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UNIDADE DE ENSINO SUPERIOR DE FEIRA DE SANTANA CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
FRANCISCO OTÁVIO LIMA FERREIRA
CRÔNICAS RUPESTRES:
O caráter informativo / noticioso da arte parietal pré-histórica.
O caráter informativo/noticioso da arte parietal pré-histórica.
Monografia apresentada à Unidade de Ensino Superior de Feira de Santana como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo.
O presente trabalho monográfico propõe uma reflexão sobre o papel desempenhado pelas pinturas rupestres pré-históricas na vida social dos grupos humanos que lhes foram contemporâneos. Pesquisar e analisar as representações parietais como uma manifestação que extrapola o conceito estético e artístico, imbricando pelo campo utilitarista, como uma forma de educação, registro histórico e informativo, é a motivação que norteia este estudo. Ao longo da pesquisa, questões referentes a conceitos de pré-história, colonização e identidade nacional são trazidas à lume para melhor contextualização dos fatores sócio-históricos que determinaram o desaparecimento das etnias que produziram os painéis pictóricos. A semiótica foi o principal aporte teórico para o desenvolvimento dessa pesquisa; uma ferramenta científica capaz de iluminar o amplo e complexo campo dos signos e símbolos que permeiam as representações rupestres.
The present work monographic proposes a reflection on the paper carried out by the paintings prehistoric rupestres, in the social life of the human groups that they were they contemporary. To research and to analyze the parietal representations as a manifestation that extrapolates the aesthetic and artistic concept, going for the utility field, as an education form, historical and informative registration, is the motivation that orientates this study. Along the research, referring subjects to prehistory concepts, colonization and national identity, they are brought to fire for better contextualization of the partner-historical factors that determined the disappearance of the races that produced the pictorial panels. The semiotics was the principal it contributes theoretical for the development of that research; a scientific tool capable the wide and complex field of the signs and symbols that permeate the representations rupestres to light up.
Fotografia 1- Área da pesquisa de campo, em Morro do Chapéu - Bahia
13
Fotografia 2- Pintura rupestre que lembra mitos da cultura Ocidental 33 Fotografia 3- Cervídeo pintado em paredão 39 Fotografia 4- Painel rupestre visível à distância 41 Fotografia 5- Suporte rochoso contribui para composição da cena 44 Fotografia 6- Caçador 46 Fotografia 7- Ritual 46 Fotografia 8- Cena da árvore 47 Fotografia 9- Cena da árvore 47 Fotografia 10- Tradição Agreste 48 Fotografia 11- Palma de mão 48 Fotografia 12- Figura geométrica que sugere sensualidade 59 Fotografia 13- Cena de batalha e estupro de mulheres 54
1 HISTÓRIA DE CAÇADORES 15 1.1. CAÇADORES DE VESTÍGIOS 16 1.2. OS VESTÍGIOS FALAM 17 1.3. A LINGUAGEM DO CONTEXTO AMBIENTAL 20 2 HISTÓRIAS QUE BEM SE CONTAM E OUTRAS MAL CONTADAS 22 2.1. ANDARILHOS INTERCONTINENTAIS 23 2.2. COLONIZADORES DAS AMÉRICAS 25 2.3. COLONOS DO BRASIL 26 2.4. UMA RADIOGRAFIA SOCIAL DOS NORDESTINOS PRIMEVOS 28 2.5. A DEPOPULAÇÃO (OU LIMPEZA ÉTNICA) DO BRASIL 30 2.6. VELHOS E PERSISTENTES, QUASE DOGMÁTICOS CONCEITOS 33 3 HISTÓRIAS ESCRITAS NA PEDRA 37 3.1. PINTURAS RUPESTRES: UMA VISÃO SEMIÓTICA 37 3.2. UM PROJETO GRÁFICO 42 3.3. O PARADIGMA IMAGÉTICO 46 3.4 CRÔNICAS RUPESTRES 51
Fotografia 1: Área da pesquisa, em Morro do Chapéu - Bahia. Fonte: Google Earth (2008)
Ao final do estudo, espera-se ter contribuído para a revisão de velhos, e já
inapropriados conceitos, como por exemplo, a premissa histórica que os primeiros
registros sobre os nativos brasileiros e seus costumes, advieram da carta escrita por
Pero Vaz de Caminha. Uma visão histórica que dialoga com o pensamento
etnocentrista do Velho Mundo e relega a produção cultural do brasileiro pré-histórico
à condição de grafismos sem importância.
Heráclito de Éfeso, filósofo grego, nascido há dois mil e quatrocentos anos
antes do presente1, dizia que ninguém consegue tomar banho duas vezes no
mesmo rio. Considerava ele, que ao retornar à água, mesmo que após uma fração
de segundos, o homem, e tampouco o rio terão sido mais os mesmos; ambos
mudaram de alguma forma; e um contribuiu para a mudança do outro.
1 No estudo da pré-história, Antes do Presente (AP) tem por convenção o ano de 1950; referência, aproximada, ao período em que foi descoberta a técnica de datação conhecida como Carbono 14. Na verdade, essa técnica foi desenvolvida em 1952.
Ainda no Século XIX, em sua última metade, ocorreram profundas mudanças
naquele cenário caótico. Segundo Funari (2003, p. 24) aquele foi um Século
marcado pela afirmação dos Estados Nacionais, dando origem a uma ideologia
nacionalista que buscava consolidar nações pela busca ou resgate de valores
arcaicos. Por conta desta necessidade de pertencimento, de buscar vínculos
atávicos, é que surge uma nova Ciência: a Arqueologia.
Em 1859, é publicado o livro A Origem das espécies2, de Charles Darwin,
obra marcante por explicar a origem do homem sem recorrer a argumentos
sobrenaturais. O livro tinha ainda o mérito de sugerir um passado muito mais
longínquo para a espécie humana do que aquele atribuído pela Bíblia. Para Funari
(2003), a partir das idéias Darwinianas é que a pesquisa arqueológica entra em uma
nova fase.
A busca de novos conhecimentos, de saberes científicos, se traduz então num
rápido desenvolvimento e consolidação da Arqueologia. Entrava em gestação uma
nova categoria de caçadores. Não mais aventureiros em busca de tesouros, mas
caçadores da riqueza histórica contida nos vestígios deixados pela ação humana e
sua interferência no meio ambiente em que viveu temporária ou duradouramente.
Ainda de acordo com Funari (2003), na Europa, a Arqueologia derivou da
Filologia e da História. Era, basicamente, voltada para estudos de vestígios materiais
da civilização ocidental; ficando conhecida como Arqueologia Clássica. Já nos
Estados Unidos do Século XIX, a civilização ocidental era estudada pelos
historiadores, enquanto a pesquisa e estudo de outras civilizações, inclusive as
ameríndias, ficaram sob os encargos da antropologia. Para esse autor, esta
2 Teoria fundamentada nas idéias do naturalista inglês Charles Robert Darwin (1809-1882), na qual são propostos mecanismos baseados na seleção natural, para explicar a origem, a transformação e a perpetuação das espécies ao longo do tempo.
que existiram outrora, pode não trazer bons resultados quando se trata de pré-
história. Ele adverte que as populações remanescentes são poucas e se
modificaram demasiadamente durante os milênios que as separam dos habitantes
primevos.
Assim, para Funari e Noeli (2006), diante da carência de subsídios históricos
e sociais absolutamente confiáveis, resta, pois, aos arqueólogos, a tarefa de buscar
respostas aos questionamentos históricos através de outras fontes de informações:
os vestígios materiais.
Registrar, coletar, avaliar, depurar e interpretar as informações contidas em
camadas sedimentares, nos registros parietais e no meio ambiente, num lento e
minucioso ofício de reconstrução de fatos a partir de fragmentos e indícios deixados
pelo homem pré-histórico; é, grosso modo, a metodologia utilizada por arqueólogos
em busca de evidências que apontem para uma verdade, ainda que não absoluta.
Resume Funari:
A Arqueologia nada mais é que uma leitura, ainda que um tipo particular de leitura, na medida em que o “texto” sobre o qual se debruça não é composto de palavras, mas de objetos concretos, em geral mutilados e deslocados do seu local de utilização original (FUNARI, 2007, p. 32).
Prous (2007) enfatiza que a linguagem dos vestígios é complexa e rica, mas,
para que respostas científicas sejam dadas, a Arqueologia depende da colaboração
de outras ciências.
Técnicas, laboratoriais são fundamentais para a pesquisa arqueológica. Sem
elas, não se poderia afirmar, por exemplo, que determinado sítio foi habitado há
10.000 anos por humanos que ali fizeram fogueiras, processaram alimentos,
enterraram seus mortos, produziram utensílios e deixaram inscritas, na pedra, suas
histórias, crenças e saberes.
Os ossos humanos informam sobre idade, sexo, características físicas tanto individuais quanto diagnósticas do tipo de população, posturas freqüentes, tipos de esforços mecânicos, doenças [eventualmente, causa mortis] e alimentação. Os restos de animais caçados sobre as escolhas e os hábitos
de preparo alimentar. [...] Os instrumentos de pedra, de osso ou cerâmica informam sobre as tecnologias conhecidas pelos grupos que os fabricou. [...] Os grafismos (pinturas, gravuras) deixadas em paredões (a chamada arte rupestre) ou em pequenos objetos, assim como as esculturas e modelagens, permitem abordar a esfera do pensamento simbólico por meio de temas formas e ritmos privilegiados pelas populações (PROUS, 2007, p. 14).
Um exemplo ilustrativo, com referência à importância dos vestígios
arqueológicos, diz respeito ao povoamento do Brasil. Exames recentes, em material
lítico, indicam a presença de Homo sapiens nas Américas por volta de 100.000 anos
antes do presente (MARTIN, 2005, p.13). No Brasil, estudos já sugerem a passagem
de grupos humanos no Nordeste, por volta de 50.000 A.P.(antes do presente).
Contudo, esta opinião não é partilhada unanimemente pela comunidade científica
internacional.
Estudiosos, principalmente norte-americanos, ainda são resistentes às
datações anteriores há 10.000 anos para a chegada do homem pré-histórico à
América do Sul. Eles pedem como comprovação definitiva, ossos humanos que
possam ter sua antiguidade atestada através do método do Carbono 14. Até o
momento, tais vestígios não foram encontrados pela Arqueologia brasileira
(MARTIN, 2005, p. 49). Entretanto, mesmo quando achados vestígios, nem sempre
os resultados conseguidos são aceitos por outros pesquisadores. As dúvidas
suscitadas geralmente dizem respeito à interpretação dos dados obtidos.
Um pouco de carvão pode ser interpretado como restos de uma fogueira feita pelo homem, assim como pode ser considerado simples resquícios de um incêndio natural, sem intervenção humana. Se o carvão está ao lado de instrumentos de pedra, perto de vestígios de uma habitação, esse contexto arqueológico permite supor que se trata de uma fogueira feita pelo homem. Se, ao lado do carvão, só encontramos restos de vegetação, podemos supor que se trata de uma fogueira natural. [...] Diante dos mesmos elementos, diferentes estudiosos podem chegar a conclusões opostas. [...] Devemos concluir, portanto, que as próprias fontes de informação só podem ser interpretadas com o auxílio de metodologias inevitavelmente marcadas por certa dose de subjetividade (FUNARI; NOELLI, 2006, p. 22).
[...] Os processos sócio-históricos estão marcados pela interação homem-natureza. Isto significa que a história de um grupo humano se desenvolve no interior de um ambiente natural determinado, mediante o estabelecimento de uma relação de reciprocidade entre a sociedade humana e o meio natural, relação na qual cada uma das partes é condição sine qua non para a dinâmica de um específico sistema cultural (ETCHEVARNE, 2007, p. 79).
Martin (2005) denomina alguns paleoambientes encontrados no Nordeste de
“santuários ecológicos”, por conta de sua habitabilidade, oferecendo condições
climáticas, hídricas e geográficas ideais para a habitação dos povos pretéritos.
Acredita Blainey (2007) que, há cerca de um milhão e meio de anos, a
espécie Homo havia descido das árvores nas florestas tropicais africanas,
desgarrando-se de seus ancestrais, os macacos, e vivia nas savanas. Andavam
eretos, alimentavam-se do que a terra oferecia e sua dieta era o resultado de uma
série de descobertas como, por exemplo, saber se uma planta era comestível ou
venenosa. Alguns devem ter perecido por envenenamento colaborando,
involuntariamente, para o aprendizado de outros.
Moviam-se em pequenos grupos, em cada nova região que chegavam tinham
de adaptar-se a novos alimentos e enfrentar outros animais até então
desconhecidos. Nesta viagem migratória, provavelmente foram atacados por
predadores e muitos morreram. Apesar dos percalços, esses hominídeos, de origem
tropical, continuaram avançando por territórios inexplorados, regiões desérticas ou
geladas, aprimorando estratégias adaptativas e conquistando vitórias na brutal luta
pela sobrevivência.
Era mais uma corrida de revezamento do que uma longa caminhada. É possível que um grupo de talvez 06 ou 12 pessoas avançasse uma pequena distância e decidisse se estabelecer naquele lugar. Outros vinham, passavam por cima delas ou impeliam-nas para outro lugar. O avanço pela Ásia pode ter levado de 10 mil a 200 mil anos (BLAINEY, 2007, p. 9).
Funari e Noelli (2006) admitem que, por volta de um milhão de anos antes do
presente (AP), humanóides já tinham um cérebro cujo volume aproximava-se
daquele do homem moderno atual, e já haviam realizado a maior conquista da
espécie humana no decurso da pré-história: o domínio do fogo. Também já eram
capazes de fabricar utensílios. Estas duas habilidades lhes permitiram se aventurar
por lugares mais longínquos e frios. Foram denominados Homo habilis.
Para Blainey (2007), entre 500 ou 200 mil anos, em mais uma mudança
biológica, o cérebro dos humanos alcançou outro crescimento notável e a estrutura
já possuía uma área de fala. Como isso aconteceu, porém, é um grande mistério;
uma das causas prováveis foi o uso cada vez maior de carne na alimentação. É
possível que com o decorrer do tempo, os ácidos graxos encontrados na carne
tenham sofisticado o cérebro e seu funcionamento. Surge então o Homo sapiens.
Segundo Funari e Noelli (2006), entre 60 e 40 mil anos AP, teriam surgido a
maioria das manifestações e habilidades humanas, tais como a arte, os enfeites do
corpo, os enterramentos dos mortos, as viagens marítimas e a linguagem falada.
Blainey (2007) denomina aquele período como o “Grande Salto” ou “Explosão
Cultural”. Diz ele: “A linguagem falada adquiria mais palavras e maior precisão. As
belas-artes surgiram juntamente com o ato de comunicar-se através da fala,
apoiando-se no uso de símbolos” (p. 14).
Apesar do avanço biológico, as sociedades antigas continuaram levando uma
vida seminômade. Estavam sempre à mercê das estações climáticas, pois não
armazenavam alimentos com que pudessem enfrentar períodos de escassez.
Grupos pequenos ocupando uma vasta área, com recursos naturais em abundância,
poderiam viver por algum tempo num mesmo lugar.
Ainda segundo Blainey (2007), é possível que antes de 20.000 anos AP,
nenhum grupo de 500 pessoas tenha se reunido em uma mesma localidade. Como
não cultivavam ou criavam animais, não podiam prover com alimentos uma grande
parcela populacional. Porém, esta vida errática favoreceu de modo insuspeito os
grupos pré-históricos:
Os nômades, sem saber, levaram vantagens em termos de saúde. Por usarem pouca roupa, ou até mesmo nenhuma, em climas tropicais, ficavam mais expostos à luz solar, o que impedia a proliferação de germes. Por não possuírem animais, eram alvo de menor número de doenças (BLAINEY, 2007, p. 17).
Depois de esgotados os recursos, ou com as mudanças de estações, a
migração se fazia necessária. Os doentes e mais idosos, que já não podiam andar,
eram deixados para trás. Uma sociedade em movimento não tinha alternativas.
É visão predominante entre pré-historiadores e arqueólogos, que após a
conquista dos quatro outros Continentes, por volta de 30 mil anos AP, os humanos
chegaram ao Estreito de Bering, um frio corredor de terra entre a Sibéria e o Alasca
e portão de entrada das Américas. Esta passagem deve ter acontecido num
momento em que as águas oceânicas baixaram de nível devido a uma das quatro
glaciações:
No quaternário existiram pelo menos quatro momentos de esfriamento planetário, que provocaram acumulação de gelo sobre o continente, os chamados glaciares, e a descida do nível das águas oceânicas. Essas glaciações marcaram todo o período geológico denominado Pleistoceno. O aquecimento gradual de aproximadamente 12.000 a 10.000 anos atrás marca o início de um novo período, o Holoceno (ETCHEVARNE, 2000, p. 118).
Nos períodos denominados de glaciares, houve a formação de grandes
geleiras, a água do mar ficou presa no alto dos Andes, no norte da Europa e na
América do Norte. Esse processo diminuiu o nível do mar em até 100 metros.
Segundo Fausto (2006), a paisagem era muito diferente e a linha da praia estava a
dezenas de quilômetros de onde ela está hoje em dia. Nesse cenário, transpor o
Estreito de Bering e ingressar no Continente Americano não deve ter sido uma tarefa
muito difícil para quem já dominava o fogo e produzia utensílios.
Blainey (2007) supõe que grupos de caçadores cruzaram esse corredor
gélido com suas famílias à caça de animais, e tornaram-se assim, sem o saberem,
os colonizadores do Novo Mundo. Já em território norte-americano, levas humanas,
gradativamente, desceram pela Costa Oeste até o México, onde encontraram um
clima mais quente, e muita caça. Pesquisas arqueológicas confirmam que há 22 mil
anos, o homem já estava presente no México.
Há cerca de 11.000 mil anos, atravessando o istmo do Panamá, os primeiros
grupos humanos, em diferentes ondas migratórias, chegaram à América do Sul.
de elefantes) e, eventualmente tê-los caçado, animais de grande porte, na dieta
alimentar do paleoíndio era uma exceção, não a regra.
Para Blainey (2007), é provável que esse tipo de captura só acontecesse nos
raros momentos em que havia um grupo maior de caçadores reunidos, e estes
conseguiam encurralar a caça em alguma espécie de cânion. Há ainda a
possibilidade dos grupos arcaicos terem se alimentado das sobras deixadas por
predadores naturais.
Martin (2005) acredita que imaginar o homem pré-histórico brasileiro como um
caçador por excelência do Tigre-dentes-de-sabre é uma caracterização romanceada.
De uma maneira geral, os restos alimentares coletados em escavações
arqueológicas indicam que os primeiros nordestinos eram consumidores da micro-
fauna: roedores, répteis e moluscos.
5 Características morfológicas semelhantes à das populações norte - asiáticas, como os chineses e japoneses, observadas até hoje na população indígena brasileira.
Sobre os grupos humanos que habitavam o Nordeste do Brasil, seus hábitos
e cultura, a arqueóloga Gabriela Martin é bastante didática:
O indígena do Nordeste, antes da colonização européia, no seu nível cultural mais avançado, nunca ultrapassou o estágio neolítico primário pré-urbano. Sua habitação não era permanente, não trabalhou a pedra para construção de moradias, nem soube fazer o tijolo ou adobe. Não conheceu metais, a roda nem o torno de oleiro e não domesticou nenhum animal economicamente rentável. Sua organização social não estava dividida em classes. Sempre andou nu ou seminu (MARTIN, 2005, p.151).
Logo adiante, é ainda Gabriela Martin que define a motivação em estudar
aquelas sociedades simples6 do Nordeste brasileiro:
Apesar disso, o grande interesse no estudo da pré-história brasileira, especialmente a das regiões mais inóspitas do sertão nordestino, está em observar a grande capacidade de adaptação do homem a uma natureza particularmente adversa. Também constatar que, nesse meio hostil, ele foi capaz de criar e desenvolver uma arte expressiva e bela, como são as pinturas rupestres situadas nos domínios do semi-árido (MARTIN, 2005, p. 151).
Contudo, a adaptabilidade ao meio-ambiente; sua tecnologia rudimentar, mas
eficiente para atender as necessidades e adversidades que lhe eram impostas pela
natureza, não lhe foram de valia frente a um inimigo tecnologicamente preparado
para a guerra e com larga experiência em dominação: o europeu.
2.5 A DEPOPULAÇÃO (OU LIMPEZA ÉTNICA) DO BRASIL
Até o ano de 1.500 não havia Brasil, apenas um terra livre, habitada por
descendentes dos primeiros colonos; possuidores de cultura e ideologias próprias. A
6 Não hierarquizadas, inverso das sociedades complexas marcadas por forte hierarquia social. Não confundir com primitivismo (GASPAR, 2003, p. 10).
defesa biológica. Os remanescentes foram aprisionados, feitos escravos ou
enviados para missões católicas onde se pretendia evangelizá-los. A evangelização,
da forma como foi perpetrada, se configurou como mais um perverso crime cometido
contra os nativos brasileiros: o etnocídio cultural.
Relata Martin (2005) que, apenas 45 anos após o descobrimento da América
e 37 do Brasil, quando já estava em curso o processo de dizimação dos nativos do
continente americano, é que o Papa Paulo III editou a bula Sublimes Deus,
reconhecendo os índios como humanos, legítimos filhos de Deus, e redimidos pelo
pecado original.
A presença de humanos no Novo Mundo, reconhecidos como tal pelo papa,
provoca uma avalanche de interrogações, seguidas de explicações mágicas para
enquadrar esses povos na descendência de Noé; já que não se registrava a ida de
qualquer dos seus três filhos Cam, Sem e Jafet, para o Continente americano.
Ainda de acordo com os relatos de Martin (2005), buscaram-se então
referências em passagens bíblicas do Antigo Testamento, onde se falava de
navegações a lugares não satisfatoriamente identificados. Terminaram por concluir
que os índios eram descendentes de gregos fenícios ou até mesmo israelitas, só
que em processo de regressão cultural. Urgia, então, uma nova ação
evangelizadora.
Aos índios do século XVII, incertos descendentes daqueles povos que
audaciosamente conquistaram o continente americano, considerados um povo
culturalmente degenerado, naquele período, e até meados do século XX,7 só restava
uma opção: acatar a superioridade temporal e espiritual dos dominadores e abdicar
de suas crenças e costumes milenares.
7 Até os anos 70 do Século XX, antropólogos como Darcy Ribeiro e órgãos governamentais como a FUNAI, acreditavam na tese do degeneracionismo, supostamente capaz de levar os povos indígenas à extinção (FUNARI; NOELLI, 2006, p. 33).
Fotografia 2: Pintura rupestre que lembra mitos da cultura Ocidental. Fonte: acervo do autor.
2.6 VELHOS E PERSISTENTES, QUASE DOGMÁTICOS CONCEITOS
Dois fatores foram preponderantes para que as informações de origem
imaterial das sociedades antigas desaparecessem e hoje só possam ser refeitas,
como uma colcha de retalhos, graças à Arqueologia. Em virtude do quase
aniquilamento étnico e cultural imposto pelos colonizadores aos descendentes do
paleoíndio, não restou muito no âmbito da antropologia cultural e social para que se
possa fazer uma apreciação analítica e comparativa das culturas.
O segundo fator, mas não menos importante, está relacionado a crenças
religiosas e seus conceitos ideológicos8. Um desses princípios com caráter
8 Sistema de idéias (crenças, tradições, princípios e mitos) interdependentes, sustentadas por um
grupo social de qualquer natureza ou dimensão, as quais refletem, racionalizam e defendem os próprios interesses e compromissos institucionais, sejam estes morais, religiosos, políticos ou econômicos (Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, versão 2.0.- Abril – 2007).
dogmático se refere à teoria do criacionismo9. Para as comunidades religiosas, em
especial aquelas de origem judaico-cristã, o universo e todos os seres vivos têm
pouco mais de 8.000 anos de existência. Portanto, a teoria da evolução das
espécies, idealizada por Charles Darwin, no século XVIII, não encontra abrigo no
seio desses líderes, e seus prosélitos, que continuam defendendo o criacionismo.
Assim, a negação da Ciência em benefício dos dogmas a respeito da origem
humana foi uma das razões pelas quais os estudos científicos das sociedades
arcaicas encontraram, no passado, forte oposição e, atualmente, ainda a encontra,
só que de forma silente e sub-reptícia. É também com muitas dificuldades que
pesquisadores conseguem espaço midiático para divulgação de novas e
insofismáveis descobertas que venham a contradizer convicções enraizadas.
Funari e Noelli (2006) dizem que, no Século XVIII, após a ascensão do
capitalismo e sua identificação com o termo “civilização”, a elite européia passou a
considerar, por contraposição, a expressão “barbárie” para designar as sociedades
diferentes culturalmente, em especial aquelas não envolvidas com o modo de
produção capitalista. Os povos, fora do eixo dito “civilizado”, buscaram então se
adequar aos novos costumes ou pareceriam “bárbaros”. O Marquês de Pombal, que
entre outras ações administrativas proibiu que se falasse a Língua Geral, ou
nenhengatu, no Brasil, foi quem melhor simbolizou esse período de aculturação
nacional.
O Brasil, “inventado” no Século XVI, e consolidado após 1822, tornou-se um
país com geopolítica, hábitos e cultura adequados aos ditames do Velho Mundo.
Desde então, muitas concepções, principalmente culturais, se estabeleceram como
verdade inquestionável e até hoje continuam sendo reproduzidos no meio
acadêmico. Um desses conceitos refere-se à pré-história.
9 Para a Igreja católica e outras instituições religiosas, doutrina baseada no Gênese bíblico, segundo
a qual o mundo foi criado por Deus a partir do nada, e todos os seres vivos tiveram criação independente e se mantêm biologicamente imutáveis (Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, versão 2.0.- Abril – 2007).
Dado que o cerne da presente monografia é a análise das representações
rupestres, enquanto veículo narrativo e ideológico, os dois primeiros capítulos se
justificam como ferramenta de contextualização para o leitor. O objetivo é que depois
de ter lido os capítulos precedentes, já liberto das amarras do pré-conceito
eurocentrista, o leitor possa aceitar uma discussão mais ampla; estender um olhar
mais arguto sobre os signos e significados dos registros feitos sobre suportes
rochosos; um espaço democrático que o homem pré-histórico utilizou para narrar
histórias e deixar, gravado na pedra, sua visão de mundo:
Como premissa básica, deve se considerar que a arte rupestre constitui uma forma muito particular de compreender o ambiente, tanto natural quanto social, posto que ela aponta diretamente para um aspecto essencial das representações mentais das populações pretéritas; o simbolismo. (ETCHEVARNE, 2007, p.19)
Porém, ao passo que fascina bela beleza das imagens e grafismos pintados,
o simbolismo, linguagem só compreensível para quem conhece o código, se torna a
grande incógnita das pinturas rupestres. Não havendo parâmetros para descobrir o
que as inscrições significavam para seus autores e os grupos sociais que lhes foram
contemporâneos, toda apreciação é conjectural e traz, subjacente, a óptica do
analista.
3.1 PINTURAS RUPESTRES: UMA VISÃO SEMIÓTICA
De acordo com Pereira (2005, p. 29), “A mensagem pode ser definida como
ordenação ou combinação de signos visando transmitir informação”. Código é a
linguagem na qual a mensagem é transmitida. Toda mensagem é expressa numa
Para que haja comunicação é preciso que o emissor use um código
conhecido pelo receptor. A língua conhecida por determinado grupo social é
constituída por signos que se inter-relacionam para formar uma regra lingüística; a
mensagem é a fala. O objetivo da mensagem é passar informações; um conteúdo.
Informação é, pois, o nome técnico que se dá ao conteúdo da mensagem.
Pereira (2005) ainda afirma que, de uma maneira bastante generalizante,
poder-se-ia resumir dizendo que comunicação, tecnicamente, é um processo
intelectual e físico, pelo qual uma mensagem contendo informação, e constituídas de
signos, é transmitida de um emissor para um receptor, através de um canal, sob
forma de sinais.
Há, entretanto, códigos “abertos”, em que a mensagem pode ser interpretada
de forma diferente por cada receptor. As pinturas rupestres são compostas por
pictografias10 e a chave para decifrá-las literalmente é considerada irrecuperável.
Assim, as representações rupestres são um exemplo de mensagem cujo leque de
interpretações é bastante amplo.
Esse conceito é esclarecido em Pereira (2005, p. 96): “A arte do desenho é
uma linguagem, as diversas habilitações do desenho, geométrico, caricatura, charge
artístico ou quadrinhos, são línguas (códigos de estilos) e cada desenho em
particular é uma mensagem”.
A escrita é uma linguagem verbal, mas também simbólica dado que ela não
tem semelhança alguma com o seu referente. Quando escrevemos o vocábulo
“árvore”, sabemos do que se trata por convenção, pois a palavra não retrata o
referente:
Os primórdios da escrita podem ser recuados até as gravuras e pinturas que o homem paleolítico deixou nas rochas e no fundo das cavernas há pelo menos 15 mil anos, pois, escrita é desenho, só que simbólico não figurativo (PEREIRA, 2005, p. 22).
10 Sistema primitivo de escrita em que se exprimiam as idéias por meio de cenas figuradas ou simbólicas (Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, versão 2.0.- Abril – 2007)
Fotografia 3: Cervídeo pintado em paredão. Fonte: Acervo do autor.
Convém ressaltar que os símbolos só possuem significados dentro de um
determinado contexto cultural. Importa dizer que só significam algo para quem detém
o conhecimento colateral e pode correlacioná-los com o seu referente. As pinturas
rupestres, se observadas individualmente, fora do contexto histórico-cultural, podem
conduzir o observador contemporâneo a fazer deduções tendo como parâmetro a
própria lente cultural:
Na maioria das vezes analisam-se as pinturas rupestres através do reconhecimento do mundo sensível, tendo como parâmetro a identificação icônica e os valores culturais de quem as interpretam. Essa análise dedutiva, não leva em conta a carga simbólica do signo, ao tempo em que foi produzido, ou o universo cultural de seus autores (PESSIS, 1984, p. 52).
Diante de qualquer imagem, evidencia-se, em primeiro lugar, o sentido
imediato, explícito, literal, denotativo. Mas pode haver os sentidos ocultos, implícitos,
metafóricos ou simbólicos da mensagem, que são os conotativos.
Há uma constante busca de novos significantes para veicular significados. É
muito difícil traduzir em imagens significações abstratas tais como: amor, ódio,
felicidade e prazer. Para a maior parte destas situações, utilizam-se as
representações simbólicas. Não deve ter sido diferente com o homem pré-histórico e
sua tecnologia gráfica rudimentar. Diz Rocha (1985, p. 2): “O que marca o ser
humano é justamente sua particularidade de possuir e organizar símbolos que se
tornam linguagens articuladas, aptas a produzir qualquer tipo de narrativa”.
Partindo-se da premissa que as representações parietais são pictografias,
portanto, um sistema de escrita utilizando como suporte o pictograma, pode-se então
afirmar, bebendo na fonte da semiótica, que elas foram, e ainda é, uma forma de
comunicação visual indireta, pois o receptor não interage; tem a característica
unidirecional, dado que existe uma emissão de mensagem sem a contrapartida de
uma realimentação. Também é pública; logo, disponível à visualização de todos.
Pesquisadores já admitem que, no tempo em que foram produzidas, essas pinturas
ofereciam a seus contemporâneos a oportunidade de “leitura”:
Conseqüentemente, a arte rupestre apresenta como traço diferenciador com relação aos outros vestígios arqueológicos, a intencionalidade, isto é, o propósito deliberado de deixar mensagens gráficas em superfícies pétreas de forma a perdurarem no tempo a ponto de poderem ser lidas por grupos contemporâneos ou sucessores de quem a executou (ETCHEVARNE, 2007, p. 22).
Em face dos conceitos enunciados por pesquisadores e estudiosos, não seria
impróprio supor, por analogia, que as pinturas rupestres, da forma como se
dispunham à observação do público, tinha, em sua época, a mesma funcionalidade
informativa que hoje possui um outdoor ou uma mensagem grafitada em espaços
qual mensagens eram transmitidas. Entretanto, para a maioria dos arqueólogos, o
conceito de arte pode ser aceito desde que não implique em considerar as pinturas
rupestres apenas como uma manifestação artística:
O pintor que retratou nas rochas os fatos mais relevantes da sua existência tinha, indubitavelmente, um conceito estético do seu mundo e da sua circunstância. A intenção prática da sua pintura podia ser diversificada, variando desde a magia ao desejo de historiar a vida do seu grupo, porém, de qualquer forma, o pintor certamente desejava que o desenho fosse "belo" segundo seus próprios padrões estéticos. Ao realizar sua obra, estava criando Arte (MARTIN, 2005, p. 240).
As palavras “arte” e “artista” têm a mesma raiz latina que é “artesão”, sendo
arte o perfeito conhecimento de regras que permitem realizar uma obra adequada a
sua finalidade. Para Gaspar (2006), Do mesmo modo que um artista
contemporâneo, seja ele um cantor, coreógrafo, escritor ou pintor, pretende que sua
arte, além de encantar os sentidos, leve uma mensagem ao público, não era outro o
objetivo final do homem que, há 9.000 anos, desenhou na pedra os sinais pictóricos.
Embora apresente padrões repetitivos, nos moldes de uma linguagem
reconhecível, reproduzir o pensamento abstrato, operar com qualidades e não
apenas com a realidade sensível é, reconhecidamente, uma característica da pintura
rupestre:
Da mesma forma que não há duas obras de arte iguais, a não ser quando se trata de cópia ou plágio, não há também dois painéis rupestres repetidos, pois o que se repete são as idéias e os comportamentos, plasmados graficamente e de forma subjetiva. (MARTIN, 2005, p. 238).
Uma frase da maior importância, para que se possa entender a inter-relação
entre o homem e a ferramenta que usa para veicular uma informação, foi
sentenciada por McLuhan (1996): “O meio é a mensagem”. O autor aponta uma
equivalência entre forma e conteúdo na transmissão da informação. Essa paridade
coloca em evidência que o humano modela ferramentas que também o modelam. O
homem dá forma a novos instrumentos e novas ferramentas que lhe serão úteis para
transmitir informação e conhecimento. Não apenas o produto, mas, igualmente, os
meios utilizados. A pintura rupestre é um meio de comunicação que delineia o
homem e seu horizonte cultural.
Os registros rupestres, tendo como suporte gráfico a rocha, compõem o que
Martin (2005) denomina de “painel gráfico”. Segundo a arqueóloga, a forma como as
pinturas eram dispostas nos paredões, a escolha de determinadas figuras, a seleção
de um local em detrimento de outro no mesmo sítio arqueológico, faziam parte do
código comunicacional e eram fator preponderante para perfeito entendimento da
mensagem. Há, no entanto, quem vá além e qualifique esse arranjo estético como
parte integrante de um projeto gráfico.
As formas arquitetônicas do suporte rochoso (elementos naturais como parede, teto e piso) são partes compositivas do projeto gráfico. [...] Assim a combinação entre o suporte e os temas pintados pode resultar, em certos casos, em composições de grandes efeitos visuais. [...] Com isso pode-se imaginar que houve por parte dos autores do grafismo uma planificação que incorporasse os elementos topográficos de tal modo que os motivos resultantes pudessem provocar a sensação ótica de profundidade (ETCHEVARNE, 2007, p. 108).
A rocha enquanto veículo informativo, o tema retratado, os pigmentos, a
obtenção e preparação dos minerais; os instrumentos e habilidade manual no
exercício do traço foram componentes primordiais, e levados em consideração, no
momento em que o homem pré-histórico idealizou um projeto gráfico. Sua
tecnologia, ainda que precária, considerando os padrões atuais, não foram
impeditivas para a execução da obra. Desde o suporte até os materiais empregados,
tudo foi devidamente apropriado pelo artista, formando um único corpus, onde o
meio também é a mensagem.
O exemplo da fotografia 05 é bastante demonstrativo deste planejamento
estratégico. Basta observar que o autor da pintura, ao idealizar o projeto gráfico,
valeu-se da inclinação e protuberância do suporte rochoso para transmitir a
impressão visual que as aves estão em movimento descendente e, a primeira delas,
da esquerda para a direita, na iminência de efetuar um salto.
Fotografia 5: Suporte rochoso contribui para composição da cena. Fonte: Acervo do autor.
A engenhosidade do autor dessa pintura, sugerindo uma idéia de movimento,
é apenas um dos aspectos das pinturas rupestres. Há padrões estilísticos. Tal
padronização reforça a hipótese da existência de um código imagético capaz de
alçar as representações rupestres à semelhança de texto lingüístico:
Ainda que não possam ser identificadas as circunstâncias sociais específicas em que as pinturas e gravuras foram executadas, os dados conseguidos permitem pensar que esses códigos imagéticos poderiam ser acionados nas mais diversas situações. [...] Isso significa que os motivos pintados, ou gravados, englobados na denominação de arte rupestre teriam sido aplicados com funções variadas da maneira que se emprega a escrita na sociedade moderna (ETCHEVARNE, 2007, p.11).
A disposição espacial das pinturas, as espécies específicas de animais
representados em detrimento de outros, cores e movimentos; essa conjunção de
fatores leva o observador dos painéis rupestres a supor que está diante de um livro
em Morro do Chapéu, Bahia, demonstram alguns dos traços peculiares a essa
tradição.
Fotografia 6: Caçador. Fonte: Acervo do Autor Fotografia 7: Ritual. Fonte: Acervo do autor
Entre as características identificadoras das tradições, uma das mais
importantes é a temática. Há alguns temas que se repetem no tempo e espaço,
podendo ser encontrados desde o Piauí até a Bahia:
Podemos afirmar que, todavia, há unanimidade em reconhecer como elementos chave identificatórios de uma tradição a temática e como essa temática vem a ser representada, identificando-se nela certos grafismos emblemáticos ou “heráldicos” que representam uma ação não reconhecível que se repete em numerosos sítios (MARTIN, 2005, p. 235).
Os grafismos “heráldicos” estão presentes em vários sítios, às vezes
afastados por distâncias superiores a mil quilômetros e são paradigmáticos. Tais
Para Etchevarne (2007, p. 31) “A Bahia foi um meeting point, ou seja, um
local de encontro, de tradições culturais diferentes, no período pré-histórico”. Num
exercício de abstração, é possível supor que, desde épocas pretéritas, o que hoje
designamos de Estado da Bahia, foi um ponto de convergência de diversidades
étnica e racial, característica que ainda hoje permanece como referência cultural.
Fotografia 12- Figura geométrica que sugere sensualidade. Fonte: Acervo do autor
Tendo como ponto de partida as asserções, já enunciadas por pesquisadores,
que as representações rupestres são uma linguagem imagética, ainda que
intraduzível; que tinham como função transmitir mensagens, ou seja, informações
através da arte pictórica, não há como obstar que os grafismos parietais, exerceram
funções estéticas, mas, principalmente, reforçaram práticas educativas e utilitaristas:
A capacidade de contar também leva o homem a fazer riscos nas pedras e nas paredes rochosas numa fase pré-estética. Lembro aqui Johann Winkelmann na sua clássica obra “História da Arte na Antiguidade”, escrita em 1763, quando afirma que as artes que dependem do desenho começaram pelo utilitário para passar depois ao supérfluo. Comentário que também é válido para reflexão sobre as origens da arte pré-histórica (MARTIN, 2005, p.240).
As pinturas também tinham como função informar aquilo que a linguagem
verbal não conseguia; como ocorre ainda hoje, onde nem tudo que nos transmitem e
apreendemos é recebido por meio exclusivamente, verbal. Além disso, era ainda
uma forma de perpetuar um ensinamento ou ideologia.
3.4 CRÔNICAS11 RUPESTRES
A prática de escrever em superfícies pétreas não se extinguiu junto com a
cultura dita pré-histórica. Os milênios seguintes continuaram a ver o homem
utilizando paredões, rochas, paredes e muros para transmitir informações. O hábito
de registrar o pensamento em pedras e paredões tem longa duração e diferentes
significados. Avisos institucionais ainda são escritos nos chão das rodovias com
intuito de orientar os motoristas; tribos urbanas grafitam fachadas de prédios e
muros para demarcar território. Segundo Gaspar (2006), essas sinalizações
possuem em comum a necessidade humana de transmitir doutrinas pertinentes ao
grupo que as realizou e seus contemporâneos.
Atualmente, para além do suporte rochoso e muros existem outros veículos,
que a tecnologia e engenhosidade humana criaram para transmitir mensagens. Há
produtos impressos em geral, outdoors, sistemas de radiodifusão e redes virtuais.
Porém, a finalidade continua a mesma ao longo dos séculos, ou seja: educar,
instituir, narrar, reportar, promover e entreter. Numa única palavra: informar.
O arqueólogo Carlos Etchevarne não tem dúvidas de que as pinturas
rupestres objetivavam transmitir mensagens de múltiplas finalidades:
11 Texto jornalístico redigido de forma livre e pessoal, e que tem como temas fatos ou idéias da atualidade, de teor artístico, político, esportivo, etc., ou simplesmente relativos à vida cotidiana (Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0, 2004).
Assim, a escolha de um determinado setor da paisagem para representar graficamente poderia estar relacionado com as necessidades práticas ou ideológicas de um grupo, que faria uso das imagens para um bom número de funções tais como registrar acontecimentos (cotidianos ou extraordinários); transmitir experiências; delimitar territórios; ritualizar, com fins propiciatórios ou funerários; comemorar eventos, individuais ou coletivos; homenagear personagens; narrar fatos históricos ou míticos; sistematizar contagens; indicar vias de percurso; assinalar ciclos sazonais ou outros períodos; classificar e hierarquizar o ambiente envolvente (ETCHEVARNE, 2007, p. 21).
Ora, considerando o que assevera Etchevarne, na epígrafe acima, é possível
inferir que dentre as finalidades das pinturas rupestres, algumas se enquadram
numa configuração social contemporânea, abrangendo a noção de evento noticioso
e agente noticiador, cujo produto final é denominado notícia.
A narrativa, registro dos acontecimentos para conhecimento público, é uma
ação noticiadora. Mesmo em um período cronológico que tais conceitos não se
definiam, não obsta a sua ocorrência ainda que de modo inconsciente, mas com
finalidade precisa, independentemente de qualquer conhecimento institucionalizado.
Ouvir histórias e reproduzi-las para outrem é inerente ao humano, razão da
existência do jornalismo, onde sempre há o fato, o agente divulgador e aquele que
anseia pela informação:
Feiticeiros, pajés ou simplesmente contadores de estórias, podem ter sido os responsáveis pela transmissão do conhecimento e dos mitos depois representados nas pedras [...] quantas vezes os grafismos, que depois serão registrados nas pedras durante milênios, não foram antes esboçados na areia por algum “contador de estórias”? (MARTIN, 2005, p. 301).
Considerando ainda que o presente estudo intenta identificar um viés
noticioso nas pinturas rupestres, poder-se-ia questionar que, para dar rigor científico
a esses pressupostos, seriam necessários parâmetros que enquadrem as
representações parietais e conduta de seus autores em quaisquer das Teorias do
Jornalismo. Não obstante a distância cronológica e histórico-cultural entre as
manifestações culturais pré-históricas e os dias atuais, ainda é possível conjeturar
sobre os conceitos de notícia, critérios de noticiabilidade e Teoria Organizacional.
Para Traquina ( 2001, p. 94), “As notícias são o resultado de um processo de
produção definido como a percepção, a seleção e a transformação de uma matéria-
prima (principalmente os acontecimentos) num produto”. É possível contextualizar
“produto” como algo que passou por um processo de elaboração que valorou o
acontecimento e tornou-o atraente. A matéria prima (acontecimento), convertida em
relato imagético, por exemplo, é um produto.
Lage (2001) relaciona algumas das principais causas determinantes de uma
notícia enquanto valor; são elas: novidade, qualidade, proximidade geográfica,
proeminência, negativismo, atualidade, impacto, conseqüência, identificação social e
identificação humana. Dentro desse quadro de valores, é possível imaginar que os
quesitos identificação social, proeminência, impacto e identificação humana estariam
entre os critérios de noticiabilidade de um cronista ou contador de histórias em
qualquer tempo.
Para a pintura rupestre, o critério de novidade podia, em muitos casos, não se
adequar como valor-notícia; entretanto, se enquadrava perfeitamente como
atualidade; intrínseco ao tempo, espaço e cultura dos autores e intérpretes da
mensagem:
As pinturas, ainda, indicavam o mundo em que os artistas e seus receptores viviam. Transmitindo as posições políticas e estéticas dos grupos em suas imagens. Os valores filosóficos, morais e religiosos a serem seguidos pelas sociedades. Visto que nas imagens observamos caminhadas, cerimoniais, rituais, sexo, trocas, entre outros motivos sociais dos grupos (MARCONDES, 1997, p. 64).
O fundamento de proximidade geográfica não se aplica ao caso das pinturas
rupestres porque é impossível, atualmente, mensurar o público “leitor” e sua
localização espacial. Vale lembrar também que a crônica é um gênero jornalístico
atemporal; e esse talvez seja o gênero que mais adequado às representações
rupestres, haja vista que são narrativas do cotidiano, inerentes ao autor, sua cultura
Relacionar o ato de produção de mensagens imagéticas pré-históricas à
Teoria Organizacional, cinqüenta ou sessenta séculos antes de ela ter sido
formulada, pode parecer despropositado. E realmente seria; caso se tentasse
estabelecer paralelos entre construções sócio-culturais dessemelhantes. As
sociedades pré-históricas, como esclarecido por Martin (2005), não estavam
divididas em classes, não eram hierarquizadas; ao passo que as sociedades atuais,
em sua maioria, são hierarquizadas e envolvidas com o modo de produção
capitalista, portanto, sujeitas aos ditames e constrangimentos organizacionais.
Todavia, se num exercício de abstração e alteridade, o leitor, distanciando-se
do meio envolvente, observar as relações sociais pré-históricas verá que alguns dos
conceitos inerentes à Teoria Organizacional são aplicáveis àquele contexto sócio-
cultural pretérito. Basta que o vocábulo “organização” seja compreendido como as
limitações envolvendo o autor das pinturas e as relações interpessoais que
mantinha. Traquina ( 2001) aponta o que interfere na produção noticiosa:
Antes de produzir uma notícia, o repórter leva em conta os constrangimentos organizacionais, as convenções culturais, necessidade de continuar bem relacionado com as fontes, desejo de audiência e até condições favorecedoras ou limitantes para o desempenho da tarefa (tecnologia disponível) (TRAQUINA, 2001, p.95).
Ora, convenções culturais, necessidade de agradar os indivíduos porventura
retratados nos grafismos, limitações tecnológicas e desejo de audiência seriam
condições restritivas também para o cronista pré-histórico. Muito provavelmente,
pessoas do mesmo grupo social, ou familiar, não seriam retratadas em posturas ou
ações desfavoráveis. Essas referências desabonadoras deviam estar reservadas a
inimigos. Assim, poder-se-ia dizer que a Teoria Organizacional, guardando a devida
proporção tempo-cultural, também se aplica ao autor das representações rupestres.
Ele sabia que as imagens produzidas eram compartilhadas socialmente e
Os artistas das pinturas já tinham uma ideologia formada a respeito de como agir, pensar e reagir neste mundo. Isto porque eles transmitiam seus intuitos por meio destas imagens. Imagens que eram socialmente compartilhadas (MARCONDES, 1997, p.65).
Igualmente, o próprio conceito de notícia, imaginado por Alsina (1996 p. 185),
já indica a existência de algum tipo de constrangimento social: “Notícia é uma
representação social da realidade cotidiana produzida institucionalmente e que se
manifesta na construção de um mundo possível”.
A fotografia 13 retrata o que Martin (2005) considera um provável relato de
combate intertribal, onde os inimigos são mortos e suas mulheres estupradas. O
detalhamento das imagens realmente permite que se faça a leitura, embora
extemporânea, de um evento singular.
Fotografia 23- Cena de batalha e estupro de mulheres: Fonte: FUMDHAM
Uma definição sobre o caráter institucional dos grafismos rupestres, que mais
parece fazer referência a uma organização jornalística, pode ser lida em Etchevarne
TRAQUINA, Nelson. O estudo do jornalismo no século XX. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2001. ALSINA, M. R., La construcción de la noticia. Barcelona: Paidós, 1996. BARBERI, Maira. Pinturas Rupestres no Município de Morro do Chapéu. A Terra em Revista. Nº 04, Outubro, 1998. BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do mundo. São Paulo: Editora fundamento, 2007. CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos Índios no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1992. ETCHEVARNE, Carlos. Escrito na pedra: cor, forma e movimento nos grafismos rupestres da Bahia. Organização Odebrecht, Rio de Janeiro, 2007. ROCHA, Everardo: O que é mito. Brasília: Editora Brasiliense (Coleção Primeiros Passos), 2002. FAUSTO, Carlos. In Por ti América: aventura arqueológica: depoimentos [CD-ROM] / Idealização, concepção e desenho expositivo Alex Peirano Chacon; Curadora Marcia Arcuri. [Equipe de pesquisadores: Coordenadora Helena Bomeny; Adelina Alves Cruz. et al]. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil/CPDOC, 2006. FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Editora Contexto, 2003. FUNARI, Pedro Paulo; NOELLI, Francisco Silva. Pré- história do Brasil. 3 ed. São Paulo: Editora Contexto, 2006. GASPAR, Madu. A arte rupestre no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2006. GUIDON, N. Métodos e técnicas para análise da arte rupestre. Piauí: UFPI, 1985. PEREIRA, José Haroldo. Curso Básico da Teoria da Comunicação. 3. ed. São Paulo: Univer Cidade Editora, 2005. LAGE, Nilson. Ideologia e técnica da notícia. Florianópolis: Ufsc-Insular, 2001. MARCONDES, Ciro Filho. Ideologia. Coleção para entender: São Paulo: Editora Global, 1997.
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