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Os 7 portais de jaspe | Quinto Portal

Jul 23, 2016

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Trecho do livro Os 7 Portais de Jaspe. O protagonista é um dos líderes de uma greve no final da ditadura militar do Brasil. Saiba mais sobre o livro em www.7portais.com
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Os 7 Portais de Jaspe

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ano era 1986, declarado pela ONU como “O ano internacional da paz”. Jaspe chegava aos 28 anos de idade.

Depois de vinte anos, o Brasil inicia seu primeiro ano como um país democrático. Era governado por José Sarney, que assumira a presidência em substituição a Tancredo Neves, que havia sido eleito pelo voto indireto, mas falecera antes de tomar posse.

Em fevereiro, o presidente Sarney cria o Plano Cruzado, primeiro plano econômico em grande escala apresentado pelo governo depois do fim da ditadura. A medida mais impactante desse plano na vida dos brasileiros foi o congelamento e tabelamento de preços e salários.

Ocorre que, na prática, a economia tem suas leis próprias e não pode ser regida por decretos. Assim, na vida real, a lei da oferta e procura falou mais alto. O jeitinho brasileiro entrou em cena rapidamente e se estabeleceu um mercado paralelo no qual os verdadeiros preços – que naturalmente não estavam congelados –, eram praticados mediante a aplicação de “ágio” sobre a tabela oficial.

O mais incrível, o inacreditável mesmo, é que o governo conseguiu manipular números, ocultar e distorcer informações até as vésperas das eleições para governadores. Assim, em novembro de 86, o PMDB, partido do presidente Sarney, elegeu seus candidatos em 23 dos 24 estados existentes!

Dessa forma, sob o ponto de vista eleitoreiro, o Plano Cruzado fora um sucesso. Entretanto, passadas as eleições, a verdadeira face da economia precisou ser apresentada: uma inflação acumulada de 80% naquele ano, com consequências desastrosas para o Brasil.

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O acidente nuclear de Chernobil, na Ucrânia, choca o mundo e dá um alerta sobre os riscos da utilização desse tipo de energia.

Bandas como Engenheiros do Hawaii, Titãs, Legião Urbana, Os Paralamas do Sucesso, Capital Inicial e Ira mostram a cara do rock brasileiro.

Uma das consequências do fim do Plano Cruzado foi a proliferação de movimentos grevistas Brasil afora. Até que, em abril de 87, a greve chegou à empresa estatal na qual Jaspe trabalhava.

A greve parecia justa aos olhos de Jaspe. Entretanto, por seu perfil mais técnico que político, preferiu não se envolver com aquilo, deixando que o sindicato, a direção da empresa e os próprios grevistas se entendessem.

A paralisação chegou ao terceiro dia e parecia tudo transcorrer dentro da normalidade. Piquetes foram montados nas portarias da empresa, mas não eram violentos; apenas distribuíam panfletos, tentando informar aos empregados os motivos da greve e o teor das reivindicações. Quem quisesse podia entrar para o trabalho, sem resistência dos grevistas e militantes.

À noite, Jaspe foi até o centro da cidade para comprar um medicamento. Chegando lá, percebeu que o sindicato havia improvisado um palanque no coreto da praça, onde alguns militantes discursavam para quarenta ou cinquenta pessoas que se ajuntaram ao seu redor.

Tentando ficar indiferente ao movimento a sua frente, ele estacionou o carro um pouco antes do local e foi caminhando até à farmácia, que ficava do outro lado da praça.

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De repente, surgem em alta velocidade umas dez viaturas da polícia. Em uma manobra bem ensaiada, cercam a praça com seus carros, os veículos são colocados lado a lado e as portas são abertas. Os policiais, quatro em cada carro, abrem as portas e, usando-as como escudos, posicionam-se de pé atrás delas. A seguir, miram suas armas para o centro da praça. Apenas um deles não estava armado com fuzis; em vez disso, portava uma potente máquina fotográfica.

Na sequência, os militares começam a provocar o grupo, inicialmente com palavras:

– Seus vagabundos, voltem para suas casas! - gritou um.

– Bando de chifrudos, vocês sabem o que as suas mulheres estão fazendo agora? - ironizou outro.

– Vamos, vocês não são homens, venham ver o que temos para vocês! - gritou o que estava na linha de frente, levantando a arma.

Ao perceber a provocação, o homem que estava com a palavra naquele momento buscou orientar e acalmar os ânimos da plateia:

– Companheiros, calma, calma! Estão tentando nos desequilibrar emocionalmente.

– Isso mesmo – argumentou outro, tomando-lhe o microfone. – Se demonstrarmos qualquer sinal de rebelião, terão o álibi que precisam para nos atacar.

A essa altura, Jaspe já estava no meio da praça, passando muito próximo ao grupo. Ali, viu-se paralisado. Se tentasse sair, correria o risco de ser açoitado pelos próprios companheiros, confundido com um pelego; se ficasse no exato local onde se encontrava, seria um alvo fácil dos policiais; se se ajuntasse mais ao grupo, ficaria difícil provar que não estava ali desde o começo.

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E, enquanto pensava, o destino decidiu por ele: após alguns tiros para o alto, os policiais começaram a lançar bombas de gás lacrimogênio, queimando seus olhos e sua garganta. Na correria, caiu, foi pisoteado e ainda levou um golpe de cassetete.

Puxa vida! Aquilo parecia um pesadelo. Foi inevitável que Jaspe se lembrasse da cena da prisão de seu pai, que ele testemunhara na época da ditadura. Sentia muita raiva, uma raiva que doía mais até que a dor provocada pelas pancadas e a ardência nos olhos. E, repetidamente, perguntava-se:

– Mas, a ditadura militar não acabou?!

Aquela tortura ainda duraria cerca de uma hora, com os “manifestantes” encurralados num canto da praça, sendo liberados em pequenos grupos de quatro ou cinco pessoas.

Duas horas depois, Jaspe conseguiu chegar a sua casa, encontrando Safira enfurecida com o que poderia ter acontecido ao seu marido que, na sua visão, sequer tivera a delicadeza de pegar um telefone público e ligar para dizer sobre seu paradeiro.

Ao vê-lo, entretanto, o sentimento da bela mulher mudou rapidamente da raiva para a compaixão.

– Meu Deus? O que fizeram com você, parece que veio de uma guerra! - exclamou ela, abraçando-o e encaminhando-o para um banho.

Sem entender direito o que havia acontecido na noite anterior, e com a greve caminhando para o quarto dia, Jaspe levantou-se e foi para o trabalho.

Ao chegar à companhia, qual não foi o seu susto: o principal jornal da cidade sendo distribuído gratuitamente, pela empresa, para os trabalhadores que entravam na fábrica.

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Susto maior foi ver sua foto estampada na primeira página, sob a manchete sensacionalista que dizia: “Baderneiros obrigam a ação da polícia no centro da cidade”.

Aquilo era inacreditável! Agora estava evidente que a encenação policial da noite anterior usara o mesmo artifício daquele episódio do Rio Centro, no qual, guardadas as devidas proporções, viam-se representantes do Estado plantando provas para incriminar o cidadão. Só para lembrar, naquele episódio, em 30 abril de 1981, durante um show em comemoração ao Dia do Trabalho, “terroristas” contrários ao regime militar tentaram colocar bombas no Pavilhão Rio Centro. O problema foi que uma das bombas explodiu dentro do carro dos tais terroristas. A surpresa foi descobrir que quem estava dentro do carro eram um sargento do exército, que morreu na explosão, e um capitão, que ficou gravemente ferido. Assim, ficou revelado que aquele “atentado” seria implantado pelo próprio Estado, numa tentativa de convencer aos setores do governo favoráveis à democracia e ao próprio povo sobre a necessidade de uma nova onda de repressão, que certamente refortaleceria a ditadura e paralisaria de vez a abertura política que estava em andamento.

Aquela lembrança alimentou em Jaspe seu instinto de revolta, que corroborado com a aptidão natural nessa fase da vida para se questionar a ordem do mundo, acabara de inflamá-lo e trazer à tona o seu lado rebelde – quase sempre reprimido por sua modalidade conciliadora e seu temperamento fleumático –, numa intensidade nunca antes experimentada.

Com a mente fervendo, o coração em desgovernada taquicardia e as pernas ganhando vida própria, aquele jovem não hesitou: antes de dar sequer mais um passo em direção ao interior da empresa, deu meia-volta e aderiu à greve.

– Afinal, tudo tem limite! - exclamou em alto e bom tom.

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Mal havia chegado a sua casa, Jaspe recebeu uma ligação do seu chefe, questionando o motivo de sua ausência e pedindo explicações sobre aquela matéria do jornal.

Jaspe contou sua versão dos fatos, expôs seus sentimentos e disse que, pelo menos naquele dia, não teria condições de entrar na empresa.

Seu chefe, inicialmente, disse que acreditava na versão de Jaspe, mas que era melhor ele se conter, pois “não há muito que se fazer diante destas coisas”. Além disso, seu superior precisava do apoio de Jaspe naquele momento, pois ele era querido e suas opiniões, respeitadas. Dessa forma, era certo que sua atitude iria influenciar muitos outros a aderirem à greve. Por fim, mudando o tom de bajulação para o de ameaça, o gerente disse apenas que seria bom que Jaspe pensasse nas consequências de seu posicionamento.

Diante disso, buscando esclarecer o seu modo de pensar, o que numa conversa tensa por telefone ele não conseguira, Jaspe resolveu escrever uma “carta” para o seu chefe, intitulada “O outro lado da moeda”, sugerindo que ele refletisse sobre a situação de uma maneira mais ampla, considerando as responsabilidades de cada parte envolvida: o governo, a empresa, os empregados e a sociedade em geral.

Assim, com a greve caminhando para o quinto dia, Jaspe fez chegar às mãos do seu superior a sua mensagem.

Dois dias depois, Jaspe recebeu uma ligação do seu chefe:

– Jaspe, recebi sua mensagem e concordo em parte com os seus argumentos, mas gostaria de esclarecer umas coisas com você.

– Claro, sou todo ouvidos, que pontos são esses?

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– É o seguinte, a greve irá para julgamento dentro de dois ou três dias e, tenho informações confiáveis, que será julgada legal, mas exigirá o retorno imediato dos empregados ao trabalho - explicou o chefe.

– Ótimo, se é assim, vamos aguardar, não é mesmo? -respondeu Jaspe.

– Então, estou ligando para lhe propor um acordo. Se você voltar amanhã ao trabalho, e se comprometer a demitir duas pessoas da sua equipe, nada acontecerá com você – propôs o chefe, como se estivesse oferecendo para Jaspe o pote de ouro que fica no fim do arco-íris.

– Mas, chefe, convenhamos – contra-argumentou Jaspe – se eu mesmo aderi à greve, com as convicções que lhe apresentei, me parece totalmente incoerente eu demitir alguém da equipe por ter feito o mesmo, não acha?

– Bom, estou tentando te proteger, pois além do lado profissional, eu gosto de você. Se eu fosse você, pensaria nos seus filhos e aceitaria a minha proposta. - E concluiu, elevando o tom de voz: - Só não diga que não lhe avisei!

Jaspe não gostou nada daquilo. Embora o chefe parecesse ser sincero, acima de tudo ele queria se proteger também, pois é óbvio que, se ele conseguisse reverter a posição de Jaspe, ficaria muito bem com a alta administração da empresa.

Mas, para Jaspe, o que estava em jogo, era algo muito maior: suas convicções e seu princípio de coerência. Assim, decidiu não voltar ao trabalho.

A greve chegava ao seu décimo quarto dia, quando ao anoitecer, um carro de som a serviço da empresa passou na rua, anunciando a decisão judicial de considerar a greve legal, mas determinando a volta imediata de todos ao trabalho. Em

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adendo, o comunicado dizia que nenhuma das reivindicações seria atendida, pois a mesma Justiça as havia julgado improcedentes.

Jaspe percebeu que sua luta havia sido inglória, que nada havia conseguido. Decepcionado e sentindo-se fraco, ele chorou. Deitou-se no sofá da sala e lá ficou, remoendo-se com suas lágrimas.

Nesse momento, porém, aconteceu um dos fatos mais emblemáticos de sua história, algo que pelo resto de sua vida sempre se lembraria em seus momentos de fraqueza.

Seus três filhos, de pijaminhas, preparados para dormir, de mãozinhas dadas, puxados pela primogênita – a essa altura com cinco anos de idade –, surgiram na porta da sala. Caminharam até ele. A mais velha lhe estendeu a mão e, os três, provavelmente sem noção da força daquela pequena corrente, lhe disseram:

– Levanta, pai!

No dia seguinte, Jaspe voltou à empresa. Assim que chegou, foi comunicado que deveria comparecer à sala do seu chefe. Ao chegar lá, com a fluência de quem havia ensaiado bem o que queria falar, o homem disse-lhe apenas:

– Jaspe, eu gostaria muito de estar lhe chamando aqui para tratarmos de um novo projeto. Entretanto – prosseguiu com a frieza de uma pedra –, é para lhe comunicar que a empresa não precisa mais dos seus serviços. Dê-me o seu crachá, pois a partir deste momento você já não é mais “nosso” empregado. Aqui tem duas caixas para você juntar suas coisas, e aquele guarda – completou, apontando para um vigilante que estava de pé do lado de fora da sala –, irá conduzi-lo até a portaria.

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