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Ortega y Gasset, a vida como realidade metafsica Artigos /
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ORTEGA Y GASSET, A VIDA COMO REALIDADE METAFSICA
Jos Mauricio de Carvalho1
RESUMO: Neste artigo, estudamos as caractersticas que o filsofo
espanhol Ortega y Gasset atribuiu vida. Mostramos que o essencial
de sua meditao girou em torno do assunto. No entanto, o tema ganhou
densidade metafsica somente no final dos anos 1920, quando suas
consideraes foram inseridas na tradio filosfica do ocidente. Foi
quando ele apontou a insuficincia do realismo e do idealismo na
abordagem do fundamento pretendido pela Filosofia e apresentou a
filosofia da razo vital como um passo adiante das duas grandes
perspectivas filosficas que marcaram a histria da metafsica.
PALAVRAS-CHAVE: Vida. Metafsica. Caractersticas. Realidade.
Circunstncia.
I. COnSIDERAES InICIAIS
1. A Metafsica disciplina filosfica, que a tradio reconhece como
a mais importante, autnoma e fundamental, entre elas. O seu
propsito apontar o fundamento geral que sustenta o homem em meio
sua experincia do mundo e dos riscos de viver. Nesse sentido, a
Metafsica espera propor verdades suficientes, isto , que no
dependam de outras para se sustentar e, ao contrrio, porque se
referem totalidade do saber possvel, sirva s outras verdades de
suporte ou fundamento. Esse conceito remonta a Aristteles, que, no
livro de Metafsica, a define como a cincia das primeiras causas e
princpios fundamentais. O mundo moderno concebeu uma outra viso de
Metafsica, entendida como Gnoseologia. Sua expresso amadurecida foi
obra de Emmanuel Kant, mas sua origem pode ser antevista no projeto
de Francis Bacon, o qual esperava criar uma nova cincia universal
que fosse a base de todas as outras.
2. Durante o sculo XIX, a meditao filosfica tratou a Metafsica
como um saber crepuscular, compreenso concebida pelo filsofo
alemo
1 Psiclogo, Pedagogo e Filsofo, com especializao em Filosofia e
Filosofia Clnica, Mestrado e Doutorado (1990) em Filosofia, com
estgios de Ps-Doutoramento na Universidade Federal do Rio de
Janeiro (2002) e Universidade Nova de Lisboa (1994). Professor
Titular de Filosofia Contempornea do Departamento de Filosofia da
Universidade Federal de So Joo del-Rei, membro do Instituto
Brasileiro de Filosofia (SP), do Instituto de Filosofia Luso
Brasileira (Lisboa), da Academia de Letras de So Joo del Rei e da
Academia Mantiqueira de Filosofia. E- mail:
[email protected]
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CARVALHO, J. M.
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Georg Hegel. O sistematizador do idealismo absoluto afirmava que
a Filosofia somente entra no cenrio cultural quando os outros
aspectos que o constituem j se encontram consolidados. A clebre
alegoria da coruja de Minerva, que s ala voo ao entardecer, traduz
o entendimento de que o filosofar tardio, quando comparado a outras
criaes culturais. Nessa viso hegeliana, a Filosofia entra num
cenrio j pronto, toma conscincia das coisas, mas no se pronuncia
sobre o que elas devem ser. O seu contedo o que se produz no domnio
do esprito, que, segundo Hegel, se encontra objetivado no mundo
exterior e na intimidade da conscincia.
3. Alm desse aspecto, o filsofo alemo entende que a conscincia
histrica, o que no idealismo absoluto significa que o saber
fundamental no alcanado pelas teorias do incio da tradio filosfica.
Para Hegel, a meditao filosfica alcanara com o idealismo absoluto a
maturidade, sua filosofia era fruto do evolver do Esprito em dois
mil e quinhentos anos de Histria, num processo que ganha densidade
no tempo, como um rio que ganha importncia medida que recebe seus
afluentes.
4. O resultado dessa compreenso, a saber, o surgimento tardio da
Filosofia e a conscincia histrica da verdade, apontam para certezas
ou verdades parciais que no ficam completas nos sistemas construdos
no decorrer da histria da filosofia, pelo menos at o coroamento do
processo no idealismo. A rejeio do papel final desempenhado pelo
idealismo absoluto, porm, desconsiderar as outras concluses de
Hegel, significa compreender que a misso da Filosofia buscar a
verdade. O que foi admitido como certeza universal num certo tempo,
mostra-se insuficiente com as andanas da histria. Enfrentar as
mudanas da histria com uma proposta definitiva misso impossvel,
porque necessrio formular sobre a realidade uma teoria evidente e
nesse ponto que o projeto de certeza universal revela seu ponto
frgil. Aspectos tidos por evidentes num momento histrico no so
aceitos em outros. A perda da evidncia provoca a desconfiana nos
princpios admitidos, restando o desafio de refazer as concepes
antes tidas como verdadeiras. Assim revisadas, as sucessivas
teorias da realidade elaboradas na histria da metafsica so muito
menos contribuies complementares que sucessivas retomadas da razo
universal2. Por outro lado, as teorias metafsicas s ficam claras
quando devidamente contextualizadas.
2 A reviso crtica da filosofia da histria, elaborada pelo
idealismo alemo, foi feita pelo fenomenlogo portugus Joaquim de
Carvalho, com as pistas fornecidas por Edmund Husserl. O
fundamental de sua obra foi resumido no livro Histria da Filosofia
e Tradies Culturais. A interpretao hegeliana da histria da
filosofia indicava a relatividade de todas as filosofias, problema
que ele resolveu, identificando Histria e Razo. Edmund Husserl
notou que essa identificao culminava num
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5. Alm desses elementos que permeavam a cultura filosfica, no
incio do sculo XX, o filsofo espanhol Jos Ortega y Gasset concluiu
que o grande problema a ser enfrentado pela Filosofia do seu tempo
era uma nova forma de opor a subjetividade moderna perspectiva
objetivista dos gregos. Faz-lo significava propor uma nova
subjetividade indo alm do que fizera o criticismo de Emmanuel Kant,
tarefa que, contudo, no podia negligenciar a novidade trazida pelo
subjetivismo moderno. Adicionalmente, o princpio metafsico proposto
devia amparar as ontologias regionais associadas por Edmund Husserl
s cincias de fatos singulares como a Histria ou de experincias
gerais como a Fsica. O princpio precisava ainda enfrentar a
preocupante crise de civilizao sentida de vrios modos pelos
filsofos de ento, com forte impacto sociolgico na vida do ocidente.
A crise trazia mudanas profundas no modo de pensar e desmontava
crenas antigas em verdades imutveis e na natureza estvel do mundo,
herdadas da concepo metafsica aristotlica, a qual continha
determinaes de todo ser e estava presente nas formas e maneiras
particulares dos entes.
6. Como a crise de civilizao atingia costumes sociais e a
organizao poltica dos povos, o novo princpio precisava, alm de
considerar os problemas ontognoseolgicos, solucionar as
dificuldades ticas e polticas da sociedade europeia. Eram esses os
desafios que Ortega y Gasset considerava devessem ser enfrentados
pela filosofia do seu tempo. No eram poucos nem simples os
problemas espera de soluo.
7. Essas questes comearam a ser abordadas por Ortega y Gasset em
seus primeiros trabalhos. Neles, a vida proposta como realidade
fundamental. Em Meditaciones del Quijote (1914) e nos oito livros
de El espectador (1916-1934), o filsofo apresenta o princpio
metafsico que deveria orientar a meditao filosfica de seu tempo,
mas em Qu es filosofa? (1929), Unas lecciones de metafsica (1933) e
em La rebelin de las masas (1930), assim como no ensaio Pidiendo un
Goethe desde dentro (1932), que ele sistematiza suas meditaes e d
densidade terica relao entre o eu e o mundo que esto na base da
vida. nos trs livros que ele apresenta sua concepo metafsica de
forma rigorosa, inserida na tradio filosfica do ocidente e com a
pretenso de apresentar uma nova teoria filosfica. Com ela,
enfrentava os desafios de
historicismo absoluto, o qual pedia uma justificativa rigorosa
da reflexo filosfica e uma separao entre os conceitos, como j
mencionamos em outra oportunidade. Conforme frisamos Joaquim de
Carvalho fez precisa crtica das posies fenomenolgicas sobre a
histria da filosofia. Escrevemos (2001): Joaquim de Carvalho
explicou que Husserl tinha razo ao separar esprito e histria, mesmo
reconhecendo que esta ltima o espao do esprito e que aquele possui
histria (p. 61).
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CARVALHO, J. M.
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seu tempo, tanto os problemas trazidos pela compreenso parcial e
histrica da verdade quanto a crise de civilizao.
8. Neste artigo, vamos mostrar como o filsofo caracteriza o
fundamento de sua teoria geral da realidade. A vida o modo de ser
fundamental, pois a base sobre a qual as verdades do homem se
estabelecem. Ao propor tal princpio, o filsofo critica os rumos da
Metafsica tradicional, voltada para elementos estruturantes do real
localizados no pensamento puro. Ele prefere tratar a vida como
travamento do real, vida experimentada na primeira pessoa, ou
melhor, na relao insupervel entre o eu e a circunstncia. Partiremos
da qualificao de vida feita pelo filsofo, nos seus escritos
iniciais. Neles, Ortega y Gasset j descreve a relao entre o eu e a
circunstncia; em seguida, apresentaremos a insero de suas anlises
na histria da metafsica, assunto dos trabalhos do final da vida,
quando suas ideias ganham dimenso filosfica.
II. A CARACTERIzAO DA VIDA COMO FunDAMEnTO
9. No ensaio Julian Maras y la metafsica orteguiana, Helio
Carpintero observa que a filosofia orteguiana est inteiramente
impregnada pelo desafio metafsico de compreender a realidade. Ele
destaca, dos comentrios de Maras, a avaliao do raciovitalismo como
[...] um ponto de inflexo na histria da metafsica (p. 211).
Trata-se, portanto, de uma mudana ou desvio, mas qual? O
fundamental da mudana, sustenta ainda Carpintero, est consolidado
nas obras Que s filosofa? e Unas lecciones de metafsica, pois,
nelas, a vida aparece como a realidade fundamental que os filsofos
buscam desde a antiga Grcia. A esses textos preciso acrescentar
alguns outros, conforme indicaremos. Igualmente, sabemos que a
utilizao da vida como eixo articulador das teses filosficas
orteguianas, tratadas como inflexo por Carpintero, aparece em
trabalhos anteriores aos livros mencionados. Praticamente toda obra
orteguiana, desde as Meditaciones del Quijote (1914), se dedica a
caracterizar a vida como o problema fundamental de nosso tempo.
Essa afirmao pode ser comprovada no captulo VII de El tema de
nuestro tiempo (1923). Ali, afirma o filsofo que a cultura humana
comprometida com a busca da verdade estava diante de um novo
desafio (1994a, v. 3, p. 179): [...] consagrar a vida, que at agora
era s um fato nulo e como que um erro do cosmo, [...] um princpio e
um direito. O filsofo esclarece, na sequncia do captulo, que a vida
esteve a servio da religio, da cincia, da moral, da economia, da
arte etc., apenas no foi tomada em si e fundamento de todo o resto.
Tratar a vida como realidade
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essencial foi prprio de um tempo que nela reconhece o sentido
principal da realidade buscado pela Filosofia. Assim ocorreu
porque, conforme observa Roger Garaudy (1966, p. 18),
experimenta-se o sucesso [...] de uma concepo de cincia, a do
positivismo, que a priva de sua significao humana. Por conseguinte,
o conceito de metafsica como problema do conhecimento, pensado
pelos modernos como tentativa de chegar a uma verdade irrecusvel,
reaparece na procura do sentido necessrio e anterior prtica da
cincia. A questo pede o exame da subjetividade e do modo como ela
se relaciona com o entorno. O que a vida? Como caracteriz-la?
Garaudy sugere que o problema de Ortega y Gasset era o de sua
gerao.
10. Tratar a vida como problema central a ser investigado
desafio que vinha da herana kantiana e estava sendo enfrentado pela
fenomenologia. O tema teve uma abordagem prpria nas Meditaciones
del Quijote. Nessa obra, Ortega y Gasset define viver como
resultado da relao entre o eu a circunstncia. A insero do eu no
mundo faz da vida um compromisso que se deve estudar com
determinao. Da a caracterizao da vida como o grande problema a ser
desvendado. Dito de outro modo, viver realizar um programa, um
destino, desenvolver um projeto vital num mundo que se encontra a.
Esse eixo nuclear da ontologia orteguiana j aparece na introduo das
Meditaciones del Quijote, lembra Gilberto Kujawski, e se expressa
na frase que passou a caracterizar o raciovitalismo a partir de
ento (1994, p. 39): Eu sou eu e minha circunstncia, se no salvo a
ela tambm no salvo a mim. Assim, a caracterstica principal da
ontologia raciovitalista conceber a vida como a tarefa de vencer a
circunstncia no quanto ela impede a realizao do projeto vital. A ao
humana guarda uma fidelidade ao ncleo interior do sujeito que o
filsofo formula como obrigao tica. Quando escolhe, o sujeito est
inevitavelmente vinculado circunstncia ou, como enfatizamos (2010,
p. 113), [...] ao escolher vamos tecendo nossa vida, alterando a
circunstncia. Circunstncia, para o filsofo, [...] tudo o que rodeia
o eu: a realidade csmica, a corporalidade, a vida psquica, a
cultura em que se vive, nela includo as experincias acumuladas no
tempo (CARVALHO, 2009, p. 332). A tarefa vital , assinala Ortega y
Gasset, em Ideas sobre Pio Baroja (1998b, v 2, p. 75), [...] querer
ser, antes de tudo, a verdade do que somos. Em sntese, a primeira
caracterstica da vida, para Ortega y Gasset, parece ser esta: vida
tarefa, compromisso inadivel e irrecusvel que temos conosco de
vencer a circunstncia, no que ela interdita meu projeto vital.
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CARVALHO, J. M.
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11. A realizao do projeto vital depende do tipo de vitalidade
que se tem e que varia entre as pessoas, povos e pocas. Trata-se de
imposio biolgica que diferente nas pessoas e sociedades, segundo
esclarece o pensador, no ensaio El Quijote en la escuela. Ali,
afirma (1998a, v. 2, p. 291): [...] antes que fale a tica, tem
direito de falar a pura biologia. Sem sair dela, desde o ponto de
vista estritamente vital, nos aparece um valor biolgico positivo,
como vitalmente bom, e outro, como valor biolgico negativo, como
vitalmente mal. Eis a segunda caracterstica da abordagem orteguiana
vida, a realizao do projeto vital uma escolha que envolve mais
coisas que uma deciso racional. Ela possui um aspecto tico, mas o
mpeto com que a escolha realizada depende do impulso vital que
biolgico. a vitalidade o que faz um povo ou um indivduo ser mais
vibrante e emotivo, mais rpido ou lento na conduo do tempo vital. A
vida possui um tnus vital e isso a caracteriza.
12. A conduo do projeto vital no se realiza do mesmo modo em
todos os perodos da histria. importante identificar os apelos de
cada poca para apreender o modo como a vida conduzida. O
entendimento de que o projeto vital singularssimo, porque diz
respeito a cada indivduo, pede mais que a observao do tnus vital e
os aspectos da personalidade. A compreenso exige que se considere
tambm o tempo histrico, porque ele impacta a vida singular,
conforme seja um momento de maior tranquilidade ou de crise,
segundo seja um perodo mais preocupado com os prazeres do que em
evitar as dores, ou mais ocupado em evitar dores que obter prazer.
No s a existncia singular temporal, o horizonte social tambm , e
afeta da vida pessoal. No ensaio Elogio del murcilago, escreve
Ortega y Gasset (1998d, v. 2, p. 321): Algumas vezes me ocorreu
pensar que h duas classes de pocas histricas: em umas, os homens se
preocupam mais em buscar os prazeres que evitar as dores; em
outras, acontece o inverso. De acordo com a orientao da poca, a
vida ganha balizamentos distintos segundo vise mais ao prazer ou
fugir das dores. Dessa maneira, a realizao do projeto vital obriga
o homem a voltar-se sobre si porque, como destacamos (1996, p. 84),
[...] a pergunta sobre si o que h de mais fundamental para Ortega y
Gasset. Eis a a terceira caracterstica da meditao orteguiana: a
vida s se esclarece quando se considera o momento histrico em que
vivida, j que [...] o homem mergulhado na histria que procura
intensamente compreender-se (p. 84). A vida singular temporal e
vivida numa sociedade que tambm histrica e cujas caractersticas
afetam o drama vital.
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13. Ao pensar a vida como resultado de escolhas, Ortega y Gasset
observa que as opes preferidas pelo sujeito formam uma espcie de
trilha na memria pessoal. Tal trilha revela preferncias e d forma
ao passado do sujeito. Todos podem conjecturar a respeito dos
outros caminhos que seriam percorridos se, ao invs das escolhas
feitas, tivessem outras sido feito. A vida seria distinta do que ,
mas vida mesmo o que . As escolhas podem levar a uma vida mais ou
menos densa, mais ou menos charmosa ou mais ou menos profunda. Eis
o que assevera o filsofo acerca das inmeras alternativas que compem
as vidas no vividas que tnhamos disposio, no ensaio Intimidades
(1998c, v. 2, p. 637):
[...] minhas memrias contaram, junto minha vida efetiva, o que
pude viver, vidas perdidas antes de nascer, pobres existncias que
para sempre caram sem vida, sem ser cumpridas, espectros errantes
que so nosso mltiplo ser fracassado. No se trata de abstratas
possibilidades, seno que cada ser humano leva em torno ao ncleo de
sua existncia efetiva um elenco concreto, individualssimo de outras
possveis vidas, suas e s suas.
Esta a quarta caracterstica da definio de vida: a existncia real
um ncleo em torno do qual circundam outras vidas possveis que
teriam sido vividas se, ao invs de um curso, tivesse o sujeito
feito outro. Se, ao contrrio de me casar com algum, tivesse
escolhido outro ou outrta parceira, se, ao invs de um trabalho, a
opo fosse outra, minha vida seria outra. A vida do homem um fenmeno
particularssimo que brota de escolhas e caracterizaes de
possibilidades que acompanham o ncleo central no tendo sido, embora
pudessem ser. A vida um destino construdo com escolhas entre muitas
outras possveis.
14. Vida ao, resultado de escolhas que se sucedem continuamente.
Como faz-las? A questo considera a agilidade e vigor com que se
age. Construmos uma trilha, com qual ritmo o fazemos? O filsofo
prope uma espcie de tocada segura, contnua, mas sem afobamento, num
dos discursos parlamentares no advento da Repblica. Em 4 de
setembro de 1931, comentou sobre a renovao da vida na Espanha
(1994e, p. 384): Faamos, como toda grande reforma [...] que vamos
intentar com o tempo justo, sem acelerarmos, porm sem retardarmos,
seguindo, pois, a norma que Goethe recomendava para toda nossa
vida: avanar sem pressa e sem pausa, como a estrela. Estamos diante
da quinta caracterstica da anlise orteguiana: a vida das pessoas e
dos povos tem um ritmo que lhe prprio.
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CARVALHO, J. M.
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15. Aproximando a caracterstica anterior da primeira, conclui-se
que a vida tem um ritmo timo. A realizao da tarefa vital coloca em
evidncia o limite temporal, pois a vida um processo com durao e
enquanto se vive que o projeto deve ser realizado. O resultado das
combinaes que o tempo para realizar o projeto vital curto, e isso
acirra a responsabilidade das escolhas. No h tempo a perder, porque
morrer ou deixar de ser significa tornar-se indiferente a tudo.
Assim, intimamente, o tempo vital sentido como pressa, explica o
filsofo, no anexo de Idea del teatro (1997a, v. 7, p. 500): Vida
humana , pois, de pronto, certa durao normal da pessoa, certo tempo
que lhe concedido e que sempre escasso. nossa vida lhe falta sempre
tempo, por isso essencialmente pressa. Chega-se, ento, sexta
caracterstica: embora a vida tenha ritmo, enquanto percepo ntima,
ela pressa, a vida pressa de realizar o projeto vital. O projeto, j
foi frisado, no um plano intelectual, mas o autntico ser
reconhecido por cada eu como sua trilha ou destino.
III. A VIDA COMO pRObLEMA METAFSICO
16. No livro Que s filosofa? Ortega y Gasset reafirma que a vida
realidade radical que nasce da relao entre o eu e a circunstncia.
Tema central de todos os seus estudos, desde Meditaciones del
Quijote, a novidade expressa no livro, conforme sintetiza Amoedo
(2002, p. 257), [...] a necessidade (filosfica) de expor a sua tese
fundamental dando-lhe agora uma formulao to rigorosa que ela
pudesse manifestar-se a todos como uma inovao radical da filosofia.
A inovao, no que se refere metafsica, tratar a vida como realidade
fundamental, isto , como elemento estruturador do real buscado por
todos os filsofos. Sobre a vida, a Filosofia deve centrar a ateno e
descrever as caractersticas principais. Afirma o filsofo (1997b, v.
7, p. 405): Viver o que ningum pode fazer por mim a vida
intransfervel, no um conceito abstrato, meu ser individualssimo. E
o que este ser? Como ele se tornou um problema filosfico?
17. Ele comenta o que significa tratar a vida pessoal como
realidade particularssima, no livro En torno a Galileo, publicado
em 1933, mesmo ano de Unas lecciones de metafsica. Ali, o filsofo
esclarece o carter pessoalssimo do viver. Ningum pode viver pelo
outro, em outras palavras, ningum responder aos desafios que eu
tenho que resolver. nesse sentido que a vida inalienvel e
singularssima, declara o filsofo (1994c, v. 12, p. 23):
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O homem, cada homem, tem que decidir a cada instante o que vai
fazer, o que vai ser no momento seguinte. Essa deciso
intransfervel, ningum pode substituir-me na faina de me decidir, de
decidir minha vida.
18. Voltemos ao eixo central de Que s filosofa? Para o filsofo,
a melhor forma de tratar os assuntos filosficos fazendo crculos
concntricos em torno do problema. Com o mtodo, possvel voltar vrias
vezes aos mesmos assuntos e, a cada nova volta, aprofundar a
investigao. O que uma primeira aproximao da metafsica mostra? A
impossibilidade de a disciplina chegar s verdades universais que
almeja alcanar. O resultado do filosofar uma verdade incompleta,
construda e melhorada pelas geraes. Ao caracterizar o tempo que
antecede suas anlises, ele o considera um momento ruim da
Filosofia; nele, a Fsica alcanou grandes xitos e a cincia fora tida
como o nico saber vlido. Ortega y Gasset observa que a Filosofia no
uma cincia, ela mais, um saber que trata a realidade de forma
radical. Uma (1997b, v. 7, p. 335) segunda volta mostra o pensar
filosfico como [...] imprescindvel procura de conhecer tudo que h.
Cada cincia tem o seu objeto, o da Filosofia o que no pode ser
dado. A Filosofia um saber radical, sem pressupostos. Embora ela no
trate do que imediato ou til, a Filosofia necessria, pois
fundamenta outros conhecimentos. Na terceira volta, o filsofo
examina os erros das antigas filosofias. Ele considera que o
desafio de seu tempo era superar a verdade idealista e a reduo que
ela realiza no conhecimento da realidade. preciso fazer com o
idealismo o que ele fez quando apontou os erros do realismo grego.
O idealismo uma teimosa e tenaz marcha contra o curso da vida,
avalia Ortega y Gasset. A filosofia idealista desvitalizou a vida,
sendo importante superar os erros que isso significou. Assim, a
superao do realismo grego e do idealismo alemo pede outra
Filosofia, que afirme a contribuio do idealismo sem ficar no seu
erro, isto : uma nova filosofia da vida. , portanto, como forma de
superar o realismo e o idealismo que o autor tematiza a vida como
problema fundamental. Chega-se quarta volta, representada pelo
desafio de pensar a subjetividade idealista na circunstncia, j que
a subjetividade no se afasta do entorno. Ortega y Gasset prope a
vida como o problema a ser investigado pelos filsofos
contemporneos. Viver condio fundamental e consiste em coexistir com
o entorno. O ser esttico das filosofias antigas ser substitudo por
um ser atuante aberto a mudanas. O filsofo antigo busca o ser das
coisas e inventa conceitos que interpretam seu modo de ser (1997b,
p. 393), o contemporneo precisa entender a vida. Viver o que
fazemos e o que se passa conosco. Eis a caracterstica bsica
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CARVALHO, J. M.
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descoberta com os giros envolta do problema vida: viver uma
revelao, [...] encontrar-me no mundo (p. 424). O assunto tem
significado filosfico, quando Ortega y Gasset trata a vida como o
ser fundamental.
19. Antes de entrar na caracterizao da vida como problema
filosfico, vejamos o que propriamente uma abordagem filosfica, para
nosso filsofo. No livro La idea de principio en Leibniz y la
evolucin de la teora deductiva, ele explica o conhecimento
filosfico e assevera que Leibniz , por excelncia, um filsofo de
princpios. Para Ortega y Gasset, Leibniz realiza com maestria o que
todo filsofo busca construir: princpios que forneam certezas para
pensar o real. O conhecimento filosfico atividade que se faz,
formulando princpios fundamentais. Ortega y Gasset afirma (1994d,
v. 8, p. 63): Em filosofia isto se leva a extremos [...], se exige
dos princpios que sejam ltimos, isto , em sentido radical,
princpios. Leibniz, enfatiza Ortega y Gasset, o filsofo mais
completo da modernidade e, pela extenso de seus interesses e
estudos, deixou contribuio comparvel de Aristteles para a
antiguidade. Ortega y Gasset pensa que os princpios construdos num
certo tempo traduzem uma concepo de mundo e que ela a base das
crenas que representam a forma de pensar daquele tempo. Filosofia ,
assim, construo de princpios fundamentais, conforme comenta Julin
Maras, no esprito do mestre, em sua Histria da Filosofia (2004, p.
507): A filosofia , portanto, a verdade radical, que no suponha
outras instncias ou verdades, tem, alm disso, de ser a instncia
superior para todas as verdades particulares. Passemos, na
sequncia, caracterizao da vida no contexto da metafsica.
20. Na filosfica caracterizao orteguiana de vida, comecemos com
a assertiva negativa proposta em Que s filosofa?: a vida um ser que
no possui determinao fixa. A metafsica, tanto na perspectiva
realista dos gregos quanto na idealista dos modernos, quando se
refere realidade fundamental, atribui-lhe estabilidade. Para os
gregos, realidade fundamental foi que as coisas existem
verdadeiramente e formam uma unidade. E o que so mesmo as coisas?
Aquelas, cujo ser independe do meu pensamento. A perspectiva
moderna ou idealista entende que o fundamental o que se impe, mas
isso que se impe depende do pensamento reconhecer-lhe a existncia.
Nesse sentido, chega-se a um impasse: o que fundamento depende da
conscincia para assegur-lo. Entretanto, sem a conscincia, o mundo
perde realidade, a realidade passa a depender do sujeito ou, como
sintetiza Mindn (2009, p. 202), [...] a conscincia no agrega
realidade a um novo objeto que est a, seno que modifica
essencialmente a tese. O idealismo comeou sustentando que, para
haver coisas no mundo, preciso um
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Ortega y Gasset, a vida como realidade metafsica Artigos /
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eu que o pense. No entanto, foi alm e fez depender o ser das
coisas do eu e isso um exagero, avalia Ortega y Gasset. Nosso
filsofo conclui que, se no houvesse mundo, no haveria conscincia,
pois sem mundo no h eu. assim que postula ser a vida a realidade
que a Filosofia busca, durante toda histria, segundo lembra Mindn:
A realidade radical est na dualidade constitutiva do mundo e o
homem e podemos comprovar que isto precisamente a vida humana
(2009, p. 204). Na perspectiva de Ortega y Gasset, a vida, com toda
sua instabilidade, a realidade fundamental buscada na histria da
metafsica. Atribui-lhe uma dignidade que ainda no lhe fora
reconhecida por nenhum pensador, porquanto est nela a razo maior do
filosofar. Estamos diante, destaca o filsofo, no livro Que s
Filosofia?, [...] de uma nova ideia de ser, de uma nova ontologia,
de uma nova filosofia e, na medida em que esta influi na vida, de
toda uma nova vida vida nova (1997b, p. 408). Eis a o sentido
filosfico de viver: ver o mundo, pens-lo, toc-lo, apalp-lo,
senti-lo, sabore-lo, am-lo ou no. a soma de tudo isso que se chama
viver. Vida fenmeno que contempla a relao do sujeito com o mundo de
um modo que no fora percebido antes, nem pelo realismo, nem pelo
idealismo. Eis a caracterizao bsica e fundamental proposta no
princpio: ser viver e contempla relao especial com o mundo.
21. A descrio da vida como vitalidade, como fora feito em El
Quijote en la escuela, ganha tratamento mais elaborado na lio X, de
Que s filosofa? O aprofundamento filosfico e a identificao entre
vida e ser fundamental aperfeioaro a forma como o filsofo avalia o
significado do corpo e do seu funcionamento. Vida no resultado de
um processo biolgico, assunto que pode ser tratado pela cincia
biolgica. Ele explica (1997b, v. 2, p. 413): Meu corpo mesmo no
mais que um detalhe do mundo que se encontra em mim, detalhe que,
por muitos motivos, de excepcional importncia, porm que no deixa de
ser apenas um ingrediente entre inumerveis que h no mundo ante mim.
Os movimentos psquicos, os sentimentos e emoes, por mais intensos e
consoladores que sejam tambm no traduzem a realidade fundamental e,
como o corpo, integram a circunstncia. Corpo e vida so objetos dos
quais a cincia pode dar conta, como tambm afirma Karl Jaspers, na
sua Iniciao Filosfica (1987, p. 61): O homem, enquanto existncia no
mundo, objeto suscetvel de conhecimento. E, como fizera Jaspers,
Ortega y Gasset distinguir vida dos processos estudados pela
cincia, mas no a identificar com liberdade, como fez o filsofo
alemo, ao propor, no esprito do kantismo, que [...] ser homem
fazer-se homem (1987, p. 67). Ortega y Gasset tratar a vida como um
nvel profundo de conscincia expresso em Que s filosofa? do seguinte
modo (1997b, v. 2, p. 414): [...] viver o que
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fazemos e o que nos passa. A definio assim explicita a
conscincia de viver: [...] viver essa realidade estranha, nica, que
tem o princpio de existir para si mesmo. Todo viver viver-se,
sentir-se viver, saber-se existindo donde saber no implica
conhecimento intelectual nem sabedoria especial nenhuma (1997b, p.
414). Chega-se, assim, a esta outra caracterstica filosfica da
vida: viver conscincia especial do que fazer, de como se ocupar da
nossa circunstncia ou, nas palavras de Julin Maras, seu intrprete
mais conhecido, de modo mais sinttico (2004, p. 506): [...] vida
algo que temos que fazer.
22. Ao se aproximar da herana fenomenolgica, Ortega y Gasset
considera a vida como um que fazer que necessita do eu e do mundo
como instncias inseparveis. No se pode mais tratar de um sem
considerar o outro. O homem relaciona-se com o que o circunscreve e
o afeta, quer sejam coisas materiais, quer no. Essas coisas tanto
constituem oportunidade de realizao de projetos como so limites que
impedem sua realizao. O filsofo apresenta, em Que s filosofa?, um
conceito de mundo definido como conjunto de coisas. E acrescenta
(1997b, v. 2, p. 416):
[...] o importante no que as coisas sejam ou no corpos, seno que
elas nos afetam, nos interessam, nos acariciam, nos ameaam e nos
atormentam. Originariamente isto que chamamos corpo no seno algo
que nos resiste e nos estorva, ou nos sustenta e leva [...]. Mundo,
em sensu stricto, o que nos afeta.
Embora Ortega y Gasset garanta que o seu entendimento do mundo
se afasta do de Martin Heidegger, a aproximao fenomenolgica , nesse
caso, evidente em relao ao que Karl Jaspers denomina realidade, a
saber (1987, p. 69): [...] o que nos presente na prtica e que, no
convvio com as coisas, com os seres viventes e com os homens, nos
oferece resistncia ou se materializa. Assim, temos uma compreenso
de mundo ou realidade como conjunto de coisas que nos afeta e do
qual no temos como nos separar. Tal compreenso revela o carter
dramtico da vida, pois no h como se separar de um mundo que no se
escolheu para viver. Podemos fazer ou no coisas, porm, no podemos
abandonar o mundo que nos dado. o que salienta Ortega y Gasset, na
obra examinada (1997b, v. 2, p. 417):
[...] isto d nossa vida um gosto terrivelmente dramtico. Viver
no entrar em um lugar previamente escolhido por gosto, como se
escolhe um teatro depois de jantar seno que encontrar-se de pronto
e sem saber como cado, submerso, projetado em um mundo.
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Ortega y Gasset, a vida como realidade metafsica Artigos /
Articles
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O conceito de drama existencial apresentado por Ortega y Gasset
lembra a derrelio de Martin Heidegger, para quem o homem tem que
viver num mundo que no escolheu. Ele se acha jogado na situao, o
homem entra no mundo sem razo prvia e de forma contingente. Eis a a
terceira caracterstica da vida: vida drama, estar num mundo em que
no se escolheu viver e do qual no h como escapar. nele que se vive
o projeto vital.
23. A definio da vida como um que fazer da circunstncia
considera viver atividade contnua. A vida tarefa permanente. Faz-la
est nas mos de cada sujeito, explica o filsofo: [...] fomos jogados
em nossa vida e isto em que fomos lanados temos de fazer por nossa
conta, por assim dizer, fabric-lo. Ou dito de outro modo: nossa
vida nosso ser (1997b, p. 418). Ora, se viver o que fazemos neste
espao em que fomos arremetidos, temos os olhos voltados para o
futuro, estamos orientados para l muito mais que condicionados pelo
passado. A abertura ao futuro, concebido como transcendncia no
tempo, compreenso que Ortega y Gasset partilha com os filsofos
existencialistas. Esse entendimento se expressa na ideia de
projeto: o homem abre-se ao futuro, orienta-se em direo ao que
ainda no , pois o homem no est pronto no ponto em que est. Pelo
projeto vital, a vida adquire sentido na circunstncia. Assevera o
pensador: [...] viver constantemente decidir o que vamos ser. No
percebem o fabuloso paradoxo que isto encerra? Um ser que consiste
no que e no que vai ser, portanto no que ainda no (1997b, p. 419).
Chegamos, por conseguinte, a esta outra caracterstica da vida: a
vida entendida como projeto fundamentalmente o que ainda no , a
vida futurio, o que equivale a [...] viver avanando em nosso futuro
(p. 435). E aqui novo ponto de aproximao com Martin Heidegger, como
j assinalamos (2002, p. 73): [...] viver pre-ocupar-se, ocupar com
o que havermos de fazer, sorge.
24. No ensaio Pidiendo un Goethe desde dentro, Ortega y Gasset
completa a caracterizao da temporalidade humana. Se vida
essencialmente futurio, como indicamos no pargrafo anterior, o
passado de cada um e da sociedade no desprezvel. a nfase no passado
como saber acumulado que fornece os elementos para enfrentar as
novas crises pelas quais, s vezes, passa a sociedade humana. E o
sculo passado viu surgir uma crise social profunda, a qual Ortega y
Gasset examinou na sua obra mais conhecida, La rebelin de las masas
(1930)3. Esse o tempo em que as massas desejam ser sujeito da 3 A
crise do sculo passado tem origem, para Ortega y Gasset, na
sociedade de massas. As massas desejaram
ser, no sculo XX, o que no foram em outras pocas, as
protagonistas principais da histria. O tempo das massas o tempo da
hiperdemocracia e da desvinculao entre esforo e vida nobre. O
assunto foi examinado em O sculo XX em El Espectador de Ortega y
Gasset: a crise como desvio moral (2010).
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histria e onde se perdem as referncias do passado. Quando, no
espao social, os desafios no encontram referncias onde se apegar e
resolver os problemas, a vida mostra a sua face de risco, de perigo
e naufrgio. O assunto ser tambm mencionado em Ensimesmamiento y
alteracin (1939), onde a noo de perigo se explicita na poltica. No
ensaio sobre Goethe, o assunto tem tratamento metafsico e se
expressa, segundo sntese de Gilberto Kujawski, nesta tese (1986, p.
3): [...] o perigo coextensivo vida mesma. De forma radical: o
perigo como substncia da vida, esta consiste substancialmente em
perigo. Chega-se, assim, a nova caracterstica da vida, pelo risco
que lhe inerente. Vida risco. Para enfrentar o risco, preciso se
agarrar cultura, experincia que ela acumulou. nela que o homem vai
encontrar os elementos importantes para se defrontar com a verdade
da sua vida. H, na compreenso orteguiana, muita semelhana com o que
refere Karl Jaspers sobre o sentido do passado na existncia (1987,
p. 89): [...] a experincia do presente compreende-se melhor
refletida no espelho da histria. No entanto, a prpria vida se
incumbe de estabelecer o sentido do risco para superar, como afirma
no ensaio (v. 4, 1994b, p. 397): [...] o grande inconveniente de
que o
Ali, afirmamos que [...] a caracterstica fundamental da crise do
sculo XX era uma atitude comum que, para Ortega y Gasset, marcava a
relao entre a massa e a minoria da sociedade. bom lembrar que para
o filsofo esta uma diviso comum a todas as sociedades. O que ele
observa que no sculo XX, as minorias mais bem educadas nos diversos
campos culturais no assumiam a tarefa de dirigir a sociedade, no
respondiam aos novos desafios que a vida apresentava, mas
cultivavam um saber muito especializado e ignoravam quase todos os
outros assuntos. Estas minorias no formavam uma classe social ou
grupo, mas se definiam pelas funes que possuem. A ignorncia destas
vrias elites representa uma nova forma de barbrie que complementada
pela inocncia infantil com que elas julgam a vida e a acham tudo
muito fcil. Esta interpretao que o filsofo elabora nos ensaios de
El espectador ser desenvolvida em La rebelin de las masas, livro
onde explica que o homem do seu tempo deixou de se empenhar com
afinco na edificao de uma vida melhor. Este homem aceita a mesmice
e se conforma com o modo de vida mais comum. Este doutor ignorante
e infantil o homem massa. O homem massa o medocre que no se arrisca
em grandes obras e no se entrega a uma causa. O homem massa no se
empenha na conduo da vida pessoal entendida como projeto vital e
rigorosamente singular. Uma vida humana plena implica no
desenvolvimento de uma vocao singular. Ela possui um carter prprio,
povoada por tenses e dramas oriundos do que fazer vital (p. 15).
Portanto, com a ideia de massa, Ortega y Gasset anunciava a
emergncia de uma hiperdemocracia, constituda paradoxalmente por um
sujeito individualista e infantil: o homem massa, preocupado em
assegurar o gozo imediato, no mais das vezes irresponsvel. Ele
antecipou muito bem o quadro descrito por Lipovetsky e Serroy, em A
cultura mundo (2011), embora no partilhasse das referncias
filosficas da Escola de Frankfurt, as quais marcam as anlises dos
dois autores do livro mencionado. Vivemos num tempo, afirmam os
dois franceses, [...] de transformaes que permitem falar de um novo
regime de cultura, o da hipermodernidade, em que os sistemas e
valores tradicionais que perduraram no perodo anterior no so mais
estruturantes, em que j no so verdadeiramente operantes seno os
prprios princpios da modernidade. Alm da revitalizao das
identidades coletivas herdadas do passado, a hipermodernizao do
mundo que avana, remodelado que ele est pelas lgicas do
individualismo e do consumismo (p. 13).
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homem acredite estar seguro e perca a emoo do naufrgio que a
cultura se torne obra parasitria. A vida, portanto, risco, perigo,
mas h, na cultura, os elementos com os quais o homem pode
reconstruir suas crenas. E ento, quando no h verdades prontas a que
se apegar, o momento em que [...] os braos voltam a se agitar
salvadoramente (1987, p. 397). A salvao da vida ocidental est na
conscincia dos riscos do naufrgio que chega com o tempo das massas
e da hiperdemocracia. Este o risco que a vida corre em nosso tempo,
avaliava Ortega y Gasset, como indicamos no livro Introduo
Filosofia da Razo Vital (2002, p. 76): O homem massa insensvel ao
legado das antigas geraes, incapaz de novos esforos, cego para o
fato de que a vida autntica aquela que se sabe desafio. Uma rpida
descrio do que est ocorrendo ainda em nossos dias, mais de
cinquenta anos depois da morte do filsofo individualismo
exacerbado, democracia de massas, desconfiana dos valores,
hedonismo consumista e irresponsvel suficiente para perceber que os
riscos identificados por Ortega y Gasset permanecem, no que ele
denominou nova barbrie.
25. O livro Unas lecciones de metafsica foi elaborado, segundo
testemunho de Julin Maras, a partir de um curso ministrado em
1932/1933, na Universidade de Madrid, cujo ttulo era Princpios de
metafsica segundo a razo vital. O curso revela uma doutrina
original e com princpios claros, os quais permitem adapt-la s
diferentes situaes, inov-la e modific-la. Nas Obras Completas, os
manuscritos do curso foram completados com anexos deixados por
Ortega y Gasset. Um se refere especificamente lio VI e o outro tem
carter geral. Os anexos tinham merecido uma edio separada na
Revista do Ocidente, em 1965, mas aparecem publicados no livro
apenas nas Obras Completas. Sobre o curso que deu origem ao livro,
escreveu Maras (1991, p. 209):
Nestas lies aparece in statu nascendi a metafsica de Ortega, a
que desde ento chamava metafsica segundo a razo vital [...]. Tem-se
presente quanto caminho percorreu a metafsica, que zonas da
realidade explorou, at onde levou a viso desveladora e conceitual
da realidade, pode-se ter a impresso adequada de sua vitalidade
como atitude.
26. A reflexo metafsica tem por propsito saber o que so as
coisas de modo radical. da reflexo metafsica que surge a descrio da
vida como processo especial de conscincia, que se expressa em trs
caractersticas assim apresentadas pelo filsofo (1997c, v. 12, p.
47): 1. A vida se inteira de si mesma,
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2. a vida se faz a si mesma e 3. a vida se decide a si mesma.
Ele tambm trata a vida como conscincia, do seguinte modo: [...]
todo viver viver-se, sentir-se viver, saber-se existindo; donde
saber no implica conhecimento intelectual nem sabedoria especial
nenhuma, seno que essa surpreendente presena que sua vida tem para
cada qual, sem esse saber-se, sem esse dar-se conta, a dor de
dentes no me doeria (p. 33). O conhecimento metafsico fornece no a
posse da coisa, mas seu ser. Fazer e pensar so regies diferentes da
vida de cada pessoa. O que o pensar metafsico revela? Na compreenso
orteguiana, que o mundo das coisas um grande vazio de ser. A
metafsica procura, justamente, clarear o que h para alm do que
aparece, ensina o filsofo, no texto transcrito a seguir: [...] na
pergunta: que a Terra? (o interlocutor) aspira chegar a esse vazio,
a encontrar por traz desse no ser da Terra seu carter positivo, a
substituir a impresso de insegurana que experimentamos por um
estado de segurana (1997c, p. 86). Nesse sentido, a vida
circunstancial: [...] viver encontrar-me, queira ou no, entregue a
uma circunstncia (p. 47). Dela preciso se ocupar, o que significa
que o sujeito executa um plano nico. A metafsica lhe fornece tal
plano. Esse plano particular, como j sublinhamos, pois a vida de
cada sujeito singular. Da se constata outra caracterstica
fundamental da vida: o plano que arquitetado pelo sujeito elaborado
na mais absoluta solido, explica Ortega y Gasset: [...] de verdade
fazemos metafsica quando fabricamos nossas convices radicais, o que
temos que fazer cada qual por si, em radical solido (p. 101).
Pode-se fazer a seguinte sntese, com as caractersticas enumeradas
pelo filsofo: a vida um saber-se vivendo em solido.
27. As duas grandes perspectivas desenvolvidas na tradio
filosfica so, para Ortega y Gasset, a realista e a idealista.
Trata-se de reconhecimento da validade da leitura kantiana da
tradio filosfica. As duas perspectivas representam, em sntese, o
esforo humano para vencer a insegurana da perda de certezas que
ocorre com as mudanas na compreenso das coisas. A tese idealista
mais completa que a anterior, rene o trabalho de muitos filsofos
modernos, todavia, tem como problema que a realidade no
representada na conscincia parece seguir independente dela. Alm
disso, se o idealismo estivesse certo, s existiria pensamento o que
parece absurdo, avalia Ortega y Gasset, no texto que se segue:
[...] se a realidade radical o pensamento, quer dizer que,
propriamente falando, no h mais que pensamento. Adeus coisas,
mundo, amigos. Tudo isto no , em verdade, mais que um enxame de
ideias. Sou um cego que sonhava que via (1997c, p. 122). O homem
precisa estar ante as coisas para que elas existam, mas o real no s
pensamento, porque o que existe mais que pensamento. Assim tambm,
eu no sou minha
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Ortega y Gasset, a vida como realidade metafsica Artigos /
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vida, pois ela mais que o eu. As consideraes de Ortega y Gasset
tratam a vida como resultado de duas instncias, uma imanente e
outra transcendente, como se v nesta passagem: [...] as coisas no
so eu, nem eu sou as coisas, porm ambos somos imanentes a esta
coexistncia absoluta que a vida (p. 127). Eis a caracterizao
sugerida no texto: a vida coexistncia absoluta do eu e das coisas,
implica um que fazer dentro de determinada circunstncia.
IV. COnSIDERAES FInAIS
28. A apresentao da vida como assunto fundamental da Filosofia o
tema central da meditao orteguiana e foi o objeto deste trabalho.
Ao tratar do entendimento orteguiano de vida, optou-se por
acompanhar a caracterizao construda pelo pensador, ao longo de sua
trajetria intelectual. Nesse sentido, as obras Qu s filosofa? e
Unas lecciones de metafsica representam o ponto culminante, embora
no exclusivo, dessa reflexo, porque, nesses livros, o problema da
vida inserido na grande tradio filosfica do ocidente. Na verdade,
boa parte dos textos elaborados a partir dos anos trinta revela a
compreenso metafsica da vida. A tipificao fica mais densa e o
filsofo precisa aspectos do problema investigado durante dcadas. Os
dois livros mostram a interpretao orteguiana da histria da
Metafsica. Dessa forma, ao lado de sua meditao clara e criativa
acerca da vida, manifesta-se o conhecimento do professor de
Metafsica, cujas lies apresentam a procura histrica da verdade como
a formao de crenas que do serenidade. A realidade radical buscada
na histria da filosofia se concretiza em teorias que integram a
circunstncia das diferentes geraes. A interpretao orteguiana da
histria da Metafsica prope um ideal de aperfeioamento da conscincia
expresso em formulaes que, se no so completas, podem ser menos
incompletas com as sucessivas reconstrues.
29. A caracterizao da vida tornou-se, em nosso tempo, um
problema filosfico. Assim pela insuficincia terica do idealismo e
do realismo, afirma Ortega y Gasset. As duas perspectivas
produziram ao longo da histria muitas verdades sobre a vida,
algumas antagnicas, todas parciais. pela Filosofia que se busca
responder pergunta radical pelo fundamento e, com ela, alcanar a
verdade radical e superar a parcialidade das verdades j formuladas.
Como Ortega y Gasset avalia que nenhuma das duas perspectivas
resolveu o problema de forma completa, elaborou uma soluo que
englobou ambas as perspectivas e as superou. Foi o que pretendeu
com a caracterizao da vida
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CARVALHO, J. M.
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a qual elaborou, no que denominou metafsica da razo vital. Seu
projeto semelhante ao de Edmund Husserl, no final da vida.
CARVALHO, Jos Mauricio de. Ortega y Gasset: life as metaphysical
reality. Trans/Form/Ao, Marlia, v. 38, n. 1, p. 167-186, Jan./Abr.,
2015.
ABSTRACT: In this article, we study the characteristics that the
Spanish philosopher Ortega y Gasset attributed to life. We show
that the essence of his meditations revolved around the subject.
However, the issue gained metaphysical density only in the late
1920s , when his remarks were inserted into the philosophical
tradition of the West. That is when he pointed out the failure of
realism and idealism in the approach to foundations pretended by
philosophy, and presented the philosophy of vital reason as a step
forward from the two great philosophical perspectives that have
marked the history of metaphysics .
KEYWORDS: Life. Metaphysics. Characteristics. Reality.
Circumstance.
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Recebido em: 19/08/14Aceito em: 12/11/14
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CARVALHO, J. M.
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