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Hegel, Marx e a ontologia do ser social1
Hegel, Marx and the ontology of the social being
LOSURDO, Domenico2
resuMoEste texto representa um levantamento analtico de como
Hegel tem sido avaliado e sua obra criticada a partir da
perspectiva marxiana e quais as contradies presentes em tais
colocaes. Rompendo com a chave marcadamente consciencialista
atribuda a Hegel, registra-se, aqui, como a natureza integra a sua
filosofia da histria e, no menos, sua filosofia poltica.
Observando-se atentamente, verifica-se que o trabalho, em Hegel,
afasta-se da caracterizao pr-preconcebida de seu pensamento estando
restrito ao carter espiritual e abstrato de tal categoria.
Comprova-se como o filsofo de Stuttgart dedica especial ateno s
relaes de classe, ao conflito social e sua concreta configurao.
Tais reflexes procuram afastar Hegel de um idealismo histrico e
buscam aproxim-lo de um materialismo histrico, com plenas
referncias ao ser social. Ressalta-se como as mais diversas
configuraes do ser social aguardam por uma anlise ontolgica e, para
tal, torna-se necessrio um novo olhar para a obra hegeliana e suas
reais contribuies a to relevante propsito.
Palavras-chave: Hegel; Idealismo histrico e materialismo
histrico; Ontologia do ser social.
abstractThis text is an analytical survey of how Hegel has been
evaluated and how his work has been criticized from the marxist
perspective and which contradictions are present in these settings.
Breaking with the markedly awareness key assigned to Hegel, it is
registered here, how nature integrates its history of philosophy
and, not least, its political philosophy. Observing carefully, we
find that the work, in Hegel, moves away from the preconceived
characterization of his thought being restricted to the spiritual
and abstract character of this category. Its possible to verify how
the philosopher from Stuttgart dedicates particular attention to
class relations, to social conflict and to its concrete
configuration. Such reflections move Hegel away from a historical
idealism and bring him closer to a historical materialism, with
ample references to the social being. It should be noted how the
most diverse configuration of the social being await for an
ontological analysis and there unto it a new look is necessary to
Hegelians work and its real contributions to such a relevant
purpose.
Keywords: Hegel; Historical idealism and historical materialism;
Ontology of social being.
1 Verso em portugus da publicao original, em italiano: LOSURDO,
Domenico. Hegel, Marx e lontologia dellessere sociale. Critica
marxista: analisi e contributi per ripensare la sinistra. editori
riuniti divisione Periodici, Roma, n.5, p.40-49, set./out. 2010.
Disponvel a partir de: e de . Acesso em: out. 2014.Traduo: Monica
de Sanctis Viana. Tradutora Pblica Juramentada e Intrprete
Comercial de Italiano (JUCEMG, Matrcula n.778); Tradutora
Reconhecida pelo Consulado Italiano de Belo Horizonte e Membro da
Associao Brasileira de Tradutores e Intrpretes (ABRATES);
Vice-Presidente da Associao Cultural Italiana Amici del Veneto.
Stio eletrnico: .Reviso tcnica: Giovanni Semeraro e Luciana Amaral
Praxedes.2 Doutor em Filosofia pela Universidade de Tubinga,
Alemanha. Professor de Histria da Filosofia da Universidade de
Urbino Carlo Bo, Itlia. Preside, desde 1988, a Internationale
Gesellschaft Hegel-Marx fr dialektisches Denken e membro do
Comitato Scientifico dellIstituto Italiano per gli Studi
Filosofici. E-mail: .
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No captulo conclusivo dos Manuscritos econmico-filosficos, Marx
sintetiza assim a sua opinio sobre Hegel: a questo principal que o
objeto da conscincia no nada mais que a autoconscincia, ou que o
objeto apenas a autoconscincia objetivada, a autoconscincia como
objeto. Consequentemente: o nico trabalho que Hegel conhece e
reconhece o trabalho espiritual, abstrato (MARX; ENGELS, 1981,
p.574-575).
uma leitura que, durante a posterior evoluo de Marx, passa por
atenuaes e modificaes igualmente bem significativas, mas sem chegar
a um verdadeiro e prprio repdio. E uma leitura que, justamente na
sua formulao mais radical, fez escola entre os autores e correntes
mais diversas da tradio marxista. Lembremo-nos de Gyrgy Lukcs que,
mesmo em uma sua clebre monografia O jovem Hegel e os problemas da
sociedade capitalista, teve o mrito de sublinhar a centralidade dos
temas da necessidade e do trabalho em Hegel: se o primeiro tema
remete claramente natureza biolgica do homem, o segundo implica a
transformao da natureza fsica que se faz necessria para a satisfao
das necessidades. E, todavia, escrevendo em 1967, portanto quatro
anos antes de sua morte, Lukcs no tem dvidas: o objeto, a coisa em
Hegel, existe apenas como alienao da autoconscincia (prefcio em
LUKCS, 1988, p.XXV). Fica, porm, o mistrio de como, mesmo com essa
propenso visionria, Hegel possa ser, citando sempre Lukcs, um
filsofo com um robusto e vasto senso da realidade, com uma fome to
intensa de realidade genuna como, depois de Aristteles, talvez no
se encontre em mais nenhum outro pensador (LUKCS, 1976-1981,
p.181).
Analogamente, mesmo sendo a partir de uma orientao diferente,
Ernst Bloch argumenta e evidencia, por um lado, o resultado de
grande relevncia, para o qual na Fenomenologia do esprito o
desenvolvimento maior da autoconscincia acontece mediante a
conscincia do servo que trabalha. De novo somos direcionados ao
tema do trabalho e, implicitamente, das necessidades que este
chamado a satisfazer, ou seja, somos direcionados de novo tanto
natureza fsica no seu conjunto quanto natureza biolgica do homem.
Por outro lado, Bloch afirma que a conquista da identidade de
sujeito-objeto entendida por Hegel apenas como a revogao completa
das exteriorizaes (os objetos em geral) no sujeito, e isso em
conformidade a uma dialtica que profundamente idealstica e que,
alis, fica aos poucos mais rarefeita (BLOCH, 1962, p.69, 71). Sem
divergncia , ao contrrio, a leitura de Hegel em chave grotescamente
consciencialista que, na Itlia, precedeu a escola de Galvano della
Volpe e de Lucio Colletti.
Se Marx e, mais ainda, a tradio a ele ligada empenharam-se em
evidenciar a absoluta originalidade da nova viso do mundo e do novo
movimento poltico, do lado oposto, no apenas o neoidealismo
italiano, mas tambm as mais diversas correntes de pensamento
preocuparam-se, principalmente nos anos da Guerra Fria, em proteger
Hegel de toda e qualquer contaminao com o materialismo comunista
que ludibriava e ameaava os valores ideais, espirituais e
religiosos do Ocidente. Foi a partir dessas motivaes contrapostas e
diversas que acabou sendo consolidada como um lugar-comum a leitura
de Hegel por ser exemplo do consciencialismo ou do panlogismo. Em
uma situao histrica radicalmente mudada atualmente, o momento de se
repensar o problema em novos termos.
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natureza e trabalHo eM Hegel
Para comear, conveniente lembrar, depois das consideraes
metodolgicas de carter geral e antes de dar incio narrao em si, que
as Lies sobre a filosofia da histria abrem-se sublinhando as bases
geogrficas da histria mundial e esclarecendo que, sem considerar a
geografia, o terreno onde afunda as suas razes, o esprito do povo,
sem considerar a sua ligao com a natureza, aquela base essencial e
necessria, no possvel compreender nada do real desenvolvimento
histrico e poltico (MOLDENHAUER; MICHEL, 1986c, p.105).
Como se v, a natureza no est nem um pouco esvanecida. Pelo
contrrio, possui at mesmo um papel excessivo. As Lies sobre a
filosofia da histria consideram que,
[...] na zona fria e na zona quente no se pode encontrar o
terreno de povos histrico-mundiais [...]. Nessas zonas extremas a
indigncia nunca pode (nie) cessar, nem nunca pode (niemals) ser
prevenida; o homem pode apenas se dedicar continuamente sua
preocupao para com a natureza, aos raios incandescentes do sol e ao
gelo das geleiras (MOLDENHAUER; MICHEL, 1986c, p.106, 107).
O mnimo que se pode dizer que parece ser problemtica a
insistncia sobre a imodificabilidade do dado de fato natural.
Podemos concordar com Hegel que as civilizaes martimas geralmente
comprovam ter maior abertura e ousadia: a terra firme, de fato,
fixa o homem ao solo, derivando, assim, uma infinidade de obstculos
(MOLDENHAUER; MICHEL, 1986c, p.118-119). Mas no podemos concordar
com a outra afirmao segundo a qual, nas civilizaes martimas, a
liberdade civil segue no mesmo passo do comrcio e da navegao
(MOLDENHAUER; MICHEL, 1986c, p.131). Desse quadro removido o
comrcio dos escravos negros que v como protagonistas, por muito
tempo, os estados, regies e cidades costeiras empenhados, de
maneira ativa, justamente na navegao e no comrcio.
Alm da natureza fsica, a natureza biolgica do homem tambm possui
um papel essencial em Hegel. O triunfo dos conquistadores no Novo
Mundo explica-se com uma srie de fatores: a falta do cavalo e do
ferro e a fragilidade da constituio natural dos indgenas
(MOLDENHAUER; MICHEL, 1986c, p.108-109); ao invs, no se acena s
contradies e aos conflitos que atravessavam profundamente as
sociedades pr-colombianas e que provavelmente tiveram um papel mais
importante na derrota total infligida pelos invasores, que no a
frgil constituio fsica dos indgenas. Em concluso, verdade que Hegel
adverte contra o perigo do reducionismo e sintetiza assim o seu
ponto de vista: no devemos estimar a natureza nem muito nem pouco
(MOLDENHAUER; MICHEL, 1986c, p.105-106). E se, todavia, uma crtica
fosse voltada ao filsofo, no seria o idealismo, mas o fato de cair,
s vezes, no naturalismo.
Feitas essas premissas, a afirmao j vista dos Manuscritos
econmico-filosficos, segundo a qual o trabalho descrito por Hegel
seria exclusivamente o trabalho espiritual, abstrato, pode ser
considerada apenas como a expresso de uma intemperana juvenil (mas
a nfase dada a uma afirmao contida nas anotaes que no eram
destinadas publicao foi, principalmente, de responsabilidade
dos
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intrpretes do sculo XX). Na realidade, se a natureza est bem
presente na filosofia da histria, certamente no est ausente na
filosofia poltica de Hegel: o homem est em relao prtica com a
natureza no momento em que se coloca diante da mesma como um
indivduo imediato e externo a algo imediato e externo e, portanto,
como um indivduo sensvel (CICERA, 1996, p.419, 245). uma relao
prtica que se expressa por meio do trabalho; e o duro esforo do
trabalho pressupe a resistncia e, assim, a intensidade material da
natureza: srio o trabalho em relao necessidade, necessrio que
sucumba a natureza ou eu, se um deve existir, o outro tem que ceder
(MOLDENHAUER; MICHEL, 1986c, p.297-298). E seria, como sempre, o
homem que cederia e sucumbiria, se ele enfrentasse a luta sem nada
nas mos: quaisquer que sejam as foras advindas da natureza contra o
homem frio, animais selvagens, gua, fogo ele sabe recorrer a meios
contra as mesmas, e extrai tais meios da prpria natureza, contra a
qual os utiliza (CICERA, 1996, p.419, 245). Sim, o desenvolvimento
da tcnica, das foras produtivas, em ltima anlise da histria, a
resposta que o homem ope resistncia dada pela natureza para a
satisfao de suas necessidades: os objetos naturais
(Naturgegenstnde) so potentes e prestam uma resistncia (Widerstand)
multplice. Para dom-los o homem interpe outras coisas naturais
(Naturdinge), voltando, assim, a natureza contra si mesma. para tal
fim que o homem inventa instrumentos. Essas invenes humanas
pertencem ao esprito, portanto o instrumento deve ser mais estimado
do que o objeto natural (MOLDENHAUER; MICHEL, 1986c, p.295). E,
como resultado permanente da luta que o homem conduz para garantir
sua sobrevivncia e a melhoria das condies de vida, o instrumento
fica sendo mais importante do que a satisfao momentnea das
necessidades que o mesmo consegue assegurar: o arado mais nobre de
quanto imediatamente no sejam as satisfaes que o mesmo proporciona
e que constituem os objetivos da sua utilizao. O instrumento
conserva-se, enquanto que as satisfaes imediatas passam e so
esquecidas (MOLDENHAUER; MICHEL, 1986b, p.453). No por acaso, na
Grcia antiga, a honra da inveno humana, que doma a natureza,
atribuda aos deuses (MOLDENHAUER; MICHEL, 1986c, p.95).
Trata-se, porm, de um domnio que est longe de ser ilimitado. Se
o dilema que diz que na relao homem-natureza um dos dois est
destinado a ceder, provocaria decepo nos seguidores do movimento
ecolgico moderno. A observao contida na Enciclopedia suscitaria, ao
contrrio, a simpatia: na sua luta o homem consegue vitrias
importantes, mas sempre parciais; em relao natureza como tal, a
natureza no seu conjunto, o homem no pode nem domin-la neste modo,
nem subordin-la para seus fins (CICERA, 1996, p.419, 245).
Em Hegel, a natureza est to presente que desempenha um papel
essencial na prpria definio das categorias centrais do discurso
poltico. Tome-se a liberdade. Porque o afamado que corre o risco de
morrer de fome encontra-se, por isso, em uma situao de total falta
de direitos, de inutilidade de toda a extenso da realizao da
liberdade (ILTING, 1973, p.342; ILTING, 1983a, 127), e portanto de
substancial escravido (ILTING, 1983b, p.196)? Devido ao fato de que
a vida o lado real da personalidade. Somos reconduzidos natureza
biolgica do homem, cuja
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centralidade ulteriormente evidenciada pela afirmao para a qual
a vida constitui um direito autntico contrariamente ao direito
formal (ILTING, 1983a, 127).
Tambm a cesso ao empregador de todo o tempo da vida concreta de
um operrio, mesmo sendo sancionada por contrato, equivaleria a uma
reduo em estado de escravido. Leiamos os Lineamentos de filosofia
do direito: com a alienao de todo o meu tempo concreto de trabalho
e da totalidade da minha produo, eu tornaria propriedade de outro o
elemento substancial da minha produo, a minha atividade e realidade
universal, a minha personalidade (ILTING, 1983a, 67).
Talvez ainda mais eloquentes sejam os trechos correspondentes
nas lies: Com a alienao de todo o meu tempo a ser transcorrido no
trabalho, tornaria propriedade de um outro a minha atividade e
realidade universal, a minha personalidade (ILTING, 1983b, 36). E
ainda:
Portanto, mediante a alienao de todo o meu tempo concreto,
preenchido pelo meu trabalho, ou melhor, da produo na sua
totalidade, alienado tambm o todo [...]; a minha personalidade ,
assim, mantida, se for alienada somente uma parte da minha
particularidade, limitada no tempo (ILTING, 1973, 254).
Se nos Lineamentos a pessoa e a liberdade da pessoa so pensadas
e definidas a partir da vida, agora so pensadas e definidas a
partir do tempo concreto do trabalho e da vida, assim como do
conjunto da atividade e da manifestao das foras vitais do homem. O
objeto da anlise de Hegel est bem longe de ser o trabalho
espiritual, abstrato, mas tal anlise age claramente nos bastidores
da celebrao, em termos picos, que O Capital faz da luta para a
regulamentao e reduo do horrio de trabalho como luta para a
liberdade. Nas palavras de Marx, o operrio organiza-se e esfora-se
para no ser reduzido a simples fora-trabalho durante todo o tempo
da sua vida, para no se submeter a uma maior reduo do tempo que ele
tem para viver (Lebenszeit) (MARX; ENGELS, 1962, p.280-281). O
Capital descrevee compartilha a denncia que os operrios ingleses
fazem das condies que lhes foram impostas: a durao do tempo de
trabalho exigida pelo sistema atual longa demais e no deixa ao
operrio nenhum tempo para o repouso e para a educao, alis, o
rebaixa a um estado de servido que s pouco melhor que a escravido
(MARX; ENGELS, 1962, p.319, nota 196).
Voltemos, agora, filosofia da histria de Hegel: a histria da
liberdade tambm a histria da progressiva libertao do trabalho
(material) dos liames da escravido e da servido. No Oriente
desptico quase todos so servos (Knechte) para a construo das obras
de enorme grandeza (ILTING, 1983a, 167). Na Grcia, onde
propriamente inicia a histria da liberdade, a particularidade
atinente necessidade [isto , satisfao das necessidades mediante o
trabalho material] no ainda acolhida na liberdade, mas excluda e
confinada em uma classe de escravos (ILTING, 1983a, 356). Ainda no
mundo contemporneo, o operrio desempregado ou invlido que corre o
risco de morrer de fome est em condies - como sabemos - de
substancial escravido. A histria da liberdade e da libertao do
trabalho (material) no est ainda concluda.
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ser e ser social
Quando Lnin se depara com o trecho j visto em que Hegel sublinha
a referncia do homem natureza externa de maneira prtica, levado a
aproximar explicitamente Hegel e Marx sublinhando os acenos em
Hegel de materialismo histrico (LNIN, 1969, p.316-317). Sim, mas o
que o materialismo histrico? Na Ideologia alem, podemos ler: a
conscincia outra coisa no seno o ser consciente, e o ser do homem o
seu real processo vital (MARX; ENGELS, 1978, p.26). Vejamos agora a
formulao contida no Prefcio de Para a crtica da economia poltica:
No a conscincia dos homens que determina o seu ser, mas, ao
contrrio, o seu ser social (gesellschaftliches Sein) que determina
a sua conscincia (MARX; ENGELS, 1961, p.8). Poderamos ento formular
o problema assim: O que define o materialismo histrico a referncia
ao ser ou ao ser social? Obviamente, h uma relao entre um e outro,
mas a compreenso dos conflitos sociais e dos processos histricos
exige, em primeiro lugar, a anlise do ser social. Diversamente, no
teria sentido a tese de abertura do Manifesto do partido comunista,
em base ao qual a histria histria das lutas de classe. Por outro
lado, apenas assim se pode explicar o fato de a Ideologia alem
criticar de idealismo histrico um filsofo que no se cansa de
professar o materialismo: quando Feuerbach materialista, para ele a
histria no aparece. E, quando considera a histria, no um
materialista. Materialismo e histria para ele so totalmente
divergentes (MARX; ENGELS, 1978, p.45). Em outras palavras, em
Feuerbach a referncia natureza, ao ser natural constante, mas no h
a essencial ateno ao ser social, objetividade social. Justamente
por causa de tal ausncia, o sujeito constitudo sempre pelo homem em
geral e nunca pelos homens histricos reais (MARX; ENGELS, 1978,
p.42), pelos homens s voltas com condies materiais de vida
historicamente determinadas e colocadas em relaes sociais e em
conflitos sociais, tambm estes, historicamente determinados.
A esse ponto obrigatria a pergunta: Como esto as coisas para
Hegel? O mesmo Bloch, o qual o acusa de ter desfeito a objetividade
enquanto tal, observa com perspiccia que o que caracteriza o
suposto filsofo idealista uma grandiosa reviravolta da ironia
[romntica] do sujeito na ironia do objeto (BLOCH, 1967, p.24). O
objeto do qual se fala aqui o objeto social, o ser social.
Poder-se-ia dizer que o que cadencia o desenvolvimento da
Fenomenologia do esprito a progressiva, e sempre mais rica e
madura, tomada de conscincia da espessura da objetividade social,
da qual no possvel e nem lcito evadir, mesmo quando, alis,
principalmente, quando se nutrem projetos ambiciosos de transformao
do mundo. Todas as vezes que a conscincia tem a pretenso de
impor-se em relao ao ser social, este ltimo acaba ganhando. assim
que o curso do mundo (Weltlauf) exercita a sua ironia sobre a
virtude (Tugend) e o processo histrico real exercita a sua ironia
primeiramente sobre a conscincia honesta (ehrliches Bewutsein),
depois, com modalidades diversas, sobre a conscincia nobre
(edelmtiges Bewutsein) e, por fim, sobre bela alma (schne Seele).
At o fim, Lukcs (1976-1981, p.601) critica Hegel por ter
identificado o estranhamento com a objetivao e at mesmo com a
objetividade. Assim, estaramos diante de um filsofo que foge da
objetividade como se fosse um elemento de
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contaminao. Mas justamente esta a crtica que Hegel faz a Kant e
bela alma. O primeiro est como que paralisado pelo medo do objeto
(Angst vor dem Objekt) (MOLDENHAUER; MICHEL, 1969, p.45). J para a
alma bela, falta-lhe a fora da exteriorizao, a fora de realizar
coisas e de suportar o ser. A conscincia vive na angstia de
manchar, com a ao e o existir, o esplendor da sua interioridade; e,
para conservar a pureza do seu corao, foge do contato com a
realidade (MOLDENHAUER; MICHEL, 1986a, p.483). Segundo Hegel, a
Alemanha do seu tempo a sofrer um tipo de doena nacional que a
hipocondria. Sim, a hipocondria o ponto de vista dominante, e este
faz com que seja v toda e qualquer objetividade, usufruindo,
depois, em si mesma apenas desta fatuidade (LOSURDO, 2001, cap.IV,
3). E, assim, Lukcs atribui a Hegel a doena que este diagnostica e
denuncia com tanta fora!
Vale a pena notar que a ironia hegeliana do objeto profundamente
apreciada e assimilada por Marx e Engels, os quais a usam para
debochar daqueles que, principalmente depois da derrota de uma
revoluo, ao invs de se aprofundar na anlise das contradies
objetivas, das fraquezas ideolgicas e dos erros polticos que
conduziram a tal resultado, preferem fornecer garantias sobre a
bondade e pureza das prprias intenes contrariamente geral
vulgaridade e maldade da realidade circunstante e do curso do
mundo. Ao condenar esse idealismo histrico como impotente no plano
poltico e narcisista no plano moral, Marx e Engels fazem referncia
explcita e repetitiva s figuras da Fenomenologia do esprito
precedentemente citadas. Chegando concluso que o mundo governado
com bem pouca sabedoria, Arnold Ruge e os outros revolucionrios do
mesmo tipo no podem deixar de exibir a sua conscincia honesta, ou
melhor, a sua conscincia nobre. Na Alemanha, como na Frana, os anos
que se seguem a 1848 veem ufanar-se e choramingar a bela alma, que
se sente subestimada e incompreendida pela humanidade profana. Mas
j o velho Hegel justamente observou que a conscincia nobre se
transforma invariavelmente na conscincia ignbil; e, sob um olhar
mais atento, a bela alma perde logo a sua pretendida
imaculabilidade.3
Se em Feuerbach a falta de ateno objetividade social vai no
mesmo passo, segundo Marx, de uma viso da histria em que no h lugar
para os homens histricos reais, ou seja, para homens colocados em
bem determinadas relaes sociais e de classes, o contrrio acontece
em Hegel: muitssima a ateno reservada, por este ltimo, ao conflito
social e sua concreta configurao. Isso vale para a histria antiga
assim como para a histria moderna e contempornea. Para limitar-me a
um exemplo: no mbito do Antigo regime, a liberdade dos bares
(Freiheit der Barone) comporta a absoluta servido (absolute
Knechtschaft) da nao e impede a libertao dos servos da gleba
(Befreiung der Hrigen). Por isso o povo [...], em todas as partes,
libertou-se (befreit) atravs da represso (Unterdrckung) dos bares
(LASSON, 1920, p.902-903). A aristocracia percebe a perda do
privilgio, que lhe fazia, por exemplo, ser a nica depositria da
administrao da justia, como violncia inconveniente, como opresso da
liberdade (Unterdrckung der Freiheit) e como despotismo (ILTING,
1983a, 219). Mas - observa Hegel - quando se fala de liberdade,
deve-se observar sempre atentamente se no
3 Cf. MARX; ENGELS (1960a, p.246, 275-276), MARX (1960a, p.185;
1960b, p.493, 496-497) e ENGELS (1977, p.83-84).
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sejam, na verdade, interesses privados aqueles dos quais se
trata (LASSON, 1920, p.902). uma concluso que suscita o interesse e
a aprovao de Lnin, em que ele reconhece novamente acenos de
materialismo histrico, por causa da devida ateno reservada s relaes
de classe (LNIN, 1969, p.316-318).
o idealisMo Histrico coMo enfraqueciMento ou negao do ser
social
E de novo, tambm aos olhos de Lnin, o materialismo histrico
remete em primeiro lugar ao ser social. a viso do ser social, a
viso da histria e da sociedade, do terreno artificial (como diz
Labriola) em que se coloca a vida do homem, da segunda natureza que
constitui o campo de batalha decisivo da luta poltico-ideolgica;
mesmo que, depois, seja necessrio dizer que o ser social , por sua
vez, condicionado pelo ser natural. Uma viso materialista da
primeira natureza, isto , a afirmao da prioridade do objeto em
relao ao sujeito, da natureza em relao conscincia, podemos
encontr-la tambm no mbito das religies, mas isso no as impediu de
se configurar por milnios como instrumento de consagrao e
transfigurao idealstica das relaes poltico-sociais existentes. E a
viso materialista da primeira natureza caracteriza obviamente
Feuerbach, mas isso no o impede de cair no idealismo histrico. Do
ponto de vista de Marx (e de Engels), uma crtica anloga pode ser
dirigida ao Hegel que vimos limitar, nas zonas temperadas, a rea em
que podem emergir os povos histrico-mundiais ou atribuir um notvel
peso frgil constituio dos amerndios para explicar a catstrofe
infligida pelos seus conquistadores. Tal idealismo, todavia, no de
fato sinnimo de consciencialismo. Mas, ento, por que to difundida a
interpretao em chave consciencialista? Talvez a resposta esteja em
uma observao de Lukcs dos ltimos anos, o qual, depois de ter
sublinhado, como sabemos, o extraordinrio sentido da realidade de
Hegel, diz que, simultaneamente apropriao dos prprios fatos, ao
centro da ateno havia a construo categorial dos mesmos. Basta
separar a segunda dimenso da primeira e o jogo est pronto!
Na verdade, completamente estranho ao consciencialismo, Hegel
tambm est bem longe do idealismo histrico. Para perceber isso,
basta dar um exemplo. Entre o final do sculo XVIII e as primeiras
dcadas do sculo XIX, a cultura e a filosofia poltica no Ocidente
tiveram de encarar um problema: Como explicar o diverso
desenvolvimento da Frana em relao Inglaterra e aos Estados Unidos?
No primeiro pas, depois da revoluo, seguiu-se a contrarrevoluo, a
qual abria, por sua vez, o caminho em direo a uma revoluo maior. Os
regimes polticos seguiam-se um depois do outro: monarquia absoluta,
monarquia constitucional, terror jacobino, ditadura militar,
Imprio, repblica democrtica, bonapartismo... E no se conseguia
entrever o fim da crise e a estabilizao. Como tudo isso contrastava
em modo clamoroso com a evoluo gradual e construtiva dos outros
dois pases! E, ento, como explicar esse contraste radical? Autores
importantes como Tocqueville e J. S. Mill celebram o robusto senso
moral e prtico e o amor da autonomia e da liberdade individual que
caracterizariam os anglo-americanos: devido a tais virtudes que
eles, em contraposio maldade dos franceses, conseguiriam evitar o
horror das guerras civis e salvaguardar a liberdade. Essa explicao
cai, pelo menos
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no que diz respeito a Tocqueville, quando se lembra que nos
Estados Unidos a instituio da escravido continua viva e vital
poucos anos antes que a Guerra de Secesso provocasse no pas um
banho de sangue; e duas dcadas antes que, com o advento da Terceira
Repblica, a Frana visse emergir uma slida democracia parlamentar,
certamente no menos avanada que a inglesa e a americana.
Vejamos por ora a leitura de Hegel. As Lies de filosofia da
histria evidenciam dois pontos essenciais:
[1] Os livres estados norte-americanos no possuem nenhum Estado
confinante com o qual se encontrem em uma relao anloga quela dos
Estados europeus entre si, um Estado ao qual precisem vigiar com
desconfiana e contra o qual devem manter um exrcito permanente; [2]
a via de sada da colonizao (MOLDENHAUER; MICHEL, 1986c,
p.113-114).
Estes permitem repblica norte-americana eliminar notavelmente o
conflito social. Em ltima anlise: se as florestas da Alemanha
existissem ainda, certamente no teramos tido a Revoluo Francesa
(MOLDENHAUER; MICHEL, 1986c, p.114), ou esta teria se manifestado
em modo menos radical e menos sofrido. No diferentemente de Hegel,
Engels argumenta que na Amrica do Norte [...] os conflitos de
classe apenas se desenvolvem de modo incompleto; as colises de
classe so, de tempos em tempos, camufladas com a emigrao para o
Oeste da superpopulao proletria (MARX; ENGELS, 1960b, p.288).
So duas explicaes materialistas. Mas a explicao do primeiro mais
rica: faz referncia a um elemento (a colocao geopoltica) que, ao
contrrio, est ausente no segundo. Pelo menos, na viso prpria de
Hegel, a colocao geopoltica (a vantagem para os Estados Unidos de
no ter, em suas fronteiras, grandes potncias tendencialmente
rivais) um dado no meramente natural, mas sim mediado pela histria:
ou seja, estamos na presena de uma maior articulao do ser
social.
Na contraposio estereotipada que Tocqueville e Mill fazem dos
franceses e anglo-saxes, o idealismo histrico reside no
esquecimento do ser social e na inveno de um ser natural
inexistente. Essa mesma observao pode ser feita para as outras
correntes de pensamento que, mais acentuadamente, passam do ser
social ao ser de uma pressuposta natureza antropolgica e
racial.
crtica do idealisMo e ontologia do ser social
Aprendendo com a lio de Marx e Engels, possvel criticarem Hegel
e as quedas no idealismo histrico. Mas aqueles que primeiro
empenharam-se na sistematizao terica do materialismo histrico esto
imunes dessas quedas? Na sociedade comunista almejada por Marx e
Engels, juntamente com a diviso em classes, desaparecem o mercado,
a nao, a religio, o Estado ou talvez at mesmo a norma jurdica,
enquanto tal, sendo suprflua devido ao prodigioso desenvolvimento
das foras a ponto de consentir a livre satisfao de todas as
necessidades e, portanto, a superao da difcil tarefa da distribuio
dos recursos. Uma viso assim est altura do materialismo histrico?
Ao se empenhar, seguindo a tradio marxista,
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na construo de uma ontologia do ser social, o filsofo Lukcs dos
ltimos anos adverte justamente sobre um duplo perigo de idealismo
histrico: Ou o ser social no foi distinguido do ser em geral, ou
foi visto como algo radicalmente diverso no possuindo mais o carter
do ser (LUKCS, 1976-1981, p.3). Com a sua insistncia na prxis e na
transformao do mundo, o pensamento revolucionrio exposto ao segundo
tipo de idealismo histrico. Lembremo-nos de Fichte, que institui um
paralelismo entre a sua Doutrina da cincia e a ao enrgica da Frana
revolucionria: assim como aquela nao d ao homem a liberdade das
correntes externas, o meu sistema o liberta dos vnculos das coisas
em si, das influncias externas (LOSURDO, 1997, cap. IV, 1). O jovem
Lukcs posiciona-se da mesma maneira que Fichte quando, em 1922, sob
a influncia da revoluo que estava agitando o mundo, escreve: O
ncleo do ser descobriu-se como acontecimento social, o ser pode
aparecer como produto, tendo ficado certamente inconsciente, at
agora, da atividade humana, e esta ltima pode, por sua vez,
aparecer como o elemento determinante da transformao do ser (LUKCS,
1988, p.26). Aqui transparece tambm aquilo que poderia ser definido
como idealismo da prxis.
Marx e Engels formam-se nos anos em que, de um lado, os ecos da
Revoluo Francesa ainda so ouvidos e, de outro lado, j se intraveem
os sinais premonitrios da gigantesca onda revolucionria de 1848
que, na esperana dos dois jovens revolucionrios teria colocado em
discusso, alm das velhas relaes feudais, tambm o ordenamento
burgus. Pode-se compreender muito bem que, na viso do comunismo
amadurecida por Marx e Engels, o mercado, a nao, a religio, o
Estado tendem, usando a linguagem de Lukcs mais maduro, a perder o
carter do ser.
O ser do ser social pode ser enfraquecido ou negado em duas
maneiras diferentes. O que causa tal resultado pode ser,
primeiramente, uma viso esquemtica da historicidade, incapaz de
distinguir entre durao breve ou durao longa: fora de discusso fica
a historicidade das naes e das lnguas nacionais, mas prever a sua
extino, mesmo sendo na onda de uma revoluo radical, significa
perder a dimenso da durao longa ou ter uma viso distorcida do ser
social, configurando-o como uma realidade homognea regulada por um
tempo histrico homogneo. E, ao contrrio, realidades to diferentes
entre si como, por exemplo, as modas, as instituies polticas, as
lnguas nacionais desenvolvem-se com temporalidades radicalmente
diferentes entre si, isto , caracterizam-se por um teor ontolgico
que, s vezes, diverso.
Ou o ser do ser social pode estar enfraquecido, ou negado no
momento em que se perde de vista quanto de natural continua
existindo no mundo histrico e poltico: por mais desenvolvida que
possa ser uma sociedade, os indivduos que a compem continuam sendo
entidades naturais sujeitas fragilidade biolgica; e tal fragilidade
manifesta-se no apenas na doena e na morte, mas tambm nas paixes.
Isso faz com que seja impossvel a imediata identificao entre
indivduo e gnero, frequentemente sonhada pelas correntes mais
messinicas do movimento comunista. A possibilidade de conflito
entre indivduos diversos continua a subexistir tambm em uma
sociedade livre da diviso e do antagonismo de classes: que sentido
h em se falar de extino do Estado ou at mesmo do ordenamento
jurdico enquanto tal?
Os dois processos atravs dos quais se enfraquece ou se anula o
ser do ser social podem tambm entrelaar-se: o que se verifica
quando se espera o
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desaparecimento da religio na onda da superao da opresso de
classe. Por um lado, tal previso no considera quanto de natural
continua existindo na realidade social, perdendo de vista a
precariedade da existncia individual e o medo da morte. Por outro
lado, escapa, a tal previso, a ligao entre religio e identidade
nacional: mais do que ser expresso exclusiva da luta de classe, a
religio remonta tambm a uma realidade social (a nao) certamente
histrica, mas regulada por uma temporalidade caracterizada por
longa durao.
A histria do socialismo real tambm a histria da dolorosa
descoberta da objetividade do ser social. Menos de dois anos depois
da exploso da Revoluo de Outubro, Gramsci observa: no profundo
abismo de misria, de barbrie, da anarquia, da dissoluo aberto por
uma guerra longa e desastrosa apenas os bolcheviques souberam
colocar um ponto final; estes, portanto, constituem uma
aristocracia de estadistas e Lnin deve ser considerado como o maior
estadista da Europa contempornea. Bem se compreende a reao
escandalizada de um leitor anrquico do lOrdine Nuovo. Ele mostra
que a prpria Constituio sovitica a se esforar para instaurar um
ordenamento, onde no existiro mais divises de classes, nem poder do
Estado. O Estado russo salvo pelos fatores da extino do Estado:
esse no o nico paradoxo na histria do socialismo real!
A Revoluo de Outubro deveria ter iniciado um processo destinado
a concluir-se no desparecimento no apenas das fronteiras estatais,
mas tambm das identidades e das fronteiras nacionais. Mas, em maro
de 1929, Stalin no pode deixar de observar: a estabilidade das naes
grande em medida colossal. Tambm a tal propsito pode-se constatar
um paradoxo anlogo quele que acabou de ser visto: no h dvidas que,
conferindo um poderoso impulso ao processo de emancipao dos povos
coloniais, o movimento comunista tenha contribudo em medida notvel
ao reforamento e multiplicao das identidades nacionais. A mesma
observao pode ser feita em propsito das lnguas que, mesmo segundo
uma viso difundida nos ambientes marxistas e compartilhada tambm
por Karl Kautsky, deveria fundir-se, mais cedo ou mais tarde, em
uma lngua unitria da humanidade finalmente unificada. E os
paradoxos no param por aqui: nas sociedades atrasadas e
semifeudais, o desenvolvimento da economia e das foras produtivas
promovidas pelos comunistas que chegaram ao poder comportou o
desenvolvimento tambm das relaes mercantis e, de qualquer maneira,
o advento de um autntico mercado nacional. Em concluso, a prtica
real de governo colocava em crise a plataforma terica com a qual,
principalmente na Rssia, os comunistas chegaram ao poder.
Obviamente, no faltaram as tentativas de remediar, de alguma forma,
tal divergncia. A propsito, em 1939, observa um ilustre jurista
(Hans Kelsen) que a teoria da extino do Estado de fato abandonada
por Stalin, o qual acabara tambm tomando, mais ou menos
cautelosamente, distncia da expectativa da fuso final das naes e
das lnguas nacionais e da viso, segundo a qual, a produo mercantil
seria sinnimo de capitalismo.4
Enfim, no momento da invaso da Unio Sovitica, por parte do
Terceiro Reich, Stalin apelava, com sucesso, Igreja Ortodoxa para
que esta apoiasse e fomentasse
4 Sobre isso, remeto a Losurdo (2008), especialmente: p.66, no
que se refere a Gramsci e os anrquicos; p.53, 68 e 117-122, no que
se refere a Stalin.
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a resistncia nacional. Desgraadamente, a (parcial) tolerncia
religiosa era apenas uma breve estao. E, todavia, se pensarmos ao
Terceiro Mundo, provvel que o movimento histrico ligado a Marx,
atravs de mltiplas mediaes e promoo da libertao dos povos
coloniais, acabou estimulando o reforamento das identidades
religiosas e o renascimento religioso, pelo menos em certas reas do
Terceiro Mundo.
De maneira geral, a adaptao da teoria prxis foi tardia, parcial
e contraditria, j que foram enormes os estragos provocados pelo
idealismo histrico (e pelo messianismo): a construo, dificultada
por um estado de exceo permanente, de um Estado de direito e
democrtico, resultava privao e sentido na perspectiva da extino do
Estado. Quando eclodiu o conflito entre a Unio Sovitica e a
Iugoslvia e entre a Unio sovitica e a China, os antagonistas,
partindo do pressuposto comum, pelo qual os dissdios entre as naes
desaparecem com o advento do socialismo, acusaram-se reciprocamente
de traio. Cada um deles estava convencido de seguir o materialismo
histrico, identificando a raiz de classe (o retorno do capitalismo)
como fundamento do comportamento criticado no pas adversrio. Porm,
na verdade, todos manifestavam o idealismo histrico, perdendo de
vista a espessura ontolgica das realidades e individualidade
nacionais entre as quais, mesmo depois do advento do socialismo,
continuam subsistindo interesses diversos e possveis fontes de
conflito.
A passagem do arranjo at o repensamento terico comea a se
delinear somente com a aproximao da queda do socialismo na Europa
Oriental. Aqueles que percebem a inutilidade de comportamentos como
os de Arnold Ruge e que se recusam a constituir uma nova encarnao
das figuras da bela alma, da conscincia honesta e da conscincia
nobre, debochadas antes por Hegel e depois por Marx e Engels,
chamam a ateno, com maneiras e linguagens diversas, sobre a
necessidade de uma ontologia do ser social. Para formular tal
exigncia, se pode partir das experincias de governo, ou da reflexo
filosfica. Em 1991, Fidel Castro observava: Ns, socialistas,
cometemos um erro ao subestimar a fora do nacionalismo e da religio
(SCHLESINGER JUNIOR, 1992, p.25). A milhares de quilmetros de
distncia, rompendo com a Revoluo Cultural (pela extrema esquerda
ocidental, s vezes saudada como o incio ou o possvel incio da
extino do Estado), a partir do final dos anos 70 do sculo XX, Deng
Xiaoping pedia o empenho para a extenso e o melhoramento do sistema
legal e para a introduo do governo da lei no Partido e na sociedade
no seu conjunto como condies prvias para um real desenvolvimento da
democracia (XIAOPING, 1992-1995, v.2, p.196; v.3, p.166-167). Assim
como no significava a extino do Estado, o socialismo no comportava
nem o desaparecimento do mercado nem a fuso dos pases envolvidos na
construo do novo ordenamento social em uma comunidade livre de
tenses e conflitos. Alis conclua o lder chins conversando com
Gorbachev na primavera de 1989 , o que provocou o conflito
sovitico-chins foi mais o fato de que os chineses no foram tratados
como iguais e se sentiram humilhados, do que as divergncias
ideolgicas; graas nova conscincia dificilmente adquirida, era
possvel virar a pgina (XIAOPING, 1992-1995, v.3, p.287). Mas agora,
pelo menos para a Unio Sovitica, era tarde demais, e tambm para a
China a situao no era livre de perigos, como demonstrava o
incidente da Praa de Tienanmen.
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Convm reformular e generalizar os dois balanos autocrticos de
Castro e Deng. A espessura do ser social do Estado, da nao, da
lngua, da religio, do mercado, a essncia de tudo isso que podia
desaparecer, foi objeto de subestimao de carter idealstico. Assim,
o marxismo revela que precisa de uma ontologia do ser social. um
problema percebido com clareza pelo Lukcs dos ltimos anos, neste
caso, a partir da reflexo filosfica; mesmo se o livro que ele teria
dedicado a tal tema apresenta-se, em grande parte, como uma
promessa no mantida: no mbito do marxismo, o Estado, a nao, a
lngua, a religio, a multiplicidade das civilizaes, o mercado, as
diversas configuraes do ser social esperam ainda para serem
indagadas ontologicamente. Podemos nos perguntar se, para cumprir
tal tarefa, no seriam de grande ajuda as anlises realizadas por
Hegel sobre tal propsito. Aqui o problema pode ser apenas
mencionado, mas estou convencido de que, para resolver o problema
da reconstruo e reformulao do materialismo histrico, o pensamento
de um filsofo que foi obstinado e superficialmente acusado de
idealismo pode fornecer uma contribuio essencial.
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