Ordenação da forma urbana: um mal necessário? Andréa da Rosa Sampaio 1 As intervenções físicas na cidade podem ser originadas a partir de planos, normas urbanísticas e obras. Tanto as normas quanto as obras, podem vir incorporadas nos planos, muito embora seja cada vez mais frequente a definição destas independentemente, regidas por interesses políticos, que por sua vez representam agentes econômicos e sociais. Integrantes ou não de planos urbanísticos, a regulação da forma urbana vigente nas cidades brasileiras consiste na dimensão normativa do planejamento urbano, exercida através de um aparato legal, composto de um complexo emaranhado de normas urbanísticas – leis e decretos - que regulam o parcelamento, uso e ocupação do solo. O foco do interesse deste trabalho é compreender como a legislação urbanística vigente, particularmente, a da cidade do Rio de Janeiro, influencia a qualidade do espaço configurado segundo seus parâmetros regulatórios. Esta temática funde os conhecimentos próprios do campo da arquitetura e urbanismo àqueles do planejamento urbano, incorporando o desenho do espaço como dimensão normativa do planejamento. Ao urbanismo, se conjugam na problematização do tema, os contornos jurídicos, políticos e administrativos relativos à dinâmica de produção da cidade em contínua transformação. Segundo Argan (2000) “o urbanismo é uma atividade estética que se coloca em uma área de interesse político”. Em suas palavras, “traduzir em figura a estrutura da sociedade significa desenhar e construir o espaço da sua existência, que é também o espaço e a razão formal da arquitetura.” (Argan, 2000: 103) Conduzidos por este pensamento, é possível pensarmos a paisagem configurada pela forma urbana como uma tradução estética da sociedade, concebida, de certa maneira, segundo a prefiguração de projeto de cidade, cuja tradução jurídica realiza-se através da normativa urbanística. Este desenho de cidade, idealizado nas normas, reflete a articulação dos interesses sociais, econômicos e políticos, ponderados, pelo Estado, conforme a relação de forças da sociedade e do mercado. 1 Professora EAU/ UFF/ Doutoranda PROURB FAU/ UFRJ. E-mail: [email protected]
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Ordenação da forma urbana: um mal necessário?
Andréa da Rosa Sampaio1
As intervenções físicas na cidade podem ser originadas a partir de planos, normas
urbanísticas e obras. Tanto as normas quanto as obras, podem vir incorporadas nos planos,
muito embora seja cada vez mais frequente a definição destas independentemente, regidas
por interesses políticos, que por sua vez representam agentes econômicos e sociais.
Integrantes ou não de planos urbanísticos, a regulação da forma urbana vigente nas cidades
brasileiras consiste na dimensão normativa do planejamento urbano, exercida através de
um aparato legal, composto de um complexo emaranhado de normas urbanísticas – leis e
decretos - que regulam o parcelamento, uso e ocupação do solo.
O foco do interesse deste trabalho é compreender como a legislação urbanística
vigente, particularmente, a da cidade do Rio de Janeiro, influencia a qualidade do espaço
configurado segundo seus parâmetros regulatórios. Esta temática funde os conhecimentos
próprios do campo da arquitetura e urbanismo àqueles do planejamento urbano,
incorporando o desenho do espaço como dimensão normativa do planejamento. Ao
urbanismo, se conjugam na problematização do tema, os contornos jurídicos, políticos e
administrativos relativos à dinâmica de produção da cidade em contínua transformação.
Segundo Argan (2000) “o urbanismo é uma atividade estética que se coloca em uma área
de interesse político”.Em suas palavras, “traduzir em figura a estrutura da sociedade significa
desenhar e construir o espaço da sua existência, que é também o espaço e a razão formal da
arquitetura.” (Argan, 2000: 103) Conduzidos por este pensamento, é possível pensarmos a
paisagem configurada pela forma urbana como uma tradução estética da sociedade,
concebida, de certa maneira, segundo a prefiguração de projeto de cidade, cuja tradução
jurídica realiza-se através da normativa urbanística. Este desenho de cidade, idealizado nas
normas, reflete a articulação dos interesses sociais, econômicos e políticos, ponderados,
pelo Estado, conforme a relação de forças da sociedade e do mercado.
As decisões sobre a configuração do espaço devem equalizar o planejamento urbano
da cidade em termos de desenvolvimento socio-econômico, com preocupações relativas à
qualidade morfológica do ambiente construído, em termos de apropriação social e cultural.
A desordenação da paisagem observada em inúmeras cidades brasileiras, nos leva a
questionar a qualidade do urbanismo praticado, no que se refere à competência de edificar
um espaço urbano que expresse as necessidades sociais, econômicas e culturais, incluindo-
se nestas, valores estéticos e simbólicos. Acreditamos ser este quadro decorrente, em parte,
do sistema de ordenação urbanística vigente nas cidades brasileiras, cujos instrumentos de
regulação da forma urbana, não vêm sendo eficazes em garantir os direitos à cidade e à
memória. Ainda que estes direitos tenham sido legitimados recentemente pelo Estatuto da
Cidade2, a paisagem de nossas cidades, fragmentada, segregada, e até mesmo inóspita e, ao
mesmo tempo, contraditoriamente pasteurizada pela aplicação da legislação, desvela a
complexidade e a contemporaneidade do tema, bem como a necessidade de novas
perspectivas teórico-metodológica para sua análise no campo do urbanismo.
A intrínseca relação entre as normas urbanísticas e a configuração do espaço tem
sido estudada pelos campos de conhecimento da economia urbana, no que se refere aos
aspectos do valor imobiliário (Gottdiener, 1996, entre outros), e do direito urbanístico,
equacionando conflitos de interesses coletivos versus individuais (Silva, 1995; Lira, 1997).
Embora sejam estas abordagens relevantes no estudo do tema, estes enfoques não esgotam
a análise da normativa urbanística, quando se trata da desordenação da paisagem, da
incongruência do novo e antigo juntos e do crescimento da cidade – dita – informal, o que
nos remete ao questionamento sobre a eficácia – social e jurídica - da normativa.
O argumento teórico desenvolvido neste trabalho privilegia a ótica do urbanismo, por
entendermos que através desta abordagem seja possível traduzir a relação entre a
normativa urbanística e a forma urbana no seu aspecto mais evidente e de grande
interferência social: o estabelecimento dos padrões de configuração do ambiente
construído - paisagem e espaço da vida urbana. Esta abordagem possibilita incorporarmos
questões culturais, como os aspectos relacionados ao patrimônio cultural. Situando nosso
enfoque no campo do urbanismo, pretendemos trazer arquitetos e urbanistas para o debate,
bem como formar um conhecimento teórico que possa orientar a prática normativa,
evitando-se uma abordagem meramente descritiva do conteúdo das normas. Com isso,
2 A Lei Federal no. 10257/ 2001, conhecida como Estatuto da Cidade, foi aprovada após mais de uma década de tramitação no Congresso Nacional. A nova lei estabelece as diretrizes gerais para a política urbana, tendo como premissa o Direito a cidade. O pleno exercício deste, compreende o direito a cidades sustentáveis, em termos de patrimônio ambiental e cultural, bem como condições dignas de vida e cidadania.
tratando a legislação urbanística como fato histórico, inserido na dinâmica urbana,
pretendemos reduzir a lacuna constatada por Feldman (2001) em pesquisa sobre os
avanços e limites dos estudos no tema.
Enquanto a reflexão sobre as normas urbanísticas pelo prisma do planejamento
urbano conta com contribuições expressivas3, a abordagem da normativa sob a ótica do
urbanismo, aqui proposta, é uma vertente a ser consolidada. Vale ressaltar as valiosas
contribuições de referenciais menos específicos em relação às normas, mas não menos
significativos, como trechos de estudos de Argan (2000), Carlos Nelson F. Santos (1988),
Milton Santos (1985 e 1999) e Portas (1996 e 2000) em que o tema é tratado.
A problematização da normativa urbanística como agente modelador da forma
urbana, tem como eixo analítico, neste trabalho, a preservação urbana. Primeiramente a
inter-relação entre forma e norma será analisada, para que possamos concluir que sob a
égide da proteção do patrimônio, a normativa pretende regular a qualidade ambiental em
termos morfológicos, de desenho do espaço. Este critério deveria instruir a legislação
urbanística em geral, no sentido de configurador um lugar com significado. É possível que
esta limitação esteja na concepção restrita de forma, sem conteúdo, como veremos a seguir.
Sobre a forma urbana “Pensar na cidade e no que expressa a partir de suas formas e lugares é ser morfo-
lógico”. (Santos, 1986: 60)
O caráter multidisciplinar do urbanismo aponta a pluralidade de enfoques pelos quais
podemos compreender a cidade. Olhar a cidade a partir da sua materialidade, da
configuração da forma urbana é uma das maneiras pelas quais identificamos os espaços
socialmente utilizados. A contribuição teórica com este enfoque vem, principalmente, de
autores arquitetos, desde Sitte (1992 [1898])4, passando pelas teorias contundentes de
Rossi (1995) e Lynch (1981), até os estudos mais recentes de Bentley (1985), Panerai
(1994), Lamas (1992), Holanda et al (2000), entre outros. Identifica-se afinidades entre os
autores citados, em suas críticas às teorias modernistas e seu legado no espaço urbano. O
exame da questão segundo os aspectos socio-culturais e fenomenológicos agregados a
3 Neste campo destacam-se os trabalhos de Villaça (1999) e do Instituto Polis (2001) abordando várias cidades, de Feldman (2001) e Rolnik (1999) com ênfase em São Paulo, e de Coutinho M. da Silva (1999 e 2002), Rezende (1996 e 1999) e Souza (2002) no âmbito do Rio de Janeiro. 4 SITTE, Camilo. A Construção das Cidades Segundo seus Princípios Artísticos. São Paulo: Editora Ática, 1992
[1898].
paisagem, conta com Argan (1993), Norberg-Schulz (1984) e Relph (1976), entre outros
referenciais.
Primeiramente é importante definir o conceito de forma urbana a ser trabalhado e
alinhá-lo perante os referenciais teóricos. Antes, cabe distinguir as duas linhas teóricas, em
Arquitetura e Urbanismo, que vêm pesquisando o espaço da cidade: a) em razão dos
processos de sua produção e b) em razão do desempenho do espaço [(Holanda et al (2000);
Krafta, (2000)]. A primeira vertente ainda é predominante no âmbito dos estudos urbanos,
e particularmente, nos Encontros da ANPUR5, mas já se percebe a afirmação significativa
da segunda, a partir de 1995, com o incremento de trabalhos que tratam analiticamente a
forma da cidade como um instrumento para o conhecimento do meio urbano. O argumento
deste trabalho se enquadra nesta segunda linha de reflexão, que assume a característica
morfológica como o principal identificador dos espaços socialmente utilizados. Nesta
vertente, incorpora-se ao objeto forma urbana a abordagem dos processos de organização
social na cidade. Desta maneira, tal campo de investigação se justifica em razão de uma
demanda social, “esclarecendo em quais expectativas sociais incidem as características
configurativas das cidades e de que modo se podem projetar lugares com melhor
desempenho morfológico.” Neste sentido, Holanda et al (2000) defendem a conceituação
da “forma urbana como situação relacional, ou seja, as maneiras de compreensão e
representação da forma urbana estão em função, necessariamente do desempenho
morfológico quanto a expectativas socialmente definidas” (Holanda et al, 2000: 13), se
referindo a esta visão como uma taxionomia baseada nas dimensões de desempenho das
configurações urbanas.
A noção unívoca de espaço e conteúdo social tem sido trabalhada no campo da
geografia, em especial ao longo da obra de Milton Santos (1985, 1999), para quem “O
espaço é a síntese, sempre provisória, entre o conteúdo social e as formas espaciais”
(Santos, 1999: 88). O geógrafo (1999) afirma que a simples presença do objeto na
paisagem tem somente o significado paisagístico, estando porém, disponível para um
conteúdo social. Sem vida, o objeto permanecerá como tecnologia, e não como economia.
Assim sendo, não basta existirem como formas, como paisagem, “a forma já utilizada é
coisa diferente, pois seu conteúdo é social. Ela se torna espaço porque forma-conteúdo”
(Santos, 1999: 88). Este entendimento da forma, para além de sua dimensão física, é
valioso para a construção da argumentação sobre o seu desempenho no espaço urbano.
5 Conforme balanço realizado por HOLANDA et al (2000) sobre os trabalhos apresentados no VIII Encontro Nacional da ANPUR, em ensaio no qual examinam o estado da arte dos estudos sobre a forma urbana.
Também fundamental é a distinção de paisagem e espaço, que para Santos (1999), se
dá justamente em função da ausência de conteúdo social da primeira: “A paisagem é o
conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as
sucessivas relações localizadas entre homem e natureza. O espaço são essas formas mais
a vida que as anima.” (Santos, 1999: 83)
A compreensão da inter-relação entre forma e seu conteúdo também foi elaborada
teoricamente pelo filósofo francês Henri Lefebvre (2002), ainda na década de 1970,
tratando das contradições implícitas nesta relação, e das múltiplas situações possíveis no
espaço urbano. Para Lefebvre (2002), a independência (relativa) entre formas e conteúdos
impede que se defina o urbano por um sistema ou como um sistema, tampouco como
objeto (substância) ou como sujeito (consciência). O autor conclui se tratar, o urbano, de
uma forma, que como tal possui tendências à centralidade e à policentralidade.
As relações entre a forma urbana e seu conteúdo ocorrem segundo uma racionalidade
dialética. Para Lefebvre, “o espaço urbano se exibe como transparência.” Nele tudo é
legível, tudo significa, ainda que essa transparência possa decepcionar e enganar.
“Tudo tem relação com a forma “pura”, sendo conteúdo na e dessa forma. A
ordenação e a forma tendem a se confundir, ainda que essa forma seja
Neste ponto, Lefebvre trata da forma urbana possível, prefigurada pelas normas
urbanísticas, e argumenta sobre o espaço urbano:
“Ele está aprisionado em estruturas fixas, superpostas, hierarquizadas, do imóvel ao
conjunto urbano cercado por limites visíveis ou pelos limites invisíveis dos decretos e
decisões administrativas.(...) Se o espaço urbano é fascinante pela disponibilidade,
também o é pela arbitrariedade das unidades prescritas (...).” (Lefebvre, 2002: 121)
Adotamos a noção de forma-conteúdo, e assim evitamos analisar a forma urbana
segundo princípios redutores. Incorre-se este risco ao refletirmos sobre uma temática
normativa, cuja lógica fundamenta-se em parâmetros quantitativos. Esta também foi uma
preocupação de Lynch em sua teoria da Boa Forma da Cidade, ao criticar as formulações
teóricas funcionais e normativas, por estas, além de não abordarem a questão da qualidade
ambiental, analisarem o espaço “segundo parâmetros que o empobrecem, reduzindo-o a
um recipiente neutro, a uma distância dispendiosa, ou a um elemento de distribuição
residual de algum outro processo, não espacial” (Lynch, 1999: 44).
Consideramos fundamental acrescentar à compreensão da Forma Urbana a
conceituação da relação da Arquitetura e Cidade, na qual se revela a dimensão urbana da
arquitetura. Ao configurar o conjunto da cidade e construir a paisagem, a forma urbana
influencia a apropriação social e cultural do espaço, na dimensão do lugar, em função do
modo como as qualidades espaciais venham representar morfologicamente os valores e
significados daquela sociedade.
Arquitetura e Cidade Ao examinarmos a relação Arquitetura e Cidade não se pode perder de vista o que,
para Lamas (1992) seria um dos objetivos do urbanismo: a materialização da forma do
espaço humanizado. O conhecimento deste espaço a partir de sua morfologia, vem a ser o
estudo de sua configuração e estrutura exterior, e o entendimento das relações entre seus
elementos e o conjunto, seu processo de produção no tempo, bem como a compreensão de
sua paisagem. Lamas esclarece que perante a abordagem morfológica, os fenômenos socio-
econômicos convergem como explicação da forma e não como objeto de estudo.
Em sua teoria sobre o desenho da cidade, Lamas considera a arquitetura como a
chave de interpretação correta e global da cidade como estrutura espacial, e se refere à
teoria de Rossi como esclarecedora das relações entre arquitetura e cidade. Rossi (1995)
pensa a forma urbana a partir das tipologias, as quais configuram seu princípio ordenador.
Para este autor a arquitetura da cidade não é a arquitetura do edifício isolado, conforme os
preceitos modernistas.
Lamas (1992) afirma que “a forma urbana deve constituir uma solução para o
conjunto de problemas que o planeamento urbanístico pretende organizar e controlar”.
(Lamas, 1992: 48). O urbanista português conclui sua obra defendendo que o Desenho e a
Morfologia Urbana sejam reconduzidos ao centro da produção da cidade, para que se criem
espaços urbanos e transformações qualitativas do território. Ele propõe a revalorização do
desenho urbano através da reversão da tendência do planejamento gerir a apropriação do
espaço independente da forma física. Em suas palavras, Lamas defende que “o projecto do
edifício comece no desenho da cidade”. Transpondo para a prática normativa, isto significa
regular a arquitetura a partir de normas urbanísticas, ao invés de regular a forma urbana a
partir de normas arquitetônicas, como parece vigorar atualmente no Rio de Janeiro.
As teorias de Lamas e Rossi, aqui sinteticamente delineadas, partilham da
compreensão da dimensão urbana da arquitetura, como conformadora do conjunto urbano -
da paisagem. Esta noção em muito pode contribuir ao se tratar da ordenação do espaço
urbano, no sentido de configurar um lugar e preservar seus valores culturais.
Na reflexão sobre a qualidade ambiental segundo o enfoque do desempenho da
forma urbana, Lynch (1999) destaca-se como marco teórico. Em sua teoria da Boa Forma
da Cidade, Lynch também compreende a forma de maneira mais ampla que sua mera
estrutura física. O urbanista americano trabalha a forma da cidade a partir da
problematização da relação entre os valores e propósitos humanos e o local, caracterizada
como desempenho da forma da cidade. Seu objeto é a cidade cuja forma serve aos
propósitos humanos. Lynch destaca que pretende avaliar o desempenho com referência a
forma espacial da cidade, lembrando que considera que a qualidade de um local decorre do
efeito conjunto do local e da sociedade que o ocupa. Em outras palavras: a forma-conteúdo
preconizada por Santos (1999)
Lynch (1999) define o conceito Boa Forma como sendo a forma que ultrapassa sua
superfície e o desenho, e que contempla a inter-relação dos objetivos humanos com a
forma da cidade e a organização temporal das coisas. Suas preocupações se referem, em
síntese, à qualidade ambiental, conceituada como “a rica textura da forma e do significado
da cidade”. A Boa Forma é definida como aquela forma da cidade que se apresenta
sensível, vital, adequada, acessível e bem controlada. Nesta teoria, uma cidade adequada
ao uso possui o três qualidades urbanas: legibilidade, estrutura/significado e
imageabilidade.
Sobre as Normas Urbanísticas “Associando ao estudo físico do território e de sua geografia o sítio de papel constituído
pelos conjuntos normativos que regem o direito do solo e a construção, pode-se cernir as
forças que moldam as formas urbanas. A restrição normativa é tão importante quanto
aquela relativa à materialidade da cidade.” (Grumbach, 1996: 76)
No sistema brasileiro o controle do uso e ocupação do solo é exercido pelo poder
público, principalmente municipal, através de normas urbanísticas – leis e decretos. Torna-
se necessário conhecer o potencial e as limitações da normativa, as interfaces políticas,
jurídicas e administrativas inerentes aos processos de formulação, aplicação e controle das
normas. E com isso, compreender de que modo a forma urbana é configurada pela
legislação urbanística e qual o impacto deste mecanismo de controle do uso e ocupação do
solo na forma da cidade.
Assumimos o papel ordenador da forma urbana, exercido pelas normas urbanísticas,
como elemento configurador da paisagem, ainda que a qualidade de seu desenho não seja
sua preocupação central. A legislação urbanística vigente em grande parte das cidades
brasileiras é precipuamente orientada em função do controle de densidade, segundo a
capacidade de provisão de infraestrutura, e compatibilização de usos e atividades. A
análise da paisagem urbana, assim pré-figurada, nos sugere que seu desempenho em
termos de qualidade ambiental, particularmente os aspectos morfológicos, não se apresenta
como premissa nas normas. A configuração da paisagem resulta, então, da mera aplicação
de índices de uma “matemática urbana”, o que a torna cada vez mais monótona e
previsível, sendo desagradável e até mesmo inóspita, na escala do lugar vivenciado pelo
pedestre, e incongruente na escala do conjunto urbano.
É interessante ressaltar que a preocupação com a qualidade ambiental está presente
nas normas urbanísticas, a partir de uma noção limitada aos aspectos ecológicos e
poluentes. O controle de usos indesejáveis e impactantes é realizado segundo esta lógica -
dominante na legislação urbanística, e pela qual as administrações públicas implantaram as
regras de zoneamento. Desde fins do séc. XIX a exclusão de usos indesejáveis em áreas
nobres das cidades foi prática instituída nas administrações municipais, visando, em última
instância o controle social e econômico de conflitos urbanos. (Feldman, 1996)
Coutinho (2000) demonstra que desde a década de 80 o aparato regulatório e
institucional brasileiro vem se aperfeiçoando e gradativamente incorporando preocupações
com a qualidade do ambiente urbano, centradas em 5 aspectos: infra-estrutura, preservação
do ambiente natural, poluição, gestão dos recursos naturais e sustentabilidade urbana.
No que diz respeito a preocupação quanto a qualidade ambiental, observamos que o
ambiente natural, foi, até recentemente, trabalhado isoladamente do cultural. Pires (2002).
destaca que não obstante o enquadramento constitucional da cultura e da política urbana
em títulos diversos da Carta Magna de 1988, há uma tendência do direito contemporâneo
em tratar o patrimônio cultural indissociadamente do natural, reconhecendo ambos como
expressões do patrimônio ambiental.
Das dificuldades de regulação Podemos considerar a legislação urbanística como elemento mediador na passagem
do Planejamento urbano, como nível decisório, para o nível operativo da intervenção física
na cidade. A complexidade da normativa urbanística decorre da compatibilização de
interesses frequentemente divergentes, uma vez que ao regular o desenho da forma urbana,
a norma dispõe sobre o espaço privado. Como esclarece Silva (1995: 28): “a atividade
urbanística é de natureza pública e se exerce constrangendo e limitando os interesses
privados”. O Direito Urbanístico nos auxilia a compreender estes conflitos, surgidos entre
o interesse coletivo de ordenação adequada do espaço físico e interesses privados,
fundados na concepção individualista do direito de propriedade.
A criticidade das questões inerentes ao controle da forma da cidade também foram
problematizadas por Lynch (1999) em sua teoria da Boa Forma da Cidade, sendo inclusive
um dos pontos que o autor considera necessário aprofundamento. Em avaliação crítica do
próprio trabalho, Lynch pondera que não avançou na habilidade de avaliar forma e
processo juntos, uma vez que estes variam ao longo do tempo. Além disso, para o autor, a
idéia de controle ambiental ainda não teria sido devidamente tratada pelos teóricos da
época, e enuncia questões: “Como o sistema de controle pode ser ajustado às mudanças de
circunstâncias? O que chamamos de controle justo e como obtê-lo?” Lynch lembra que o
enfoque destes temas, recorrentes nas ciências humanas, era novidade no campo do
desenho urbano na década de 1980, quando foi formulada sua teoria. Porém, estas
perguntas continuam no ar e são pertinentes ao debate sobre normativa urbanística.
Entre os conflitos implícitos na temática em estudo, evidencia-se o paradoxo de
regular a cidade através de uma estrutura normativa rígida e estável, que não reconhece o
caráter processual da forma urbana. Ou seja, as normas urbanísticas prescrevem um
determinado projeto de cidade, muitas vezes tratado como uma forma acabada, mas que,
no entanto, não tem fim, é um processo. GRUMBACH (1996) nos lembra que o sentido de
fabricação da cidade foi perdido no séc. XX, em nome da modernidade. Ao assumirem o
domínio sobre a questão urbana, “os arquitetos querem terminar a cidade como se termina
uma construção. Ora, em sentido oposto, a cidade, de fato, é um eterno inacabado. (...).A
cidade terminada não é senão ou a cidade morta ou a cidade impossível; são os grandes
conjuntos.” (Grumbach, 1996: 75). As críticas feitas por Lynch (1999) aos modelos6 tocam
neste aspecto, por estes tratarem da forma, mas não tratarem o processo e as instituições
como um todo. Para Lynch, os modelos da forma devem levar em conta tanto a criação
como o processo de gestão.
A cidade real vem sendo discutida em contraposição à cidade ideal - sonho de
arquitetos e urbanistas ao longo da história. Para assegurar a perpetuação da qualidade do
6 "Modelo" para Lynch é “algo merecedor de emulação” e é uma imagem de como o ambiente urbano deveria ser construído.
projeto, o urbanista precisa planejar e controlar o futuro da cidade. Nesse sentido, a
formulação de mecanismos de regulação e controle da forma urbana não deixa de ser a
continuidade do projeto de cidade ideal.
A cidade, vem presenciando superposições de modelos de cidades ideais ao longo de
sua história. Diferentes modelos de urbanismo foram projetados e, por vezes implantados
parcialmente, estão justapostos à cidade não projetada, construída socialmente. Através da
análise dos modelos de urbanismo vigentes em cada época tomamos conhecimento dos
modelos de preservação correntes nos diferentes momentos da cidade, ainda que não
explícitos, mas planejados e, por vezes, concretizados em ações de renovação urbana.
Fragmentos destas ações fazem parte do legado modernista em nossas cidades: fazer tábula
rasa da cidade e construir uma cidade nova, preservando como objetos isolados alguns
monumentos reconhecidos como de valor excepcional7. Partes da cidade vêm sendo, assim,
destruídas em nome da higiene, do trânsito, da estética e do mercado imobiliário. Esta
dinâmica de renovação da cidade influencia a apropriação do espaço pela comunidade,
altera sua identificação com o lugar e dificulta a construção da memória coletiva.
A suposição de progresso linear, em que a cidade cresceria continuamente conforme
o potencial máximo previsto nos planos, fracassou, e seu legado desponta na paisagem
fragmentada como descontinuidades e rupturas no tecido urbano. Planos totalizantes,
calcados em modelos descontextualizados, implantados parcialmente, geraram na
paisagem empenas cegas, recuos e galerias sob pilotis sem continuidade. Carlos Nelson
(Santos, 1986) resume ironicamente esta questão: “as leis do crescimento urbano não
correspondem à dos vegetais no trópico”.
O Desenho do espaço urbano: a dimensão normativa do planejamento"O
design da cidade é a arte de criar possibilidades para a utilização, gestão e forma dos
aglomerados populacionais ou das suas partes mais significativas. Manipula os padrões
no tempo e no espaço e tem como justificação a experiência humana diária desses
padrões. .... O design da cidade preocupa-se com os objetos, com as atividades humanas,
com as instituições de gestão e com os processos de mudança". (Lynch, 1999: 275)
O ensinamento de Lynch (1999) nos leva a refletir sobre a qualidade do desenho do
espaço normatizado que vem sendo produzido. O problema emerge do foco desviado do
espaço público. Este deveria ancorar a concepção normativa, como elemento estruturador
7 O Plan Voisin (1925) de Le Corbusier para Paris é o paradigma desta corrente.
da forma urbana, aquele que assegura a permanência da cidade. (Panerai, 1994). Este
entendimento equivale a aplicar no espaço urbano o argumento de Zevi (1998) de que o
espaço é o protagonista da arquitetura.
Panerai defende que o espaço público é o espaço do público, coisa pública. Sendo
domínio público, se diferencia juridicamente das propriedades (privadas ou estatais)
disponíveis para edificação, renováveis em ritmo mais acelerado que o espaço público.
Segundo Panerai, o projeto urbano consiste na formalização do jurídico e em uma decisão
técnica que permite o controle da paisagem urbana, ao estabelecer regras mínimas
relacionando a construção ao espaço público, de modo que confirme o caráter deste.
Panerai ressalta que o caráter do espaço público não se resume às suas dimensões e propõe
inverter a lógica e pensar o espaço público “como um elemento positivo do projeto e não
como um vazio residual a organizar por último; ele não deve estar isolado das construções
suscetíveis de virem a edificar em seus limites.....” (Panerai, 1994: 80)
Panerai (1994) nos lembra que a fé no planejamento centralizado e no progresso
técnico vem sendo revista diante da constatação dos excessos e desvios surgidos a partir de
então. O arquiteto francês questiona a idéia de rigidez da legislação urbanística e sustenta
que só imaginamos e controlamos o caráter inicial da via, seu ponto de partida, e assim :
“Buscar fixar de maneira estrita e intangível o aspecto da cidade resulta em esvaziá-
la de sua substância, interditando sua evolução – quer se trate de centros históricos
abusivamente “museificados” ou bairros modernos esterilizados antes mesmo de
estarem habitados....a idéia de uma legislação restrita aparece como excepcional,
reservada apenas a alguns pontos-chaves.” (Panerai, 1994: 81)
A relação espaço público – espaço privado deve ser regulada de maneira a
potencializar o primeiro e dirimir eventuais interferências negativas do espaço privado
sobre o público.
Os parâmetros de ocupação devem ser utilizados para garantir a qualidade ambiental
da edificação e do seu entorno. Destacam-se os parâmetros relativos à implantação da
edificação no terreno, como afastamentos e índices de ocupação do terreno, além da
definição de alturas máximas, através do gabarito.
Aspectos críticos das normas urbanísticas O aprofundamento da pesquisa sobre normas urbanísticas pressupõe o entendimento
das formas de regulação e a investigação de mecanismos de controle e aplicação da
normativa, de modo a compreender seus entraves e limitações. O entendimento que “O
sistema legal não é apenas um conjunto de normas, mas parte constituinte do Estado”
(Feldman, 2001: 40) nos conduz a atrelar sua crise à crise do Estado e a incorporar a gestão
como aspecto relevante para a consecução de eficácia da normativa.
A concepção estática de legislação, em que o desenho da cidade é prefigurado e
transposto para a realidade sob a forma de parâmetros rígidos, se apresenta como inibidora
de potencialidades próprias ao dinamismo da cidade contemporânea, enquanto que
consolida tendências de desigualdade na cidade. (Mendonça, 1996: 97)
Assim, ao delinearmos como objeto de estudo a cidade modelada pelas normas
urbanísticas, não podemos deixar de mencionar que uma parcela significativa da cidade
tem crescido à margem da normativa urbanística. Tal fato nos remete ao questionamento
sobre a eficácia – social e jurídica - da normativa. Neste sentido, Maricato (2000),
considera o urbanismo brasileiro excludente, uma vez que não reconhece e não é aplicável
à cidade como um todo. A autora é crítica a este respeito:
“O urbanismo brasileiro (entendido aqui como planejamento e regulação
urbanística) não tem comprometimento com a realidade concreta, mas com uma
ordem que diz respeito a uma parte da cidade, apenas ( ..).Para a cidade ilegal não
há planos, nem ordem. Aliás ela não é conhecida em suas dimensões e
características. Trata-se de um lugar fora das idéias.“ (Maricato, 2000: 122)
A expressiva quantidade de situações urbanísticas em desacordo com a legislação
vigente no Rio de Janeiro e em grandes cidades brasileiras se deve, em parte, à rigidez e
inadequação da normativa à realidade local: a cidade formal é utilizada como matriz para o
planejamento do uso e ocupação do solo, o que demonstra o caráter frequentemente elitista
da legislação urbanística. As regras idealizadas para as áreas mais favorecidas, em termos
de infraestrutura e renda, são aplicadas para a cidade como um todo, gerando inúmeras
situações de incompatibilidade com as vocações e potenciais existentes. (Rolnik, 1999)
A tese defendida por Rolnik8 é que mesmo quando a lei não opera no sentido de
determinar a forma da cidade, como é o caso mais frequente nas nossas cidades, “é aí onde
ela é mais poderosa no sentido de relacionar diferenças culturais com sistemas
hierárquicos.” A autora procura demonstrar que “sua ineficácia em regular a cidade é a
verdadeira fonte de seu sucesso político, financeiro e cultural, em uma cidade em que a
riqueza e o poder estiveram historicamente bastante concentrados.” (Rolnik, 1999: 14)
8 Rolnik (1999) examina o caso da cidade São Paulo, no que ela define como operação “desmonte” da legislação urbanística.
A morosidade na elaboração e aprovação do aparato legal aparece também como um
aspecto crítico, que demonstra um descompasso de tempo da normativa com a dinâmica da
urbanização nos moldes recentes (Coutinho M. da Silva, 1999). Com isso, evidencia-se a
falta de agilidade do sistema vigente, tanto em relação a elaboração da normas quanto em
relação à tramitação das aprovações de projetos9. Este ponto se remete ao argumento de
Portas (1996) que demonstra as tendências atuais em inverter o processo de elaboração do
Plano Urbanístico previamente ao Projeto, para o Projeto Urbano antecipando o Plano
Global.A flexibilização do mecanismo, por outro lado, pode gerar negociações nem
sempre transparentes, ou atos do Executivo que atendam ao interesse de alguns, em
detrimento do coletivo. Vale ressaltar que cabe a norma instrumentalizar a ação do poder
público na mediação dos interesses diversos.
Na cidade do Rio de Janeiro, o aparato legal não atingiu o que parecia ser o seu
objetivo principal – o controle do espaço construído, ou seja, a dimensão físico-territorial
da cidade. Além de haver uma dispersão de leis , algumas vezes há contrariedade nos
conteúdos, como no caso dos decretos relacionados à cobrança de “mais-valia”, que se
traduz numa taxa resultante da desobediência à legislação urbanística10 (Rezende, 2002).
O Zoneamento e seus precedentes Souza (2002) inscreve a temática da legislação urbanística no Planejamento
regulatório (regulative planning), explicado como sendo o Estado fazendo plenos usos de
seus poderes de controle e disciplinamento da expansão urbana e do uso da terra. Seu
apogeu foi entre o pós guerra e a década de 70, mas suas bases intelectuais remontam do
início do século XX, com o surgimento do Urbanismo como profissão, seguido pela
ascensão do ideário modernista, primeiramente com Tony Garnier e decisivamente Le
Corbusier, para quem a idéia de ordem seria indispensável ao homem e a cidade.
Os ecos do ideário moderno marcaram forte presença no planejamento urbano
brasileiro, havendo porém um desvio no seu foco. Feldman (2001) critica a abordagem
legalista que prevalece no Brasil, há meio século, nos setores de urbanismo nas
administrações municipais, colocando a legislação como uma meta em si, e não como um
dos instrumentos para atingir metas de desenvolvimento urbano. Este problema tem sua
9 Exemplo de morosidade na tramitação de projetos de leis municipais de ordenação do solo urbano foi a recente aprovação, após 8 anos, dos PEUS Taquara e Campo Grande. 10 Esta cobrança é baseada em antigo Decreto-Lei no. 8720/46, para o então Distrito Federal.
origem na década de 1940, quando o novo saber urbanístico, aplicado através de órgãos de
planejamento extremamente normativos, marcou a cisão entre arquitetura e urbanismo.
“É nesse momento que se dá uma fissura entre arquitetura e urbanismo: planejar
passa a constituir-se como atividade desligada do projetar, e o zoneamento –
abrangente ao conjunto da cidade e articulador de um conjunto de parâmetros
urbanísticos em zonas funcionais – consolida-se como o principal instrumento de
planejamento.” (Feldman, 2001: 37)
De origem racionalista, o zoneamento funcional se tornou um dos principais
instrumentos do planejamento urbano municipal. O instrumento estabelece regras de
ordenação do uso e ocupação uso do solo através da. associação de formas de ocupação aos
usos permitidos em cada zona. O zoneamento como instrumento tem sido utilizado, em
geral, a partir de critérios quantitativos, baseados principalmente na capacidade de
provisão de infraestrutura. Estes critérios, além da difícil quantificação em relacionar a
capacidade de adensamento urbano com a infraestrutura, incluindo nesta o sistema viário,
não têm resultado na configuração da forma urbana. Os padrões de qualidade urbana são
dados, principalmente, pela forma de ocupação do espaço: largura de vias e passeios,
recuos, etc. São os parâmetros de gabaritos e afastamentos que vão configurar a ocupação e
devem ser tratados separadamente dos critérios de adensamento. (Mendonça, 1996)11
Ordenação da forma urbana: um mal necessário? A ordenação da forma urbana vem sendo questionada como prática urbanística, tanto
pela ótica neoliberal desregulacionista, como, por outro lado, pela ótica preservacionista.
Será a ordenação da forma urbana um mal necessário?
Não há como deixar de enfrentar o debate mercado livre versus regulação, ainda que
não se pretenda um aprofundamento nas implicações econômicas da normativa urbanística
no mercado imobiliário, uma vez que as forças de mercado atuam significativamente na
produção do espaço urbano. O mercado, com sua lógica invariável, está cada vez mais apto
a capitalizar as fragilidades da sociedade e do Estado. Pires (2002) argumenta que o poder
econômico, se não regulado,
“tende a arvorar-se titular do poder de conformação da cidade e até do de sua desfiguração
ou destruição, do que decorre virtual ameaça ao patrimônio cultural pela predominância da
ordem de mercado da terra e dos interesses econômicos....Faz parte da reação do mercado, 11 Em conclusão dos debates realizados no workshop 1 Formas de controle de densidade e ocupação, no Seminário Políticas Públicas para o Manejo do Solo Urbano, realizado em São Carlos, 1996.
por exemplo, a sua malfazeja interferência no plano de produção da norma, quebrando a
vocação da lei para o relacionamento com a comunidade, imprimindo-lhe papel tático e
projetando sua relação intrusa com a sociedade.” (Pires, 2002: 148)
Gottdiener (1996) alerta que a liberação total do mercado traz consequências das
mais adversas, como áreas de exclusão e segregação. Por outro lado, este autor demonstra,
através de exemplos norte-americanos, como a especulação imobiliária pode minar o
planejamento urbano, mesmo em áreas de severo controle do uso do solo. Gottdiener
sintetiza seu argumento em defesa da regulação ao concluir que “o mercado livre conduz o
desenvolvimento imobiliário a problemas urbanos intratáveis – mesmo com a
administração do crescimento pelo governo local.“ (Gottdiener, 1996: 23). Além dos altos
custos para a sociedade, o mercado imobiliário livre de regulação impede o governo de
planejar adequadamente, só restando administrar “ex post”. (p. 23)
“O erro conceitual maior de todos aqueles que questionaram o sentido de precisar ou
não do controle do solo urbano consistia em considerar somente os custos imediatos da
produção do ambiente construído e ignorar os custos sociais mais importantes depois
que o desenvolvimento tinha ocorrido, isto é, o assim chamado destino das
externalidades que, quando aplicado na terra, comprova claramente a natureza social
de qualquer desenvolvimento imobiliário.“ (Gottdiener, 1996: 24)
Considerando o conteúdo social do espaço, a compreensão da noção de forma-
conteúdo e o reconhecimento do valor social da propriedade, entendemos a regulação da
forma urbana como necessária. Assim sendo, é premente a ampliação do debate sobre
quais os meios eficazes de regulação, no sentido de alcançar a qualidade ambiental
segundo a abrangente concepção de Lynch (1999) para Boa Forma.
Gestão democrática: novos horizontes regulatórios Um ambiente de crescente conscientização dos direitos de cidadania e do direito à
cidade marcam conquistas na década de 80. Após o período de ditadura, o país
experimenta uma participação política inédita na história, culminada pela promulgação de
uma nova Constituição Federal, em 1988, que incorpora temas inovadores, com destaque
para a política urbana. No entanto, a ruptura conceitual trazida com a nova Constituição, ao
rever o modelo de propriedade, incorporando como princípio sua função social, ainda não
se garantiu como prática, até os dias de hoje, como explica Pires (2002), devido a
prevalência das matrizes do liberalismo econômico, uma vez que:
“a lógica de racionalidade social, de base estrutural desigual, jurídica e
urbanisticamente, pouco se alterou, mantendo-se a compreensão retrógrada da
função social como elemento de defesa da propriedade histórica e não como fator de
mudança, com naturais reações de grupos mais progressistas.” (Pires, 2002: 151)
Pires afirma que “o paradoxo continua explícito – espaço urbano limitado e
propriedade privada ilimitada”(Pires, 2002: 151). Neste contexto, com a intenção de
reverter esta lógica, foi recentemente aprovado o Estatuto da Cidade12, em meio a
expectativas de facilitar o equacionamento da dinâmica urbana, não só em relação à
regulação do mercado imobiliário, mas principalmente, quanto à gestão democrática das
decisões sobre a cidade. Apesar de recente, já foi produzida extensa literatura sobre o tema,
tanto no campo do direito urbanístico, quanto do planejamento urbano (Instituto Polis,
2001). A nova Lei federal possibilita a regulamentação dos instrumentos urbanísticos13 de
negociação, muitos deles já previstos nas legislações municipais, inclusive no Plano
Diretor do Rio de Janeiro14.
Através da aplicação de alguns destes instrumentos, a forma urbana passa a se
desdobrar em cenários negociados, resultando em paisagens diferentes daquela idealizada
através da aplicação direta dos parâmetros urbanísticos. Seria esta uma das respostas para a
crítica de imobilidade temporal da normativa? De qualquer forma, na realidade, serão
sempre cenários idealizados, pois não há garantia que a cidade vai se desenvolver da
maneira planejada, nem que o crescimento seja simultâneo. O leque de instrumentos a
disposição reforça a necessidade discuti-los no âmbito de uma reflexão sobre a normativa
urbanística e os conceitos norteadores da ordenação espacial em diferentes escalas – da
local à metropolitana.
Além disso, o Estatuto da Cidade legitima a participação popular nas decisões locais.
A recente mobilização da opinião pública em relação ao crescimento de seus bairros15, na
cidade do Rio de Janeiro, aponta para caminhos de retomada de uma maior participação
12 Lei Federal No. 10257 /2001. Esta Lei, em combinação com o capítulo de política urbana da Constituição de 1988, e com a Medida Provisória 2.220/01, definem a política urbana do país, nos níveis federal, estadual e municipal. (Instituto Polis, 2001) 13 Estes mecanismos devem estar previstos no Plano Diretor e serem regulamentados pelos Municípios por instrumentos específicos. 14 Lei Complementar 16/ 92 – Plano Diretor Decenal da Cidade do Rio de Janeiro. 15 Parte da comunidade da Zona Sul está mobilizada no debate sobre a declaração de APACs. Ainda que a defesa dos interesses imobiliários concentrem parte do debate, é notável a participação nas discussões sobre a cidade. Ver “Jornal do Brasil” e “O Globo”, principalmente entre agosto e outubro de 2001 e entre agosto e dezembro de 2002,
popular no processo decisório das políticas urbanas. É instigante refletir sobre a atualidade
do argumento de Carlos Nelson, que em 198816 já argumentava:
“As leis urbanas não podem ser “esterilizadas”, ‘frias”. Instruções relativas a
edificações, parcelamento e zoneamento, proteção do meio ambiente construído e
natural têm de se calcar em comportamentos já estabelecidos e refletir consensos. Caso
não haja forte participação popular, estatutos jurídicos por si mesmos nada mudarão na
América Latina. Será mantida a tendência a escrever documentos formais, às vezes com
aparência de muito avançados, mas sem refletir a experiência e as expectativas da
massa. Na ausência de um grande envolvimento coletivo, as cidades continuarão
regidas por normas ambiciosas que saem do nada e desagradam até as elites, acusadas,
com frequência, de as manipularem, visando seus próprios fins. Pior que uma lei injusta
só uma lei burocrática que não sabe a que visa”. (Santos, 1988b)
As diretrizes gerais da política urbana estabelecidas no Estatuto da Cidade
reconhecem, e qualificam, o direito às cidades sustentáveis e à gestão democrática da
cidade. A proteção do patrimônio, em suas várias dimensões, é parte deste direito, a ser
garantido pelos instrumentos urbanísticos.
Nos parece necessário romper com a autonomia adquirida pela legislação de zoneamento
na gestão do espaço urbano, e assim rever seu papel como um instrumento em si, que atua
descolado de políticas setoriais. Feldman observa que “esta autonomia favorece uma
legislação detalhista, quantitativa, e distante da realidade das cidades” (Feldman, 1996: 116).
“...é necessário destacar que mudar a lógica do zoneamento implica, antes de mais
nada, em conceber o controle de usos e ocupação do solo como apenas um dos
instrumentos para direcionar o crescimento da cidade. Este controle deve ser associado
a políticas habitacionais, a programas de intervenção em diferentes escalas, a projetos
viários, etc.....” (Feldman, 1996: 116)
A Proteção do patrimônio cultural A defesa da preservação urbana se refere à proteção do patrimônio cultural, isto é
daqueles bens dotados de significação cultural17, não devendo ser associada ao
congelamento da cidade, a sua imobilização. A complexidade do controle do uso e
ocupação do solo em áreas de interesse cultural suscita uma série de questões: o que 16 Vale destacar que foi o ano em que a Constituição Brasileira foi promulgada, atribuindo ao Município o controle do uso e ocupação do solo. 17 Conforme a Carta de Burra (ICOMOS, 1980) o termo significação cultural designa valor estético, histórico, científico ou social de um bem para as gerações passadas, presentes e futuras.
preservar, como, quem controla? Suas respostas são relativas aos diversos interesses
presentes na dinâmica urbana. A primeira questão, o que preservar, pode ser respondida
tanto como sendo o monumento, como as tradições do cotidiano18. Para responder como
preservar, busca-se apoio nas teorias de lugar e identidade19, e da Boa Forma da Cidade.
Quem controla, para Lynch é definido pela gestão com participação dos usuários. Defende-
se o entendimento de ser desejável um tratamento sensível à escala local em áreas de
interesse para a preservação cultural, isto é, que se busque integração com a tipologia
existente e respeite o genius loci20 ou espírito do lugar. Nos entornos destas áreas, são
frequentes os conflitos morfológicos, decorrentes de parâmetros incongruentes com a
peculiaridade da trama preservada.
Podemos argumentar que enquanto as intenções de preservação pressupõem critérios
qualitativos, relacionados com a conservação do genius loci, a normativa urbanística regula
os padrões quantitativos –índices urbanísticos- para o ambiente construído. A temática aqui
levantada explicita o paradoxo da ordenação da forma urbana através da normativa
urbanística em ambiências históricas: conceber padrões de paisagem, e tratá-los como
lugares, dotados de genius loci, em contínuo processo de transformação.
Pretendemos articular os discursos do patrimônio, do urbanismo e do planejamento
urbano, evitando-se deste modo, um tratamento estanque do tema em relação ao
planejamento e à gestão, como se houvesse uma redoma em torno da temática do
patrimônio cultural e seus respectivos profissionais. Trata-se de buscar consolidar uma
cultura urbanística de patrimônio cultural.
Ordenação urbanística: é possível a Boa Forma? A normativa deve orientar o desenho do espaço público e buscar o equilíbrio da
dinâmica de forças econômicas e sociais atuantes na construção da paisagem, propiciando
um espaço urbano congruente com as demandas sociais, econômicas e culturais.
Tanto o método desenvolvido por Lynch, para analisar a Boa Forma da cidade,
quanto os conceitos e valores por ele trabalhados, podem contribuir na elucidação das
questões argumentadas neste trabalho, se pensarmos como conceitos básicos - forma 18 Ver o deslocamento do foco do conceito de patrimônio em GONÇALVES, José Reginaldo S. “Monumentalidade e Cotidiano: os patrimônios culturais como gênero de discurso” in Oliveira, Lucia L. (Org.) Cidade: História e Desafios. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, pp 108-123. 19 RELPH, Edward. Place and Placeness. London: Pion Limited, 1976; Norberg-Schulz, Christian.Genius Loci: towards a phenomenology of architecture. Nova York: Rizzoli, 1980. (1984) 20 Conforme NORBERG-SCHULZ, o Genius Loci, é a propriedade abrangente, que confere identidade e se manifesta como a atmosfera geral do lugar, constituída pelos significados ali acumulados. (Norberg-Schulz, 1980, op. cit.)
urbana, norma e preservação - como a Boa Forma, o controle da Boa Forma, e a
memória dos valores da Boa Forma. Sob esta ótica, a teoria de Lynch nos auxilia como
princípio metodológico, na articulação da relação forma, norma e preservação. Além disto,
ao avaliar a forma, as dimensões de desempenho lidam com a norma, através do controle e
adequação, e com a preservação, através da vitalidade e sentido. O procedimento
metodológico de Lynch, para avaliar o desempenho ambiental, evitando padrões
universalizantes, pode ser um recurso na busca de um equilíbrio: conceber padrões de
espaços, que possam ser apropriados como lugares, dotados de genius loci.
A regulação da qualidade ambiental em termos morfológicos, não é importante
somente pelo interesse de proteção do patrimônio cultural. A compreensão de forma-
conteúdo nos orienta a acreditar que este critério deveria instruir a legislação urbanística
em geral, no sentido de configurar lugares significativos e quem sabe restituir o sentido de
habitar, doutrinado por Heidegger (2002) e conceituado por Lefebvre (2002) em oposição
ao habitat resultante da redução da vida urbana à padrões homogêneos e quantitativos.
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