Toussaint se opôs a Rigaud, rival desprezível que controlava o sul da ilha. Vencido Rigaud, Toussaint Louverture dominou o Haiti e, se não tomassem cuidado, seria o dono das Américas.
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Com o título pomposo de Primeiro Cônsul, assistido por dois insignificantes acólitos, Napoleão se transformou de desertor em “chefe” absoluto do país, cumprindo a predição que fizera a Miot. A ditadura duraria quinze anos, mas a idolatria durou mais de dois séculos. Além da França e da Europa, o objetivo de Napoleão — como o de Hitler mais tarde — era dominar o mundo inteiro. A “inferioridade” dos africanos e sua utilização para a prosperidade do “reich napoleônico” eram a base do sistema sonhado por Bonaparte e que ele, infelizmente, procurou aplicar.
No momento do golpe de Estado, já fazia mais de oito anos que “todo indivíduo é livre no momento em que ingressa na França”, e “todo homem, de qualquer cor, goza na França de todos os direitos de cidadão, se tiver as qualidades prescritas pela Constituição para exercê-los” (lei de 16 de outubro de 1791). Nas colô- nias, a escravidão é proibida mediante a aplicação do decreto de 16 de pluvioso do ano II (4 de fevereiro de 1794), adotado por aclamação e sem tergiversações, tendo o deputado por Eure-et-Loir Jean-François Delacroix decidido com nobreza a questão: “Presidente, não permita que uma discussão prolongada desonre a Convenção! ”
Ainda que tenha sido preciso esperar 27 de julho de J 793 para a abolição das bonificações de estímulo pagas pela Nação ao tráfico negreiro, este foi oficialmente interrompido no sentido das Antilhas francesas e da
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Guiana, para grande desespero dos “negociantes” e armadores dos portos da França. Isso não impediu que em 1799 o negreiro Jean-François Landolphe, antigo ̂ —comandante do navio Pérou, que partira em 1785 de Rochefort para o Benin e que chegou ao Cap Haitien com 91 cativos vivos dos 313 embarcados, se transformasse em explorador e expedisse à força para uma “plantação nacional” da Guiana, na qualidade de livres, uns trezentos escravos africanos capturados de um barco negreiro inglês. Sem dúvida essas façanhas lhe valeram dar seu nome a uma rua de Auxonne (Yonne) onde Napoleão, que na época pertencia à guarnição local, escreveu que seus futuros súditos eram “o povo mais horrendo que jamais existiu”. Landolphe!* Somente um caso, entre tantos outros, de um negreiro homenageado na atualidade por franceses “bem-pensantes”.
Desde 1793 a guerra contra os ingleses paralisava anavegação e afinal de contas o decreto adotado pelaConvenção para oficializar a situação insurrecional doHaiti não mudou grande coisa. Na noite de 22 para 23
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de agosto de 1791,50 mil escravos se rebelaram no Haiti. Dois anos depois, Sonthonax, o enviado pela República, enfrentando uma ameaça de invasão anglo-espanhola apoiada pelos revoltosos, foi obrigado a reconhecer sua
*Tean-Louis Landolphe, navegador e negreiro francês (1747-1825). (N. doT) ^
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emancipação de fato. Enquanto aparecia, na pessoa de Toussaint Louverture, o Espártaco negro anunciado pelo abade Raynal, a revolução haitiana universalizava os princípios da declaração dos direitos do homem, que, quando de sua adoção, não tratava absolutamente dos escravos, pobres bens móveis cuja sorte, desde 1635, era regida pelo Código negro, sem dúvida um dos textos jurídicos mais assustadores de todos os tempos. Mas se essa pressão das circunstâncias tomou heróica a revolta dos escravos haitianos, ela em nada prejudicou a vontade declarada pelos membros da Convenção, em 16 de pluvioso, de abolir duas instituições tão lucrativas quanto abomináveis: o tráfico e a escravidão. Desde a metade do século XVII, a França, imitando a Inglaterra, a Espanha, Portugal, os Países-Baixos, a Suécia e a Dinamarca, esforçava-se por obter sua fatia do bolo colonial e desenvolveu plantações na América, levando para lá centenas.de milhares de africanos, deitados uns sobre os outros, acorrentados no ventre de barcos fretados pelos principais portos franceses, principalmente Nantes, Bordeaux, Le Havre e La Rochelle. A intensidade do tráfico negreiro assumiu um ritmo realmente infernal: vinte mil cativos vendidos somente no porto do Cabo no primeiro ano da Revolução. Sabendo-se que os historiadores mais otimistas admitem a cifra de cinco africanos mortos para cada escravo desembarcado, pode-se imaginar o quanto esse balanço é triste. Em
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150 anos, somente no que concerne à França, quase um milhão e duzentos mil escravos e seis milhões de mortos!
Mas desde o século XVIII havia vozes que se elevavam. Inicialmente para criticar o caráter genocida da escravatura, pois à deportação, à privação da liberdade e aos trabalhos forçados se juntavam, a fim de evitar revoltas, não apenas sevícias difíceis de descrever mas também condições de exploração concentrada que faziam do tráfico europeu um verdadeiro sistema de extermínio. A desnutrição permitia, na verdade, aumentar os lucros pela metade e acelerar a “amortização” do escravo. A exploração e o extermínio não eram absolutamente incompatíveis. E possível executar um genocídio e ao mesmo tempo encher os bolsos. É possível ser homem de negócios cruel. Mais grave: a melhor maneira de enriquecer era o sistema deliberadamente genocida. Em Ingénue (Nascida livre), romance publicado em 1853, o escritor Alexandre Dumas, sob o pretexto de relatar as opiniões de um fazendeiro do século XVIII, que por prudência ele mostra como sendo anglo-saxão, revela as “vantagens” desse sistema misto de destruição e exploração que causava a prosperidade de Saint-Do- mingue. “Meus negros”, explica cinicamente o colono, “ [...] me custam em média 40 guinéus; cada um me proporciona aproximadamente, descontados os custos, 7 guinéus de lucros alimentando-os como se deve.” Segundo esse exemplo, portanto, cada escravo era “amor
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tizado” em menos de seis anos. Mas não era “alimentando-os como se deve” que se ficava rico. Ao contrário, “economizando na alimentação”, prossegue o fazendeiro, “somente em dois pence por dia, essa economia por cada negro me dá anualmente [...] para cada um de meus escravos, dez guinéus de lucro, o que significa uma renda líquida de minha fazenda de três mil libras esterlinas”. Afinal, já que as fronteiras da humanidade foram ultrapassadas, por que não ser suficientemente desumano e levar a rentabilidade a seus limites extremos? O escravo, portanto, somente receberá a nutrição estritamente suficiente para que tenha forças para trabalhar. Isso, evidentemente, limita sua expectativa de vida. “É verdade”, observa a esse respeito o negreiro, “ [...] que, seguindo esse plano de administração económica, meus negros não duram mais do que oito ou nove anos; mas que importa, se ao fim de quatro anos cada negro me rendeu os 40 guinéus que me custou? Assim, se ele não viver mais do que outros quatro ou cinco anos, o problema é dele, pois os quatro anos suplementares são puro lucro. Se o escravo morrer, boa viagem! Com o lucro obtido com a economia de alimento durante sete ou oito anos, tenho com que comprar outro negro jovem e robusto, em lugar de um exausto que já não serve para nada. O senhor compreende por que, em trezentos escravos, essa economia é imensa!”
Além dos abusos que na verdade lhe eram intrínse-
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cos, a instituição começou a ser denunciada em nome dos princípios e especialmente do caráter inalienável da liberdade, à qual nenhum ser humano pode renunciar, como mostra Rousseau (aliás silencioso sobre a escravização dos africanos), sem renunciar simultaneamente a sua condição de ser humano, o que é absurdo. Mesmo assim, era preciso que os escravos fossem seres humanos, coisa que a legislação, como também às vezes os próprios filósofos pareciam implicitamente negar.
Diante dessas críticas, o partido colonial contra-atacava procurando desenvolver na metrópole preconceitos que eram ao mesmo tempo cimento e produto da instituição da escravatura. Assim como é mais fácil acorrentar os homens quando estamos convencidos de que eles são inferiores, também a condição particularmente aviltante dos escravos dos europeus nas Améri- cas fazia com que seus carrascos afirmassem que esse aviltamento imposto na verdade fazia parte de sua substância. Se o escravo africano é escravo, diziam eles para justificar-se, é por ser inferior por natureza e portanto nascido para ser acorrentado, se esse for o desejo ou o interesse de um europeu. Além disso, acrescentavam, a escravidão deixa uma marca indelével que afetaria não apenas o escravo, muito além de sua eventual alforria, mas também toda a sua descendência, até o fim dos tempos. Esse é o círculo em que se encerra a ideologia dos negreiros. O círculo do racismo, ainda que a pala
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vra não seja realmente pronunciada: fala-se somente da “pureza do sangue”.
Apesar da abolição da instituição, suprimida oficialmente desde 1848, o mal permaneceu. A maldição que se abatia sobre o africano era a de ser considerado inferior aos olhos dos franceses racistas. Aos antilhanos acrescentava-se o inconveniente de ter ancestrais escravos. O treinamento colonial, apresentado como uma forma de educação, fez com que eles interiorizassem essa pretensa falha, a ponto de a ascendência servil tomar-se inconfessável nas Antilhas, onde as pessoas preferem inventar ancestrais aruaques* ou bretões.
A essas reprovações ignóbeis, os historiadores revisionistas, proclamados mestres do pensamento num século sem memória, acrescentaram outra, esta inesperada: o africano é culpado de ser escravista. E, se não for ele próprio, será um dos seus. Essa culpabilidade se destina a refletir-se sobre o africano deportado. Em outras palavras, todo escravo é necessariamente descendente de negreiros. Esse pecado original serve para impedir as queixas. Se a pretensa vítima é culpada, onde está o crime? Essa é a lógica do revisionismo francês do século XXI, que procura relegar o reconhecimento jurídico da escravidão como crime contra a humanidade ao nível de uma “aberração”. Uma aberra
*Nação indígena que povoou o norte da América do Sul e as Antilhas, antes da chegada dos europeus. (N. do T.)
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ção, portanto, como a lei de 10 de maio de 2001, e também o decreto revolucionário de 16 de pluvioso Ano II, cuja memória nenhuma comissão oficial se preocupa em comemorar, eram aberrantes na opinião de Napoleão.
Que dizia esse decreto de 16 de pluvioso, tão admirável, mesmo se forçado pelas circunstâncias? Diz que “a Convenção nacional declara abolida a escravidão dos negros em todas as colónias [...] que todos os homens, sem distinção de cor, domiciliados nas colónias, são cidadãos franceses e gozarão de todos os direitos assegurados pela Constituição”. A Convenção foi extremamente longe, estendendo o princípio do jus solis o mais amplamente possível: pouco importava que a pessoa fosse nascida no estrangeiro ou em uma fazenda. O simples fato de ser domiciliado nas colónias dava direito à nacionalidade e à cidadania. Ao palmilhar o solo colonial, o africano cativo se tornava legalmente escravo. Daquele dia em diante, até mesmo um escravo fugitivo de alguma terra estrangeira, ao chegar a um território dependente da França, se tomava livre e cidadão. Os ex-escravos se viam ao mesmo tempo plenamente assimilados sem que houvesse compensação a seus antigos senhores por uma pretensa “espoliação”, como de fato seria o caso no Haiti em 1825 e nas colónias francesas em 1848. Porém certos deputados iriam chegar a exigir uma reparação para esses “novos france
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ses”, como Jacques-Michel Coupé, representante do Oise, que propôs à Convenção uma distribuição de terras aos antigos escravos: “Não é suficiente haver restituído a liberdade a nossos irmãos negros”, protestou ele no dia seguinte à abolição da escravatura. “Ainda temos terras incultas nas colónias. Os bens dos emigrados desses territórios somam dois bilhões. Proponho que os senhores decretem que esses bens sejam vendidos de maneira que os novos franceses possam comprar parcelas!”
Mas em 1799 o decreto de 16 de pluvioso somente foi aplicado nas colónias que não haviam sido invadidas. E mesmo assim, não em todas. No momento da adoção do texto, as colónias francesas da América eram constituídas principalmente por Saint-Domingue, Gua- dalupe com suas dependências, a Guiana, a Martinica, Santa Lúcia e Tobago. Ora, a lei só foi aplicada em Saint- Domingue, em Guadalupe e na Guiana. A Martinica, Tobago e Santa Lucia estavam em mãos britânicas, e a escravatura, alimentada pelo tráfico britânico, foi mantida nesses lugares.
Na África e no oceano Índico, onde os cinco balcões da índia estavam igualmente ocupados pela Inglaterra, Saint-Louis-du-Sénégal e as ilhas Mascarenhas
A
— Ile de France (depois ilhas Maurício) e as ilhas Réu- nion — permaneceram sob a autoridade da República. Ao menos em teoria, pois os colonos que as dirigiam eram refiratários à aplicação do decreto de emancipação
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dos escravos, que três anos antes dois emissários procuraram em vão fazer valer.
Preocupados em eximir Napoleão de qualquer responsabilidade pessoal quanto ao restabelecimento da escravatura e, ao contrário, glorificar um homem esclarecido pelos princípios da Revolução, mas que seria enganado pelos que lhe estavam próximos, os hagiógrafos procuraram fazer crer que ele não tinha idéias preconcebidas sobre o assunto e que as circunstâncias e os maus conselhos — especialmente de sua esposa, segundo eles, puro produto da sociedade escravista — foram os únicos a impeli-lo a orientar-se para algo que o repugnava. Pensando bem, mais vale um fraco do que um meticuloso assassino. Retrospectivamente, a fraqueza não confere ao político uma aparência de humanidade? É um pouco como se alguém dissesse que Hitler, ao tornar-se chanceler, não tinha a menor intenção de exterminar os judeus, mas deixou-se levar. Da mesma forma, para citar apenas um exemplo recente, pode-se ler com todas as letras, num Dicionário do Consulado e do Império, publicado em 1995 por três historiadores de renome: Alfred Fierro, André Palluel-Guillard e Jean Tulard, um artigo muito curto que trata da escravidão: “Quando Bonaparte chegou ao poder” — assim está escrito — “não havia opinião firmada a respeito da escravidão nas colónias. Ele foi rapidamente cercado
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pelo partido créole* que se constituiu ao redor de José- phine de Beauhamais.” Trata-se de uma fábula que prosperou suficientemente para que no passado, na praça principal de Fort-de-France, desconhecidos audaciosos, aplicando a palavra de ordem radical de Jean-Jacques Dessalines — Koupé tèt, bwilé kay! (Cortar cabeças, queimar casas!) — decapitassem a estátua da créole com uma pichação explicativa: “Respeito para com a Martinica!” A culpa seria de Joséphine? “Talvez em cinco ou seis dias a cada ano as mulheres possam influenciá-lo”, disse ela a respeito de seu despótico marido. “Mas com exceção desses poucos dias, elas nada significam.” Conforme veremos, o interesse de Napoleão pelas mulheres se limitava à libido, e sua libido era na verdade sazonal. Duvida-se que ele tenha sentido seus ardores precisamente entre 14 a 20 de maio de 1802 e que naquela ocasião Joséphine tenha tido oportunidade (o homem era infiel), vontade e poder para “cercá-lo” quanto a uma questão de tanta gravidade.
Então, talvez não fosse aquela a cabeça a ser cortada. Talvez não fosse aquela a estátua a ser atacada primeiro. A Comuna de Paris não se enganara ao abater a efígie do tirano que ainda está no alto da coluna Ven-
* 0 substantivo créole tem o mesmo significado de criollo em espanhol, e em sua acepção mais estrita designa os colonos brancos nascidos nas Américas. Como adjetivo, qualifica tudo o que é relativo ao Caribe, especialmente os aspectos culturais das colónias e ex-colônias francesas. (N. do T)
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dôme, “monumento de barbárie [...] símbolo de força bruta e de falsa glória”.1
Na realidade Napoleão considerava que somente a restauração da escravidão e do tráfico seria capaz de restabelecer o comércio, o que pressupunha a paz com as demais potências negreiras, que eram também potências marítimas. Isso já ocorria havia quatro anos em relação à Espanha e à República batava, ocupada de fato pela França. Mas a Inglaterra, à qual Portugal abrira seus portos, continuava a ser uma feroz inimiga. A supremacia marítima britânica, agravada pela quase completa destruição da frota francesa em Abuquir, impedia qualquer expedição e impunha o status quo. Além do restabelecimento do comércio, a tomada do controle da ordem escravista e seu desenvolvimento eram a chave do domínio do mundo, assim como o desenvolvimento da indústria alemã viria a ser a chave da expansão do III Reich. Napoleão sonhava com um império francês escravista, servido em grande escala pela mão-de-obra africana, cujo futuro esgotamento tinha pouca importância. As coisas já teriam mudado. Os “negros” já não seriam mais necessários. Tanto melhor que ficassem extintos.
Tudo demonstra que a escravidão era capital no pensamento económico e geopolítico de Napoleão. Ela era parte necessária do programa que ele estabelecera e
Comissão de Belas-Artes da Comuna, presidida por Gustave Courbet.
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que pouco a pouco aplicaria metodicamente, como um geômetra, à medida que as circunstâncias o permitissem. Sua vontade de fazer a paz com a Inglaterra era principalmente motivada pelo desejo de que recomeçassem as expedições negreiras e os fazendeiros franceses recuperassem a prosperidade.
Mas para ele o interesse nacional jamais se separava do interesse pessoal. Em vez de acusar Joséphine, sem dúvida proprietária de escravos na Martinica e em Saint- Domingue, tanto diretamente por sua família, a Tascher, quanto por sua união com o visconde Beauvit de Beau- hamais, deveria ser dito que o fato de casar-se. em 9 de marco de 1796T com uma créole, conhecendo perfeitamente a origem da fortuna da família, bem revela os escrúpulos daquele que Henri Guillemin, autor de Napoléon tel quel (Napoleão como ele é), chamou de “pequeno chacal”, que Barras chamou de “pequeno farsante” e que eu chamo de “pequeno negreiro”. É verdade que o general Vendemiário, cujo património, por ocasião do casamento, se limitava a “seu guarda-roupa e seus instrumentos de guerra”, e que acreditava que a viúva Beauhamais possuísse “um ou dois milhões na Martinica e casas em Saint-Domingue”, percebeu rapidamente que imaginara “fortuna maior do que a que ela tinha”. Não há dúvida de que, apressando sua entrevista com o advogado Raguideau, tabelião, aquele que era ainda somente Napolione Buonaparte acreditava unir-se a uma
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rica “americana” e tirar lucrativo partido da renda de suas fazendas na Martinica, isto é, do trabalho dos pobres miseráveis que lá cortavam cana. Certamente as mil libras esterlinas que Joséphine recebia na época, por meio de banqueiros ingleses e apesar da guerra, provenientes de seus rendimentos na Martinica, tinham algo a ver com a escravidão. E é claro que a decepção de Napoleão quanto à fortuna de sua Rosa, transformada na circunstância em Joséphine, provocou-lhe com toda certeza, após o casamento, um grande interesse pessoal no restabelecimento do Código Negro em Saint-Domingue e em sua manutenção na Martinica.
No entanto, não se pode dizer que Napoleão não dispusesse a tempo de conselhos que pudessem tê-lo esclarecido. O contra-almirante Jean-François Truguet, que quase foi morto em Savannah ao lado dos “homens de cor” do almirante d’Estaing antes de tomar-se ministro da Marinha do Diretório, enviou-lhe nada menos de quatro memoriais com a menção explícita “exclusivo para seus olhos”, nos quais advoga extensamente em favor da liberdade nas colónias e adverte o Primeiro Cônsul contra o retorno dos negreiros ao ministério. Obviamente ele temia os projetos de Bonaparte. Truguet era na verdade muito próximo dele. Haviam se encontrado em Toulon. Conhecendo bem o homem, ele se arriscou a escrever-lhe: “Os negros são o verdadeiro povo, o único povo das Antilhas. Conquistemos por meio da con-
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fiança homens que sofreram o chicote, que quiseram ser livres e que agora o são, que ganharam a liberdade por si mesmos e que a defenderam contra os ingleses e os espanhóis unidos!” Traindo sem pejo a confidencialidade solicitada por seu amigo, Bonaparte apressou-se em transmitir esses memoriais, como advertência, ao virulento escravista que era o almirante Antoine Ganteaume, seu assessor naval. Bonaparte não podia deixar de saber disso, pois fora Ganteaume quem o trouxera de volta do Egito, e o almirante terá tido tempo suficiente para expor-lhe suas opiniões a bordo de La Muiron. Não houve surpresa: o obsequioso Ganteaume, compreendendo o que dele se esperava, protegeu Bonaparte ao qualificar a liberdade defendida por Truguet de “sistema de destruição”. Para a posteridade, assim como para seus contemporâneos, Napoleão nada mais fez do que seguir os conselhos de Ganteaume, ceder às “lamúrias dos colonos”, como diria mais tarde. Bonaparte, satisfeito com esse álibi, passou a negar sistematicamente todas as recomendações de Truguet. Ganteaume acabaria por ser nomeado presidente da seção da Marinha no Conselho de Estado. E viajaria a Saint-Domingue onde se notabilizaria por transportar de Cuba ao Cabo cães treinados em devorar negros, o que lhe valeria a Legião de Honra.
Tudo começou com o golpe de Estado. Poucos dias depois, Bonaparte pensou em mandar prender Léger
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Sonthonax, republicano considerado instigador da liberdade dos escravos. Mas foi obrigado a voltar atrás diante da indignação geral que essa medida poderia provocar. Em breve, a imprensa seria amordaçada: o decreto de 17 de janeiro de 1800 suprimiu 60 dentre os 73 jornais parisienses. Enquanto isso, era melhor ser prudente. Napoleão mandou então reunir os representantes dos colonos de Sainte-Domingue a fim de consultá-los sobre as medidas a serem tomadas na ilha, o que provocou um boato de restabelecimento da escravatura. Estava lançado o balão de ensaio; faltava ver até onde subiria.
Com efeito, a Constituição do ano VIII, que Bona- parte confeccionou sob medida e que colocou em vigor com rapidez, não deu espaço à Declaração dos Direitos do Homem de 1789, nem mesmo à “Declaração de direitos e deveres” do ano III. A nova Carta suprimiu o princípio de assimilação das colónias, que eram até então “parte integrante da República” e “submetidas à mesma lei constitucional”. Dali em diante, segundo instruções pessoais de Bonaparte, “o regime das colónias francesas é determinado por leis especiais”. Para bom entendedor, era a primeira etapa do restabelecimento da ordem antiga para o ultramar. Evidentemente, já não havia lugar para a representação parlamentar das colónias no Legislativo. A era dos parlamentares “negros” ou “de cor” já havia passado.
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Logo em seguida, um alto funcionário do Ministério da Marinha, de nome Garnet, foi encarregado de redigir um relatório sobre o assunto, o qual, apesar das declarações tranquilizadoras de princípio no preâmbulo, continuou sendo muito ambíguo. Uma declaração dos cônsules, de 25 de dezembro de 1799, dirigida aos “bravos pretos de Saint-Domingue”, os quais, a 8 mil quilómetros de distância, obviamente não tinham como estar informados a respeito senão semanas depois, prometia a manutenção da liberdade e da igualdade naquela ilha. Essa é a prova de que era preciso tranquilizar a opinião pública, muito favorável à emancipação dos escravos. Mas como nada estava claro a respeito das demais colónias, além de Saint-Domingue, a declaração não teve o efeito esperado e não deixou de inquietar os observadores mais atentos.
Outro sinal que não deixa dúvidas: ainda que Napoleão estivesse obcecado pelos “negros com dragonas” de Saint-Domingue ou de Guadalupe, ele não teve a preocupação de mandar aplicar o decreto do 16 de pluvioso às ilhas Mascarenhas, consolidando assim uma situação de rebelião declarada dos colonos em relação à metrópole. Em troca, desde o início de 1800 o general Etienne Bizefranc de Lavaux, que era tenente-coronel do 69 Regimento de Dragões quando Alexandre Dumas recebeu ali seu primeiro grau de oficial, igualmente amigo de Toussaint Louverture e finalmente agente do
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Diretório em Guadalupe, favorável aos ex-escravos, foi prontamente chamado de volta à França, onde o Primeiro Cônsul mandou prendê-lo e em seguida reformá-lo, por não haver encontrado nenhuma sombra de motivo para prolongar a detenção arbitrária.
Não é fácil, porém, reinstituir a escravidão para cerca de 750 mil cidadãos franceses, dos quais várias dezenas de milhares eram soldados. Não adiantava imaginar que fossem homens inferiores; era preciso uma armada e portanto a concordância dos britânicos para levar os militares aos pontos necessários. Ou então fazer uma tentativa desesperada, usando a força bruta. Desde o fim do ano de 1799, o impaciente general pensava em mandar uma frota comandada por um homem “seguro”, o contra-almirante barão Jean-Raymond de Lacrosse, “para ficar à vista de Saint- Domingue, se não houver inconvenientes, a fim de mostrar o pavilhão da República naqueles mares”. Poucas semanas depois, tranquilizado pelos cortesãos que afirmavam que os africanos eram covardes e que debandariam ao primeiro tiro de fuzil, ele considerou a partida de uma força de intervenção de 4.500 homens, comandada pelo mesmo Lacrosse. A empresa, no entanto, era irrealista. Lacrosse acabaria sendo enviado no ano seguinte a Guadalupe, com a missão de expurgar o exército de seus oficiais “de cor”.
Enquanto esperava o momento favorável para o grande golpe com o qual sonhava, Napoleão tratou me
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todicamente de cercar-se dos reacionários mais notoriamente ligados ao Antigo Regime e de todos os nostálgicos do Código Negro que conseguiu encontrar. Após haver demitido o pouco dócil Marc-Antoine Bourdon de Vatry — homem de Sieyès* — ele convocou Pierre- Alexandre Forfait para o Ministério da Marinha e das Colónias, impondo-lhe gente marcada, como o barão Jean-Baptiste Guillemin de Vaivre, Élie Moreau de Saint- Méry, promovido a “historiógrafo”, ou o general Narcisse Baudry de Lozières, aos quais se juntaria o almirante conde Thomas de Villaret-Joyeuse, Pierre Victor Malouet e o marquês François de Barbé-Marbois. Todos virulentos negreiros, todos nutridos pela ideologia racista dos colonos. Após ser deliberadamente difundida na metrópole no reinado de Luís XVI, a fim de contrapor-se às manobras abolicionistas, essa nova ideologia da “superioridade branca” começou a procurar justificativas científicas para o preconceito do “sangue”. Estas se encontram esboçadas numa pequena obra do barão Ambroise Palisot de Beauvois, publicada em Saint-Domingue no início da Revolução, e anunciam os sistemas mais sofisticados dos quais a França se tomaria grande exportadora e que parecem haver inspirado as leis de Nuremberg.
*Emmanuel loseph de Sieyès (1748-1836), político e escritor que, junto com Napoleão, teve participação no golpe de Estado de 18 de brumário. (N. do T )
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Élie Moreau de Saint-Méry: representante dos colonos da Martinica, feroz defensor da escravatura, que não hesitou, em 1791, antes de emigrar para a Filadélfia, em requerer explicitamente à Assembléia Constituinte a não-aplicação da Declaração dos Direitos do Homem às colónias; Malouet, outro emigrado que representava os colonos de Saint-Domingue em Londres e foi adversário declarado da Sociedade dos Amigos dos Pretos: que bela equipe!
Sob a proteção discreta do Primeiro Cônsul, o general Narcisse Baudry des Lozières foi encarregado de organizar um verdadeiro escritório de propaganda no Ministério das Colónias, em associação com o “historiógrafo” Moreau de Saint-Méry. Foi sem dúvida nessa ocasião que Baudry des Lozières teve o lazer necessário para encetar a redação de uma obra-prima do pensamento pré-nazista, Les Égarements du nigrophilisme (Os desvios do negrofilismo), que seria publicada na ocasião propícia e era habilmente dedicada a Joséphine, a fim de não comprometer demasiadamente o grande homem. Simultaneamente surgiu uma tradução para o francês de Viagem de Mungo Park, famoso explorador escravista, a fim de divulgar a idéia de que de qualquer modo três quartos dos africanos já eram escravos em sua terra, e portanto o transporte para as Américas não agravava sua sorte. Ao contrário. Um velho argumento, já utilizado por Voltaire
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e que certos “historiógrafos” franceses do século XXI não hesitariam em retomar por sua vez, no mesmo sentido.
De seu lado, o negreiro Bélu dedicou a Bonaparte Des cokmies et de la traite des nègres (Das colónias e do tráfico de negros), no qual se esforça por demonstrar que a fim de compensar as fadigas do corpo, o “repouso espiritual” dos escravos frequentemente tomava sua condição “igual em felicidade à do senhor”. Era de certo modo uma prefiguração dos trabalhos forçados “libertadores” que se tomaria o lema inscrito na entrada dos campos de extermínio.
Em uma carta de 25 de dezembro de 1799, dirigida a Jorge III, rei da Inglaterra, Napoleão se apressou em mostrar-se indignado: “Como é possível que as duas nações mais esclarecidas da Europa [...] possam sacrificar a prosperidade do comércio a idéias vazias de grandeza!” Falar em prosperidade do comércio era o mesmo que dizer a liberdade do tráfico, pois as nações mais “esclarecidas” eram também as duas grandes potências negreiras.
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Portanto, não há nenhuma dúvida: no momento em que tomou o poder, Napoleão já era escravista convicto. Mas era também racista. Racista até à alienação. É conhecido seu ódio aos judeus, que a Revolução acabava de emancipar. A respeito destes últimos, o modelo inspirador de Hitler não hesitou em declarar que se tratava “de uma nação à parte, cuja seita não se mistura com nenhuma outra”, “uma raça que parece ter sido a única excluída da redenção”. E insistia: “Os males cometidos pelos judeus não vêm dos indivíduos, e sim da própria constituição desse povo. São lagartas, gafanhotos que assolam a França!”1 Ele explica claramente sua política de ódio aos judeus a seu irmão Jérôme: “Em-
‘Opiniões comunicadas a Mathieu-Louis Molé em 7 de maio de 1806 e citadas principalmente por Hubert de Noailles em Le Comte Molé, sa vie, ses mémoires (Vida e memórias do conde Molé), Paris, 1922-1930. Sobre o anti-semitismo de Napoleão, ver também Philippe Bourdrel, Histoire desjuifs de France (História dos judeus da França), Paris, 1974.
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preendi a obra de corrigir os judeus, mas não procurei atrair novos a meus estados. Longe disso, procurei evitar qualquer coisa que pudesse demonstrar estima aos mais miseráveis entre os homens.”
Assim, desejando “remediar os males aos quais muitos deles se entregam”, Napoleão multiplicou as medidas discriminatórias em relação aos judeus, sem hesitar em suprimir as dívidas das quais eram credores ou em afastá-los do comércio para arruiná-los, e até mesmo em proibir sua presença em todo o território ou parte dele. Anti-semita notório, assim como Voltaire, Napoleão era naturalmente também violento negrófobo, pois uma coisa nunca existe sem a outra.
Sua famosa profissão de fé perante o Conselho de Estado exprime um racismo dos mais primários: “Sou a favor dos brancos porque sou branco!”, decretou ele. “Não tenho outro motivo, e este é o melhor!”2
Para Napoleão, a liberdade não era um direito natural, e sim uma recompensa que o homem “branco” pode ou não outorgar aos “inferiores”, desde que estes sejam “civilizados”. Mas sua concepção de civilização é peculiar. “Como foi possível conceder liberdade aos africanos”, explica ele, “homens que não possuíam civilização alguma, que sequer sabiam o que era uma colô-
2Declarações registradas por Antoine-Clair Thibaudeau em Mémoires sur le Consulat (Memórias sobre o Consulado), Paris, 1827.
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nia, o que era a França?” Ser civilizado significa ter a colonização em sua cultura. Os que não colonizam os demais são apenas selvagens. E os povos colonizados o são justamente devido a essa selvageria. E por que são selvagens? Porque são eles os colonizados, e não o contrário. É um belo círculo vicioso, que sem dúvida alguma homenageia a força, mas cuja utilização não prova um grau elevado de civilização. “Simplesmente, aqueles que desejam a liberdade dos negros desejam a escravização dos brancos”, dispara ainda Bonaparte. Embora o efeito do estilo seja eficaz, a frase não tem sentido. Mas para Napoleão os imbecis eram os membros da Convenção. Incapazes de raciocinar, deixam-se levar pelo sentimento: “Mas os senhores ainda acreditam”, pergunta ele, “que, se a maioria da Convenção soubesse o que estava fazendo e conhecesse as colónias, teria dado a liberdade aos negros? Não, sem dúvida! Mas poucas pessoas tinham condições de prever os resultados disso, e um sentimento de humanidade sempre tem poder sobre a imaginação. Mas, hoje em dia, aferrar-se ainda a esses princípios! Não há boa-fé! Há somente amor-próprio e hipocrisia!” Em outras palavras: os adversários da escravatura não podem ser senão homens do passado, aferrados, por orgulho, a idéias cuja inutilidade a experiência já revelou.
Napoleão, portanto, estava a favor dos brancos e da escravidão porque era branco. Mas a fatalidade fazia com que o “homem negro” o rondasse. Não somente no
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emblema da Córsega, que desde o século XVI exibia “uma cabeça de negro rodeada de prata”. Embora seus fanáticos lhe creditem a libertação dos escravos muçulmanos quando da tomada de Malta em 1798, no mesmo ano, no Cairo, aquele que se apresentava como libertador do povo egípcio não se preocupou em alforriar os africanos,2 que não podia deixar de ver, ainda que sua sorte — para tristeza de alguns revisionistas — nem de longe pudesse comparar-se à dos escravos nas Américas. Os oficiais, assim como seu general-em-che- fe, não se abstinham de ir ao mercado de escravos e às vezes ali encontravam concubinas efémeras ou recrutas suplementares.
Napoleão não procurou esconder o pânico que o invadiu quando ficou sabendo, em outubro de 1797, que a marquesa Marie-Françoise de Beauhamais, ex- cunhada de sua mulher, havia se casado com o membro da Convenção Charles-Guillaume Castaing, “homem de cor”, nascido escravo em Saint-Domingue, divorciado e pai de um filho “completamente negro”. Um negro na família do general Vendemiário! Marie-Françoise foi convocada. Para impressioná-la, o negrófobo explodiu em raiva. Mas a jovem se recusou categoricamente a
2Dirigindose a Truguet, Napoleão chegou a declarar: “Se tivésseis vindo ao Egito para pregar a liberdade dos negros ou dos árabes, nós vos teríamos enforcado no alto de um mastro.” Antoine-Clair Thibaudeau, em Mémoires sur le Consulat, Paris, 1827.
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abandonar o eleito de seu coração. Bonaparte teve de resignar-se: “Evite a publicidade! Guarde silêncio!”, ordenou ele. “Teria sido melhor não se casar com ele. Mas já que está feito, fique com ele!” Evitar a publicidade? Guardar silêncio? Isso pressupunha esconder-se. Mas por que esconder-se? A época não era nada hostil às “pessoas de cor”. Um ano depois do casamento de Cas- taing, Saint-George foi aclamado ao chegar de braço dado a uma jovem que iria fazer uma ascensão num balão com o navegador de aerostato Gamerin. Mas Bonaparte, ainda general do Diretório, era animado por um ódio e um desprezo pelos africanos que destoava de seus contemporâneos. Que humilhação para ele quando por ocasião do casamento da filha “branca” de Marie- Françoise de Beauharnais foi obrigado a cruzar com o homem a quem ele só chamava de “o negro”. Mas isso não aconteceria novamente. Castaing, filho da escrava Catherine Champi, seria relegado junto com a esposa ao castelo de Sampigny, na Meuse, e mantido quase em segredo. Apesar de seu título de “diretor do parque imperial”, obtido graças à intervenção de Joséphine, a situação de Guillaume Castaing era “mais ou menos a de um prisioneiro político, porque não pode nunca sair do castelo ou dos jardins”, como observou espantado um visitante inglês^em 1812. Marie-Françoise de Beauharnais e seu incómodo consorte jamais iriam aparecer na
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corte e terminariam discretamente suas vidas em Sé- zanne, pequena aldeia no Mame.
Mais cruel ainda, por ser algo mais próximo, era a existência de uma jovem Rosa apelidada Marie-Joseph, nascida em 1789 durante a estada de Joséphine em casa de uma tia na Martinica. Claro que os guardiães racistas do templo napoleônico se esforçam por negar tudo, completamente. Oficialmente, Marie-Joseph seria filha natural de uma certa Marie-Louise Bénaguette. Mas um homem tão bem-informado quanto o Primeiro Cônsul não poderia ignorar que ela fosse na realidade o fruto dos amores de Joséphine com um “negro”. Joséphine, portanto, ao contrário do que nos querem fazer crer, não parecia ter prevenções, inclusive em sua vida sexual. Até mesmo Barras, seu ex-amante, é testemunha: “Dizia-se”, conta ele em suas Mémoires, “que [...] superior ao preconceito de cor, ela teria tido relações com negros. Bonaparte, que tal como nós não ignorava todas essas aventuras, havia muitas vezes ouvido relatos delas diante de mim.”
Com Euphémie, a “mulata” que criou Hortense de Beauhamais em Paris, Joséphine manteve uma correspondência bastante amistosa. E esse à-vontade não se limitava a seus empregados. Frequentando assiduamente os salões parisienses, a viúva estava habituada a encontrar homens e mulheres “de cor”. Sabe-se que, na Itália, a futura imperatriz iria simpatizar com o general
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Dumas e que recomendaria Charles-Guillaume Castaing — aliás, sem grande sucesso — ao Diretório. De resto, na família Tascher, como na de todos os colonos das Antilhas, a pureza de sangue não seria uma forma de reação, sob a forma de obsessão, às inevitáveis misturas impostas pela coabitação de senhores e escravos? Por ocasião da morte de sua mãe em 1807, Joséphine fez questão de alforriar seis cativos e obrigou Napoleão a conceder a sua filha “de cor” um dote de 100 mil francos. O assunto foi resolvido pelo almirante Villaret de Joyeuse, capitão geral da Martinica. Mas é necessário manter esse caso em sigilo. Esse segredo de Estado lhe valeu muito o investimento quando ele capitulou diante dos ingleses.
Também não está demonstrada a “pureza de sangue” na família Bonaparte. Isso não era certamente um problema para a eclética Pauline, a qual, assim como Joséphine, não parece ter tido o menor preconceito de cor na escolha de seus amantes e cuja afeição pelo general Dumas é conhecida. O mesmo quanto a Lucien, amigo e protetor do pintor guadalupense “de cor” Guillaume Guillon, apelidado Lethière. Tanto é assim que na primavera de 1789, o mais velho, Joseph, investigou a genealogia da família e, por intermédio de um arquivista de Sarzane, na Toscana, descobriu que ela descendia em linha direta de um certo Francesco Buonaparte, chamado no século XVI de “o Mouro” ou “o Mouro de
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Sarzane”. Esse Buonaparte, mercenário em Ajaccio, estava a serviço da República de Génova, onde se sabe que os africanos eram apreciados. Um mouro, isto é, um africano! É verdade que esse ancestral mouro remonta a dez gerações. Mas ninguém duvida que o Otelo corso assombrasse os sonhos do general, assim como o avô judeu de Adolf Hitler assombrava os do chanceler do III Reich. Os panfletários britânicos não se enganariam. O pior insulto para “Boney” não era ser tratado de “mulato corso”?
Mas supondo que Napoleão soubesse que era ou que poderia — como todo mundo — ser de origem africana, o que motivaria tanta sanha? Talvez para mostrar que ele nada tinha a ver com aqueles que desprezava e que iria perseguir. Por trás de todo frenesi racista há sempre um segredo de família não assumido, origens incertas que é preciso esquecer.
Mais do que qualquer outro exemplo, as relações entre Napoleão e o general Dumas são especialmente edificantes. A fim de recolocar as coisas em seu contexto, é preciso saber que quando o “negro” Dumas foi nomeado general de cavalaria, em julho de 1793, “Buonaparte” era apenas um obscuro pequeno capitão de artilharia. Dumas já era general-de-divisão quando o homem que seus camaradas apelidaram de “nariz de palha” era somente comandante de batalhão. E quando o artilheiro finalmente conseguiu ser nomeado general-
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de-brigada a título provisório, o ex-escravo já obtivera o comando do exército dos Alpes, com 45 mil “brancos” sob suas ordens. Estamos a algumas semanas da abolição da escravatura. Dumas se tomou herói nacional quando, como comandante-em-chefe do exército dos Alpes, e combatendo na neve, toma brilhantemente aos austro-sardos o monte Cenis e o Pequeno São Bernardo, salvando assim a República. Quando a Convenção foi ameaçada por uma insurreição monarquista, em 6 de outubro de 1795, Dumas foi chamado para resgatá-la. Napoleão não era ninguém. Tinha sido rebaixado de seu posto. Nem seus negócios nem sua moral estavam em ponto alto: “Se isto continuar, meu amigo”, escrevera ele um mês antes a seu irmão Joseph, “acabarei por deixar-me atropelar por uma carruagem.” O soldado rebaixado e suicida morava em um pequeno hotel de má fama e, como nada tinha a perder, ia passear nas proximidades das Tulherias. Sua sorte foi que o eixo da precária carruagem de Dumas quebrou entre Villers- Cotterêts e Paris. O testemunho de um chefe de posto de correio e a fatura do conserto do cabriolé são a prova formal. Dumas somente chegaria em 7 de outubro, com 24 horas de atraso. Enquanto isso, o homem descalço que trotava atrás do cavalo de Barras, ex-amante de sua mulher, ficava famoso por ter tido a idéia de mandar a artilharia da planície de Sablons atacar a multidão. De pé sobre suas esporas, Napoleão, com um metro e cin-
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quenta e cinco centímetros de altura, não poderia sentir senão ódio ao ver chegar o colosso negro, que ainda era seu superior hierárquico numa arma prestigiosa. Dali em diante, Dumas vegetaria, enquanto Bonaparte organizava seus peões. Após algumas designações sem interesse, Dumas regressaria em posição subalterna ao exército dos Alpes, do qual dois anos antes era o vitorioso comandante-em-chefe. Finalmente obrigado a servir na Itália sob as ordens de Napoleão, cujo racismo era atiçado pela inveja, Dumas multiplicou em vão suas façanhas, que o aprendiz de ditador apenas agradecia de má vontade e continuava a ofendê-lo com a cumplicidade de Berthier, seu chefe de estado-maior. Certo dia chegou a proibir a entrada do antilhano sob o pretexto de que não havia pedido audiência da forma regulamentar. Nessa ocasião, Dumas, que não era tolo, protestou orgulhosamente: “Resolvido a não mais me apresentar a vós devido à maneira com que fui recebido por vosso porteiro e por um plantonista, por instruções vossas, ao que me disseram, peço-vos marcar-me uma audiência a fim de que não seja outra vez humilhado em público.” Nomeado comandante da cavalaria francesa no Egito e desgostoso com a atitude colonialista e anti-republicana de Bonaparte, Dumas sem dúvida tomou também consciência de seu racismo visceral. Duas semanas antes de chegar ao Egito ele já não tinha ilusões: “Seguirei cegamente minha carreira, como todos
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os meus camaradas,” confidenciou ele à esposa, “porque neste caso se trata mais de deportação do que de expedição. Resigno-me a tudo porque não tenho nada de que me possa envergonhar. A moda aqui é somente destituir os que são conhecidos como patriotas, e isso ocorre todos os dias.” Dumas teve participação capital na questão da revolta do Cairo e na tomada da mesquita Al-Azhar, em 21 de outubro de 1798. Adoentado, foi tirado do leito por seu ajudante-de-ordens. O general Dupuis, comandante do Cairo, acabava de ser linchado pela multidão. As pilhagens e a caça aos cristãos haviam começado. Bonaparte estava ausente, ou talvez, mais provavelmente, oculto em seu alojamento, acreditando-se perdido. Dumas estava pronto a cumprir seu dever, mas sem grande convicção, porque a repressão não era seu forte. Saltou sobre o cavalo, com o torso nu. Naquela noite, receberia ordem de tomar a Grande Mesquita, onde estavam refugiados os últimos insur- gentes que Bonaparte havia mandado bombardear durante quatro horas, apesar das súplicas de uma delegação que viera pedir negociações. O tirano não escondeu seus métodos: “Fui obrigado”, ria-se ele no dia seguinte à carnificina, “a mandar atirar bombas e obuses contra a grande mesquita a fim de conquistar um setor defendido por barricadas. Isso causou um efeito considerável. Mais de quinze obuses entraram na mesquita [...]. A cidade recebeu uma boa lição, da qual
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se recordará por muito tempo, estou certo!” E por que mandou Dumas? Porque ele era, sem contestação, o melhor soldado do exército do Egito. E também porque era perigoso. Porém sobretudo por causa da aparência daquele atleta “negro”, capaz de desestabilizar os revoltosos: no espírito classificador de Napoleão, Dumas bem poderia combater do lado deles, pois era nada mais do que um “negro”.
Uma vez derrubada a porta da mesquita a tiros de canhão, o herói, empapado por uma chuva torrencial, entrou a cavalo, à frente de seus dragões. “O acaso quis que diante da porta”, relataria em suas Memórias o filho do general, “isto é, no caminho que o cavalo de meu pai percorreria em sua corrida, havia um túmulo da altura de aproximadamente um metro e meio. Ao encontrar esse obstáculo, o cavalo se deteve imediatamente, empinou-se e deixando cair as duas patas dianteiras sobre o túmulo, permaneceu imóvel por um instante, com os olhos injetados de sangue e soltando fumo pelas narinas.” A aparição, naquele lugar sagrado, desse cavaleiro de pele escura e escorrendo água causou, conforme previsto, uma forte impressão nos insurretos: “O anjo! O anjo!”, gritavam os árabes. Sua resistência nada mais foi do que uma luta de desespero por parte de alguns, mas para a maioria era a resignação ao fatalismo. Os chefes gritavam: “Amman!” (Perdão!) Sabe-se que a crença nos anjos faz parte dos dogmas fundamentais do
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Islã. Que o general Dumas tivesse sido confundido com um dos guardiães do inferno ou tomado por anunciador da ressurreição, é evidente que a cor da pele daquele francês teve a ver com a rendição final dos xeques rebeldes. Para os muçulmanos do Cairo, aliás, Dumas era uma espécie de irmão, conhecido por sua mansidão e tolerância. Mesmo que a versão do escritor Alexandre Dumas, baseada em princípio no testemunho de antigos companheiros de armas de seu pai, seja um tanto romanceada — o que não é certo —, o papel moderador do general Dumas, a quem os insurretos se renderam naquela noite, foi atestado pelos escritos de uma testemunha do Cairo, Abd Al Ramahn Al Jabarti (Journal d’un notable du Caire durant Vexpédition française) (Diário de um notável do Cairo durante a expedição francesa), que afirma que os franceses efetivamente entraram a cavalo na Grande Mesquita. Porém Bonaparte, embora mencionasse, em um relatório ao Diretório redigido cerca de uma semana depois dos acontecimentos, haver enviado na manhã do dia seguinte o general Dumas “com a cavalaria, para percorrer a planície”, minimizava evidentemente seu papel no próprio dia do levante. E com razão: a feroz repressão começou a partir da rendição dos insurretos, coisa que Dumas não perdoaria a Bonaparte. Os prisioneiros do general foram todos massacrados, a Grande Mesquita foi pilhada e profanada por hordas de soldados. “Ateavam fogo aos
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livros e aos volumes do Corão e os pisoteavam”, relata Al Jabarti. “Emporcalharam o local com excrementos, urina e escarro. Havia garrafas de vinho, que eles quebravam...” Assim foi o início do “papel positivo” da colonização francesa no Oriente.
O quadro de propaganda abertamente racista pintado por Girodet, pintor oficial naquela ocasião, que mais tarde (em 1810, por encomenda de Napoleão para o palácio das Tulherias) reconstituiria a cena da entrada na Grande Mesquita, mas não com Dumas no papel principal, e sim um jovem oficial dos hussardos, rodeado por másculos dragões. O emblemático efebo louro, um anónimo imaginado por Girodet segundo as instruções imperiais, avança pelo jardim, intrépido, calmo, seguro de estar em seu direito, com a cimitarra já tinta de sangue dos “inferiores”. A seus pés, um africano raivoso, com a boca torta, babando, rola os olhos. O pérfido, logo vencido e agarrado à coxa de um árabe que permanece de pé, agita uma faca com uma das mãos e com a outra a cabeça decepada de um “homem branco” pacífico, de cabelos encaracolados, um hussardo “ariano” que bem poderia ser o Cristo. O assassino é representado sem outra vestimenta senão um turbante, para mostrar que se trata sem dúvida de um escravo e que não merece senão estar nu como animal daninho que realmente é. Por trás, outro africano, pouco decidido, brande uma pistola. O pincel do pintor somente distin
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gue um único insurreto, um mameluco delicado que se pode imaginar ser de origem circassiana. Esse precioso jovem de traços europeus, cujos ricos ornamentos enfatizam sua ambiguidade, desfalece nos braços de um feroz árabe, cuja nudez e nariz adunco indicam selvageria. Nessa pintura edificante se encontra toda a teoria da hierarquia das “raças” que desabrocha graças a Napoleão. Um quadro que poderia servir como referência a todas as expedições coloniais baseadas na primazia do “homem branco”. Mutatis mutandis, a cena da Grande Mesquita poderia perfeitamente ter ocorrido, no início do século XXI, em Bagdá ou em Porto Príncipe.
A evolução de Girodet, evidentemente alimentar, é tanto mais interessante se levarmos em conta que ele, em 1790Jj :epresentava a si mesmo vestido como feroz sans-culotte* com um barrete frígio na cabeça, e que em1797 pintou o magnífico retrato de Jean-Baptiste Belley, no qual o elegante deputado de Saint-Domingue, cingido por um lenço tricolor e apoiado negligentemente a um pedestal de uma estátua do abade Raynal, afirmava- se em toda a sua dignidade, sem qualquer preconceito. Foi a primeira vez que um africano era assim retratado em suas funções oficiais.
A repressão da revolta do Cairo foi terrível e causou a execução sumária, conforme confessa o próprio gene
*Designação dada aos republicanos mais ardentes, na época da Revolução francesa. (N. do T.)
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ral-em-chefe, de vários milhares de prisioneiros, previamente interrogados “de maneira eficaz”. Os militares franceses encarregados do setor de informações durante a batalha de Argel em 1957oitilizariam explicitamente a tradição napoleônica. Assim, tal como no Cairo em 1798, o tenente-coronel Trinquier, ex-profes- ----- --- -sor apaixonado por Napoleão, mandou numerar as casas de Casbah, a fim de identificar melhor os eventuais resistentes. Sendo Trinquier referência reconhecida pelos serviços de informação norte-americanos em matéria de guerra colonial, a escola napoleônica viria a ter discípulos até Guantánamo e Abu Graib.
Tão logo a revolta amainou, Bonaparte mandou decapitar todos os que haviam se rendido. “Vossa Senhoria haverá por bem”, escreveu ele friamente a Berthier, chefe de seus matadores, “dar ordem ao comandante da praça para que mande cortar o pescoço de todos os prisioneiros capturados de armas na mão. Eles deverão ser conduzidos esta noite à margem do Nilo, entre Boulak e a cidade velha do Cairo. Os cadáveres sem cabeça serão jogados no rio.” Tal como na Argélia, os interrogatórios severos e as execuções sumárias com arma branca ocorriam após o pôr-do-sol. Para os mutirões, o pequeno torturador tinha homens dedicados: o antigo mameluco Barthélemy Serra, por exemplo. E ele se vangloriava: “Todas as noites”, escreveu, “mandamos cortar umas trinta cabeças.” Entre as cabeças cortadas, as pri-
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meiras são as negras. Em 28 de outubro de 1798, seis “negros”, dentre os quais três mulheres, pororden/pes- soai de Bonaparte, foram “interrogados” e em seguida liquidados.
Três meses depois desses horrores, Dumas, enojado, conseguiu ser enviado de volta à pátria com um pretexto médico. Não transigia com os direitos humanos. Demonstrou isso ao pedir para retirar-se na Vendéia a fim de não participar de uma empresa genocida, ou quando mandou derrubar uma guilhotina em Bourg-Saint- Maurice. “Senhor da Humanidade”, chefe dos republicanos descontentes, foi apoiado durante vários meses por seus amigos Desaix, Lannes e Kléber. O mata-mou- ros coxo ficou sabendo, o que já ocasionara em agosto de 1798 uma cena das mais violentas. Napoleão a relatou, colocando-se em vantagem, a seu médico dr. Nicolas Dufriche, futuro barão Desgenettes, médico- chefe da expedição ao Egito: “Mandei chamar Dumas e lhe disse: ‘Sei o que estão dizendo. Se achasse que o senhor ou alguns outros homens de sua espécie pensassem por um só instante em executar as extravagâncias que lhes passaram pelas cabeças, eu os mandaria imediatamente fuzilar a meus pés por minha guarda; em seguida reuniria os granadeiros do exército para julgá-los e cobriria de infâmia sua memória.’ Ele começou a chorar e percebi que era um homem bom que havia sido
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seduzido. Aliás, ele tem muito pouco talento. Afinal, há muito já me esqueci de tudo isso!” Na doxa, ou credo, racista convencionou-se dizer que os homens de pele negra, e entre eles, sobretudo, os rebeldes pobres, são sempre idiotas. Assim, lê-se numa nota nos arquivos militares de 1801 que os dois principais revoltosos de Guadalupe — Louis Delgrès e Joseph Ignace — eram, tais como o general Dumas em 1798, “sem fortuna e sem talento”. Para Napoleão, portanto, o “negro” Dumas era nada mais do que um imbecil, uma criança grande. A prova: era incapaz de conter sua emoção, o que não poderia ocorrer, sem dúvida, ao futuro imperador, cujo sorriso mecânico Mme de Staêl recorda: “Partindo do sério para a ele regressar, parecia mais uma mola do que um movimento natural.” Preso em Taranto por outro aventureiro corso, Matteo Boccechiampe, Dumas sobreviveria somente poucos anos devido ao arsénico que os carcereiros napolitanos o faziam engolir e ao rancor de Napoleão, o qual, ao contrário do que dissera a Desgenettes, nada esquecera. Ele era, antes de tudo, um ressentido. A carreira do herói do monte Ce- nis, do Pequeno São Bernardo e da ponte de Brixen havia terminado. Napoleão chegaria a recusar-lhe um pagamento atrasado de tratamento, que no entanto havia sido legitimamente reclamado. Não era a recompensa pelos inúmeros serviços prestados à França, e sim simplesmente como indenização por dois anos de cati
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veiro nos quais contraíra enfermidades graves. Os cuidados que lhe foram prestados ao regressar não o impediriam, antes dos quarenta anos, de “permanecer manco do pé direito, surdo do ouvido do mesmo lado, com a parte esquerda do rosto paralisada e com o olho direito quase perdido, sofrer de violentas dores de cabeça e um contínuo zumbido nos ouvidos, enfim, de estar sujeito a mil indisposições”. Napoleão não poderia ignorá-lo, pois em junho de 1801, assim que Desgenet- tes examinou o general, que acabava de ser libertado, lhe disse: “Como V.S. me diz que a saúde dele não o deixará mais passar seis semanas dormindo na areia nem coberto com uma pele de urso, já não preciso dele para comandar a cavalaria. O primeiro brigadeiro que chegar poderá substituí-lo.” Para compreender a recusa de pagar a Dumas os 28.500 francos que lhe eram devidos, é preciso saber que o general, três anos antes, no Egito, havia mandado entregar a Napoleão uma caixa que havia encontrado por acaso, com este bilhete: “Cidadão general: O leopardo não muda de pele. O homem honesto não muda de consciência. Remeto-lhe um tesouro que acabo de encontrar que é estimado em cerca de dois milhões. Se eu for morto ou se morrer aqui de tristeza, lembre-se de que sou pobre e que deixei na França mulher e um filho.”
Por ocasião de seu casamento, Napoleão possuía somente as botas e as calças. Porém, ao regressar da cam
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panha na Itália, conseguiu mandar reformar sua casa natal em Ajaccio, comprar terras na Bélgica e adquirir uma mansão em Paris, tudo por cerca de dois milhões. Compreende-se que considerasse “pouco talentoso” o escrupuloso general Dumas.
Em sinal de agradecimento pelos dois milhões, o ditador mandou reformar Dumas — isto é, retirá-lo do serviço ativo — em 13 de setembro de 1802. Como era aplicável a ele uma regra que visava a purificação “racial” do exército, o herói foi obrigado a solicitar uma autorização de residência para poder continuar a morar em sua casa, em Villers-Cotterêts. Ali morreria de vergonha e tristeza, sem nenhuma condecoração, pobre e esquecido, vítima do racismo e da inveja de Napoleão. O ódio do tirano se estenderia à viúva do general e a seus dois filhos, entre os quais o futuro escritor. Embora filho de um general republicano, porém inscrito junto com a irmã na lista de 1807 que continha “negros e outras pessoas de cor”, o futuro autor dos Três mosqueteiros não conseguiu beneficiar-se de nenhuma bolsa para admissão ao colégio.
Trata-se sem dúvida alguma de racismo, como atesta o testemunho do furioso negrófobo que foi o general Paul Thiébault, o qual, mesmo reconhecendo qualidades militares em seu antigo superior no exército da Itália, começa por contestar a legitimidade de seu posto. “O bravo general Dumas”, escreveu ele no momento
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em que Thiers reabilitava o ditador, “foi nomeado general em 1793 ̂ isto é, em meio à confusão e às aberrações de uma época terrível.” É claro que os direitos concedidos aos “homens de cor”, a supressão dos estímulos ao tráfico e sobretudo a abolição da escravatura figuram na cabeça da lista de “aberrações” e da “confusão” mencionadas. Assim, “quaisquer que fossem o zelo e a coragem desse pobre Dumas, ainda que pudesse ser- lhe conferido o título de primeiro soldado do mundo, não era talhado para ser general”. Em suma, ele não pertencia à raça dos senhores da qual Thiébault, que se acreditava nascido para ser barão do Império, pensava ser modelo. Essa incapacidade se baseia, é evidente, somente na cor da pele de Dumas, reflexo de uma maldição natural. E nessa lógica Thiébault justifica o racismo de Napoleão em relação ao ex-escravo nascido em Jére- mie (Haiti). De passagem, ele revela que esse racismo se inscreve num quadro segregacionista mais amplo: “Desde o Consulado”, observa ele em relação ao general, “sua cor fez o que sua pouca capacidade deveria ter feito.” Em outras palavras, se Dumas foi punido, como todos os seus semelhantes, por causa de “sua cor”, isso nada mais era do que a legítima reparação da aberração que fizera com que ele fosse nomeado general, quando não tinha sido feito para isso. A tentação é de perguntar, então, para que são feitos os “negros e outras pessoas de cor”? Adivinha-se facilmente, no entanto, qual
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seria a resposta de um Bonaparte, de quem Thiébault, no caso, era fiel porta-voz: evidentemente, são feitos para servir ao “homem branco”. Aliás, Thiébault, mostrando a que ponto é embaraçosa essa sua simpatia por aquele ser teoricamente inferior, conclui seu elogio de maneira absolutamente assustadora: “Ele é o único homem de cor a quem perdoei o tom de sua pele.” Napoleão, por seu turno, foi ainda mais longe do que Thiébault, e não a perdoou. Nem a Dumas, nem aos demais.
A ironia da fortuna faria com que o duce deposto terminasse seus dias ao largo da costa da África, que tanto o tinha obcecado, numa ilha inglesa, parcialmente povoada por escravos melanodermas. Embora, para decepção de certos admiradores, ele os tivesse “mais na cabeça do que na cama”, sabe-se o quanto era romântica para o grande homem a idéia do amor físico. “Eu tenho minha época, como os cães”, confessava ele com sua delicadeza natural, confirmando assim o que dizia Joséphine. “Uma mulher!... Uma mulher!... Depressa!... Tragam-me uma mulher!...”, gania o modelo do Fiihrer quando entrava em sua “época”. E bastava que a transeunte se comportasse bem, porque “a coisa é feita rapidamente”.3 Em Santa Helena, não havia dificuldade em mandar vir escravas africanas para esse tipo de trabalho. Na urgência, Napoleão esquecia suas repug-
3Ver Jean Savant, Les Amours de Napoléon, Paris, 1956.
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nâncias. A encantadora Esther Vessey, “mulata” de 16 anos, filha de uma escrava e de um velho sargento inglês, empregada como babá a serviço da família Montho- lon, no sítio de Longwood, era quem proporcionava ao negrófobo a oportunidade de satisfazer ao mesmo tempo sua libido “sazonal” e também, sem dúvida, o fascínio neurótico do colono impotente pela dominação sexual de sua cativa, simultaneamente desejada e desprezada. Já se disse que graças a seu papel de intermediária nesse assunto Albine de Montholon também serviu aos mesmos objetivos.
No outono de 1816, Esther ficou grávida. Em 28 de outubro, Napoleão ficou sabendo e deu ordem de procurá-la. Para evitar o escândalo, Marchand sugeriu casar-se com a jovem. O dono de Longwood ordenou, então, com elegância perfeitamente imperial: “Quero que Esther saia imediatamente desta casa e que não permaneça sob o mesmo teto!”, sob o pretexto de que “vão aproveitar e publicar nos jornais que fui eu quem engravidou Esther e em seguida mandei que meu camareiro se casasse com ela, segundo o costume dos grandes senhores”. Acrescentou que “essa será a oportunidade de fazer as contas com a imperatriz”. No dia seguinte, 29 de outubro de 1816, portanto. Esther deixou Longwood. Toda a ilha já sabia que ela estava grávida daquele que se intitulava grande senhor e que não se envergonhava em fazer estranhas comparações com
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a imperatriz, a qual era “realmente virgem”, porque “o sangue foi visto”. Mas no que se refere a Esther, “há muito tempo a canoa já furou”, afirmou Sua Majestade em linguagem de caserna. Em 1817 Esther deu à luz um
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filho, James-Octave, apelidado Jimmy. Foi reconhecido pelo camareiro Marchand, que sabia dobrar-se a todos os caprichos de seu amo, sem reclamar. “Os camareiros não têm heróis!”, dizia Bonaparte. Ele sabia muito bem do que estava falando. “Os serviços que ele me prestou foram de amigo”, reconheceria ele em seu testamento, a respeito de Marchand.
Obviamente, é preciso ser muito desnaturado para lançar à rua um filho e a mãe desse filho, por receio do que possa ser comentado. Mas o herói que restabeleceu a escravatura não tinha escrúpulos. Embora os prestimosos supressores de manchas negras repetissem incessantemente que Esther só poderia ser amante de Marchand e que, portanto, Jimmy só poderia ser filho deste último, a semelhança entre o menino e o general Vendemiário* era evidente o bastante para que diversas pessoas notassem. Hoje em dia, os mais audaciosos, tendo de admitir que Marchand não era o único que poderia ter-se interessado por Esther, sentem-se obrigados a explicar que
* 0 autor alude ao incidente de 13 de vendemiário (13 de outubro de 179fr), quando Napoleão, ainda militar obscuro, mandou disparar a artilharia sobre a multidão revoltada em Paris. (N. do T.)
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ela tinha “pele clara”, certamente a fim de tomar a história mais verossímil a seus próprios olhos.
Depois de ter sido expulsa de Longwood, a jovem continuou a gozar de salvo-conduto para regressar regularmente. Assim, em seu diário, afirma Gogaud, em setembro de 1817: “Esther está aqui desde ontem!” Em abril de 1821 ela daria à luz um segundo filho, desta vez declarado de pai desconhecido, que morreu pouco depois. Jimmy ganhou em 1837 um pequeno pecúlio deixado por Marchand e manteve sempre eloquente silêncio quando Napoleão Bonaparte era mencionado em sua presença. Dois anos depois da morte da mãe ele partiu discretamente de Santa Helena para a Cidade do Cabo, na África do Sul. Ali seus traços desaparecem, em setembro de 1840, um mês antes da chegada do navio La Belle Poule que vinha buscar as cinzas do ditador a fim de transportá-las para os Invalides. Em vão Marchand procuraria encontrar o filho de cor de Napoleão, desaparecido em um país no qual os colonos em breve inventariam a horrível palavra apartheid.
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IV
Na primavera de 1800, Toussaint Louverture derrotou seu adversário Rigaud, após um ano de guerra civil. Era agora o homem forte da América. Apesar de seu racismo, Napoleão seria perfeitamente capaz de ajeitar-se com um “negro”, o qual poderia até mesmo tomar-se auxiliar precioso, caso aceitasse, por uma questão de realismo político, o princípio do restabelecimento da escravatura. Pois o que contava era a escravatura. A partir de sua chegada ao poder, toda a política seguida por Bonaparte se dirigia não apenas a seu restabelecimento, mas também a seu desenvolvimento. A preparação da paz com a Inglaterra nada mais representou do que uma das condições para esse objetivo. O mesmo se pode dizer da aliança com Madri, que permitiu à França recuperar a Louisiana e a parte espanhola de Saint-Domingue. Bonaparte evitou problemas com os norte-americanos. Começou a sonhar com um grande império negreiro que poderia incluir até mesmo a Flórida.
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Mas as coisas se complicaram quando Toussaint Lou- verture, a fim de festejar dignamente o aniversário da abolição, tomou posse da parte espanhola, proclamando a liberdade geral e demonstrando assim que não transigiria jamais com seus princípios. O que fez Napoleão decidir-se por empregar a força não foi a Constituição anunciada naquele mesmo dia pelo haitiano, e sim a incompatibilidade entre Toussaint e a escravidão. Decididamente, aquele “africano dourado” era irrecuperável. Dali em diante, para abatê-lo, Napoleão não teria outro recurso senão a força. Por esse motivo, desde a primavera de 1801, riscando secretamente o general Louverture das listas do exército francês, ele passou a concentrar seus esforços na preparação de uma expedição. Semelhante iniciativa pressupunha o acordo britânico, ao menos implícito. O melhor seria um tratado de paz em boa e devida forma. Em 17 de setembro de 1801, Napoleão escreveu a Talleyrand: “O equinócio está próximo, todos os dias são preciosos [,..].É preciso portanto que os acordos preliminares sejam assinados a partir dos primeiros dez dias de vendemiário ou que as negociações sejam rompidas.” Antes mesmo da assinatura de um tratado definitivo, a conclusão dos “acordos preliminares” se tornou possível. O ditador contava com a troca dos textos desses preliminares a fim de enviar emissários, tranquilizadores ou ameaçadores, conforme o caso, às colónias onde a escravatura seria
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mantida ou restabelecida. Para Saint-Domingue estava prevista uma força de proporções consideráveis. Conforme ele fez questão de explicar: “Todas essas expedições devem ser feitas secretamente, como se estivéssemos em tempo de guerra.” As relações com os britânicos se complicaram mais do que era previsto, e Napoleão, perfeitamente informado do risco de uma epidemia de febre amarela que chegaria a destruir uma parte de seu exército, pediu a Talleyrand, em 13 de novembro de 1801, que informasse os ingleses da impossibilidade de “retardar por mais um dia a expedição a Saint-Domingue, porque depois do mês germinal o clima é impraticável para os europeus”. Deixando que os britânicos escolhessem entre a prosperidade militar da França e a sua prosperidade económica, agitou cinicamente o espectro do black power e acentuou que um acordo com Toussaint Louverture seria taticamente conveniente para a França: “Se eu tiver de adiar a expedição para o próximo ano”, disse ele, “serei obrigado a reconhecer Toussaint, renunciar a Saint-Domingue e ali instalar franceses negros, o que sem dúvida não representaria um ganho financeiro mas seria muito vantajoso para a República do ponto de vista do poderio militar”, porque “o reconhecimento da liberdade dos negros em Saint-Domingue e sua legitimação pelo governo proporcionariam, em todos os sentidos, um ponto de apoio para a República no Novo Mundo”. É claro
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que, “neste caso, o cetro do Novo Mundo [...] mais cedo ou mais tarde [cairia] nas mãos dos negros”. Estes, no entanto, seriam negros franceses, “e o prejuízo resultante para a Inglaterra [seria] incalculável, enquanto o abalo causado à França por um império de negros se confundiria com o abalo da Revolução”. Bonaparte estava dissimulando seus pensamentos. Ainda não se recompusera completamente do “abalo” provocado pela liberdade dos escravos. E ao evocar, a médio prazo, um risco de instabilidade para os britânicos, que poderiam ver suas próprias colónias — especialmente a Jamaica — ameaçadas por uma perspectiva de revolta, o que o amedrontava era a situação já conhecida pela Franca em 179L ainda que fingisse transcender os argumentos mercantis, invocando o interesse superior da “civilização branca”. “Na decisão que tomei de aniquilar o governo dos negros em Saint-Domingue”, explicou ele, “fui menos guiado por considerações de comércio e dè finanças do que pela necessidade de asfixiar em todas as partes do mundo qualquer espécie de germe de inquietação e distúrbios.” Ao contrário, a intervenção em Saint-Domingue e o restabelecimento da escravatura, embora servissem aos interesses económicos franceses, seriam, para a Inglaterra, a garantia de uma paz durável e da manutenção da prosperidade naquela zona: “Não posso deixar de dizer”, confessava Napoleão, “que Saint-Domingue reconquistada pelos brancos seria durante muitos anos um ponto fraco que necessitaria do apoio da paz e da metrópole.”
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O plano militar do Primeiro Cônsul já estava decidido desde janeiro de 1801, mas era preciso que fosse acompanhado por um quadro jurídico que tinha de ser imposto a uma França ainda mais comprometida com os princípios da Revolução do que com as exigências do comércio. Bonaparte se explicou veladamente em uma carta a Cambacères na qual declarava haver prometido aos representantes de interesses comerciais de Bordeaux (os negreiros, se preferirem) visitá-los “quando suas relações [estiverem] em plena atividade nas Antilhas eA
Ile de France”, isto é, quando o tráfico — e portanto a escravatura — fosse restabelecido.
Tão logo as esquadras zarparam para Saint-Domin- gue, Napoleão mandou preparar secretamente outra expedição, de três mil homens, encarregada de restaurar a antiga ordem de coisas em Guadalupe. Comandada pelo general Richepance, essa força zarparia em março de 1802. Assim como Leclérc, Richepance tinha ordem verbal do Primeiro Cônsul para restabelecer a escravidão por todos os meios, antes da existência dos textos legais que não deixariam de ser adotados na metrópole.
A base jurídica para a empresa seria um decreto do Legislativo, de 30 de floreai do Ano X (20 de maio de 1802), sancionado por Bonaparte com o título de “Lei relativa ao tráfico de negros e ao regime das colónias”. Esse texto, certamente criminoso, merece ser integralmente citado: “Em nome do povo francês, Bonaparte, Primeiro Cônsul, proclama como lei da República o se-
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guinte decreto, exarado pelo Corpo legislativo em 30 de floreai Ano X, conforme a proposta feita pelo Governo em 27 do referido mês [17 de maio de 1802] e comunicada ao Tribunato no mesmo dia.” Seguem-se os quatro artigos adotados pelo Corpo legislativo sob forma de decreto. “Artigo l2: Nas colónias restituídas à França em cumprimento do tratado de Amiens, de 6 de germinal Ano X J27 de março de 1802], a escravatura será mantida em conformidade com as leis e regulamentos anteriores a 1789. Artigo 2: O mesmo ocorrerá nas demais colónias francesas além do Cabo da Boa Esperança. Artigo 3: O tráfico de negros e sua importação pelas mencionadas colónias serão feitos em conformidade com as leis e regulamentos existentes antes da citada época de 1789. Artigo 4: Não obstante todas as leis anteriores, o regime das colónias fica submetido, durante dez anos, aos regulamentos que serão elaborados pelo Governo.”
Esse projeto monstruoso conseguiu mesmo assim obter um quarto de votos negativos no Corpo legislativo, e um terço no Tribunato, ao qual competia apresentá-lo ao Legislativo. E muito, num contexto de ditadura. Deve-se dizer que quatro meses antes, a pretexto de uma renovação prevista pela Constituição (mas que jamais deveria ser nominal, e sim segundo o princípio de sorteio), Napoleão se desfez sem pejo da oposição parlamentar provocando a exclusão de seus adversários mais ardentes: vinte no Tribunato e sessenta no Corpo legislativo. “Peço-vos zelar para que fique-
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mos livres exatamente dos vinte e dos sessenta maus membros que existem nas autoridades constituídas”, escreveu ele a Cambacères em 18 de janeiro de 1802. Seis dias depois, acrescentou, a respeito do Tribunato: “O mínimo que o Senado pode fazer é retirar os vinte membros dissidentes e colocar em seu lugar vinte homens bem-pensantes.” Como Cambacères era homem eficiente, “as instruções do Primeiro Cônsul foram seguidas literalmente”, observou ele em suas Memórias. “Todos os que criavam obstáculos foram afastados e substituídos por homens que, longe de se opor aos pro- jetos do Primeiro Cônsul, demonstraram vontade de apressar sua conclusão.” Sem essa depuração “dos que criavam obstáculos” e o concurso de “homens bem- pensantes”, o restabelecimento legislativo da escravatura, iniciativa pessoal do déspota e pedra angular de seu sistema, estava arriscado a não ser aprovado.
O texto não se contenta, como se costuma dizer, em manter a escravatura nas colónias devolvidas à França pela Grã-Bretanha. Não é possível manter por meio de uma lei algo que não é legal, e simplesmente se sustenta num fato (a invasão num quadro de guerra). De direito, desde 4 de fevereiro de 1794 todos os habitantes das colónias francesas eram livres e cidadãos, sem distinção de cor. Pouco importava que os ingleses não tivessem colocado em vigor na Martinica a lei votada pela Convenção nacional; essa lei se aplicava a partir da restituição daquela ilha à França por meio de um tratado. Era
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preciso portanto revogá-la, devido ao receio de que os escravos pudessem legalmente valer-se dela. Ao negociar a paz com os ingleses, estando perfeitamente consciente de que a Martinica não havia deixado de ser francesa, e que por conseguinte as leis francesas deveriam ser aplicadas nesse território, Bonaparte declarou ao ministro dos Negócios Estrangeiros em julho de 1801: “Como a Martinica não foi conquistada pelas armas inglesas, e sim colocada pelos habitantes em mãos inglesas até que a França dispusesse de um governo, ela não pode ser considerada possessão inglesa.”
Foi precisamente por esse motivo que um mês depois do tratado de paz Napoleão se apressou em fazer adotar esse texto que anulava a lei de 16 de pluvioso, não apenas nas colónias restituídas à França e nas demais “além do Cabo da Boa Esperança”, mas também nas outras colónias às quais se aplica o artigo 4: o regime das colónias ficava submetido dali em diante aos regulamentos do Governo, “não obstante todas as leis anteriores”.
Já se afirmou que Bonaparte havia apresentado um primeiro projeto que mantinha o status quo: escravatura onde não tivesse sido abolida e liberdade nos demais territórios. Assim, lê-se no artigo “escravidão” do Diction- naire du Consulat et de l'Empire que Napoleão “havia imaginado uma solução mista (escravidão na Martinica, liberdade para os homens de cor em Saint-Domingue e em Guadalupe)”. Qual é a verdade? E certo que em 27 de abril de 1802 Napoleão havia enviado um primeiro
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projeto ao Segundo Cônsul, Cambacères, que ele deveria “discutir com os cidadãos Regnier, Dupuy e Roderer”, membros do Conselho de Estado, a fim de tomar uma decisão que o Senado transformaria em senatus-consulto, o que exigiria uma maioria de dois terços. Nesse primeiro projeto, Napoleão distinguia entre as colónias onde a abolição da escravatura havia sido efetivamente aplicada e as demais. Onde tinha havido abolição, isto é, na Guiana, em Guadalupe e em Saint-Domingue, um capitão geral seria encarregado de preparar uma lista “dos indivíduos que gozavam de liberdade antes de 26 de pluvioso do ano II” e dos “indivíduos negros que acorreram à defesa do território da República contra seus inimigos ou que, de outra maneira, tenham servido ao Estado”. Todas as pessoas que figurassem nessa lista seriam declaradas livres. Porém a liberdade seria apenas formal para “aqueles, dentre eles, que não sejam proprietários, não tenham arte ou ofício capaz de assegurar sua subsistência”. Os mais destituídos — isto é, quase todos— “estarão sujeitos aos regulamentos policiais que lhes designarão proprietários a fim de que os ajudem nos trabalhos de agricultura, determinarão seus salários e aplicarão os dispositivos necessários para impedir a vagabundagem e a insubordinação”. Assim, portanto, os que não fossem proprietários nem artesãos seriam, com efeito, colocados sob regime de trabalhos forçados e, caso recusassem, “os insubordinados e vagabundos obstinados serão, nos casos determinados por esses regulamentos,
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retirados da lista e privados dos benefícios consequentes”. Napoleão chegou a pensar, para esses teimosos, na deportação para outras colónias, aquelas “onde as leis sobre a alforria não tenham sido publicadas”. Excetuan- do-se, portanto, os antigos libertados e os que gozassem da estima do Primeiro Cônsul, “todos os indivíduos negros não incluídos na lista mencionada no artigo l2 ficam sujeitos às leis e regulamentos que, em 1789, compunham o Código negro das colónias”. Evidentemente, o comércio triangular seria restabelecido “de conformidade com as leis e regulamentos sobre o tráfico que estavam em vigor em 1789”. Isso significa que, segundo esse projeto, a escravidão seria restaurada — de fato ou de direito — salvo para um punhado de “indivíduos negros” proprietários ou artesãos que tivessem sido beneficiados pela lei de 16 de pluvioso e fossem especialmente apreciados pelo ditador. Pode-se imaginar por quê: por haverem ajudado a restabelecer a escravidão de outros. Estamos portanto muito longe, nessa primeira versão, da “liberdade para os homens de cor em Saint-Domingue ou em Guadaiupe”, como no entanto afirma o autor do artigo “escravidão” do Dictionnaire du Consulat et de VEmpire. Ele evita dizer que o restabelecimento do tráfico estava previsto para todas as colónias, quer nelas tivesse sido abolida a escravidão ou não.
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Lacrosse desembarcou em^Guadalupe na primavera de 1801 com o título de capitão geral. Seu ajudante-de- ordens era o comandante Louis Delgrès, “homem de cor”. As ordens secretas eram preparar com rapidez o restabelecimento da escravatura. Era coisa que Delgrès nem sequer poderia imaginar. Confiava em Lacrosse, que na época da Revolução o havia nomeado tenente. Mas os tempos mudam, e os homens também.
Para Lacrosse, a dificuldade era que mais da metade do exército em Guadalupe, que contava com 4 mil homens, era composto de “negros” e mais um quarto era de “homens de cor”, inclusive um terço dos oficiais. Ele tomou medidas imediatas para “clarear” o exército, tanto na tropa quanto na oficialidade. Outras iniciativas confirmavam essa orientação reacionária: chamou de volta certos emigrados, levantou embargos sobre fazendas, anulou expropriações e mandou prender e deportar suspeitos a pretexto de conspiração.
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Em 5 de agosto de 1801, por ocasião da morte do general Antoine Béthencourt, que acabava de chegar para assumir o comando das tropas em Guadalupe, o capitão geral se desmascarou definitivamente ao recusar-se a designar como sucessor, como no entanto era o sentido das regras militares, o coronel Magloire Pélage, comandante do distrito de Grande-Terre (Pointe à Pitre) e oficial mais antigo na ilha, do grau mais elevado. Segundo as instruções do Primeiro Cônsul, a cor da pele de Pélage tomava evidentemente impossível sua nomeação para o comando das forças armadas de uma colónia onde os “negros” e os “homens de cor” iriam ser desarmados e a escravatura em breve seria restabelecida. Pélage, preocupado com sua carreira e incapaz de desagradar ao chefe “branco”, aceita humildemente. Lacrosse, atribuindo-se o título de comandante-em- chefe, imprudentemente mandou convocar uma mobilização geral. A população se inquietou. Depois da inquietação, em breve sobreveio a cólera. Lacrosse decretou estado de sítio em Basse Terre e demitiu o governo municipal. Os recrutas “negros” protestaram e foram submetidos a conselho de guerra. Alguns foram deportados. E quando o bravo Joseph Lagarde, apelidado “Josie”, por haver gritado orgulhosamente a seu carcereiro, do fundo de sua cela: “Não vamos ficar aqui para sempre!”, “não houve ninguém em Guadalupe que não sentisse, por assim dizer, estar sendo fuzilado junto
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com ele”.1 Lacrosse revelou sem demora o projeto de mandar deportar, se necessário, todos os homens de cor da colónia. Em outubro de 1801, surgiu uma denúncia de um complô de oficiais. Alguns deles, especialmente Joseph Ignace, abertamente favoráveis à secessão, provocaram uma rebelião do exército e deram ordem de prender todos os “brancos”. Pélage conseguiu apaziguar os ânimos e reuniu os notáveis em Pointe-à-Pitre a fim de formar um conselho provisório. Lacrosse reúne então tropas a fim de marchar contra eles. Finalmente, Ignace o aprisionou, mas na noite de 6 de novembro de 1801Pélage conseguiu embarcá-lo a bordo de um navio dinamarquês, evitando sua morte certa. Delgrès, ajudante de ordens de Lacrosse, preferiu ficar em Guada- lupe. Sabia estar cometendo um ato de rebeldia, pois nada mais restava senão uma prova de força capaz de dobrar o ditador.
Em vez de regressar à França, Lacrosse fez o navio desviar-se para Dominique, onde foi acolhido pelos britânicos, que acabavam de assinar as preliminares da paz, enquanto o conselho provisório de Pélage pedia a Bonaparte, numa carta ao mesmo tempo lisonjeira e ridícula, que enviasse novo emissário. Acreditando assegurar para si próprio o reconhecimento futuro como “herói dos guadalupenses”, “astro benfeitor que acalen-
^uguste Lacour, Histoire de la Guadeloupe (História de Guadalupe),
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ta” e “cujas virtudes estão gravadas em todos os corações”, Pélage tomou em pessoa medidas “raciais”, proibindo aos “negros” certas posições.
Ao ser informado dos acontecimentos, no início de janeiro de 1802, Napoleão naturalmente preferiu o en- frentamento e encarregou o general Nicolas Gobert, homem seguro e conhecedor do terreno, pois era créole de Guadalupe e havia sido designado por Marie-Galante como suplente nos Estados Gerais, de preparar secretamente uma expedição cuja direção o déspota tentou confiar a Jean-Baptiste Bemadotte, comandante do exército do Oeste, por intermédio de seu irmão Joseph Bonaparte.
Bemadotte e Joseph haviam se casado com duas irmãs da família Clary, e Désirée, mulher de Bemadotte, havia sido anteriormente noiva de Napoleão. Aliás, Bemadotte era amigo de Victor Moreau, um dos adversários de Bonaparte. Afastar Bemadotte enfraqueceria Moreau. O Primeiro Cônsul se abriu com Joseph: “Desejo que ele diga se lhe convém ir a Guadalupe na qualidade de capitão geral. Essa ilha está prosperando e sua cultura está em grande atividade; mas Lacrosse, que se indispôs com os habitantes e somente tem consigo quinhentos brancos, foi expulso de lá e um mulato se colocou na chefia da colónia. Na ocasião ainda ignoravam que havia sido celebrada a paz. Mandarei zarpar três vasos de guerra, quatro fragatas e três mil homens expe
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rientes de infantaria, a fim de desarmar os negros e restabelecer para sempre a tranquilidade. É uma missão importante e agradável sob todos os pontos de vista, pois nas circunstâncias atuais poderá proporcionar glória e permitir a prestação de um grande serviço à República, devolvendo a ordem à colónia para sempre.” Percebe-se com espanto até que ponto a visão do Primeiro Cônsul era “racial”. Para ele, a ordem das coisas havia sido subvertida pelo simples fato de que um “mulato” assumira o poder e que os “negros” estivessem armados. Restabelecer a ordem e a tranquilidade era uma forma oblíqua de denominar o retorno à escravidão “para sempre”. A questão era inconfessável, e Napoleão fez questão de assinalar: “Convém que guardeis segredo sobre tudo isto.” Bemardotte não se deixou enganar e recusou liminarmente essa missão tão desonrosa. Richepance, que era de Lorena, afinal de contas valente soldado, não teve os mesmos escrúpulos e recebeu oficialmente ordem de desarmar os “negros” e a missão secreta de restabelecer a escravatura. Em caso de resistência, Richepance recebeu carta branca, como Leclerc, e poderia chegar a uma transfusão completa de 93 mil “negros e homens de cor”. Nessa hipótese, seria necessário “desfazer-se” da população rebelde e substituí-la por escravos recém-chegados. Além da deportação e da venda dos “bandidos” nas ilhas vizinhas, previa-se friamente o genocídio. Na verdade, desde a
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assinatura dos acordos preliminares, os navios negreiros de Nantes, Bordeaux e demais portos já haviam zarpado em direção à costa da África. Tinham todo o interesse em trabalhar em tempo integral. Para eles, a solução final seria o melhor de tudo e garantiria alguns anos de prosperidade.
Richepance havia servido no exército do Reno sob as ordens de Moreau e num ataque audacioso obtivera a vitória de Hohenlinden, em 3 de dezembro de 1800. Esse êxito valeu a Moreau a glória, mas Richepance ganhou o rancor de Bonaparte. Moreau era, com efeito, um dos mais ferozes opositores do Primeiro Cônsul. A expedição a Guadalupe, como a dirigida a Saint-Domingue, serviu também para afastar os soldados do exército do Reno, considerados republicanos e certamente pouco favoráveis a uma guinada monárquica do regime consular.
Além de Gobert, Richepance tinha como adjuntos homens dispostos a tudo para obter uma promoção: os insignificantes Pierre Dumoutier, proprietário de escravos na Martinica, Xavier de Ménard e Charles Sériziat. François-Joseph Bouvet, o almirante designado para transportar o exército, era natural de Lorient, porto negreiro, e havia servido inicialmente num navio da Companhia das índias. Naturalmente não teria escrúpulos em “bater nos negros”.
No dia 6 de maio, ao meio-dia, Richepance surgiu na enseada de Pointe-à-Pitre, após haver comandado
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postos de combate. Bouvet organizou seu esquadrão num dispositivo de combate em linha. Os artilheiros das fragatas La Pensée, La Vohntaire, La Consolante, La Didon e La Romaine, encarregadas de forçar a passagem, colocaram-se em seus postos e os soldados se prepararam para desembarcar. Se Pélage tivesse reservado para Richepance a mesma acolhida que Toussaint e Chris- tophe proporcionaram a Leclerc no Cap Haitien, não há dúvida de que após o verão de 1802 Guadalupe não seria mais francesa. Mas, se Joseph Ignace era da têmpera de Christophe, Pélage realmente nada tinha a ver com Toussaint. Preferindo a sabujice e a submissão, despachou uma embaixada cujos membros, diante da desconfiança de Richepance, chegaram a propor que se convertessem em reféns. Os barcos fundearam e as tropas começaram o desembarque. Do cais, viam-se os soldados levando os fuzis para os escaleres.
Em vez de deixar que os escravistas chegassem à moda haitiana, exclamando “Amigos, não atirem!” e em seguida, com uma única descarga, deixar duzentos mortos estendidos na praia, para mostrar como os “negros” são idiotas e submissos, Pélage, lambe-botas ridículo, talvez já convencido desde Dominique por espiões de Lacrosse, espera o enviado de Bonaparte na praça, com uma guarda de honra e banda de música. Apesar de seu zelo, o puxa-saco foi humilhado publicamente. A guarda de honra foi dispersada, e Richepance, que se
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aproximava a bordo de uma chalupa e viu aquela alegre multidão negra a esperá-lo no cais, deu bruscamente meia-volta para ir refugiar-se em sua fragata. Tanta submissão lhe parecia inverossímil e portanto suspeita. Somente desembarcaria depois das tropas. Todos os soldados “negros” encontrados pelos homens da expedição foram desarmados, despidos, espancados e içados para bordo das fragatas, onde foram acorrentados. Alguns conseguiram escapar com suas armas.
Mas Ignace se retirou com sua unidade enquanto o lamentável Pélage, apesar de todas as provas que dera sobre sua disposição de colaborar, foi colocado em prisão domiciliar vigiada.
A fim de controlar Guadalupe, Richepance precisava dominar Basse-Terre, comandada pelo coronel Louis Delgrès. Avisado da atitude das tropas de desembarque em Pointe-à-Pitre, Delgrès não poderia ter ilusões. Em nome da “humanidade” e do “direito natural”, tomou o partido da “resistência à opressão”. Liberdade ou morte! Em troca da honra de resistir à escravatura, escolheu a morte e deu aos europeus colocados sob suas ordens a possibilidade de escapar dela. Delgrès mandou imprimir uma declaração da qual foi signatário. Esse admirável testamento filosófico foi preparado por Mon- nereau, jovem créole “branco” da Martinica. Delgrès e Monnereau, perfeitamente conscientes de que “existem homens [...] que não querem ver negros, ou ho
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mens cujas origens são dessa cor, a não ser nos grilhões da escravidão”, dirigiram-se à posteridade. Somente se enganaram em um aspecto. Não ousando crer que Napoleão fosse o instigador do restabelecimento da escravidão, preferiram atribuir essa falta a subordinados insignificantes cujo poder estava em seu afastamento da autoridade da qual ele emanava, quando, na verdade, apenas executavam ao pé da letra as ordens do Primeiro Cônsul. Esse engano pueril ainda é compartilhado hoje em dia por não poucos franceses que preferem acusar os subalternos do Consulado em vez de seu chefe. Para os políticos, é também um compromisso cômodo: é mais fácil mudar o nome da rua Richepance, como fez o prefeito de Paris em 2001, do que o da rua Bonaparte. Napoleão sempre pensou em seu legado. Nunca ordenou o inconfessável por escrito. Tudo foi sempre implícito. Hitler não esqueceria a lição.
Quando os navios negreiros apareceram diante de Basse-Terre, em 10 de maio de 1802, foram recebidos com uma descarga de todas as peças de artilharia do forte Saint-Charles e de todas as baterias da costa. A frota, a bordo da qual Magloire Pélage não teve vergonha de embarcar como ajudante-de-ordens de Gobert, foi obrigada a continuar a viagem e fundear além de Basse-Terre, entre Bailiff e Vieux-Habitants.
Por ordem de Richepance, Pélage escreveu uma carta de intimidação a seu antigo companheiro, na espe
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rança de fazê-lo depor as armas. Em vão. As tropas desembarcaram apesar de uma feroz resistência em Bailiff, onde os antigos escravos, homens e mulheres que haviam se tomado cidadãos franceses graças à revolta de seus camaradas haitianos, atiravam contra o vencedor de Hohenlinden cantando a Marselhesa. Entre esses resistentes havia camponeses que haviam descido dos sítios de La Coulisse e de Saint-Robert, onde cinquenta anos antes o Cavaleiro de São Jorge havia dado seus primeiros passos.
Durante três dias, as tropas de Delgrès perderam terreno, porém resistiam. Em 12 de maio, Richepance foi obrigado a mandar imprimir uma declaração prometendo que a liberdade seria mantida e que os insurgen- tes seriam perdoados caso depusessem as armas. Teve, porém, a falta de tato de mencionar o retomo de La- crosse. Dois dias depois, uma nova proclamação, igualmente mentirosa como a primeira, informava que Lacrosse fora efetivamente substituído por Richepance nas funções de capitão geral. Como Delgrès não reagisse, armou-se o cerco ao forte Saint-Charles. Richepance mandou buscar artilheiros de morteiros e obuses junto aos britânicos. Os sitiados tentaram em vão diversas saídas.
Tendo sofrido severas perdas, o emissário de Napoleão começou a temer que a situação piorasse, quando Pélage, indo ao cúmulo de sua felonia, sugeriu-lhe
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rearmar seiscentos homens das “tropas negras” que ainda estavam acorrentados nos navios. Esse reforço fez a situação mudar.
Enquanto esperava, recolhido em sua cidadela, Del- grès tocava estoicamente o violino sob as bombas que acabaram por destruir toda a sua artilharia. Após uma semana, conseguiu evacuar o forte Saint-Charles com Ignace, que, içando a bandeira vermelha, partiu para Pointe-à-Pitre com a intenção de levantar as oficinas de artesãos da Grande-Terre. Ignace foi perseguido por Gobert, o qual, para carregar suas bagagens, lançara uma ordem de requisição de “160 negros, homens ou mulheres”. Entrincheirado no forte de Baimbridge, Jo- seph Ignace foi vencido por Gobert com a ajuda do traidor Pélage, após gloriosa resistência, em 25 de maio de 1802. Deu um tiro na cabeça a fim de não cair vivo nas mãos dos escravistas.
Delgrès, que se retirara para o sopé do vulcão La Soufrière, acima do sítio Danglemont (município de Saint-Claude), esperou durante três dias o auxílio que Ignace prometera mandar-lhe. Mas nada aparece. Temendo o pior, mandou dinamitar a casa.
Em 28 de maio, decidido a acabar com a batalha, lançou-se ao ataque daquela última posição. A luta foi direta, corpo a corpo. Delgrès, ferido no joelho, instalara-se num sofá do salão da casa com seu ajudante-de- ordens. Esperou calmamente a chegada dos negreiros,
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rodeado por trezentos homens fiéis que não o haviam abandonado. Mesmo arriscando-se a morrer, os resistentes resolveram não se render e matar o maior número possível de escravistas. Um rastilho de pólvora partia do sofá e ia até as cargas de explosivos. Dois braseiros acesos foram colocados diante de Delgrès e seu ajudante-de-ordens. Quando fossem avisados da chegada dos atacantes por um sinal convencionado, bastaria virar as brasas com um pontapé para que a pólvora se incendiasse.
De fato, quando a primeira coluna de assalto entrou no terraço, toda a área desapareceu numa formidável deflagração.
Além da morte de um herói da liberdade a que a República francesa jamais dedicou a homenagem que merecia — pelo menos mencionando seu nome em todos os livros de história —, esse incidente final marcou, durante 46 anos, o retomo de Guadalupe a uma época que todos acreditavam ter passado para sempre e cujas sequelas ainda não estão apagadas.
Em uma carta a seu ministro da Marinha, Decrès, Bonaparte confessa haver dado a Richepance a ordem “de estabelecer a escravatura em Guadalupe, como era o caso na Martinica, tendo o cuidado de manter o maior sigilo sobre esta medida”, e deixando-lhe “a escolha do momento de publicá-la”. Mas como se a data tivesse sido combinada previamente, no momento em que um decre
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to consular restabelecia, em 16 de julho de 1802, a escravidão em Guadalupe, no dia seguinte, a milhares de quilómetros de distância, Richepance lançou um decreto que restabelecia os “verdadeiros princípios”, invocando, como certos “filósofos” do século XXI, uma “conspiração geral [...] contra os brancos”. A escravatura voltava a vigorar, porém, em conformidade com as instruções, sem que a palavra jamais fosse pronunciada. Os 90 mil “novos franceses”, emancipados em 1794, tomaram-se novamente escravos, e os filhos que tinham podido ter ao longo desses oito anos e que tinham nascido livres sofreram a mesma sorte. Quanto aos “negros e “pessoas de cor” que já eram livres no momento da abolição, perderam a qualidade de cidadãos franceses que a lei de 28 de março de 1792, rubricada por Luís XVI, lhes havia concedido. O suplício do chicote foi novamente oficializado sob a nova denominação de “disciplina corretiva”. Em 29 de julho, coroando a obra de restauração que lhe havia sido confiada, Richepance anulou a lista de emigrados guadalupenses. Em 4 de agosto, reinstalou Lacrosse nas funções de capitão geral. E uma semana depois que Richepance foi levado pela febre amarela, Lescalier, prefeito da ilha, colocou em vigor um inverossímil decreto relativo à situação das pessoas “de cor”. Dali em diante, não apenas os 90 mil cidadãos franceses de Guadalupe— libertados pelo decreto de 16 de pluvioso— voltavam a ser escravos, mas os três mil “negros” e “pessoas de cor”
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que se acreditavam livres passaram a ser obrigados a provar imediatamente o que, na prática, era impossível em muitos casos. Quando da ascensão de Luís XVI ao trono em 1774, o governador e o intendente da Martinica bem que haviam tentado tomar uma medida desse género. Mas o conselho superior de Guadalupe, que no entanto era composto essencialmente de colonos, havia se oposto com tanta emoção que recebeu o apoio de Versalhes. Com Napoleão, e com a ajuda do racismo, foi possível ir muito mais longe do que o Antigo Regime. O registro civil dos escravos seria feito à parte, a fim de apagar todas as lembranças dos antigos cidadãos franceses transformados em vulgares bestas de carga pelos caprichos de um pequeno aventureiro racista. Dali em diante ver-se-iam crianças vendidas sem as mães, o que o artigo 47 do Código negro proibia da maneira mais formal. Assim, em Basse-Terre, em 19 de dezembro deJjSOó, a pequena Rose, “de cerca de seis anos de idade”, filha de Praxelle, “fugitiva há muito tempo”, foi oferecida publicamente como “abandonada” pelo diretor dos Domínios “a quem desse mais no último lance”, mediante a aplicação do sistema infernal estabelecido pelo tirano.
Após a explosão do sítio Danglemont, alguns companheiros de Delgrès encontraram asilo na ilha de Saint-Barthélémy, de onde procuraram desesperadamente preparar um desembarque, enquanto cerca de
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seiscentos resistentes agrupados em torno dos oficiais Palerme e Fourne se refugiavam nos bosques das montanhas próximas a Basse-Terre, firmemente decididos a prosseguir a luta. Em breve iriam juntar-se a eles os novos fugitivos que o restabelecimento da escravatura inevitavelmente produziria. Os membros da resistência guadalupense tentaram audaciosas operações, às vezes vestindo o uniforme do exército indígena que haviam criado.
Embora a busca já tivesse sido organizada por uma milícia de quatrocentos homens com métodos expeditos, os Caçadores dos bosques, cujo comando e guarnição foram confiados a colonos que voltavam da emigração, a resistência continuaria por muito tempo na clandestinidade, muito além da detenção de Fourne, último companheiro de Louis Delgrès, em novembro de 1805.
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Quando Napoleão recebeu, no dia 14 de outubro de 1801^0 coronel Vincent, emissário do governador “negro” de Saint-Domingue, encarregado de informá-lo da aprovação de uma Constituição que transformava o Haiti em Estado associado e conferia a Toussaint poder vitalício sobre a ilha já reunificada, a decisão de enviar uma expedição já estava tomada vários meses antes, apesar da reserva de alguns espíritos lúcidos, como o de Fou- ché. Aliás, em Brest, as tropas já haviam embarcado e a conclusão das preliminares da paz com a Inglaterra tornava possível sua partida, tão logo Londres desse o sinal verde.
Napoleão estudou meticulosamente cada detalhe da operação. Pediu a Berthier que fizesse um resumo dos assentamentos pessoais “de todos os oficiais de artilharia e de engenharia que tenham estado em Saint-Domingue, de todos os oficiais de estado-maior que tenham servido com o general Hédouville e dos lugares onde estejam
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atualmente e de juntar no departamento de cartografia todos os planos das praças-fortes e fortalezas de Saint- Domingue”. A referência a Hédouville revela o preconceito do Primeiro Cônsul. O general-conde Joseph d’Hédouville, ex-pajem da rainha, notório escravista, havia de fato sido enviado a Toussaint Louverture pelos “reacionários” do Diretório antes do expurgo antimo- narquista de frutidor (4 de setembro de 1797). Ridicularizado, embarcara de volta à França em outubro de1798 sem haver conseguido um mínimo de ascendência sobre o ex-escravo. Para Bonaparte, isso equivalia ao início da rebelião.
Mesmo assim, ele não excluiu a possibilidade de que essa expedição, ainda que destinada a restabelecer a escravidão, pudesse apoiar-se em Toussaint. No mês de março de 1801 foi preparada uma carta que o nomeava capitão geral da colónia. Porém, a partir do momento em que Louverture demonstrou, por ocasião do sétimo aniversário da data de 16 de pluvioso, sua feroz hostilidade a qualquer medida contrária à liberdade geral, a questão passou a ser desembaraçar-se dele e até mesmo suprimi-lo fisicamente.
A fim de conduzir a ação, Napoleão pensou inicialmente no general François Delaborde e acabou nomeando um membro de seu círculo mais íntimo, seu cunhado Victor-Emmanuel Leclerc. Com essa designação, além de utilizar um homem dedicado de corpo e
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alma e disposto a tudo, a escolha permitia ainda resolver questões familiares complicadas. Napoleão desejava casar seu irmão Louis com Hortense, filha de Joséphine. As más línguas diziam que Napoleão teria engravidado sua própria enteada. Percebendo dessa forma que a esterilidade de Joséphine não lhe era imputável, ele estaria procurando uma solução por meio da qual adotasse um possível “herdeiro”. Louis deve ter tido certas dúvidas. Mais tarde teria declarado que, se essa adoção ocorresse, ele “se jogar[ia] no Sena”. Seja como for, o importante é que na época Napoleão sonhava em subir ao trono e fundar uma dinastia. Mas Pauline, sua irmã mais moça, com o apoio de Lucien e da mãe Le- tizia, opôs-se categoricamente a esse casamento. Até aquele momento, o “herdeiro” era Dermide, filho de Pauline e — em princípio — de Leclerc. O próprio ditador havia escolhido aquele nome de batismo em homenagem a um bestseller da época, os Poemas de Ossian, de MacPherson. O pai foi informado simplesmente por meio de uma nota de estilo militar que demonstra bem o funcionamento daquela tribo: “Meu sobrinho vai se chamar Dermide!”
Pauline dominava Napoleão, porque muito certamente tinha relações incestuosas com ele, o que é testemunhado especialmente por uma carta na qual ela explica claramente o assunto a Talleyrand. Essa jovem livre não era adepta da discrição. Sua franqueza, suas
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travessuras, principalmente com o comediante Rape- nouille, cobriam de ridículo seu irmão, arrivista pouco respeitado. Ao receber ordem de acompanhar o marido, Pauline recusou categoricamente, utilizando todos os pretextos possíveis. Mas Napoleão usou a força. A jovem recalcitrante, acompanhada pelo filho de somente três anos de idade, foi praticamente raptada e levada sob escolta a Brest. Embora conhecesse perfeitamente os riscos que os membros da expedição poderiam correr, o autocrata não hesitou em arriscar deliberadamente a vida do sobrinho que já não tinha utilidade para ele e a de sua própria irmã, cujo desaparecimento físico ele vislumbrava sem pestanejar. “Estou muito contente com a conduta [de Pauline]”, escreveria ele mais tarde, cinicamente, ao saber que ela tinha a possibilidade de não regressar viva. “Ela não deve temer a morte, pois morreria gloriosamente com um exército e sendo útil a seu marido.”
Após haver redigido pessoalmente o cenário políti- co-militar da campanha de Saint-Domingue, Napoleão o explicou longamente em instruções por escrito. As ordens mais importantes, no entanto, foram recebidas verbalmente por Leclerc: não apenas deveria restabelecer a escravidão, custasse o que custasse, mas também seria preciso exterminar os cidadãos “negros”, os quais, como Napoleão corretamente acreditava, não poderiam ser feitos novamente escravos após oito anos de li
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berdade sem que fosse necessário mobilizar considerável número de soldados para supervisioná-los, coisa impossível em curto prazo, principalmente por causa da febre amarela que atacava seletivamente os recém-che- gados. Seria portanto melhor abater aquela “manada” contaminada pelo vírus da liberdade e substituí-la por novas cabeças sãs importadas da África e prontas a serem domesticadas como convinha.
O plano do restabelecimento da escravidão no Haiti exigia assim o massacre de boa parte da população. Algumas centenas de milhares de mortos seriam em breve substituídos por quinhentos mil africanos. Leclerc, convencido por Napoleão de que encontraria uma “boa ocasião para ficar rico”, aceitou essas ordens dementes em 24 de outubro de 1801.
O Primeiro Cônsul havia planejado apoiar-se em alguns oficiais “de cor” que se encontravam na França. Em sua mente, isso apresentava diversas vantagens: seu conhecimento do terreno seria útil e eles poderiam suscitar uma divisão capaz de terminar, como anteriormente durante a rivalidade entre Toussaint e Rigaud, em uma luta fratricida dos “negros” do norte contra os “amarelos” do sul da ilha. Era também uma maneira de fazê-los deixar o território da metrópole, contribuindo assim para um início de purificação “racial”. Alexandre Dumas escreveu em suas Memórias que seu pai, o general, havia recebido a proposta de comandar a expedi-
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ção, e recusou-a. Isso é extremamente duvidoso. Na- poleão nunca pediria a um ex-escravo, e especialmente àquele, que fosse restabelecer a escravidão. Não poderia ordenar ao general que fosse matar sua própria mãe (que ainda vivia em Jérémie) nem suas irmãs. No entanto, é possível que Dumas tenha sido consultado para a preparação dos planos da expedição, e até que lhe tenha sido proposto participar como subalterno, o que sem dúvida ele terá recusado. Ele não teria motivo para tomar parte, em sua ilha natal, em uma empresa colonialista como a que não desejou prosseguir no Egito. O certo é que o general viajou a Paris nesse período de preparativos e que foi informado da iminente partida da tropa. É possível que tenha tido contato com oficiais da expedição, especialmente Nicolas Duhamel, antigo capitão da Legião dos Americanos e do Sul, em cuja casa Saint-George morreu. Também pode ser que haja se avistado com Pauline e que lhe tenha entregado uma procuração para sua mãe, Cessette, feita em 8 de novembro de 1801 (cinco dias antes da partida da jovem) por um tabelião de Saint-Germain-em-Laye: isso prova que ele ignorava os projetos escravistas de Napoleão. Este último havia preparado um plano de deportação de todos os oficiais “de cor” da expedição, principalmente Chanlatte, Pétion, Rigaud e Villate. Por esse motivo ele mandou que todos esses embarcassem na Uha de Aix (que servia de quartel para as “tropas ne-
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gras”) no mesmo navio, La Vertu, cujo comandante, François Montalan, havia recebido ordem de manter-se na retaguarda do comboio. Caso Toussaint fosse dominado, La Vertu deveria imediatamente dar meia-volta, tomar o rumo de Madagascar e lá depositar os indesejáveis. O general Dumas talvez tenha ouvido falar desse projeto, o que explicaria sua recusa em embarcar.
Tão logo a frota zarpou de Brest, da ilha de Aix e de Lorient, em meados de dezembro, Napoleão, rapidamente informado pelo telégrafo Chappe, mandou publicar os editais do casamento de Louis e Hortense.
A travessia foi feita sem dificuldade. Os 54 navios da expedição, que transportavam 21 mil homens, reuniram-se a leste da ilha, ao largo do cabo Samana, onde foram avistados, certamente pelo próprio Toussaint, no final do mês de janeiro de 1802. O velho general não era tolo e declarou a seus íntimos que Napoleão chegara para “aniquilar” o Haiti.
Enquanto uma divisão se dirigia a Porto Príncipe, o grosso da frota surgia diante do Cabo. Havia passagens na entrada da enseada que era preciso conhecer a fim de não naufragar nos rochedos. Mau sinal: as balizas que permitiam a manobra sem piloto haviam sido retiradas. Ora, o almirante Villaret de Joyeuse, responsável pela parte naval, não havia previsto essa eventualidade, na certeza de que a acolhida não seria hostil. Napoleão, que nada sabia de marinha, esquecera esse detalhe es-
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sencial. Imenso erro, sem dúvida. Após uma tentativa de conversações, graças ao “bravo negro” Télémaque, delinquente da categoria de Pélage que exercia as funções de prefeito do Cabo, Leclerc desembarcou em 16 de pluvioso, data comemorativa do oitavo aniversário da abolição da escravatura. Mas como Christophe havia incendiado a cidade na noite anterior, o chefe da expedição nada mais conquistou senão cinzas. Mesmo assim ainda tentou parlamentar utilizando os filhos de Toussaint que estudavam em Paris e que haviam sido trazidos a fim de levar ao pai uma carta melosa do Primeiro Cônsul. Mas isso de nada adiantou. A guerra tinha começado. Uma “guerra das arábias” sob o sol escaldante dos trópicos, na selva, em terreno particularmente acidentado, propício às emboscadas.
Embora os principais lugares-tenentes de Leclerc, Do- natien de Rochambeau, Jean Boudet e François Périchou de Kerverseau tivessem assumido facilmente o controle de Fort-Dauphin, Porto Príncipe, Les Cayes e toda a parte oriental da ilha, em Port-de-Paix Amable Humbert encontrou forte resistência do general Maurepas, um dos mais valorosos subordinados de Toussaint.
Como a metade dos homens de que dispunha em breve se juntasse a Leclerc, o chefe da resistência concentrou suas forças na região de Gonaíves. Enquanto as tropas comandadas por Dessalines se entrincheiravam no forte de Crête-à-Pierrot, posição que o general hai-
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tiano conseguiria defender em inferioridade numérica de um contra dez durante três semanas, infligindo uma perda de dois mil homens aos escravistas, Toussaint subia para o norte com a intenção de armar os camponeses e juntar-se a Christophe, que permanecera próximo ao Cabo.
Após um mês de campanha e violentos combates, a situação continuava confusa. Leclerc perdera um terço de seu exército. Outro terço estava no hospital, já tomado pelo terrível “vomito negro”. Visivelmente sem compreender o que estava acontecendo, pois Napoleão não o havia informado do risco de epidemia, não teve outro recurso senão iniciar negociações com os rebeldes, que, por seu lado, tinham todo o interesse em ganhar tempo sem se arriscar a um combate frontal e sangrento. Toussaint, fino estrategista da guerra revolucionária, conduzia as operações de forma genial. No princípio do mês de
_maio_acabou aderindo aos franceses, junto com Christophe e Dessalines, mas sem capitular. Estranha paz. Os generais indígenas conservaram seus postos, suas tropas armadas e seu prestígio. Leclerc, colhido nas malhas do sutil Toussaint, declarou uma anistia geral. Ei-lo agora no comando de um exército composto majoritariamente de “negros” e de soldados “de cor” potencialmente hostis, enquanto a febre amarela, como havia sido advertido Bonaparte, começava a fazer “estragos assustadores”. Sem dúvida, com um intervalo de três ou quatro sema-
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nas, Napoleão fora informado da evolução da situação, não somente pelos barcos mais rápidos da frota que faziam o vai-e-vem para transmitir despachos e transportar mensageiros encarregados de relatar de viva voz o que não podia ser escrito, mas também por toda uma rede de espionagem. O ditador, portanto, seguia de perto os acontecimentos, esperando impacientemente um próximo restabelecimento da escravidão na grande colónia e uma transferência da população. Como o tráfico havia sido legalizado, os navios negreiros estavam a caminho. Ele deu o aviso. “O comércio está ativado e se dirige a Saint-Domingue”, preveniu febrilmente o pequeno negreiro. “Protejam-no por todos os meios!”
Tampouco Napoleão deixou de recordar a Leclerc que deveria seguir suas ordens à risca. Tanto as disposições escritas quanto as injunções secretas: “Siga exata- mente suas instruções”, ordenou o Primeiro Cônsul a seu cunhado em 16 de março. “Seja firme! Reprima toda sorte de banditismo!”
Enquanto aguardava o momento de firmeza e repressão quando poderia “desfazer-se” de Toussaint, de Dessalines e de Christophe, Leclerc enriquecia, como havia sido instruído. Os espiões do futuro Luís XVIII foram informados de que ele “por sua parte, trabalhava para aumentar [sua fortuna]: leva Saint-Domingue à ruína com os impostos. Tão logo os habitantes fabricam um pouco de açúcar, o produto é confiscado por seus
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agentes. O proprietário fica com um recibo. O açúcar é transportado para o Cabo, onde é vendido para atender às necessidades da colónia. O general-em-chefe, seu estado-maior e seus ajudantes-de-ordens se servem à vontade do dinheiro auferido, e como os proprietários somente seriam pagos após a evacuação, pode-se imaginar quanto iria sobrar para eles”. Naturalmente, Leclerc não se esquecera. Em 7 de maio de 1802, escreveu ao cunhado: “Há um meio de me deixar arranjado para sempre. Concede-me a ilha de Gonave, a título de recompensa. Ela me renderá 200 mil. francos durante oito anos com o produto que retirarei das florestas.” Leclerc certamente não esperou autorização de Napoleão. No dia seguinte a essa carta, remeteu trezentos mil francos a seu irmão e encomendou obras de decoração de seu castelo em Montgobert. Por seu turno, uma amiga de Pauline, Mme de Saint-Maur, relata que “Leclerc não negligenciava seus interesses. Diversos navios, carregados de riquezas, aguardavam apenas suas ordens para zarpar, quando Bonaparte, que tinha espiões por todos os lados e, por conhecer o estado precário de saúde do cunhado, previa seu fim próximo, deu instruções para que essa fortuna não fosse herdada pela viúva, e sim que lhe fosse enviada diretamente após a morte do general”.
Enquanto Leclerc “se arranjava”, Toussaint se retirou para sua casa. Sem ter qualquer ilusão, aguardava o
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momento favorável para retomar a ofensiva, desta vez armando todos os camponeses. Mas em 7 de junho, aplicando as ordens recebidas, Leclerc mandou prendê- lo à traição. Toussaint foi convidado a almoçar pelo odioso general Jean-Baptiste Brunet. Durante a refeição, seis vigorosos granadeiros e carabineiros, disfarçados de empregados domésticos que serviam a mesa, atiraram-se contra o idoso haitiano e o jogaram por terra como a um animal feroz. Mas esse grosseiro rapto de nada serviu. “Arrancando-me de meu país”, declarou sabiamente Toussaint a bordo do barco que o levava para a França, “nada mais fizeram do que derrubar em Saint-Domingue a árvore da liberdade para os negros. Essa árvore depressa renascerá, porque suas raízes são profundas e vigorosas.” Aliás, o próprio Leclerc concordava: “Raptar Toussaint não resolverá tudo. Há aqui dois mil chefes que seria preciso capturar!” O rapto do haitiano somente poderia ter sido eficaz caso ele fosse um ditador detestado, como certos “historiadores” de hoje gostariam de espalhar. Mas Toussaint encarnava uma nação inteira. Desse ponto de vista, raptá-lo fora um erro e somente poderia deflagrar os primeiros sinais de uma insurreição geral.
Quando Leclerc iniciou o desarmamento das tropas coloniais, ocorreram rebeliões em diversas partes da ilha, fazendo surgir novos chefes indígenas. A fim de dividir seus adversários, o comandante da expedição tratou de
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confiar a repressão aos generais “negros” que haviam se juntado a ele. Mas a legalização do tráfico e o estabelecimento de facto da escravidão em Guadalupe não tardaram a ser conhecidos pela população. Além disso, os jornais de Paris circulavam no Cabo e os negreiros dos portos franceses faziam arranjos para colocar naquela colónia, onde potencialmente a demanda seria maior, a carga humana trazida pelos navios que corriam as costas africanas. Leclerc se queixou: “Eu havia pedido, cidadão cônsul, que nada fosse feito que pudesse fazê-los temer por sua liberdade até que eu estivesse preparado e estivesse próximo desse momento. De repente chegou aqui a lei que autoriza o tráfico nas colónias e cartas comerciais de Nantes e do Havre que perguntam se é possível mandar negros para cá! E mais do que isso, o general Richepance acaba de lançar um decreto para o restabelecimento da escravidão em Guadalupe!”
Com efeito, aquelas notícias inquietantes provocaram novos distúrbios. As tropas coloniais iam aos poucos se rebelando, os oficiais “negros” e “de cor” tinham motivos para temer a deportação. Mas embora Leclerc advertisse a Napoleão que já “seus planos sobre as colónias são perfeitamente conhecidos”, o ditador, recentemente autoproclamado Primeiro Cônsul vitalício, não quis saber de nada, cego que estava por seu racismo. Numa revisão da anistia concedida por Leclerc, ele dirigiu uma nota ao ministro da Marinha a fim de limitá-la
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às pessoas e não a seu património. Resolveu, assim, que “todos os bens dos negros e das pessoas de cor que tomaram armas e a quem foi concedida anistia segundo o artigo precedente serão incorporados à propriedade pública”. Essa provocação nada mais fez do que reforçar a revolta dos indígenas vítimas do confisco, enquanto os oficiais da expedição iam morrendo uns após outros.
Compreendendo a extensão do desastre e começando a ter problemas de saúde, Leclerc solicitou repatriação. Como já havia enriquecido, passou a demonstrar repugnância, invocando sua consciência. “Por ocasião de minha partida”, escreveu ele a Napoleão, “a colónia estará pronta a receber o regime que quereis por bem conferir-lhe, mas caberá a meu sucessor dar o passo final, se estiverdes de acordo. Não farei nada contrário ao que disse aqui!” O general-em-chefe explicou-se melhor numa carta cifrada dirigida ao ministro da Marinha: “Não penseis em restabelecer a escravidão aqui ainda por algum tempo! Creio poder fazer tudo o que seja necessário para que meu sucessor nada mais precise do que executar o decreto do governo, mas depois das inúmeras proclamações minhas para assegurar a liberdade aos negros, não desejo entrar em contradição comigo mesmo. Assegurai, porém, ao Primeiro Cônsul que meu sucessor encontrará tudo preparado.”
Em meados de outubro, iâ enfermo, Leclerc nada mais controlava. Refugiara-se no Cabo. Dessalines e
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Christophe, que haviam se juntado a ele na primavera e cuja deportação Napoleão aguardava em vão, haviam passado para o lado dos insurretos. Os oficiais “de cor” que faziam parte da expedição os acompanharam. Desesperado, Leclerc mandou três emissários a Paris para convencer seu obstinado cunhado da gravidade da situação. Napoleão, um tanto abalado pelas informações, escreveu-lhe em 27 de novembro: “Tenho te acompanhado com viva solicitude e estou muito preocupado pelos males que sofres. Confesso que são mais fortes do que eu havia calculado.”
Longe de admitir seu erro, o “calculista” se espantava com o que no entanto era previsível: a tenaz resistência dos haitianos. “O que ocorreu este ano”, disse ele, “é realmente extraordinário!” Ainda não vira nada. Enquanto aguardava, no entanto, continuou aferrado a suas opiniões escravistas, convencido de que Leclerc iria restituir “a tranquilidade a essa bela e vasta colónia, que é objeto do interesse e das esperanças de todo o nosso comércio”.
Leclerc não leria essa carta. Havia morrido quase um mês antes, maldizendo o louco furioso que o havia enviado àquele inferno. Segundo as instruções de Bonaparte, foi substituído por Rochambeau, que imediatamente pediu autorização para restabelecer a escravidão, mas não conseguiria reconquistar de forma durável as posições perdidas por seu antecessor, apesar dos vinte mil homens
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que Napoleão lhe enviaria como reforços entre fevereiroe junho de 1803.
i . 1Dessalines conseguira ser reconhecido na qualidade
de general-em- chefe. Adotando novo emblema, afirmou sua clara vontade de obter a independência. Até aquele momento, o pavilhão tricolor sempre fora considerado pelos novos franceses de Saint-Domingue como símbolo da união dos “negros”(o azul), das “pessoas de cor” (o vermelho) e dos “brancos”. Era portanto possível uma reconciliação com a França, por meio da garantia da manutenção da liberdade. O novo estandarte adotado por Dessalines, somente azul e vermelho, deixava claro que dali em diante estavam rompidos todos os laços com a metrópole.
Em maio de 1803, o reinicio das hostilidades entre a França e a Grã-Bretanha precipitaria a vitória dos antigos escravos. Em breve, o bloqueio da Marinha britânica ao Cabo e a Porto Príncipe impossibilitou o envio de reforços. Em agosto, a bandeira azul e vermelha foi içada em Jérémie, cidade natal do general Dumas. Em outubro, Dessalines entrava triunfalmente em Porto Príncipe. E em 16 de novembro, trazendo consigo 27 mil homens, bem armados mas quase nus, o ex-escravo surgiu no Cabo, onde Rochambeau se entrincheirara. O caminho para a cidade estava protegido por dois fortes considerados inexpugnáveis e cujo fogo cruzado transformava em suicídio qualquer tentativa de avan-
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ço. Diante de um desses fortes, em Vertières, iria travar- se uma das maiores batalhas da história, em 18 de novembro de 1803. A particularidade dessa batalha é que oficialmente, na França, ela jamais existiu. Nenhum livro dedicado a Napoleão a menciona. E com razão: sua existência é incompatível com a tese da febre amarela, que, para os propagandistas de Napoleão, seria a única causa da derrota de Saint-Domingue.
Mas a batalha começou ao raiar do dia. E que batalha! Compreendendo que a questão da guerra de independência iria resolver-se ao pé da colina de Vertières, Dessalines decidira tomar o forte, qualquer que fosse o preço a pagar. Estava pronto a sacrificar, se necessário, seus 27 mil homens. Rochambeau não havia previsto n uma batalha tão encarniçada. Durante dez horas os ataques se sucederam, até que as posições dos defensores ficaram enfraquecidas. No fim da tarde, as tropas escravistas, desconcertadas pela sanha e bravura dos atacantes, acabaram abandonando o forte, abrindo dessa forma o caminho para o Cabo. Dessalines teve 1.500 mortos e 2 mil feridos, mas conseguiu uma brilhante vitória. Rochambeau foi obrigado a escolher entre aguardar o ataque final contra a cidade, arriscando-se assim a ver inutilmente massacrados os poucos milhares de homens que lhe restavam, ou render-se. Como Dessalines recusava qualquer armistício, Rochambeau, em nome de Napoleão, dirigiu no dia seguinte à derrota
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uma carta a seu vencedor pedindo-lhe que aceitasse sua capitulação incondicional, reconhecendo dessa forma o malogro da expedição a Saint-Domingue e da tentativa de restabelecimento da escravidão e também a perda da colónia. Dessalines concedeu dez dias a Ro- chambeau para embarcar com suas armas e bagagens. Respeitando esse acordo, o exército indígena somente entrou no Cabo em 29 de novembro de 1803. Rocham- beau e os destroços de seu exército voltaram para bordo dos quatro navios que lhes restavam, levando até mesmo os arquivos de registro, que Dessalines o obrigou a restituir.
Passaram-se horas. Os barcos não se moviam. Ro- chambeau tentava negociar com os britânicos que o esperavam na saída do porto com 24 veleiros. Seu plano era procurar chegar à parte oriental da ilha onde existia ainda um bolsão de escravistas irredutíveis comandados pelo general Jean-Louis Ferrand. Mas Dessalines mandou apontar a artilharia do forte Picolet contra a esquadra, intimando-a a levantar âncoras sob pena de alvejá-la, e Rochambeau teve de assinar uma segunda capitulação, desta vez com a frota inglesa que cercava o Cabo, à qual ele aceitou render-se entregando todos os seus navios.
Finalmente preparada para zarpar, a esquadra francesa tentou lamentavelmente escapar dos britânicos, apesar dos compromissos assumidos. Capturados, os re
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manescentes da expedição foram levados à Jamaica onde seriam encarcerados a bordo de navios privados de mastros e transformados em prisões flutuantes. A afronta foi tão grave para Napoleão que ele deixou Rochambeau apodrecer na prisão durante oito anos antes de aceitar uma troca.
Não somente fora perdida a mais bela colónia do mundo, após quase um século de domínio francês, e não apenas pela primeira vez na história da humanidade uma luta de escravos, iniciada quase com as mãos nuas em 1791, havia levado à independência de um povo; mas, sim, uma grande nação colonialista e escravista experimentara sua primeira derrota. Porém, como a batalha de Vertières era negada pela historiografia francesa, nenhuma lição foi aproveitada para o futuro. Um século e meio depois, a cegueira racista provocaria outras capitulações: em Dien Biên Phu e na Argélia. A derrota de Vertières foi somente a derrota de uma certa França: a que se opunha, e que às vezes continua a se opor, aos princípios da Revolução. A revolução haitiana, a preço de seu sangue, tornou esses princípios universais. Porém, depois de Vertières, quem ousaria argumentar, a não ser Napoleão e seus admiradores, que todos os homens, ainda que de pele negra, não nascem e permanecem livres e iguais em seus direitos?
Também o exército napoleônico conheceu ali sua primeira grande derrota, e a mais humilhante de todas.
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Napoleão foi vencido por “negros”. Dos 60 mil homens enviados a Saint-Domingue pelo tirano racista, somente algumas centenas regressaram, após oito anos de cativeiro, e em que estado!
Os generais do exército indígena, reunidos em Go- naíves em 1Q de janeiro de 1804, juraram “renunciar à França para sempre e morrer antes que aceitar viver sob seu domínio”.
Os sequazes racistas de Napoleão nunca perdoariam ao Haiti essa vexatória afronta. Durante duzentos anos, o memorável desastre seria ocultado. Ainda em nossos dias, pretensos “historiadores” evocam a febre amarela e o acaso. Na França, nenhum livro diz a verdade, que no entanto é bastante simples: Bonaparte queria restabelecer a escravidão e uma nação inteira se rebelou contra ele, esmagando o exército da vergonha.
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VII
O restabelecimento da escravidão em Guadalupe e a tentativa de seu restabelecimento no Haiti foram acompanhados por atos de inaudita barbárie, perpetrados segundo as instruções de Napoleão ou com sua anuência. Na época, existem poucos equivalentes de semelhante selvageria na história da França, e talvez na história em geral.
Em Guadalupe, durante as três semanas de resistência, Richepance e seu cúmplice Gobert não fizeram prisioneiros. Mandaram fuzilar homens, mulheres e crianças por onde passavam. Em 25 de maio de 1802, durante a tomada do forte de Baimbridge onde Ignace estava entrincheirado, executaram imediatamente cerca de setecentos patriotas. Dos 250 que se renderam, cem foram fuzilados na praça da Vitória e 150 outros na praia de Fouillole. Após o sacrifício de Delgrès e de seus companheiros, em 28 de maio, Richepance colocou em ação o plano de extermínio decidido pelo Primeiro Cônsul. Uma comissão militar, teoricamente presidida
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por Gobert porém de fato pelo coronel Depottre, foi encarregada de conferir aos assassinatos uma aparência de legalidade, pois a única punição atribuída foi a pena capital. Os condenados foram enforcados. Eram tão numerosos que Richepance, com receio de uma epidemia, teve de desistir da idéia de mandar exibir os cadáveres no Mome-Constantin, a uma légua do cadafalso, como inicialmente pensava fazer. Após a morte de Richepance e o retomo de Lacrosse, a comissão militar, que funcionou durante cinco meses a todo vapor, foi substituída por dois tribunais especiais: um em Basse- Terre e o outro em Pointe-à-Pitre. Foram presididos, respectivamente, pelos comandantes de batalhão Iré- née Delacroix e Martin Pillet. Por ter quebrado a perna, a companheira de Delgrès, Marthe-Rose, apelidada To- to, não tinha podido chegar à casa em Danglemont. Depois de passar pelo tribunal de Delacroix, foi levada de maca ao suplício. Durante a Comuna e a Ocupação esse tipo de espetáculo seria novamente visto.
Aplicando uma técnica que seria retomada durante a guerra da Argélia, as tropas escravistas fizeram o recenseamento de todos os camponeses ausentes das fazendas, e quaisquer que fossem os motivos da ausência, declararam-nos “fellaghas”.* Em cada município foram
*Designação dada aos membros da resistência contra a autoridade francesa para obter a independência de seus países durante a época colonial na Tunísia e na Argélia. (N. do T)
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organizados esquadrões da morte para perseguir os resistentes. Assim como durante as batidas para capturar criaturas nocivas, havia uma recompensa em dinheiro para cada cabeça de “negro” trazida pelos milicianos. Os membros da resistência eram imediatamente fuzilados ou enforcados.
Como a febre amarela dizimava o corpo expedicionário, os enfermeiros “negros” ou “de cor” do hospital de Pointe-à-Pitre chegaram a ser acusados de responsabilidade pela doença. Sob acusação de “envenenamento”, foram todos mortos.
A ferocidade da repressão ocasionou nova revolta em Sainte-Anne, na noite de 6 a 7 de outubro de 1802, rapidamente esmagada. Foi a oportunidade para que Lacrosse organizasse no local um terceiro tribunal especial presidido pelo comandante de batalhão Louis Ar- nauld, créole da Martinica, auxiliado pelo impiedoso comandante Danthouars. A questão já não era saber se os prisioneiros seriam condenados, nem o castigo a ser aplicado, mas o tipo de suplício utilizado para matá-los. Em 29 de outubro de 1802, Lacrosse explicou tudo a Amauld. O modo de execução escolhido “deve dar aos mal-intencionados o mais terrível exemplo. Hás de pensar como eu, Cidadão, que não sendo o suplício da forca suficiente para expiar o crime desses assassinos que a lei condenou à pena de morte, devem eles ser esquartejados vivos para expirar na roda [...]. As pri-
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sões de Pointe-à-Pitre e de Moule já estão superlotadas; é preciso esvaziá-las o mais depressa possível”.
Amauld, portanto, as “esvaziou” às pressas. Pela forca, pelo esquartejamento, pelo estrangulamento e pela fogueira. Inventou-se até mesmo outra forma de matar cuja crueldade causa perplexidade. O paciente era introduzido numa estreita gaiola de ferro e colocado a cavaleiro sobre uma lâmina afiada, que cortava como uma navalha. Diante dele, uma garrafa de água e um pão, fora de seu alcance. Os pés repousavam sobre estribos. Durante o tempo que lhe era possível, o condenado se mantinha suspenso. Ficava amarrado de tal maneira que somente poderia cair sobre a lâmina, o que não deixava de acontecer quando, após algumas horas de privação de alimento e de sono, as pernas tetani- zadas acabavam por ceder. O primeiro corte não era fatal. O normal era que o prisioneiro se levantasse diversas vezes até ser cortado em dois. Esse instrumento atroz era destinado a ocasionar até quarenta e oito horas de tormentos.
Mas o comandante de batalhão Martin Pillet não tinha paciência para esperar. A fim de encontrar culpados e acabar rapidamente com eles, percorria as fazendas durante a noite com seus milicianos para fazer a chamada dos escravos. Os que tivessem os cabelos cortados eram executados na hora, porque, estranhamente, esse militar estava convencido de que a
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depilação era sinal evidente de rebelião. Os nomes dos ausentes eram anotados. Pelados ou não, eram fuzilados quando os soldados voltavam de madrugada.
Durante o ciclone sangrento que se abateu sobre Guadalupe, os carrascos, embriagados por seu zelo, acabaram esquecendo que a ordem de extermínio somente visava as pessoas de origem africana. Que importava! O jovem oficial Monnereau, ajudante-de-ordens “branco” de Delgrès, subiu ao cadafalso por recusar-se a renegar a proclamação de Basse-Terre, cuja co-autoria ele orgulhosamente reivindicava. Dois outros “brancos”, Barsse e Millet de La Girardière, foram igualmente condenados à pena capital por haver participado da rebelião de Saint-Claude.
Após um ano de genocídio ininterrupto, Bonaparte enviou novo representante, o general Augustin Ernouf, para finalmente promulgar oficialmente o Código negro em Guadalupe, em 14 de maio de 1803. Ernouf, porém, percebeu que os fugitivos continuavam a resistir. Na véspera da proclamação do restabelecimento da escravatura, lançou uma proposta de anistia, recebida apenas com desprezo. Em 3 de setembro aceitou uma sugestão sanguinária do comissário de governo em Basse-Terre: “A medida que propondes, cidadão comissário, de mandar queimar, em presença dos operários, os bandidos que recusaram entregar-se à anistia que eu lhes havia oferecido e que seriam presos, é excelente!
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Em consequência, eu vos autorizo a mandar executar pelo guardião da prisão aqueles que caiam em vossas mãos.” Dois meses depois, Emouf recomendou por escrito ao comandante dos Caçadores que praticassem o holocausto sem julgamento prévio: “Dou-vos formalmente ordem de nada remeter ao tribunal especial, e sim de mandar queimar imediatamente os culpados que forem presos.”
No Haiti, assim como em Guadalupe, as tropas da expedição se abstiveram de fazer prisioneiros: “Logo que caem em nosso poder, nós os fuzilamos imediatamente”, notou em seu Camet d’étapes (Caderno de notas de deslocamentos) o sargento Philippe Beaudoin. Essas práticas jamais seriam desmentidas. Assim, na noite de 2 a 3 de janeiro de 1803, Beaudoin atacou o forte de Port-de-Paix. “Nós os capturamos em menos de meia hora”, recorda ele, “e passamos pelo fio de espada cerca de seiscentos homens no forte.” Seiscentos “negros” a menos! Simples rotina.
A tortura era moeda corrente. As violações também, acredita-se: “Há mulheres bonitas, e nada difíceis”, observa o mesmo suboficial. Foi, porém, a partir de setembro de 1802, vendo que o restabelecimento da escravatura era impossível, que Leclerc começou a contemplar seriamente a aplicação das instruções genoci- das que recebera. Começou por praticar uma repressão
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cuja violência se intensificou gradualmente. Napoleão era informado por correios regulares cujos detalhes sem dúvida foram minimizados, mas que dão uma idéia do ambiente reinante na colónia. No início do mês de julho, do castelo de Malmaison onde estava tranquilamente instalado, Napoleão, ainda sem saber que Toussaint se encontrava a caminho da França, exortou seu cunhado a ser ainda mais firme. “Conto que antes do fim de setembro”, disse ele, “tereis enviado para cá todos os generais negros; sem isso, não seria possível fazer nada, e uma imensa e bela colónia permaneceria para sempre sobre um vulcão e não inspiraria confiança nem aos capitalistas, nem aos colonos e nem ao comércio.” O Primeiro Cônsul tinha perfeita consciência das consequências de tais ordens. Confirmou por escrito a carta branca dada verbalmente alguns meses antes. “Compreendo perfeitamente”, acrescentou ele, “que será possível que isso ocasione alguma movimentação; mas tereis diante de vós toda a estação para reprimi-los. Quaisquer que sejam as consequências produzidas pelo envio dos generais negros à França, isso seria apenas um mal menor comparado com o prosseguimento da permanência deles em Saint-Domingue!” É difícil ser mais claro. Reconhecendo que a tarefa não era gloriosa, no entanto, ele consolava Leclerc: “A partir do momento em que os negros estejam desarmados e os principais generais sejam mandados para a França, tereis feito
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mais pelo comércio e pela civilização da Europa do que jamais foi feito nas campanhas mais brilhantes.” Em sua exaltação, Napoleão era capaz de dizer ou escrever mais do que o necessário. Com efeito, acabou por deixar-se entusiasmar: “Livre-nos desses africanos dourados, e não teremos mais nada a desejar!” Não se tratava mais de deportar ou de reformar os generais. Era preciso livrar-se deles. Hoje diríamos neutralizá-los. Pouco mais tarde, ainda em Malmaison, Bonaparte teve notícia da chegada de Toussaint. O ditador rejubilou-se, mas isso não era suficiente. Queria as cabeças de outros dois: “Aguardamos com impaciência a chegada de Christophe e Dessalines à França”, ordenou ele. “A chegada de Toussaint é uma honra para vós e motivo de tranquilidade e esperança para nosso comércio.”
No fim do mês de agosto a ilha de Tortue se revoltou. Leclerc mandou para lá um general “de cor”, Mar- tial Besse, com ordem de realizar uma repressão terrível, no sentido etimológico, isto é, que inspirasse terror. Mas Besse contentou-se em tentar acalmar os espíritos sem derramamento de sangue. Foi imediatamente punido por incapacidade. A primeira qualidade exigida a um oficial em serviço em Saint-Domingue era a crueldade. Todos aqueles que se sentissem incomodados pela “merda e sangue” deveriam ser rapidamente afastados. Leclerc informou Bonaparte: “O general Martial Besse, que eu havia mandado agir de forma terrível, entrou em
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entendimentos com os rebeldes. Envio-o de volta à França por incapacidade de ser utilizado no exército de Saint-Domingue.” Em 6 de agosto de 1802, com Besse já deportado, as coisas tomam outro rumo: “Dei exemplos terríveis”, explicou Leclerc, “e como somente me resta o terror, eu o utilizo. [...] Em Tortue, dentre 450 revoltosos, mandei enforcar sessenta.”
Três dias depois, Leclerc explicava de que maneira se servia dos generais “negros”, naturalmente sob controle dos oficiais “brancos”, para levar a efeito os piores castigos. Eles “conduzem os colonos. Ficam bem acompanhados. Têm ordens para que dêem exemplos terríveis e sempre os utilizo quando tenho alguma coisa terrível a fazer”. Dali em diante, o objetivo era claramente a exterminação. O sursis concedido aos prisioneiros que não fossem abatidos imediatamente era apenas destinado a fazê-los falar.
“Os rebeldes foram exterminados”, observou Leclerc com satisfação a respeito da sangrenta repressão feita pelo general Boyer em Gros-Mome. “Cinquenta prisioneiros foram enforcados.” Esses “prisioneiros” eram civis arrebanhados ao acaso após o massacre dos revoltosos.
Leclerc não escondia seu espanto diante do comportamento estóico das vítimas, que as tropas ceifavam sem distinção de idade ou de sexo. Sua coragem era atribuída a uma exaltação, e mesmo uma insensibilidade que seria própria dos africanos. “Os homens morrem
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com um fanatismo incrível, riem da morte”, constatou o general. “O mesmo acontece com as mulheres.”
No mês de setembro, Leclerc ordenou a Jean-Jac- ques Dessalines, chefe da quarta brigada colonial, que mandasse degolar trezentos prisioneiros. Será melhor que os “negros” se matem entre si. Leclerc esperava desacreditar seu aliado para que este pudesse por sua vez ser eliminado com mais facilidade: “Dessalines”, escreveu ele em 16 de setembro de 1802, ”é neste momento o carrasco dos negros. E por meio dele que mando executar todas as medidas odiosas. Vou mantê-lo vivo enquanto precisar dele.”
Em 17 de setembro, Leclerc mostra que nada esqueceu das ordens secretas que haviam sido dadas um ano antes e que não hesitaria em executá-las até o fim. “Terei de fazer uma guerra de extermínio”, resignava-se.
Em sua última carta, datada de 7 de outubro de 1802, Leclerc repetiu de maneira didática as instruções negrófobas que lhe haviam sido comunicadas nas Tulherias: “É preciso destruir todos os negros das montanhas, homens e mulheres, poupar somente as crianças abaixo de doze anos, destruir a metade dos que estão na planície e não deixar na colónia um só homem de cor que tenha estado no exército.” Belo programa, que pressupunha algumas centenas de milhares de mortes. Bonaparte o aprovou integralmente.
“Acreditai que reconheço vivamente os serviços que
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prestastes”, respondeu ele de Saint Cloud, “e vossa glória estará completamente consolidada quando, em consequência de vossa segunda campanha, tereis restituído a tranquilidade a essa bela e vasta colónia, que é objeto da preocupação e das esperanças de todo o nosso comércio!” Se é que fosse necessário, Leclerc tinha sinal verde, e a carnificina se intensificou. Em Saint-Marc, o general Pierre Quantin mandou executar centenas de “bandidos”. No dia seguinte, havia tantas pilhas de cadáveres que os habitantes não conseguiam abrir suas portas.
Da execução dos resistentes, Leclerc passou rapidamente ao genocídio propriamente dito: a “destruição” de todos os negros das montanhas e da metade dos da planície, como anunciara. Já não se tratava mais de matar inimigos, e sim de exterminar uma população simplesmente devido à cor de sua pele.
O capitão geral começou por livrar-se de uma parte de suas próprias tropas, em 16 de outubro de 1802. “A fim de que os negros não o atrapalhassem”, observa um cronista, “Leclerc mandou transportar um milhar deles para bordo de navios ancorados no porto; quando a batalha começou e ele se viu em perigo, deu ordem de afogá-los. Foram massacrados por marinheiros, que os atiraram ao mar.” Um oficial general do estado-maior jde Leclerc, Pamphile Lacroix, corroborou a cena cuja motivação “racial” não deixa dúvida. Mas tratou ainda de desculpar seu chefe e a lançar a culpa sobre os mari
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nheiros que teriam cedido a um momento de pânico. “No instante do ataque [...]”, explica o oficial, “o general Leclerc havia mandado conduzir a bordo dos navios na enseada destacamentos de meias-brigadas coloniais que haviam permanecido no Cabo, as quais, embora seis vezes mais numerosas do que as tropas européias, haviam se deixado desarmar por estas. As doenças haviam causado tantas baixas que diversos navios ancorados no porto tinham sido abandonados. As tripulações estavam de tal maneira debilitadas ou cheias de enfermos que se atemorizaram ao ver aqueles destacamentos negros, muito mais numerosos do que eles. Houve um grito de terror no momento em que os insurretos fizeram nossas tropas recuarem da parte mais elevada do Cabo. Abordo, acreditou-se que tudo estava perdido. Num primeiro movimento de terror, o instinto de conservação fez com que ressoasse na enseada um brado de desespero: ‘Vamos matar os que nos podem matar!’ Os direitos humanitários foram impiedosamente ultrajados. Na cruel alternativa de serem devorados pelos tigres, os marinheiros se transformaram em feras. As águas engoliram em um instante entre mil e mil e duzentos infelizes que uma sorte particularmente negativa havia isolado de seus camaradas. A guerra da cor da pele foi desde então, e por muito tempo, reiniciada em Saint-Domingue.”
Não é fácil concordar com essas justificativas — puramente formais, é verdade. Dificilmente se pode
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imaginar, com efeito, que tripulações muito inferiores numericamente, “debilitadas” e “com tantas baixas” pudessem “em um instante”e “num movimento de terror” dominar mil e duzentos homens, mesmo desarmados, lançando-os ao mar. Essa execução em massa pressupõe ordens e uma organização prévia que aliás não é negada. Lacroix nos diz, de fato, que desde o início da ofensiva dos rebeldes Leclerc havia mandado embarcar todas os soldados “de cor” de que dispunha. Na verdade, esses homens, espalhados pelos navios, estavam encerrados nos porões. Para matá-los, utilizava- se um método inédito: o gás. Tal como se costuma fazer com os troncos das videiras, os porões dos navios eram regularmente desinfetados por meio de mechas ardentes cuja combustão produzia dióxido de enxofre. A inalação de altas doses desse gás é mortal, o que tem a vantagem de matar os ratos. Mais tarde, da mesma forma, o Zyklon B seria utilizado como pesticida nos navios antes de servir para os campos de extermínio. O processo é especialmente cruel porque o dióxido de enxofre, ao se transformar em ácido sulfúrico em contato com a menor superfície úmida, ocasiona queimaduras atrozes num porão cheio de água.
Uma vez realizada a tarefa, os corpos inanimados foram levados de volta ao convés, e os marinheiros se livravam deles amarrando-lhes ao pescoço sacos cheios de areia. Uma operação dessa natureza não pode ser
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improvisada. Pode-se imaginar o tempo necessário para encher e trazer para bordo mais de mil sacos de areia e deixar arejar os mortíferos porões antes que fosse possível penetrar neles sem perigo.
Em 5 de novembro de 1802, três dias depois da morte de Leclerc, Christophe de Fréminville, na época jovem marinheiro de 17 anos, relata em suas Memórias a chegada ao Cabo: “No momento em que cruzávamos diante da bateria do forte Picolet, o sentinela interpelou um barco menor que passava. O capitão respondeu, com sotaque provençal bem forte: ‘Vamos deixar de molho um pouco de bacalhau!’ Que poderia significar essa estranha resposta? Em breve tivemos a horrível explicação.”
Na enseada, Fréminville notou a presença dos navios Le Duguay-Trouin, UHannibal e Le Swiftsure, das fragatas La Précieuse, Llnfatigable e La Poursuivante, além de algumas corvetas e barcos da marinha mercante. Ele nos afirma que os brancos “afogavam impiedosamente os negros, sem distinção de idade e de sexo”. Não se tratava mais de tropas coloniais, e sim de civis, pois Rochambeau, prosseguindo a operação iniciada por Leclerc e ordenada por Bonaparte, “havia concebido o absurdo e horrível projeto de aniquilar toda a população negra da ilha. Por esse motivo mandava matar, sem exceção, todos os negros, mesmo aqueles que de nenhuma maneira participavam da insurreição. As
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sim”, prossegue Fréminville, “ele mandou conduzir para a enseada, a bordo do navio Swiftsure, grande parte da guarnição negra do forte Dauphin que havia permanecido fiel à França e que havia sido levada de volta ao Cabo, depois da evacuação daquele forte, pelo major- general Pamphile Lacroix”. Desta vez, o testemunho deste último compromete o comandante-em-chefe da expedição e, portanto, seu superior: “As primeiras palavras que o general Leclerc me disse ao receber-me”, diz Lacroix, “fizeram sangrar meu coração: ‘General, que fizeste? Chegas com uma população de cor quatro vezes mais numerosa do que os destacamentos europeus que me trazes.’” Se o coração de Lacroix sangrava, era porque sabia perfeitamente que essa população “de cor” iria ser em breve sacrificada. “Na noite seguinte”, testemunha Fréminville, “ [toda a guarnição foi afogada], sem outra forma de processo, pela tripulação [do Swiftsure], a qual, sem hesitar, prestou-se a essa horrível execução. Os contingentes de negros foram repartidos a bordo de diversos barcos nossos, fundeados na enseada. O general [...] deu ordem positiva a seus capitães para que afogassem aquele infelizes depois de haver-lhes atado ao pescoço um saco cheio de areia. Essa ordem abominável foi acompanhada de vergonha para todos os que participaram. Deve-se dizer, vergonhosamente, que todos se submeteram. Menos o capitão Willaumez, comandante da fragata La Poursuivante, que respondeu,
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orgulhosamente: ‘Os oficiais da Marinha francesa não são carrascos. Não obedecerei!’”
“Os afogamentos”, continua Fréminville, “eram levados a efeito na própria enseada. Às vezes, os sacos de areia, amarrados ao pescoço dos afogados, cediam; outras vezes, a corda que os prendia estava podre, ou se rompia. Nesse caso, os corpos subiam à superfície. Era um espetáculo horrendo.” Quando o jovem cadete deixou o navio para passear na cidade, o cenário era de pesadelo. “Esses passeios”, recorda ele, “começavam para nós pela horrível e inevitável vista dos cadáveres de negros que encontrávamos em nosso caminho, entre o barco e o cais do desembarcadouro. Às vezes o mestre de nosso escaler era obrigado a afastá-los com o croque; de outra forma, teriam sido cortados ao meio.” Como a enseada do Cabo estava atulhada de cadáveres, Latouche-Tréville mandou que a imersão das vítimas fosse feita de maneira mais discreta: ao largo e à noite. “O temor de um recrudescimento das epidemias e a chegada ao Cabo do almirante Latouche, que se indignou com o ofício de carrasco infligido daquela forma aos oficiais franceses, fizeram com que fosse modificada a forma de execução. Resolveu-se que os afogamentos ocorreriam dali em diante fora da enseada. As vítimas eram amontoadas no barco do infame Tombarei, que ia além da entrada da baía para lançar sua carga humana. Dessa maneira tivemos a explicação da resposta dada
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por ele à sentinela do forte Picolet: ‘Vamos deixar de molho um pouco de bacalhau!’ Na verdade, ia afogar negros.”
Tudo isso se passava sob a responsabilidade do almirante-conde Louis René Le Vassor de Latouche-Tré- ville. Mesmo que ele “se indignasse com o ofício de carrasco” — coisa que seus relatórios ao ministro da Marinha não denotam —, não se recusou a exercê-lo como tarefa principal, pois era o chefe da esquadra de Saint-Domingue. Tampouco recusou-se a impor essa infâmia a seus subordinados. Conhecendo os nomes dos navios, sabemos os nomes dos respectivos comandantes, os quais, com exceção, ao que parece, de Wil- laumez, de Jurien e de Le Bozec, não hesitaram, com o concurso de todos os seus oficiais e toda a sua tripulação, a desonrar a Marinha francesa. Eram eles Pierre- Louis Lhermitte, comandante do Le Duguay-Trouin, Charles Guillemet, comandante do LHannibal, Jean- Jóseph Hubert, comandante do Swiftsure, Charles Meyne, comandante do Llnfatigable, e Des Montils, comandante da La Précieuse, para citar apenas os navios principais que se encontravam na enseada do Cabo em 4-de novembro de 1802. Alguns desses oficiais haviam" iniciado sua carreira a bordo de navios negreiros, como, por exemplo, Guillemet, embarcado como aprendiz no Le Mesny em Saint Maio, que em 1763 transportou 612 escravos de Cabinda ao Cabo.
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Em sua Histoire d’Haiti (História do Haiti) (1848), o historiador Thomas Madiou confirma a utilização dos porões dos navios para aniquilar a população da ilha. “Na grande baía de Porto Príncipe e na enseada do Cabo”, escreveu ele, “os navios de guerra haviam sido transformados em prisões flutuantes onde eram asfixiados, nos porões, negros e homens de cor.” O próprio Victor Schoelcher, em sua Vie de Toussaint Louverture (Vida de Toussaint Louverture) (1889), declara-se informado dessas novas técnicas de extermínio que infelizmente seriam desenvolvidas no século XX por Hitler para livrar-se da população judia. “Foram inventadas”, assegura ele, “prisões flutuantes denominadas asfixia- douros, nas quais, após encerrar no fundo dos porões negros e mulatos, eram eles sufocados por meio de enxofre queimado.”
Em Souvenirs d’un amiral (Recordações de um almirante), publicado em 1872, outra testemunha ocular, Jurien de La Gravière, na época comandante de La Fran- chise, proporciona menos detalhes. Evoca, porém, aquela época com um eloquente desencanto: “Preferiria dissimular”, escreveu ele, “mas a guerra de Saint-Domingue continuará a ser uma das páginas mais tristes de nossa história [...]. Gostaria de não ter sido jamais testemunha das atrozes represálias por meio das quais acreditou-se estar autorizado a reagir [...] às repetidas traições dos rebeldes. Graças a Deus, não sou o único oficial de mari
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nha que, durante esses deploráveis acontecimentos, teria preferido romper as leis da disciplina a deixar de observar as leis da humanidade.” Jurien cita Latouche-Tréville, responsável pela parte naval da expedição, o qual, retomando a política definida pelo Primeiro Cônsul, declarou sem rodeios em fevereiro de 1803 que o término daquela guerra deveria ser a “destruição dos negros”. E a testemunha suspira: “Será preciso espantar-se com o fato de que esse horrendo programa tenha conseguido encontrar tantos adeptos?” Jurien lamenta “pela honra da França, as hediondas desordens que a repressão provocou”. Recusando-se visivelmente a denunciar antigos companheiros, ele confessa: “Eis um tema sobre o qual não tenho coragem de me alongar. Infelizmente, o excesso de dificuldades e a morte sempre ameaçadora nem sempre inspiram aos homens pensamentos salutares. Em todas as épocas de calamidades, não vimos sempre obscurecerem-se as noções mais simples de dever, e os corações, quando não se deixavam ficar em tristonha indiferença ou em loucas dissipações, obedecerem sem remorsos às instigações perniciosas de amargo desgosto ou aos temíveis ataques de um cego frenesi?” Se Jurien fosse menos discreto, contaria que entre os prisioneiros que ele recebeu ordem de matar com gás estava um oficial “de cor” chamado Dupuche, a quem certo dia ele enfrentara em duelo e cuja vida salvara, conseguindo que fosse deportado num navio comercial.
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Se Jurien não entra em detalhes, exceto quando afirma haver cruzado com um navio do governo, o pequeno La Terreur, de um só mastro, “que tinha um negro pendurado de cada lado da verga”, ele mesmo assim fornece um esclarecimento importante em suas Recor- dações. Ao relembrar que as tropas regulares de Toussaint Louverture haviam passado ao serviço da França, informa que na primavera de 1803 “esses exércitos regulares já não existiam mais. Haviam sido desarmados e parcialmente destruídos. Assim, havia menos dificuldades para vencer”. É preciso saber que as tropas regulares de Toussaint Louverture se compunham de cerca de 30 mil homens!
Em 2 de novembro de 1802, no momento de expirar, Victor-Emmanuel Leclerc tomou consciência de sua desonra e da engrenagem infernal na qual pusera as mãos. Seu único consolo talvez tenha sido morrer sem obedecer à ordem formal de restabelecimento da escravatura, sem dúvida contrária a seus princípios. Mas não hesitou em fazer funcionar o mecanismo do genocídio. Seu castigo foi a lucidez final. Thomas Madiou atesta que, culpando o cunhado por “haver-lhe dado instruções cruéis, [..], ele lamentou os indígenas cujo extermínio havia causado. ‘Homens tão corajosos’, disse, com voz moribunda, ‘que haviam prestado tantos serviços à França e que teriam podido prestar muitos mais, mereciam melhor sorte.’ Pediu aos Céus que lhe perdo
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assem os crimes que a perfídia colonial o havia feito cometer contra a liberdade”.
Muitos soldados e marinheiros da expedição permaneceriam obcecados por muito tempo pela lembrança do massacre de que haviam participado e do qual foram testemunhas. Não esqueceriam que em 1802 e 1803 ninguém ousava mais comer peixes que tivessem sido pescados próximo ao litoral.
“Os afogamentos diários me enchiam de horror”, recorda ainda Fréminville. “Eu tinha apenas um desejo: [...] voltar à Europa.” Porém mesmo durante a viagem de regresso do Swiftsure, que tinha servido de câmara de gás e que levava agora no convés, dentro de uma chalupa, o ataúde de seu general-em-chefe, seu “espírito era assombrado por imagens de morte e de tortura”. Fréminville jamais se recuperaria daquela expedição. Depois de reformado, terminou seus dias em Brest, tra- vestido de mulher. Vestido de cetim cor-de-rosa e corpinho de tule enfeitado de renda, aquele que agora se fazia chamar de “mademoiselle Pauline” ainda estava obcecado pelo monte de cadáveres de “negros” de Saint-Domingue que flutuavam na enseada do Cabo Francês, mais tarde rebatizado de Cabo Haitiano.
Após a morte de Leclerc, o genocídio prosseguiu sem trégua. Napoleão tinha a seu serviço um executor que ele próprio designara como sucessor de Leclerc nas instruções dadas no outono de 1802. Como ele havia
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estudado cuidadosamente os assentamentos, pode-se acreditar que sabia o que iria fazer. Donatien de Rochambeau e seu adjunto, Louis de Noailles, são dois verdadeiros carrascos cuja barbárie ultrapassa tudo o que se possa imaginar. O historiador Madiou viu-se em dificuldades para fazer comparações com o que se sabia no século XIX. Encontrou somente o príncipe Vlad, o Empalador, aliás Drácula. Hoje em dia poderia também referir-se à Divisão SS do Reich e aos carrascos dos campos de extermínio. Todos os portos passaram a dedicar-se às execuções com gás e afogamentos. Depois do Cabo e de Porto Príncipe, “os navios de guerra estacionados na enseada de Cayes estavam também cheios de indígenas destinados ao afogamento”. Em Les Cayes tomaram-se tristemente célebres o coronel Jacques Berger, apelidado “Lobo Veadeiro”, e seu assistente Kerpoisson, tenente do porto. Rivalizando em desumanidade com os marinheiros, entre os quais se distingue especialmente Tombarei, antigo comandante do Gerfaut, outros criminosos afirmariam sua vocação de carrascos e torturadores: o general Pierre Boyer, apelidado “o Cruel”, assessorado pelo comandante-ajudante André Maillard, para citar apenas esses.
Em 1825, ano em que a França finalmente reconheceu, por transações financeiras, a liberdade dos haitianos, Antoine Métral, em sua Histoire de Vexpédition des Français à Saint-Domingue (História da expedição dos
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franceses a Saint-Domingue), revela a existência dos carniceiros. “Rochambeau”, diz ele, “matou no Cabo quinhentos prisioneiros. No local da execução foi escavado um grande fosso para servir-lhes de sepultura, de forma que esses infelizes, que iam ser fuzilados, assistiam, por assim dizer ainda vivos, a seus próprios funerais.”
Antoine Métral também confirma a utilização das câmaras de gás: “As execuções era variadas. De vez em quando cortavam-se-lhes as cabeças, outras vezes uma bola de ferro amarrada nos pés os levava ao fundo do abismo das águas, outras ainda eram asfixiados nos navios com vapores de enxofre. Quando a noite servia de véu a esses atentados, os passantes na praia ouviam o ruído monótono dos cadáveres lançados ao mar.” A loucura genocida era geral. “No Cabo, no forte Dauphin, em Port-de-Paix, em Saint-Marc e em Porto Príncipe, assim como em todas as praias”, afirma Métral, “somente havia chicotes, cruzes, forcas, fogueiras, soldados, colonos, navios e marinheiros ocupados em matar, asfixiar ou afogar criaturas humanas, cujo único crime era não querer ser novamente escravizadas.”
Testemunha ocular, pois era membro da expedição que zarpou da ilha de Aix a bordo do La Vertu, Juste Chanlatte, em sua Histoire de la catastrophe de Saint- Domingue (História da catástrofe de Saint-Domingue), publicada em Paris em 1824 por um ex-marinheiro, Jean-Baptiste Bouvet de Cressé, relata que “em vez de
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navios a vapor, foi inventado um outro tipo, em que as vítimas dos dois sexos, amontoadas umas por cima das outras, morriam sufocadas pelos vapores de enxofre”, e que “crianças eram metidas em sacos nos quais, depois de apunhaladas, eram lançadas ao mar”. Segundo essa mesma testemunha, os adeptos do genocídio racionalizaram pouco a pouco suas técnicas, julgando que os “métodos de destruição” anteriormente utilizados eram “de execução demasiado lenta e dispendiosa”. Se fosse possível, “com o auxílio de uma máquina pneumática, interromper em um único instante a respiração de todos os [indígenas], eles certamente o [teriam] feito”.
Em 1814, o coronel Malenfant, evocando também esses “crimes atrozes” em sua obra Des colonies et partiadièrement ceUe de Saint-Domingue (Das colónias e especialmente a de Saint-Domingue), não hesitou em exclamar: “Que vergonha para a humanidade e para B ..J”
Não apenas se matava com gás e com afogamentos em série, não apenas os métodos eram otimizados, mas aquilo servia como divertimento. Fórmulas convencionais jocosas eram utilizadas. Os “negros” e “homens de cor” eram submetidos à “rede de pescar nacional” (o afogamento coletivo), quando não eram obrigados a comer uma “salada de maconha” (o enforcamento) ou uma “operação a quente” (o suplício da fogueira) ou uma “lavagem do rosto com chumbo” (o fuzilamento). Isso porque todos tinham a cara suja, não era verdade?
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Mas para acrescentar mais uma cor a essa palheta macabra, que no entanto já era bem variada, Louis de Noailles foi buscar em Cuba, em margo de 1803, cerca de seiscentos buldogues com a intenção de alimentá-los só com indígenas. O ministro da Marinha foi informado do fato por uma carta do almirante Latouche-Tréville, de 9 de marco. Os animais e seus novos donos desfilaram triunfalmente no Cabo. Seguindo a tradição das sevícias impostas aos primeiros cristãos, Rochambeau mandou construir um circo na entrada do palácio nacional no qual residia. Um poste era destinado aos supliciados. Arquibancadas com bancos confortáveis estavam prontos para os espectadores “brancos”. A fim de inaugurar aquele novo tipo de espetáculo, o general Boyer entregou um de seus jovens empregados, cujo único defeito era a cor de sua pele. Os cães famintos foram soltos. A platéia aplaudia. No entanto, menos cruéis do que certos bípedes, os mastins se contentaram em cheirar a vítima. Boyer saltou na arena e, desembainhando o sabre, abriu a barriga do jovem. Apesar do que viram e do odor de sangue, os cães não se moveram. Boyer, então, frenético, puxou um dos molossos pela coleira até a vítima e esfregou-lhe o focinho nas entranhas, até que o cão resolvesse devorá-las. Os outros animais o imitaram. Em breve restavam apenas ossos ensanguentados. O público acabou horrorizado. Mas o espetáculo recomeçava todas as tardes. O local
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passou a ser evitado. Os vizinhos se mudaram. Muitos colonos deixaram a ilha, temendo as represálias que tais ações poderiam provocar.
O general Jean-Pierre Ramel, comandante da ilha Tortue, espantou-se ao receber uma ordem por escrito, datada de 5 de abril de 1803 e assinada por Rocham- beau: “Êitôu-vos enviando, caro comandante, um destacamento de 150 homens da guarda nacional do Cabo. Será seguido por 25 cães buldogues. Esses reforços vos permitirão terminar completamente vossas operações. Não vos deixo ignorar que não serão necessárias rações nem despesas pela alimentação desse cães. Deveis dar- lhe a comer somente negros. Saudações afetuosas, Donatien Rochambeau.”1
Jurien de la Gravière também viu os cães durante o ataque de Petit-Goâve na primavera de 1803. Ele confirma formalmente que lhes davam alimentação humana. Eis seu testemunho: “Foram embarcados também, e enrubesço ao dizê-lo, em duas embarcações que nos foram proporcionadas, dois grupos de cães comprados por alto preço em Havana. Eram cães, segundo nos afirmaram, da raça empregada antigamente pelos conquistadores espanhóis para seguir o rastro dos índios. Cada divisão se compunha de 75 animais alimentados com carne de negros e que ficavam ainda mais vorazes quan-
‘Carta citada notadamente por Victor Schoelcher, op. cit.
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do famintos. Foi com esses horríveis auxiliares que partimos para Porto Príncipe.” No entanto, durante o ataque, Jurien percebeu que os mastins se tornavam incontroláveis. Aparentemente menos racistas que seus donos, “esses cães, que deveriam devorar somente negros, atiravam-se indistintamente sobre todos os homens que viam, fossem eles negros ou brancos”.
O diário do almirante Latouche-Tréville nos mostra além disso que em 26 de junho de 1803 duzentos outros cães foram transportados com reforços para o Cabo por um brigue espanhol que vinha de Havana, o que eleva o número desses animais a oitocentos.2 O tamanho dessa matilha é espantoso, quando se confirma que se alimentava somente de carne humana. Pois, sabendo-se que um buldogue consome pelo menos um quilo de carne por dia, caso tenham sido utilizados até a capitulação de novembro, podem haver devorado mais de três mil pessoas.
Acrescentando a esse número os rebeldes fuzilados, os civis mortos por gás ou afogados, chega-se certamente a várias dezenas de milhares de vítimas. Alguns sugerem, para o genocídio, o número de 100 mil, isto é, cerca de 20% da população de origem africana que o Haiti continha na época.
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2Yves Bénot, La Démence coloniale sons Napoléon, Paris, 1992, fala de 1.500 cães, o que representa cerca de seis mil indígenas lançados como pasto para esses animais!
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As atrocidades cometidas por Leclerc e Rocham- beau foram tão longe que não foi possível ocultá-las. Como se costuma fazer nesse tipo de circunstância, a fim de preservar a memória de Napoleão, os guardiães do templo dizem, quando pressionados ao máximo, que se tratava de abusos de subordinados, das quais o Primeiro Cônsul nada sabia. Em Nuremberg, os homens diziam também que não sabiam de nada. Segundo alguns, Hitler tampouco sabia. Infelizmente, o Primeiro Cônsul estava a par de tudo: dos cães, do gás e do resto. Sabia, porque, assim como Hitler, foi ele quem deu a ordem para o genocídio.
Quando Rochambeau foi designado, sua crueldade era conhecida, tanto que alguns colonos esperavam ingenuamente que Napoleão, ao ser informado das monstruosidades já cometidas no Haiti, nomeasse outro capitão geral. Suas próprias vidas estavam em jogo, pois no ponto a que haviam chegado as coisas, eles poderiam esperar um massacre geral dos “brancos”, caso os insurretos fossem vitoriosos.
Mesmo quem tivesse pouca estima por Napoleão desejaria que a carta por ele escrita a Donatien de Rochambeau em 4 de fevereiro de 1803 fosse somente uma alucinação. Mas ela existe, e é tão acabrunhante que não deixa qualquer dúvida sobre a culpabilidade de Bonaparte por cada gota de sangue derramado. “O ministro da Marinha”, escreveu o ordenador de todas es
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sas monstruosidades, “comunicou-me vossos despachos de 23 de frimário [14 de novembro de 1802]. Tomei nota com prazer da retomada do forte Dauphin; desejo assegurar-vos diretamente a inteira confiança que o Governo deposita em vós e de sua aprovação das medidas rigorosas que as circunstâncias vos obrigam ou vos obrigariam a adotar.”3 A aprovação do genocídio é total, inegável, obscena. Três meses depois da nomeação de Rochambeau, Napoleão já estava informado de tudo. Por seus espiões. Pelos oficiais que lhe levavam os despachos. Por aqueles que se recusaram a executar as ordens e que foram recambiados como criminosos. Entre estes, François Allix de Vaux, diretor geral de artilharia, preso por acusações de malversação, mas na verdade por haver-se recusado a entregar mil bolas de ferro destinadas a servir de lastro para os corpos dos supliciados. Entre eles estava também o almirante Amable Humbert, mandado de volta à França por Leclerc. Talvez porque tenha dormido com a mulher deste último, mas principalmente por haver-se insurgido contra o genocídio. Em 19 de setembro, estando no comando do Môle-Saint-Nicolas, foi chamado ao Cabo e entregou o cargo ao general Maurepa, mas Leclerc tinha outros projetos: “Maurepas”, escreveu ele na oca-
3Esta carta, como todas as demais, está publicada na Correspondência de Napoleão.
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sião ao cunhado, “é um canalha, mas ainda não posso mandar prendê-lo.” Isso ocorreria em breve. Maurepas foi convidado por Brunet, o homem que havia raptado Toussaint, a evacuar sua guarnição, levando seus soldados e uma parte da população civil “de cor” que lá se encontrava. A esquadra da expedição foi empregada no transporte. No canal de Tortue, os passageiros foram massacrados e lançados ao mar. Maurepas, nu, foi amarrado no mastro principal do Le Duguay-Trouin, comandado pelo capitão-de-mar-e-guerra Pierre Louis Lhermite e a bordo do qual se encontrava Latouche- Tréville. Brunet tomou-lhe o dinheiro que tinha. A mulher e os filhos do haitiano foram enforcados na verga diante dele. Mas Maurepas manteve a dignidade. Foi insultado, mas nada respondeu. “Não respondes?”, disse o carrasco. “Bem, vamos te fazer chorar!” Foi-lhe infligido o suplício do chicote, reservado aos escravos. Ele se conservou impassível. Então, com grandes pregos, puseram-lhe nos ombros nus as dragonas de general. O comandante Lhermite observa que ele talvez precisasse de um chapéu para se proteger do sol. A golpes de martelo um barrete de dois bicos foi pregado em sua cabeça. O general finalmente expirou, após haver suportado esse martírio sem gritos nem lágrimas, e seu corpo foi jogado ao mar, lastreado com uma bola de ferro.
Um general da Lorena, Humbert, protestou com asco. Recusou-se a participar das punições cometidas
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quando do ataque ao Cabo. Em represália, Boyer, o homem que iria abrir a barriga de seu empregado para alimentar os cães, o acusa então de ter “relações com o chefe dos bandidos”. Leclerc, por seu turno, escreveu ao Primeiro Cônsul dizendo que Humbert tinha “negócios sujos”. Não tinha, no entanto, moral para fazer esse tipo de acusação.
Em 17 de outubro de 1802, Humbert foi embarcado em um navio comercial. Chegou ao Havre no início do mês de dezembro. Sua chegada não passou despercebida, como atesta a nota de um espião ao chefe de polícia datada de 15 de dezembro: “Espalhou-se hoje em Paris”, escreveu o delator, “o boato de que um navio que aportou no Havre trouxe o general Humbert, para levar ao governo detalhes sobre os novos desastres na colónia. Dizem que os negros recorreram às armas, que seis mil brancos se juntaram a eles e que os generais que estavam com Toussaint e que haviam celebrado a paz imitaram seu exemplo. Enfim, a situação na colónia é considerada desesperadora. Os bons cidadãos se preocupam e os maus não escondem sua alegria.” Ninguém duvida que Humbert tenha procurado informar Bonaparte do que ele acreditava ser uma desobediência de Leclerc às ordens de Paris. Como tantos outros, o pobre general ainda tinha ilusões. Foi expulso do exército no dia 13 de janeiro por um decreto do tirano com ordem de sair imediatamente da capital e voltar a seu distrito natal. Porém não obedeceu imediatamente.
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Em 5 de fevereiro, uma nova nota policial acrescentou: “Alguns militares diziam ontem que o general Humbert acaba de ser destituído por haver fornecido demasiados detalhes sobre a situação em Saint-Domingue e ter querido denunciar a conduta de diversos generais daquela expedição. “
Oito dias depois, outra ficha informou que “o próprio general Humbert anunciou sua destituição aos oficiais generais e outros conhecidos seus. Os motivos que alega são ter pretendido empregar um sistema de conciliação em Saint-Domingue e sobretudo haver-se recusado a obedecer a ordens do general Leclerc, as quais ele apresenta sob uma luz odiosa. Não se pode [negar] que por causa de relatos semelhantes os generais ingleses têm levantado absurdas asserções de afogamento de negros”.
Ao menos por Humbert, Napoleão poderia ser informado, caso ignorasse a situação. Mas a forma pela qual ele o destituiu e o empenho com que o perseguiria durante quase dez anos mostram que não somente estava a par do que se passava, mas também que era o principal culpado.
Não admira, portanto, que ele escrevesse a Ro- chambeau para estimulá-lo na execução da solução final. “Nada interessa mais à nação do que a ilha de Saint-Domingue”, afirmou ele. “Sede vós seu restaurador, e inscrevei vosso nome entre aqueles que o povo francês jamais esquecerá e que a posteridade reveren-
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ciará, pois esses estarão animados apenas pelo sentimento da verdadeira glória. É provável que quando receberdes esta carta a Legião de Honra já esteja organizada. Sereis colocado no rol dos grandes oficiais.”
Para Napoleão, a “verdadeira glória” ia além da aparente infâmia, que somente servia para o comum dos mortais. Os grandes homens estão acima da moralidade. Um crime pode ter sentido para a posteridade. Pode-se compreender a homenagem de Hitler, inclinando-se com a cabeça descoberta, em 28 de junho de 1940. Napoleão era realmente seu mestre e seu deus. Sem dúvida, Hitler faria muito “melhor” em valores absolutos, mas os princípios e os métodos eram os mesmos.
Ao receber a mensagem de aprovação de Napoleão, no fim do mês de fevereiro de 1803, Rochambeau recebia também carta branca. Podia fazer o que quisesse. Seria sempre encoberto, com a condição de que cumprisse as ordens. Infelizmente para ele, iria capitular diante dos “negros”. Napoleão não o perdoaria.
Enquanto aguardava, Rochambeau não escondeu as intenções de seu chefe. Apressou-se em estabelecer uma escravidão de fato. Começou mandando publicar um decreto, assinado pelo Primeiro Cônsul em 22 de outubro de 1802, que declarava a colónia em rebelião contra a metrópole desde 20 de novembro de 1798, data da partida do general d’Hédouville. Todas as nomeações posteriores ficavam anuladas se não fossem
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explicitamente confirmadas por Leclerc ou Rochambeau. O texto valia também para Guadalupe a contar da expulsão de Lacrosse, em 21 de outubro de 18,01.
Em 14 de janeiro de 1803, o novo capitão geral lançou um mandado de prisão contra as mulheres indígenas que não fossem casadas nem domésticas. Como as prisões não tinham espaço suficiente para abrigá-las, as infelizes foram embarcadas em navios, onde serviram de presa para os marinheiros.
Tal como em Guadalupe, Rochambeau organizou corpos de milícias para caçar os “negros”. Os milicianos se distinguiam pela cobertura das cabeças: um chapéu colonial à moda de Henrique IV erguido de um lado, como mais tarde usariam as tropas francesas na Indochina e na Argélia.
Dessalines não poderia prever que os descendentes haitianos dos cidadãos franceses “negros” de 1802 viajariam um dia à Guiana voando pelos ares. Mas não se espantaria ao saber que, para esses viajantes, o visto de entrada na França — que já era de obtenção especialmente difícil para os descendentes de “bandidos” — não lhes permitiria entrar em uma das colónias onde, desde os acontecimentos de 1802, a “mão invisível” do Haiti passou a ser temida acima de tudo.
Mas para esses herdeiros dos “maus súditos negros” é com efeito necessário, ainda em nossos dias, obter
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uma autorização especial com visto do prefeito. Uma vez conseguido esse precioso abre-te-sésamo, o passageiro haitiano que parte do aeroporto Toussaint- Louverture em Porto Príncipe ainda não esgotou suas emoções. Ao pôr os pés nesse departamento francês de ultramar, onde a escravidão foi restabelecida por Victor Hugues em 25 de abril de 1803, verá que o aeroporto internacional de Caiena tem o nome de Rochambeau.
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VIII
Tanto em Guadalupe quanto no Haiti as ordens de Napoleão eram não só de exterminar as massas, mas também de deportar todos os militares “negros” e homens “de cor”, quer tivessem ou não participado da resistência à escravatura.
Bonaparte preferiu deportar os oficiais que não tivessem sido capturados de armas na mão a executá-los no local. Naturalmente, é perigoso habituar os soldados a atirar nos mais graduados, ainda que de pele escura, assim como é perigoso pedir aos oficiais, ainda que de pele branca, que executem sistematicamente seus irmãos em armas. Já tinham ocorrido motins em tropas auxiliares estrangeiras, especialmente polonesas, que se recusaram a assassinar a população. Dessalines, mais tarde, já como chefe de Estado do Haiti, recordou-se disso e fez para os poloneses uma exceção à regra que proibia a concessão da nacionalidade haitiana a “brancos”. Afinal, a deportação era uma solução igualmente
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eficaz e muito mais discreta do que a execução propriamente dita.
Essas ordens de deportação foram executadas em ampla escala. Porém quem ler as obras “oficiais” da história napoleônica poderá duvidar. Para citar somente um exemplo, o artigo do Díctionnaire du Consulat et de VEmpire, dos srs. Fierro, Palluel-Guillard e Tulard, dedicado à deportação, é bastante significativo a esse respeito. “Bonaparte”, escrevem eles, “utilizou-a somente contra 130 republicanos presos após a explosão da máquina infernal e deportados em virtude do senatus-consultus de 4 de janeiro de 1801. “Segundo os historiógrafos que passam por autoridades diante de um amplo público, portanto, não houve deportações de antilhanos. É verdade que desde 1945 a palavra “deportação” passou a ter conotações desagradáveis, especialmente quando se verifica estar apoiada em considerações “raciais”.
No entanto, apesar das afirmações desses eminentes académicos, Napoleão mandou deportar milhares de guadalupenses e haitianos. Teria havido muito mais se não fosse a retomada das hostilidades com os britânicos em maio de 1803. Essas deportações, baseadas unicamente na cor da pele das vítimas, constituem — no sentido da definição dada pelo tribunal de Nuremberg — uma outra faceta do crime de Napoleão. Ora, trata- se de erro grosseiro ou de esquecimento voluntário? Não se pode saber bem; mesmo assim, é difícil pensar
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que especialistas da época tenham podido esquecer um personagem como Toussaint Louverture, que ninguém pode negar ter sido deportado e que nada tinha a ver com a máquina infernal.
No tocante a Saint-Domingue, as ordens escritas entregues a Leclerc existem, assinadas por Napoleão em 31 de outubro de 1801: “Todos os negros que tenham se comportado bem, mas cujo grau hierárquico não permite mais que sejam deixados na ilha, serão enviados a Brest. Todos os negros e homens de cor que tenham se comportado mal, qualquer que seja seu grau, serão mandados para o Mediterrâneo e depositados em um porto da ilha da Córsega.” Lacrosse, e depois Richepance, receberam instruções idênticas para Guadalupe.
Antes da partida de Lacrosse, o Primeiro Cônsul mandou preparar um plano de deportação e o emissário consular começou a executá-lo desde sua chegada a Basse-Terre na primavera de 1801. Em 21 de agosto, Napoleão escreveu a Forfait, ministro da Marinha e das Colónias: “Recebi, Cidadão Ministro, vossos despachos sobre Guadalupe. Dai ordens para que todos os indivíduos enviados pelo contra-almirante Lacrosse e que estão em Lorient sejam presos até que o Governo decida sobre sua sorte.” No dia seguinte, o ditador já tinha tido uma idéia: “Mandareis embarcar em um navio os deportados de Guadalupe, Cidadão Ministro, e mandareis
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que sejam levados a Caiena, com a ordem de colocá-los sob vigilância nas comunas que o agente da República designará. Não poderão sair da colónia por qualquer motivo que seja.” Em 22 de novembro, em seu Exposé de la situation de la République (Relatório sobre a situação da República), publicação obviamente oficial, o Primeiro Cônsul apresentou as coisas de maneira diferente, pois se dirigia à Nação: “Desde sua chegada, o capitão geral dedicou-se a combater o espírito de fac- ciosismo. Achou por bem enviar para a França treze indivíduos autores de distúrbios e fatores de deportações. O Governo acreditou que tais homens seriam perigosos se ficassem na França e ordenou que fossem mandados para as colónias que escolhessem, com exceção de Guadalupe.” Nesse comunicado, os deportados são apresentados como se fossem eles próprios os responsáveis pela deportação de dois agentes da República e como se pudessem escolher seu destino. Uma espécie de turistas em vilegiatura.
Alguns meses depois, conforme as instruções recebidas, Richepance deportou Pélage e mais 35 homens “de cor”. Ao mesmo tempo, improvisou um campo de concentração na ilhota de Terre-de-Haut, em Saintes. Mais de três mil soldados da República foram abandonados ali, quase sem alimentação. Depois tentou-se vendê-los a Cartagena e mais tarde a Nova York, não somente para proporcionar ao exército um “caixa dois”
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nas também para lucro pessoal de alguns oficiais. Napoleão não poderia ignorar esses procedimentos, tanto mais quando, como os destinatários não os aceitaram, o fato ocasionou incidentes. A fragata La Cocarde foi vítima de uma avaria. Os britânicos, ao verificarem que os porões estavam cheios de guadalupenses, visivelmente destinados a serem vendidos, rebocaram o navio até o Cabo, onde chegou durante o mês de agosto. Leclerc ficou muito aborrecido ao ver chegar aquele barco cheio de patriotas que haviam lutado pela liberdade e cuja presença em Saint-Domingue era extremamente perigosa. Cerca de cinquenta guadalupenses conseguiram atirar-se ao mar e nadar até a costa haitiana, apesar da chuva de chumbo que, naturalmente, caiu obre eles. Esses companheiros de Delgrès o iriam vingar. Ao avisar aos haitianos que em Guadalupe a escravidão havia sido restabelecida e os resistentes massacrados, deram o sinal para a insurreição geral. Foi em parte devido a essa evasão, espetacular traço-de-união entre a resistência em Guadalupe e a revolução haitiana, que Napoleão perdeu Saint-Domingue.
Leclerc deportou os guadalupenses que não tinham conseguido escapar: “Não desejando conservar esses revoltosos aqui por mais tempo, mando-os à Córsega no navio Le Formidable”, escreveu ele ao ministro da Marinha em 25 de agosto de 1802.
Alguns deportados foram embarcados como mari-
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nheiros em navios que voltavam à França, substituindo homens da tripulação mortos em combate ou de febre amarela. Leclerc informou disso o ministro da Marinha desde 22 de julho de 1802: “As perdas consideráveis de marinheiros sofridas aqui por diversos navios do Estado me obrigaram a entregar-lhes negros, no regresso à França, para aliviar as tripulações nas manobras. Esses negros são sempre escolhidos dentre aqueles cuja presença na colónia pode ser perigosa. É necessário que tomeis medidas para que não tenham ocasião de voltar para cá.”
Outros ainda foram para Caiena, levados por um barco que zarpou do Cabo em 18 de junho de 1802. Uma carta enviada ao Primeiro Cônsul pelo cidadão Barthélemy fornece algumas informações: “Ontem, 20 de termidor [8 de agosto de 1802], entrou no porto de Caiena a corveta do Estado La Nathalie, com ordem de lançar em nosso solo [...] dezoito negros de Saint- Domingue; seus nomes e a precaução de mantê-los acorrentados dos pés à cabeça são suficientes para qualificar esses homens como antropófagos.”
Relegados a uma ilhota a uma légua de Caiena, os “antropófagos” foram em seguida mandados para a França a bordo do Rhmocéros.
Os antilhanos que chegavam à França representavam frequentemente a metade dos que haviam embarcado. A ordem, com efeito, era de transportá-los acorrentados e no
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fundo do porão, na escuridão, com os pés na água, junto com os ratos. Os escravos africanos tinham direito à prova, mas tratando-se de revoltosos, era normal que pagassem um preço mais elevado. Assim, a mortalidade era impressionante.
Mais de dois mil deportados, militares ou civis, chegariam vivos a um porto francês. Alguns ali permaneceriam, trabalhando como mergulhadores no serviço de reparo dos cascos. Outros seriam embarcados em navios, incorporados a batalhões disciplinares ou internados. Bonaparte não os queria no território nacional, a fim de não arriscar-se à “mistura de sangue”. Nenhum desses deportados foi jamais julgado. Alguns haitianos conseguiram fugir e regressaram a sua terra natal. Os outros, qualquer que fosse seu destino, morreriam em geral dentro de cinco anos.
Uma centena de haitianos chegou à ilha de Aix no La Vertu, La Nourrice ou LIntrépide. Em 5 de janeiro de 1803, Ganteaume, comandante do Mohawk, desembarcou na ilha “oficiais superiores negros e mulatos, assim como doze negros maus súditos”. Outros portos, como Cadiz, La Corogne, Santander e Toulon acolheram mais duzentos.
Mas foi sobretudo Brest que se transformou no destino inicial dos deportados, guadalupenses ou haitianos, que resistiram à travessia. Toussaint chegou a esse
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porto em 12 de julho de 1802 a bordo do Héros, acompanhado por sua família. Como havia somente um lugar na masmorra do castelo, ficaram todos a bordo. Em 13 de agosto, às cinco horas da manhã, um oficial de polícia foi buscar o ex-govemador. Ele foi separado dos seus e levado de chalupa a Landemau com seu velho empregado Mars Plaisir. Seu filho Placide foi também isolado da família e levado à fortaleza de Belle-Ile. O aju- dante-de-ordens Chancy seria mandado para a Córsega. Os cinco outros deportados, mais próximos de Toussaint, foram levados para Bayonne. O filho mais jovem, de doze anos, queixou-se de que morreria de tristeza se não lhe devolvessem o pai. O menino cumpriu a palavra.
Em 5 de agosto de 1802, o Le Redoutable e o Le Fou- gueux trouxeram de Guadalupe Pélage e 34 homens de cor de seu grupo. Pouco agradecido pela colaboração do oficial que se aliara a Richepance, Bonaparte mandou encarcerá-lo com seus companheiros no hospital da cidade por crime de alta traição e exigiu 278 mil libras de prata da colónia a título de danos e juros. Para garantir o pagamento dessa soma, as modestas bagagens dos prisioneiros foram confiscadas. Pélage permaneceu mais de um ano atrás das grades.
Em 27 de outubro, La Volontaire, La Romaine e La Salamandre desembarcaram 805 deportados de Guadalupe que Richepance pretenderia vender em Nova York.
Napoleão explicou ao general Decaen que “o gene
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ral Richepance nos empurrou 1.500 negros que chegaram a Brest, os quais ele havia retirado de Guadalupe e mandado inicialmente aos Estados Unidos, onde não os quiseram receber. Esses homens foram postos na cadeia enquanto aguardam”. Ele propôs que seiscentos dentre eles fossem engajados numa expedição prevista para o oceano Índico.
_No final de 1802, a caserna de Pontanezen, nos subúrbios de Brest, foi transformada em campo de triagem. Naturalmente, não havia nada para servir de aquecimento. A triagem era lenta. Era difícil, porque são todos parecidos”. Os piores súditos ficariam pre
sos; 619 guadalupenses foram escolhidos para o exército. Porém, dez dias depois, haviam-se reduzido a 509. Este clima firio e úmido é deletério para esses habitan
tes de países quentes”, dizia rindo Decrès, ministro das Colónias. E verdade que haviam esquecido de dar-lhes roupas e que em Brest, naquele mês de janeiro de 1802, havia um certo friozinho. Não se pode pensar em tudo! Os guadalupenses finalmente deixaram o campo de triagem para serem instalados nas casernas de La Re- couvrance, onde finalmente foram vestidos. Napoleão seguia de perto os deportados. “Minha intenção”, escreveu ele ao ministro da Marinha em 18 de abril, “é que os negros que estão em Brest, com exceção do pequeno número de operários que, por sua habilidade, são necessários para as construções, no máximo cem ho-
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mens, sejam colocados à disposição do ministro da Guerra. [...] tenho grande interesse em que Brest e seus arredores fiquem livres desses indivíduos.”
Livrar-se deles significou mandá-los para Mântua em 30 de abril de 1803, onde foram incorporados à unidade dos “Pioneiros negros”. Três meses depois, Bona- parte, que se encontrava em Bruxelas, ainda não os tinha perdido de vista: “O corpo de negros que está em Mântua”, ordenou ele a Berthier, “deve ser composto por 1.500 homens, formados em dois batalhões de cinco companhias, cada qual com 150 homens. Esses dois batalhões não deverão nunca reunir-se; um ficará cuidando das obras em Mântua e o outro das de Legnago.” Quatro anos mais tarde, os Pioneiros negros já teriam perdido a metade de seus efetivos.
Os primeiros deportados que chegaram à Córsega desembarcaram no mês de julho de 1802. Eram hai-̂ tianos. Numa carta confidencial ao administrador daquela ilha, o ministro das Colónias informa que os deportados deveriam ser “detidos em lugar seguro”, empregados nas obras públicas e “submetidos ao regime, à polícia, à disciplina exercida na França sobre os condenados à prisão”. Decrès considerou necessário acrescentar com sua letra que todas as disposições dessa carta eram ordenadas pelo próprio Primeiro Cônsul. Previdente, ainda escreveu mais: “Se precisardes de gri
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lhões ou correntes, podeis pedi-las ao prefeito de Tou- lon, assim como todos os acessórios necessários ao estabelecimento de uma prisão.”
O Primeiro Cônsul finalmente mudou suas ordens e após fazer os “bandidos” transitarem por Bastia, enviou-os à ilha de Elba, que acabara de anexar. Um campo de concentração para “negros” foi especialmente criado em Porto Ferraio.
Entre os deportados para a ilha de Elba estava o ex- deputado à Convenção Jean-Louis Annecy, de 43 anos, qualificado de “motor da insurreição por seus discursos”. Com ele havia muitos oficiais superiores. Muitos desses deportados já eram idosos e sofriam de ferimentos e enfermidades: Annecy era asmático e a maioria de seus companheiros haviam sido vítimas de balas ou eram aleijados. Todos, porém, foram colocados em trabalhos forçados e utilizados em fortificações. Naturalmente, a maior parte morreu nessas tarefas em menos de cinco anos.
Napoleão instalou em sua ilha natal um segundo campo de concentração para “negros”. A Córsega, nação independente e democrática, havia se libertado de Génova graças a Pascal Paoli. Choiseul, porém, a havia voltado a anexar pela força em 1769, ano em que se acredita que o futuro déspota tenha nascido (na verdade, ele teria falsificado sua certidão de nascimento para poder entrar na escola militar). Após haver oferecido
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em vão seus serviços a Paoli contra os franceses, Bonaparte mudou de lado. “Questa birba Napoleone!” (Esse crápula de Napoleão!), exclamou Paoli, enojado. Nascido “no lodo do despotismo”! Era assim que o herói corso considerava o filho de Cario Bounaparte. Uma alusão às relações dessa família, e especialmente de Letizia, la mamma, com o governador francês, Marbeuf. O “crápula” detestava sua terra natal e a renegou por muito tempo. “Questo paese non è per noi!” (Esta terra não é para nós!), explicou ele aos seus quando escapou, perseguido pelos independentistas que saquearam sua casa. Os cadernos de notas do general Bertrand mostram que em 1821, na véspera de morrer, ele não havia mudado de opinião. ‘“A Córsega é um inconveniente para a França’, exclamava o renegado. ‘É uma excrescência que ela tem sob o nariz!’ Choiseul dizia que, se fosse possível mandá-la para o fundo do mar com um golpe de tridente, era preciso que isso fosse feito. E tinha razão.” Como não queria “negros” na França, a fim de evitar a contaminação “racial”, Napoleão se rejubilou com a idéia de expedi-los para a Córsega, onde a contaminação — ele tinha condições de sabê-lo — não datava de ontem. Em 1802, a Córsega, francesa havia somente 33 anos, não estava menos submissa do que Saint-Domingue. Napoleão teria assim, a fim de desembaraçar-se dos “negros” que mandara deportar porque seria perigoso matá-los onde estavam, a perversidade
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de “desfazer-se” deles alistando-os na construção de uma estrada entre Ajaccio e Corte destinada ao transporte de tropas ocupadas na “pacificação” da ilha.
Em 20 de sgtembro de 1802 a corveta La Naiade transportou a Ajaccio, via Toulon, cerca de cinquenta haitianos. As ordens eram de “mantê-los a ferros durante a travessia . Foram dadas instruções para transformar a cadeia de Ajaccio em campo de concentração com capacidade para quinhentos internos. Em caso de superlotação, um anexo seria improvisado sobre pontões.
No começo de novembro chegaram cerca de sessenta novos deportados haitianos. Em meados do mês o ministro Decrès informou os prefeitos de que os efetivos previstos para a Córsega seriam de 1.200 e que se esperava um número ainda mais considerável”, homens e mulheres. O teinício da guerra contra a Inglaterra e a vitória dos patriotas de Saint-Domigue contrariariam, evidentemente, esses projetos de maior envergadura.
Enquanto isso, Bonaparte decidiu a sorte dos deportados por meio de um decreto de 4 de dezembro de 1802 cuja minuciosidade revela que o autor teve prazer em redigi-lo.
Durante todo o ano d e1803 barcos provenientes de Pontanezen levariam à Córsega pelo menos quinhentos deportados, tanto haitianos quanto guadalupenses. Muitos eram oficiais superiores. Também mulheres e algumas crianças, acorrentadas como os demais. O crime
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de que os acusavam era haver sido “partidários da liberdade dos negros”. Lá estava o pobre comandante de batalhão Dupuche, salvo in extremis da câmara de gás por seu amigo Jurien de La Gravière. Seus assentamentos pessoais nos indicam que era um “celerado” e que havia sido preso pelo chefe do Estado-maior do exército naval. A seu lado, Jean-Baptiste Mill, primeiro deputado “de cor” da história da França. A Convenção o recebera com aclamações naquela memorável jornada de 4 de fevereiro de 1794, quando a escravatura fora abolida. Agora, graças a Napoleão, sem roupas, os pés presos aos de seus camaradas por uma corrente de ferro, sob o chicote das galés, quebrava pedras na estrada da Corte. Seu colega parlamentar Jean-Baptiste Belley, que havia servido de modelo para Girodet em 1797, foi encarcerado em uma masmorra da fortaleza de Belle-Ile. Ali morreria, em 1805.
Parte dos deportados ficou detida no campo de concentração propriamente dito. Ficavam no convento dos capuchinhos de Ajaccio e dormiam nus no chão de uma igreja “extremamente insalubre”. Todos foram condenados a trabalhos forçados na construção da estrada ou no corte de mastros para navios nas florestas de Altone ou de Vizzavona e em transportá-los até Ajaccio, apesar das dificuldades de topografia. Com o frio, as obras públicas nas altitudes mais elevadas eram mortais; oitenta deportados morreram no primeiro ano. Doze corajosos
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resistentes guadalupenses e haitianos, entre os quais uma mulher, no entanto, conseguiram fugir em julho do ano seguinte e chegar à Sardenha a bordo de uma barca em mau estado. Os efetivos iriam reduzir-se ao longo de todo o período do Império. Após 1814 seus traços se perdem. Os que não haviam conseguido evadir-se já haviam morrido.
Tòussaint, um dos raros deportados a ter o privilégio de permanecer em solo metropolitano, tinha consciência de que aquilo não iria durar muito. Napoleão não gostava de ser contrariado. Um dia deu conhecimento disso a parlamentares que se preparavam para votar negativamente contra uma decisão sua. “Ousam desafiar-me?”, exclamou ele. “Saibam que eu nunca tolerei isso!” Tòussaint havia desafiado o Primeiro Cônsul, que não o toleraria.
O prisioneiro foi conduzido secretamente ao castelo de Joux, que Napoleão havia transformado em prisão do Estado desde sua chegada ao poder. O ex-govema- dor não tinha o direito de comunicar-se com ninguém.
Se Tòussaint não foi imediatamente executado, é porque Napoleão o supunha possuidor de um tesouro de 15 milhões de francos. Apressou-se em enviar Caf- farelii para saber onde ele o haveria escondido. Caffarelli o interrogou durante uma semana. Como Tòussaint se limitasse a responder que havia perdido muito mais do que um tesouro, no dia seguinte ao do interrogatório, 28 de
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setembro de 1802, o governador do castelo de Joux lhe trouxe roupas de condenado aos trabalhos forçados. Não seria preciso ler A cartuxa de Parma nem o relato do cativeiro do general Dumas em Taranto para compreender que após seu encontro com Caffarelli, a saúde de Toussaint somente poderia ter sido prejudicada. Mas era preciso ainda torturá-lo um pouco antes de sua morte. Ele bem mereceu o sofrimento. Decrès foi o encarregado de passar ao carcereiro as revoltantes instruções do mandante da execução. Toussaint deveria perder a noção do tempo. Assim, em 27_ de outubro: “Retirem-lhe o relógio, caso seu uso lhe seja agradável. [...] Toussaint é o seu nome: essa é a única denominação que lhe deve ser dada!” Como o carcereiro parecia ser demasiado bonachão para servir de assassino, o ministro da Marinha considerou útil adverti-lo de maneira especialmente solene e por escrito de que seria de seu interesse apertar as cravelhas: “O Primeiro Cônsul”, ralhou ele, “encarregou-me de levar a seu conhecimento que a responsabilidade pela pessoa do prisioneiro recai sobre sua cabeça. Não preciso acrescentar nada mais a uma ordem tão formal e tão positiva.”
Paradoxalmente, se Baille — assim se chamava o carcereiro — era responsável pelo prisioneiro, isso não significava que respondesse pela vida de Toussaint. Na verdade, a questão era a sua morte.
Desde 30 de outubro, aliás, o carrasco observa que
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Louverture se queixava de dores de cabeça e de frio. “Como a compleição dos negros em nada se parece com a dos europeus”, relatou ele, para mostrar que cumpriu as ordens, “deixo de proporcionar-lhe médico e cirurgião, que seriam inúteis.”
Em novembro, Napoleão foi informado de que Leclerc não conseguia encontrar o mínimo de elementos para um processo contra o chefe haitiano. Ficou também sabendo dos contratempos na colónia. Com isso, enlouqueceu. Do fundo de sua masmorra, afinal, Toussaint havia vencido! Napoleão mudou o carcereiro demasiado brando e mandou no início de dezembro um matador, que atendia pelo nome de Amiot, com o título de comandante de armas do castelo de Joux. Desde a chegada do comandante de batalhão Amiot, “jovem militar [...] muito dedicado a seus deveres”, os acontecimentos se precipitaram. Toussaint começou a queixar-se de novos sintomas: dores, especialmente no estômago. Em seguida teve vómitos. “Ele nunca me pediu um médico!”, certificou Amiot, com a falsa candura do profissional.
A questão não é saber se Napoleão assassinou Toussaint Louverture, coisa de que somente duvida um biógrafo de Pauline Bonaparte, ex-marujo racista e mi- sógino que explica alegremente que Toussaint morreu “de nostalgia de seu país”. A questão é simplesmente saber de que forma Napoleão o mandou matar, pois teve
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de recorrer, dentro dos limites da discrição que a façanha exigia, ao processo mais cruel que lhe foi possível encontrar. Pelos sintomas descritos por Amiot, é lícito pensar que além do frio a que ficava exposto Toussaint, uma pitada de arsénico pode haver ajudado a completar a obra. Era um método comum na época, sobretudo nas prisões dos tiranos, mas talvez fosse suave demais na mente do vencido de Saint-Domingue. Thomas Madiou, com base no testemunho do capitão de artilharia Colomier, da guarnição de Pontarlier, que se espantou com o martírio que Toussaint teve de suportar, diz que ele teria morrido de fome. Colomier, que estava presente quando o cadáver foi descoberto, teria recusado — assim como o prefeito de Pontarlier — entregar ao carrasco um certificado que atestava o contrário. Amiot teria feito esforços vãos para acalmar Colomier. Em Pontarlier murmurava-se que um crime horrendo havia sido cometido contra um prisioneiro do Estado. É claro que o executor mandou fazer uma autópsia a fim de demonstrar que Tousaint não havia morrido nem de fome nem envenenado.
Outra explicação, que aliás não é incompatível com as anteriores, é fornecida por Étienne-Louis Michel, republicano parisiense, perfumista de ofício, preso devido ao atentado da rua Saint-Nicaise e que portanto faz parte dos trinta happy few autorizados pela historiografia oficial a se adornar com o título de deportados. Quis o acaso
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que em julho de 1803 ele sucedesse a Toussaint, morto na mesma masmorra algumas semanas antes. Jean Destrem, ele próprio descendente de um dos republicanos perseguidos pelo ditador, publicou em 1885 em Les déportatkms du Consulat et de VEmpire (As deportações do Consulado e do Império), uma carta inédita de 22 de outubro de 1803, dirigida por Michel a sua mulher. Claro que a carta foi interceptada pela polícia secreta de Bonaparte. Mas os espiões a terão lido bem? Seja como for, deixaram de lado a missiva sem ter tido a inteligência de destruí-la. O pobre Michel, que estava preso unicamente por causa de suas idéias, narra sua descida aos infernos. “Fizeram-nos atravessar”, diz ele, “uma abóbada onde a água se filtra através das pedras e a certa distância desse subterrâneo nos mandaram entrar em uma casamata, ou melhor, numa masmorra.” Quando ele afirma que “as prisões de Paris são mais salubres” imagina-se que aquele lugar nada tivesse a ver com o palácio das Tulherias, de onde o assassino mandava suas ordens. “As paredes têm um metro e meio de espessura”, explica Michel, “e o pé- direito um metro e vinte de altura.” Pela descrição do preso, pode-se perceber que a sofisticação do sistema carcerário reservado a Toussaint é digna da gaiola de madeira da torre Famese na qual, no romance de Stendhal, outro tirano grotesco tentou matar o herói. Eis o sistema de vigilância e de execução imaginado na masmorra de Toussaint: “Há três grades de ferro. Entre elas,
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ergue-se uma parede de noventa centímetros de altura: o ar permitido para respirarmos circula somente através de uma abertura no alto. Essa abertura tem 30 centímetros de altura e 50 de largura; do lado de fora há uma grade de malha de arame e uma veneziana que fica fechada todas as tardes, meia hora antes do escurecer.” A veneziana era acionada por um dos guardas e permitia portanto bloquear a entrada de ar na masmorra. “Um sentinela fica postado dia e noite próximo ao topo. Quando a veneziana é fechada, resta-nos somente, para respirar, o ar que circula pela chaminé, com um mau odor que penetra em nossa masmorra pela porta que não se fecha completamente.” Os dois infelizes que se encontravam na masmorra, portanto, somente podiam respirar quando se colocassem sob a chaminé. Ainda sofriam mais porque eram obrigados a suportar “o mau cheiro de [seus] excrementos, que só eram retirados a cada 24 horas”. O pobre perfumista não tinha tido sorte. “Para poder resistir”, continua ele, “éramos obrigados a nos colocar sob a chaminé a fim de respirar o ar.” E acrescenta: “Foi ali que morreu Tòussaint Louverture.”
Com efeito, na manhã de 7 de abril de 1803, Amiot, acompanhado por Colomier, encontrara Tòussaint sem vida e encostado na chaminé descrita por Michel. O sufocante sepulcro era ainda mais letal por ser glacial: “Essa casamata, ou masmorra, é de tal maneira fria, devido à espessura das paredes e à falta de ar”, assegura o
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perfumista, “que não nos foi possível resistir sem fogo no mês de termidor [julho-agosto], deitados num catre miserável que consistia em um colchão de crina e palha carcomida.” Quando o fogo ficava aceso na lareira e a respiração se tomava impossível por essa via, por causa da fumaça, não era possível sobreviver sem aeração do exterior. A detenção naquela masmorra equivalia a uma condenação à morte. Se durante o verão não era possível resistir sem fogo na cela, pode-se imaginar o que seria em pleno inverno. “Depois de muitas preces e súplicas”, conclui Michel, “e quando se verificou que nossos corpos não poderiam resistir, [o comandante de armas] não mandou mais fechar a veneziana da abertura superior.” Essa descrição é confirmada por uma petição ao ministro da Justiça assinada não somente por Michel, mas também por três outros presos republicanos que na época estavam com ele no forte de Joux: Jean-Michel Brisvin, Joseph Château e Claude Foumier. Esses homens, dos quais dois estavam na cela de Toussaint Louverture, agora arejada, suplicavam mesmo assim que “os encarcerassem em um local são e salubre”.
“Desde nossa chegada [estamos] encerrados”, dizem eles, “em casamatas, dois de nós deitados em um catre ordinário, vendo a luz do dia somente através de uma abertura de 60 centímetros, enterrados em paredes de metro e meio de espessura. Há três grossas grades de ferro a pouca distância umas das outras. Nesse lugar
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horrendo, somos obrigados a acender o fogo durante o ano inteiro. Para chegar às masmorras, é preciso passar por sob as abóbadas com uma lanterna. A água escorre pelas pedras. Somente vemos os que nos trazem os víveres a cada 24 horas. Além disso, [temos] de suportar os incómodos diários. Nossa saúde se debilita todos os dias por estarmos encerrados.”
Étienne-Louis Michel escapou por pouco de uma morte certa: “Depois de muitas súplicas e preces”, diz ele, “[o comandante de armas] nos tirou daquele horrível alojamento; colocou-nos em uma casamata acima do calabouço. O ar ali é salubre e puro, e depois de estar vivendo [nesse lugar], assim como meus companheiros de infortúnio, gozamos de boa saúde.”
O prisioneiro republicano fornece além disso algumas informações sobre Amiot, o carrasco de Toussaint, evocando “a ferocidade desse animal bruto e malvado”.
Os testemunhos desses quatro detidos atestam assim, da maneira mais formal, que Napoleão assassinou Toussaint Louverture. Por sua ordem, a cela foi arrumada de maneira que ele tivesse de escolher entre morrer de frio ou morrer sufocado. Nada poderia, aliás, impedir que esse regime fosse acelerado com um pouco de arsénico e combinado com uma privação prolongada de alimentos.
Em Santa Helena, segundo 0 ’Meara, Napoleão teria comentado os rumores malévolos que naturalmente
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só poderiam ter sido difundidos por antibonapartistas primários: “Que interesse”, teria ele dito, “poderia eu ter em mandar matar um negro depois de sua chegada à França? Se ele tivesse morrido em Saint-Domingue, então, sem dúvida, alguém poderia suspeitar de alguma coisa, mas após ter chegado são e salvo à França, qual poderia ter sido meu objetivo?”
Essa demonstração não é muito convincente. Claro que não haveria mais interesse em matar Toussaint do que em deportá-lo, pois isso não impediu o desastre. Mas a deportação era apenas mais uma maneira de provocar a morte. A defesa canhestra do criminoso pelo menos tem o mérito de esclarecer um ponto: todos os “negros” mortos em Saint-Domingue nos autorizam a “suspeitar de alguma coisa”.
Uma coisa é certa: Toussaint não morreu ingénuo, pois em um memorial dirigido a seu pior inimigo ele afirma: “Sem dúvida, devo esse tratamento à minha cor!”
Não somente os deportados haitianos e guadalupen- ses tiveram de sofrer. Napoleão se vingou do malogro de seus projetos racistas em todos os “negros” e “gente de cor” que já se encontravam na França antes da partida das expedições. Quantos eram? Alguns milhares. Entre eles, várias centenas de soldados da República.
Pouco depois do restabelecimento da escravatura, em 29 de maio de 1802, Napoleão assinou três decretos
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secretos e distintos. Um visava os militares “de cor”, outro os militares “negros” e o terceiro organizava companhias auxiliares “negras”.
É preciso saber que uma chuva de decretos já havia reformado, ou iria reformar, todos os militares “negros” e “de cor” que se encontravam no território metropolitano. Já não haveria nenhum deles em serviço ativo, salvo os soldados rasos repartidos em três companhias auxiliares de cem homens. Cada uma dessas companhias ficava estacionada em uma ilha a fim de evitar qualquer “contaminação”: Hyères, Aix e Oléron. Claro, o decreto explica que elas seriam comandadas por três “oficiais brancos”. Se Napoleão não queria “negros com dragonas” no Haiti nem em Guadalupe, não seria para que eles viessem para a França. Toussaint já havia sido secretamente excluído do exército francês em março de 1801. A vez do general Dumas não tardaria em chegar. Era a ocasião para ajustar velhas contas.
Por outro decreto, também de 29 de maio de 1802 (9 de prairial Ano X), todos os militares “de cor”, mesmo reformados, foram obrigados, exceto por derrogação excepcional concedida pelo Primeiro Cônsul, a residir nos municípios da primeira região militar, que compreendia o Sena, o Sena-e-Mame, o Aisne, o Sena- e-Oise, o Oise, o Loiret e o Eure-et-Loir.
As medidas eram mais severas para os que tinham a pele mais escura (os “negros”). Esses, especificamente
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objeto de um terceiro decreto da mesma data, “serão obrigados a domiciliar-se no departamento dos Baixos- Pireneus ou dos Alpes-Marítimos”. Assim, por fantasia do déspota, nenhum militar “de cor” poderia ser autorizado a residir a menos de cem quilómetros de Paris. Ba- yonne — onde a família de Toussaint recebeu ordem de residir — e Nice tornaram-se cidades para oficiais negros. Essas medidas abertamente racistas eram sem dúvida destinadas a evitar qualquer possibilidade de complô interno. Alguns hoje em dia diriam que era para impedir o “racismo contra os brancos”.
Em 2 de julho (13 de messidor Ano X), um novo decreto, desta vez publicado, foi ainda mais longe. Somente seria revogado em 5 de agosto de 1818.
Retomando de certa forma uma declaração do rei de 9 de agosto de 1777, o decreto proibia aos “negros, mulatos e outras pessoas de cor entrar sem autorização no território continental da República”. Todos os infratores seriam presos e detidos até serem deportados; mas a diferença entre esse decreto e a declaração de 1777 é que esta última, a fim de ser aplicada, deveria ser adotada por cada parlamento, coisa que diversos se recusaram a fazer. O decreto do Primeiro Cônsul, ao contrário, por não estar sujeito a poder contrário algum, era imediatamente aplicável. Para os “negros” e as “pessoas de cor”, a monarquia talvez valesse mais do que a ditadura. Vários interessados, inclusive a companheira de Delgrès ao caminhar para a forca, não deixariam de dizê-lo.
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Graças a Napoleão, foram reativados nos portos os “depósitos de negros” do Antigo Regime, o que equivalia a um campo de concentração a mais em cada porto. Os textos previam, com efeito, que “todo indivíduo negro ou de cor [...] será colocado, por ordem do capitão do porto ou do comissário da Marinha, em um depósito de onde somente sairá para ser recambiado pelo mesmo navio que o trouxe ou por qualquer outro meio mais expedito, se possível”. Na prática, os indesejáveis seriam reembarcados no primeiro navio que partisse para qualquer colónia francesa onde a escravatura estivesse em vigor (isto é, qualquer outra menos o Haiti). Ao chegarem aos trópicos, os infratores seriam vendidos em nome do Estado.
A medida foi aplicada severamente e a caça aos “negros” se inaugurou no território francês. Em 1804, os prefeitos foram convidados “sem estardalhaço” a registrar “todos os negros ou homens de cor que não pertencessem a nenhum senhor [...] cuja ociosidade, vagabundagem ou falta de meios de subsistência tornem perigosos para a tranquilidade pública”. O ministro da Guerra indicou “a intenção do governo de fortalecer a segurança interna por todos os meios possíveis e de utilizar em algum serviço público essa classe de indivíduos”. Em 1807, os prefeitos foram convidados a “mandar procurar todos os indivíduos dessa espécie que se introduzam no interior após haver ludibriado a vigilância das autoridades quando de seu de
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sembarque ou depois de escaparem dos depósitos”. Ainda em 1807, Napoleão, tomado por nova crise de paranóia negrófoba, pensou até em mandar expulsar da França todos os “negros”. Exigiu que os prefeitos elaborassem uma lista. A idéia era eliminar “os negros sem fortuna cuja presença somente pode multiplicar os indivíduos de sangue misturado”.
Não é preciso dizer que os alunos “negros” ou “de cor” das escolas foram excluídos de seus estabelecimentos de ensino. Os estudantes das escolas politécnicas protestaram contra a expulsão racista de vários dentre seus colegas. Isso parece provar que em 1802 havia alunos “negros” ou “de cor” nessas escolas.
No mesmo espírito, ocorreu em outubro do mesmo ano o fechamento definitivo da Instituição nacional das colónias onde se encontravam crianças — de todas as cores — das famílias abastadas do ultramar (e em particular, desde 1797, os jovens Louverture). Esse estabelecimento era o sucessor da escola de Liancourt, instalada no Oise pelo duque de La Rochefoucauld.
A medida era grave porque Napoleão mandou igualmente fechar todas as escolas das colónias rebeldes. Dali em diante, os colonos enviariam seus filhos para estudar na França. Os demais permaneceriam ignorantes. Mesmo sendo livres, não poderiam mais entrar na metrópole.
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As consequências dessa medida ainda são perceptíveis não somente no Haiti, que tem 60% de analfabetos, mas também, infelizmente, em certos departamentos ultramarinos.
Para tranquilizar Leclerc, Henry Christophe teve a má idéia, em fins de setembro de 1802, de mandar seu filho à Instituição nacional das colónias. Estranhamente, ele seria encontrado morto num asilo de crianças abandonadas. Mas, segundo a fórmula consagrada pelo herói, “que interesse poderia [ele] ter em provocar a morte de um negro depois de sua chegada à França?”.
Mas isso ainda não era tudo. Em sua ira ao saber da perda de Saint-Domingue, Napoleão resolveu proibir, no território metropolitano, os casamentos entre pessoas de cor de pele diversa. Alguém observou-lhe que isso contrariava o Código Civil. Pouco lhe importava. Ele era o chefe. A lei era ele. O governo era ele. A França era ele. Nada de “negros”! Acabemos com os “negros!” Morte aos “negros”! O ministro da Justiça, Ambroise Régnier, que já era cúmplice da lei sobre o restabelecimento da escravatura, teve a idéia de fazer adotar a medida em forma de circular dirigida aos governadores de todos os departamentos. Orgulhoso com sua idéia, assinou sua obra-prima em 8 de janeiro de 1803 (18 de nivose Ano XI): “Convido-vos, cidadão governador, a fazerdes saber no prazo mais curto aos prefeitos e adjuntos, na função de oficiais do estado civil, em todos os
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municípios de vosso departamento, que a intenção do governo é que não seja aceito nenhum ato de casamento entre brancos e negras nem entre negros e brancas. Encarrego-vos de velar para que estas instruções sejam exatamente cumpridas e de relatar-me o que tereis feito para assegurar-vos disso.”
Assim, em cada departamento, no início de 1803, cada governador por seu turno dirigiu uma circular a cada prefeito, a fim de que aquelas uniões fossem proscritas. Sem dúvida medidas semelhantes deixam marcas nas mentalidades, no interior das províncias e dos campos, muito tempo depois de serem abolidas. No caso, nada permite pensar que essa iniciativa de Napoleão tenha sido revogada antes do reinado de Carlos X.
Nos primeiros anos do século XIX, os prefeitos — que tinham certeza do que fosse um “branco” ou uma “branca” — passariam a interrogar-se a fim de saber o que se devia entender por “negro” ou “negra”. Deveriam ser incluídas as “pessoas de cor”? Existiria um catálogo oficial de nuances para a aplicação dessa circular ?_Em_23^ejnaio^e_1806_o tribunal de Bordeaux “A Sra. Crouseilles contra a própria filha” decidiu que o casamento de um “mulato” com uma “branca” era lícito, estando somente proibido o casamento entre um “branco” e uma “negra” ou entre uma “branca” e um “negro”. Baseado nessa jurisprudência, um procurador de La Rochelle, Fontenelle de Vaudoré, em seu Manuel
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raisormé des officiers de VÉtat-Civã (Manual comentado dos oficiais do registro civil), declarou em 1813: “Como os dispositivos de proibição não devem nunca ser extensivos, penso que [a circular] não se aplica às pessoas de cor oriundas da mistura da raça branca com a raça africana. Creio portanto que os mulatos e os quarterons podem desposar brancas e que as mulatas e as quarteronnes podem unir-se a brancos. Com mais razão o casamento é permitido a indivíduos de sangue misto, qualquer que seja a mescla de tons.” No período da Restauração, o debate continuava. François Hutteau d’Origny, advogado da Corte, constatou em 1823 que aquele dispositivo havia sido revogado por ser contrário à lei de 16 de outubro de 1791, que assegurava o gozo dos direitos da nacionalidade francesa a todo homem, qualquer que fosse sua cor, que possuísse as qualidades prescritas para exercê-los.
Jean-Guillaume Locré, advogado e ex-secretário geral do Conselho de Estado, que conheceu Bonaparte e havia estudado suas leis “raciais”, nos informa em seu Commentaire et complément des codes françois (Comentário e complemento dos códigos franceses) _̂de 1827, que “mesmo assim, o governo às vezes concedeu dispensas desse empecilho. Numa decisão inédita de 17 de abril de 1812 existe um exemplo que permitiu a um negro, ligado ao serviço de Mme Bonaparte, casar-se com uma mulher branca”. Novamente aí está Joséphine com seus “negros”!
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Em 1837 ̂Rieff, ex-procurador de Colmar, suscitou ainda, em seus Commentaires sur la loi des actes de Vétat ci- vã) (Comentários sobre a lei dos assentamentos do registro civil), esse “caso bastante raro, mas que não obstante pode ocorrer, [..] no qual um branco queira casar-se com uma negra ou um negro com uma branca”. Sem dúvida, admitiu o magistrado, “a lei não proibiu essa união; no entanto o governo, por motivos poderosos, acreditou que esses casamentos não deveriam ser tolerados”.
Vê-se que a monstruosa circular ditada a Ambroise Régnier em 18 de nivoso do Ano XI “por motivos poderosos” fez muita tinta ser gasta. E talvez muitas lágrimas.
Após a morte de Toussaint, sua família foi abrigada em Agen pela irmã do cavaleiro de São Jorge, Élisabeth- Bénédictine de Clairefontaine. O caçula — Saint-Jean Louverture — havia morrido de tristeza ao saber do assassinato do pai. Muito mais tarde, o primogénito, Placide, filho adotivo de Toussaint, pretendeu casar-se com uma jovem dos arredores de Agen. Como os oficiais do registro civil se recusassem a redigir a certidão, aplicando a circular de Ambroise Régnier, ele foi obrigado a escrever ao ministro da Marinha em 13 de novembro de 1816 para solicitar “autorização para casar-se com uma moça branca” e argumentar a fim de demonstrar que a circular não lhe era aplicável, porque a cor de sua pele “o afastava do negro”. Tal demonstração não deve ter produzido efeito, porque Placide somente se casou cinco anos depois. Os
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descendentes do casal proibido por Napoleão são hoje numerosos na região de Agen e de Astaffort.
Que teriam pensado, se é que ouviram, em 12 de outubro de 2005, pouco antes das 13 horas, nas ondas de uma emissora pública da Radio France, um conhecido apresentador, Louis Bozon, explicar professoralmente às crianças que um casamento misto é “um casamento entre duas pessoas de raças diferentes”?
Que pensarão eles, se ficarem sabendo que Ambroise Régnier, o homem que preparou para Napoleão a lei sobre o restabelecimento da escravatura, signatário da circular racista de 18 de nivoso do Ano XI que proibia os casamentos “entre um branco e uma negra ou entre um negro e uma branca”, está hoje no Panteão?
Dirão, certamente, que a Pátria é grata aos grandes homens!
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Assim, em 1802-1803, por ordens de Napoleão, 250 mil franceses, principalmente antilhanos, guianenses e naturais da ilha da Reunião, foram escravizados. Entre eles, 100 mil guadalupenses e guianenses que eram efe- tivamente reconhecidos como cidadãos, 150 mil mar- tinicanos, mauricianos e naturais de Reunião que na verdade eram cidadãos somente para constar, graças a um texto admirável que Napoleão jamais considerou aplicar-lhes, nem mesmo em sonhos.
Bonaparte, organizando conscientemente um verdadeiro genocídio, mandou matar em Guadalupe e no Haiti ao menos cem mil pessoas de origem africana: não somente os que haviam resistido, de armas na mão, contra o restabelecimento da ordem escravista, mas várias dezenas de milhares de civis, sem distinção de idade nem de sexo, torturados, violados, asfixiados, afogados, fuzilados, postos na roda, crucificados, degolados, estrangulados, enforcados, mortos de fome, envenena-
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dos, queimados ou devorados vivos, simplesmente por causa da cor de sua pele.
Vários milhares de antilhanos, que na maioria pertenciam à elite de Guadalupe ou do Haiti, morreram na deportação em condições abomináveis, simplesmente por haverem dito não ao inaceitável.
Por causa de Bonaparte, 70 mil franceses europeus ou de origem européia— 60 mil soldados e marinheiros e cerca de 10 mil civis — morreram também, por ocasião das operações de restabelecimento da escravatura.
Os defensores do tirano apresentam às vezes algumas ações punitivas de certos resistentes contra a população civil — sobretudo em Saint-Domingue —, procurando justificar os horrores cometidos pelos escravistas. Essa mesma música foi tocada em relação à Argélia. Claro, os patriotas algumas vezes cometeram crimes odiosos. Mas além do fato de que esses crimes nada têm a ver em número e intensidade com os que foram sistematicamente perpetrados pelas tropas de Napoleão, os ativistas que os cometeram agiram apenas em legítima defesa, reagindo a outros crimes infinitamente mais bárbaros e diante de uma ameaça de volta à escravidão e de genocídio. A maior parte desses resistentes já havia provado os horrores da escravidão e os suplícios que lhe eram ligados. Uma parte deles também já tinha conhecido a deportação de suas terras natais na África, onde apenas desejavam viver em paz. O que fizeram com eles foi portanto
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pelo menos tão violento quanto o que eles pudessem ter feito a outrem. Assim como era responsável pelos soldados que enviou à desonra e à morte, Napoleão é verdadeiramente o único responsável pelas vítimas civis de origem européia. Ao decidir restabelecer a escravatura e destruir uma população que após haver conhecido a servidão gozava enfim da liberdade, ele sabia que a violência provocaria sempre a violência, que a barbárie incita sempre ao revide, quando este é possível. Naquela situação, esse não era o caso. Agindo assim, ele assumiu deliberadamente o risco de sacrificar os “brancos” que se encontravam no local, traindo até mesmo sua famosa profissão de fé racista. “Sou a favor dos brancos porque sou branco”, dizia ele. Mas ao pretender restabelecer a escravidão em Saint-Domingue ele sacrificou também os “brancos” que lá habitavam. Se isso era tão importante para ele, Napoleão deveria ter refletido. Mas na verdade, se era contra os “negros”, isso não significava que fosse “a favor dos brancos”. Desprezando a humanidade, ele pensava somente em si próprio, isto é, não era a favor de ninguém.
Por sua causa, pelo menos 200 mil africanos foram deportados para as colónias francesas e um milhão de outros perderam a vida durante essas operações de deportação, se considerarmos o número de cinco africanos mortos para cada escravo desembarcado nas Antilhas.
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Um milhão, cento e setenta mil vítimas, das quais 170 mil franceses! 450 mil escravos! e tudo isso por um pouco de açúcar!
Mesmo do ponto de vista colonialista, trata-se de um fracasso: a França perdeu sua colónia de Saint-Do- mingue e até mesmo a Louisiana, que Napoleão, por raiva, vendeu por migalhas aos americanos em 1803, abandonando todos os franceses que lá se encontravam e que não o perdoaram.
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E verdade que a França escravista foi compensada ao extorquir do Estado haitiano uma indenização de 90 milhões de francos-ouro, o que corresponde aproximadamente ao valor dos escravos perdidos.
“Tudo passa rapidamente sobre a Terra, menos a opinião que deixamos gravada na história”, escreveu o filósofo de botas a seu cunhado Leclerc.
Em Santa Helena, Napoleão e seus íntimos trataram de construir uma lenda numa prisão dourada, onde levavam vida mais alegre do que a do forte de Joux ou a dos campos de concentração para “negros”.
Compreenderam perfeitamente que havia algo indefensável em sua epopéia: não o restabelecimento da escravatura, que pouco lhes importava, e sim a perda da antiga colónia francesa de Saint-Domingue e a morte suspeita de um homem da têmpera de Toussaint.
A primeira estocada foi dada em 31 de março de
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1814 por um escritor famoso, Chateaubriand. Não so-Ir" i ■
mente o furioso negreiro, autor do Génie du chris- tianisme (O gênio do cristianismo), acusou o grande homem, num cortante panfleto, De Buonaparte et des Bourbons (Sobre Buonaparte e os Burbons), de haver “perdido nossas colónias, aniquilado nosso comércio e aberto a América para os ingleses”, mas recordou que “Toussaint Louverture foi raptado à traição na América e provavelmente estrangulado no castelo onde foi encarcerado na Europa”. Acusando o ditador de ser um apátrida que desprezava profundamente seu país de adoção, Chateaubriand chegou a esquecer seus próprios preconceitos para dizer, com desprezo: “Se Buonaparte é francês, é preciso necessariamente dizer que Toussaint Louverture também o era, tanto ou mais que ele: pois afinal havia nascido em uma velha colónia francesa e sob leis francesas: a liberdade que recebeu lhe deu os direitos de súdito e de cidadão.”
Diante desses ataques, os homens de Santa Helena tentaram construir uma apologia a fim de deixar, apesar de tudo, uma “opinião” positiva para a posteridade. Sem jamais arrepender-se de ter restabelecido a escravatura e realizado um genocídio, pois disso ainda não tinha sido acusado, Napoleão foi obrigado a reconhecer um pouco de sua culpa pela perda de Saint-Domingue e seu desprezo pelo valor de Toussaint Louverture. É claro que ele não deixou de justificar-se imediatamente.
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Deixemos de lado o argumento lamentável e vulgar da responsabilidade de Joséphine, para recordar as explicações de Las Cases: “O Imperador”, diz-nos o autor do Mémorial de Sainte^Hélène (Memorial de Santa Helena), “ [...] nada mais fez do que ceder à opinião do Conselho de Estado e à de seus ministros, influenciados pelas lamentações dos colonos. O exército que foi enviado para lá tinha apenas 16 mil homens. E era insuficiente. Se a expedição fracassou, foi puramente por circunstâncias acidentais, como a febre amarela, a morte do general-em-chefe, sobretudo os erros que ele cometeu, e uma nova guerra.” Las Cases acrescenta um argumento interessante: Leclerc não teria entendido nada. Napoleão lhe teria dito que se escorasse nos “mulatos”, e ele, pobre daltónico, teria confiado nos “negros”. Daí a catástrofe.
Para Montholon, Napoleão, em abril de 1816, apresentou Toussaint como o verdadeiro responsável. Foi ele quem teria começado, ao provocar a Nação por meio de uma constituição separatista. “Desde então, a honra da França dominou todos os demais interesses; a República fora ultrajada; entre todas as maneiras de proclamar sua independência e arvorar o pavilhão da rebelião, o general negro escolhera a mais insolente. A partir daquele instante, nada mais havia a deliberar; a honra e os interesses franceses me aconselhavam a lançar ao nada os chefes negros, que a meus olhos nada
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mais eram do que africanos ingratos e rebeldes.” Lançar ao nada? Que confissão!
Mais tarde, uma vez suprimidos definitivamente o tráfico e a escravidão, os fanáticos, sem argumentos para defender o homem que restabeleceu e tomou mais severo o Código negro, assinalariam que Napoleão mesmo assim aboliu o tráfico em 25 de março de 1815, esquecendo-se de precisar que essa medida já havia sido imposta pelo tratado de paz de 30 de maio de 1814 e que o de 20 de novembro de 1815 faria o mesmo, sem dar atenção, aliás, à iniciativa hipócrita de Bonaparte, que nunca enganou ninguém. Além do fato de que a abolição do tráfico de 1815 não foi acompanhada pela abolição da escravidão nem pela regulamentação “racial” napo- leônica, e de que essa decisão tardia não apaga de forma alguma o crime de 1802, é preciso saber que esse argumento não consegue demonstrar que o Imperador, mais tarde, tenha sentido o menor remorso nem o mínimo arrependimento. O homem dos Cem Dias simplesmente tomou uma medida sem significação concreta porque, já não tendo colónias nem Marinha, esse gesto era simplesmente destinado, pelo que se percebe, a lisonjear os ingleses,Lçjuej3orjuaj^ezhaviamjiboM ^807. Além disso, como o açúcar começava a ser explorado a partir da beterraba graças à refinaria instalada em Passy por Delessert, Napoleão havia proibido a importação do produto da cana desde lõ de janeiro de 1813.
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Portanto, invocando Joséphine, os colonos, a opinião francesa, Toussaint, a falta de sorte, a febre amarela e os subordinados, nem uma só vez Napoleão aceitou as imputações. Contentou-se em dizer que simplesmente manteve a escravatura onde ela já existia e que jamais deu ordem positiva para seu restabelecimento em Saint-Domingue. O crime sempre vem acompanhado da mentira. E, naturalmente, nunca conseguiu explicar-se a respeito de Guadalupe e da Guiana, que de resto pouco lhe importavam.
Como primeiro ditador racista da história, Napo- leão tem sua parcela de responsabilidade não somente por todos os crimes coloniais cometidos posteriormente pela França, mas também por todos os do nazismo, que ao que parece se inspirou no Imperador como modelo.
O crime de Napoleão causou à França feridas tão profundas que foi preciso ocultá-lo. Todos os dias ela sofre ainda os efeitos do racismo de Estado estabelecido naquela época. Castigos tão assustadores quanto os levados a efeito pelas ordens recebidas pelos soldados de Bonaparte, textos tão monstruosos quanto os que ele assinou ou determinou, teorias tão abomináveis quanto as que ele estimulou no próprio seio de sua universidade imperial, verdadeira máquina de controle do pensamento, tudo isso deixa sequelas duradouras. E, se a escravatura foi abolida em 1848, o racismo continua a
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existir, horrendo e estúpido como sempre. Nesse sentido, enquanto não é denunciado, o crime de Napoleão continua a ser cometido.
Não se trata da instrução de um processo contra um homem que já não pode se defender, e sim de impor um mínimo de respeito devido aos descendentes das vítimas antilhanas e africanas de Bonaparte aos que se obstinam a glorificá-lo cegamente, e que sem dúvida considerarão tudo o que acaba de ser suscitado como simples “questão de detalhe”. Ofender esses descendentes é ofender também os mártires de todos os crimes contra a humanidade, una e indivisível. Recordando seu próprio genocídio, os haitianos fizeram questão de figurar, durante a Segunda Guerra Mundial, entre os raros povos a conceder asilo e nacionalidade a todos os judeus perseguidos que solicitassem isso.
Meditando sobre esse exemplo, os herdeiros de todos aqueles que sofreram a deportação, a humilhação, a desumanização, o extermínio — qualquer que seja a cor de sua pele, qualquer que seja a época do crime, qualquer que seja sua extensão — não devem esquecer nunca que estão unidos não apenas pela fraternidade natural da humanidade, mas também por uma fraternidade de sofrimento que a história lhes impôs.
Em nome desses herdeiros de todos os mártires, restituir aos descendentes das vítimas de Napoleão a verdade a que têm direito, e que lhes é recusada há dois
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séculos, é uma forma de contribuir para eliminar algum dia o flagelo do racismo, do qual Napoleão foi incontestavelmente, junto com Hitler, um dos propagadores mais ardentes e mais culpados.
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