Patágios Fúnebres: Uma leitura vampírica de Otávio e Branca 1 ________________________ Cid Vale Ferreira Nos países marcados pela escassez de leitores, o ofício poético desafia a peneira do tempo sob o iminente risco do esquecimento. A desatenção da crítica pode cavar a cova de quaisquer poetas, mas seu desabono encobre-os sob conceitos repulsivos de difícil remoção. No Brasil, qualquer estante de biblioteca pode confirmar que, à margem de cada autor consagrado, espreitam centenas de talentos desacreditados, relegados pelos mais diversos – às vezes torpes – motivos. O caso do santista João Cardoso de Menezes e Souza (1827-1915) é exemplar: apesar de A Harpa Gemedora (1849), seu primeiro livro, ser um dos sustentáculos de nossa segunda geração romântica, o conjunto de sua obra inspira reações detratoras em boa parte dos críticos. As entrelinhas de tais ataques, no entanto, revelam contaminações advindas de sua longa carreira política, culminada pelo decreto que o designou Barão de Paranapiacaba em 1883. Seria inútil imaginar qual teria sido sua recepção caso um pseudônimo fosse adotado ou, digamos, se alguma moléstia o tivesse ceifado prematuramente, mas o fato é que as incursões poéticas do “velho Barão” sobrepuseram-se às composições do jovem “João Cardoso”, agregando pitadas de hipocrisia e preconceito à apreciação de seu legado poemático. Esplim na garoa “O grande objetivo da vida é a sensação. Sentir que existimos, mesmo no sofrimento.” - Byron. A influência dos maçons sobre a oligarquia brasileira, fundamental ao nosso processo de emancipação política, manteve-se atuante nas décadas que sucederam a Independência com focos nos “núcleos de bacharelismo, como São Paulo e Recife, onde se formava a elite dirigente do país” 2 . Nesse período, divulgou-se como nunca a poesia de Byron, cuja reminiscência avassalou uma multidão de estudantes com seu diadema de devassidão e perversidade. A esse respeito, relatou Machado de Assis: Tudo concorria nele para essa influência dominadora: a originalidade, a sua doença moral, o prodigioso de seu gênio, o romanesco de sua vida, as noites de Itália, as aventuras de Inglaterra, os 1 Versão revista do ensaio publicado originalmente em: FERREIRA, C. V. (Org.). Voivode: Estudos sobre os vampiros. Jundiaí: Pandemonium, 2003. 2 BROCA, B. Álvares de Azevedo e o culto byroniano. In: Românticos, Pré-Românticos, Ultra- Românticos: Vida Literária e Romantismo Brasileiro. Brasília: Polis, 1979. p. 212.
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Patágios Fúnebres:
Uma leitura vampírica de Otávio e Branca1
________________________ Cid Vale Ferreira
Nos países marcados pela escassez de leitores, o ofício poético desafia a peneira do
tempo sob o iminente risco do esquecimento. A desatenção da crítica pode cavar a cova de
quaisquer poetas, mas seu desabono encobre-os sob conceitos repulsivos de difícil
remoção. No Brasil, qualquer estante de biblioteca pode confirmar que, à margem de cada
autor consagrado, espreitam centenas de talentos desacreditados, relegados pelos mais
diversos – às vezes torpes – motivos.
O caso do santista João Cardoso de Menezes e Souza (1827-1915) é exemplar: apesar
de A Harpa Gemedora (1849), seu primeiro livro, ser um dos sustentáculos de nossa
segunda geração romântica, o conjunto de sua obra inspira reações detratoras em boa parte
dos críticos. As entrelinhas de tais ataques, no entanto, revelam contaminações advindas de
sua longa carreira política, culminada pelo decreto que o designou Barão de Paranapiacaba
em 1883.
Seria inútil imaginar qual teria sido sua recepção caso um pseudônimo fosse adotado
ou, digamos, se alguma moléstia o tivesse ceifado prematuramente, mas o fato é que as
incursões poéticas do “velho Barão” sobrepuseram-se às composições do jovem “João
Cardoso”, agregando pitadas de hipocrisia e preconceito à apreciação de seu legado
poemático.
Esplim na garoa
“O grande objetivo da vida é a sensação. Sentir que existimos, mesmo no sofrimento.”
- Byron.
A influência dos maçons sobre a oligarquia brasileira, fundamental ao nosso processo
de emancipação política, manteve-se atuante nas décadas que sucederam a Independência
com focos nos “núcleos de bacharelismo, como São Paulo e Recife, onde se formava a elite
dirigente do país”2. Nesse período, divulgou-se como nunca a poesia de Byron, cuja
reminiscência avassalou uma multidão de estudantes com seu diadema de devassidão e
perversidade. A esse respeito, relatou Machado de Assis:
Tudo concorria nele para essa influência dominadora: a
originalidade, a sua doença moral, o prodigioso de seu gênio, o
romanesco de sua vida, as noites de Itália, as aventuras de Inglaterra, os
1 Versão revista do ensaio publicado originalmente em: FERREIRA, C. V. (Org.). Voivode: Estudos sobre os
vampiros. Jundiaí: Pandemonium, 2003. 2 BROCA, B. Álvares de Azevedo e o culto byroniano. In: Românticos, Pré-Românticos, Ultra-
Românticos: Vida Literária e Romantismo Brasileiro. Brasília: Polis, 1979. p. 212.
amores da Guiccioli, e até a morte na terra de Homero e de Tribulo. Era,
por assim dizer, o último poeta.3
Em 1844, o maçom João Cardoso ingressava na Academia de Ciências Jurídicas e
Sociais de São Paulo, epicentro do “mal byrônico”, que reunia poetas como Álvares de
Azevedo, Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães, Francisco Otaviano e muitos outros.
Oriundos de diferentes estados, esses jovens instalavam-se em repúblicas precárias e, não
raro, fraquejavam ante a distância de seus lares. Na fase de adaptação, eram comuns as
queixas de esplim, tédio generalizado e melancólico agravado pelas noites nas quais a garoa
os enfurnava, visto que a cidade não oferecia serviços de saúde pública e o risco de adoecer
não podia ser desprezado.
Entretanto, longe do escrutínio familiar, os acadêmicos encontraram uma solução
escapista no cultivo de extravagâncias que tinham o desregramento e a quebra da rotina
como objetivo. Em voga, a lendária rebeldia de Byron era arremedada em noites notórias.
Servia-se conhaque em crânios retirados das valas comuns reservadas aos escravos e
capelas necropolitanas acolhiam orgias com prostitutas que, visando esconder os estigmas
da lepra, “só se vendiam às escuras”4.
Porém, nem só com madrugadas escandalosas se exorcizava o esplim. A produção de
poesia pantagruélica (ou bestialógica) – “que consistia em dizer disparates, sabendo-se que
o eram”5 – ganhou força por meio dos improvisos de Bernardo Guimarães, João Cardoso e
José Bonifácio. Primando pela desconexão, essa lavra satírica fez do absurdo uma fonte de
humor que dissolvia ansiedades e tensões, mas o alívio proporcionado por essas pitadas de
loucura provou-se efêmero: o “gosto do nada” continuava a amargar seus cotidianos afeitos
à intensidade byroniana…
Ramalhete de mágoas
“Mas ai! – não palmilhei o estádio inteiro Do berço à sepultura, Inda tenho a beber as negras fezes
Do cálix da amargura.”
- João Cardoso de Menezes e Souza, Quem me dera!…
Embora idolatrasse Byron, João Cardoso repudiava os entusiastas que, tomando-o por
um arquétipo de delinquência, alarmou a Justiça paulistana ao empreender crimes piores
“do que a ficção da maior parte das novelas de ‘terror gótico’”6. O desafio não era, segundo
ele, perambular por cemitérios a vilipendiar cadáveres ou gabar-se de ter participado de
delitos; mas esmerar-se em compreender sua poesia, sua postura ante as agruras de seu
percurso e, por fim, as ações que o mitificaram como um mártir libertário7.
A devoção do santista aos versos “sombrios e tenebrosos” do Lorde inglês ofereceu-
lhe elementos que comporiam os esboços da trindade herética que ele esboça em seu
3 ASSIS, M. In: JUNIOR, R.M. Poesia e Vida de Álvares de Azevedo. São Paulo: Edameris, 1962. p. 46. 4 ALMEIDA, P. A Escola Byroniana no Brasil. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1962. p. 178. 5 SOUZA, J. C. M. A poesia pantagruélica. In: Poesias Escolhidas. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura,
1965. p. 164. 6 RAMOS, P. E. S., org. Introdução. In: Poesia Romântica: Antologia. São Paulo: Melhoramentos, 1965. p.
21. 7 George Gordon Byron, 6 Lorde Byron, nasceu em 1788 e tornou-se um dos heróis da Grécia moderna após morrer em 1824, durante campanha bélica por sua libertação.
prefácio. Byron seria um “gênio da irrisão sentado sobre as ruínas do universo” que,
encarnado como poeta, viveu como “hóstia votada ao sacrifício”. Por sua vez, cada poema
de Lamartine seria “uma gota de maná celeste derramado sobre as úlceras sangrentas do
coração”. Pai, Filho e Espírito Santo? Em sua liturgia romântica, Gonçalves de Magalhães
era visto como uma espécie de apóstolo – o “chefe de nossa escola moderna” – e,
finalmente, aos poetas cabia a missão de “orvalhar a terra com as lágrimas da
desesperação”.8
Em 1847, esse encargo autoimposto o levou a reunir algumas de suas primeiras
produções poéticas na coletânea A Harpa Gemedora, publicada após permanecer dois anos
no prelo. Apresentada humildemente numa dedicatória àqueles cuja “existência é uma
expiação e uma cadeia de dores”, a obra é permeada por um timbre tétrico que repercutiria
na dicção dos principais poetas de seu tempo. O Gemido de Melancolia, por exemplo, é
uma pungente constatação de que – entre todas as suas esperanças – restou apenas a certeza
da morte; enquanto Quem me dera!… evoca imagens do Velho Testamento ao antever
amarguras futuras de proporções abissais.
Também incrustados no livro estão poemas indianistas (que antecedem em vários
anos a produção de Gonçalves Dias) e composições de inspiração lutuosa que sacralizam o
cadáver materno, motivo recorrente na época. Todavia, apesar de sua contribuição no
estabelecimento do indianismo, do byronismo e de sua presença entre os fundadores da
literatura bestialógica, o poeta é ignorado pela maior parte dos historiadores do nosso
romantismo. Não é de se estranhar, portanto, que outros de seus méritos permaneçam
velados, como a autoria da provável primeira obra vampírica brasileira.
Amantes desgraçados
“Era a hora em que o negro anjo da morte, Seguido dum cortejo de finados, Ergue coa espada as lápidas dos mortos,
E, sobre um sólio de escarnados ossos, Planta o seu estandarte funerário.”
- João Cardoso de Menezes e Souza, Otávio e Branca.
Em sua “primeira mocidade”, João Cardoso ouviu estarrecido o jurisconsulto Antônio
Joaquim Ribas narrar-lhe Leonor, balada terrífica de Gottfried August Bürger9que teve
longa sequela em autores como Matthew Lewis, responsável por imbuí-la no imaginário
gótico inglês. Disposto a se embrenhar pelo estilo, o santista redige Otávio e Branca ou A
Maldição Materna10
, tragédia familiar que ecoa o moralismo macabro de Bürger numa
ambientação em que abundam, da estrutura às menores filigranas, elementos típicos das
narrativas góticas medievalistas.
Comumente, os acadêmicos lusófonos não costumam reconhecer a autonomia desta
escola, rebaixando-a a detalhe pitoresco do pré-romantismo ou a ponto de partida da
literatura policial. Rara exceção, a portuguesa Maria Leonor Machado de Sousa oferece-nos
uma acurada investigação do romance gótico, cunhando uma definição sucinta e didática
8 SOUZA, J. C. M. Lede. In: A Harpa Gemedora. São Paulo: Silva Sobral, 1849. p. 7-9. 9 Mesmo sem conhecer a língua alemã, João Cardoso publicaria a imitação Leonor ou o Castigo da Blasfêmia,
baseado apenas nas reminiscências do enredo da balada. 10 SOUZA, J. C. M. Octavio e Branca ou A Maldicção Materna. In: A Harpa Gemedora. São Paulo: Silva
Sobral, 1849. p. 99-117.
que o descreve como “um romance sentimental, em cuja intriga de amor intervêm o
sobrenatural e o misterioso, geralmente ao serviço de potências maléficas, mas que não
conseguem destruir os heróis, assistidos pela justiça imanente que protege a virtude”11
. Eis,
sem delongas, os alicerces de Otávio e Branca.
Na pena de João Cardoso, o anoitecer transforma o firmamento numa espécie de
tabuleiro, onde, a cada lance, anjos lúgubres convertem ressentimentos em maldições,
nuvens em tempestades e defuntos em emissários da Morte…
Logo no início, a narrativa em versos estabelece a ambientação lúgubre que atribui a
agitação de cães à possível presença de um “maligno Vampiro redivivo” e faz surgir, dentre
as lápides dum cemitério inundado pelos badalos da meia-noite, um vulto (Otávio) que
engrena sua marcha rumo a um castelo próximo, onde uma bela mulher (Branca) o recebe
secretamente.
Não à toa, o tom é de mau agouro. Preconceitos tradicionais separaram o casal que,
desde a infância, ansiava o matrimônio. Plebeu, Otávio foi recusado pelo pai de Branca, o
Conde Holbachi, que prometera sua virginal herdeira ao rico Oranzo. Contudo, na véspera
da boda, numa entrevista proibida, os jovens decidem fugir mar adentro. A fidalga contraria
o desígnio paterno, pretere o noivo, abandona a mãe moribunda e, na mesma madrugada,
consuma seu primeiro beijo, afugentando definitivamente o “anjo da inocência” que a
protegia desde o berço.
Desenlaces nefastos se vislumbram. Na aurora seguinte, a expectativa pelo
matrimônio arranjado atrai cidadãos ao Castelo de Holbachi, onde o noivo abandonado
anseia sangrar o ousado raptor daquela que “enobreceria seu ouro”. Não menos atônita, a
mãe acamada de Branca finalmente se rende à foice, despendendo seu fôlego desgostoso
para acusar sua filha de envenenar seu “leito de dor”. As canções que embalaram o dia se
adensam em lamentos lutuosos à noite, atraindo anjos coléricos que, vaporizando as nuvens
com os estertores da Condessa, iniciam uma tempestade torrencial que encobre a
embarcação do casal fugitivo. Num estrondo, o colo da bela virgem é alvejado por um raio
que a fulmina implacavelmente.
A conspiração começara. Dentre os anjos de rapina, precipita-se a Morte – “rainha
dos horrores”12
– que, a convulsionar a água com suas asas de negror, estilhaça o veleiro
num rochedo próximo à praia de onde partiram. Otávio jaz, desmaiado como oferenda ao
ímpio punhal de Oranzo, que não o poupa. Segue-se um segundo cortejo fúnebre, que
desova os amantes num mesmo sepulcro e, após a dissipação do velório, apenas o Conde
sobre a campa, o aristocrata parece não ter reparado na presença dos dois morcegos que
voavam ao seu redor pouco antes de ele também ser encontrado sem vida. Fica uma dúvida:
a presença dessas criaturas guardaria alguma relação com a morte do conde?13
Malditos em
11 SOUSA, M. L. M. O “Horror” na Literatura Portuguesa. Amadora: Instituto de Cultura Portuguesa,
1979. p. 10. 12 Nesta expressão, João Cardoso evoca uma célebre passagem d’O Paraíso Perdido, de Milton, que descreve
a ceifadora com sublime obscuridade. Na tradução de António José Lima Leitão: “O outro fantasma, em que
não é possível / Distinguir as feições, julgar dos membros, / Substância informe, escurecida sombra, / Tem o
aspecto da Noite, o horror do Inferno, / De Fúrias dez ostenta a feridade, / Pronto para o brandir um dardo
empunha, / E na altura maior, que inculca fronte, / De c’roa real cingido se afigura”. 13
Essa possível interpretação do obscuro encerramento do romance – faz-se necessário frisar – parte da
descrição quiróptera dos vampiros contida na primeira nota que o sucede. Assim como a ambientação
romântica de Otávio e Branca admite interferências angélicas, assim também ocorreria com as sanguessugas
vida, predadores após a morte, os jovens podem ter perpetrado sua vingança sustentados
por insólitas “asas de vampiro”.
Em nossa varredura da produção nacional precedente, não encontramos quaisquer
alusões ao vampirismo, já que o rondó A Noite, publicado em 1799 por Silva Alvarenga,
inaugurou o uso do vocábulo em versos que tratam estritamente do morcego hematófago.
João Cardoso, entretanto, conflui ambas as acepções do termo através de um espécime
distinto – mescla do quiróptero tropical e dos mortos-vivos europeus – cerca de cinco
décadas antes dos voos noturnos de Drácula.
Larva da imaginação popular
“O teu corpo, do túmulo surgindo, Há de à terra voltar e, transformado
Num vampiro de força poderosa, Fará morada (pavoroso espectro!) Nessas paragens, onde houveste berço, Indo a todos os teus sugar as veias.”
- Byron, O Giaur.
Embora a dicção exacerbada constitua a tônica gótica setecentista, o estilo assimilou
cada uma das rupturas estéticas decorridas após seu advento. Não obstante, Otávio e
Branca mantém a candura da escola inicial, que adornava os horrores das superstições
cristãs com eufemismos e demonstrações de virtude. Seria isso um demérito? Afinal,
parodiado à exaustão, tal modelo se desgastara frente à emulação de Beckford, Radcliffe,
Sade, Lewis, Scott, Maturin, Byron14
e Poe, entre outros. Atento a tal anacronismo, o poeta
prevê uma gélida recepção aos seus “débeis passos” e chega, na segunda nota ao fim do
romance em verso15
, a justificar a puerilidade de algumas passagens ao revelar que
“contava pouco mais de 14 anos” ao compor esta sinistra “fantasia de criança”.
Além de nos conscientizar do raro privilégio de sondar desvarios adolescentes dos
primórdios do nosso romantismo, as notas de João Cardoso expõem aos leigos da época seu
conceito particular sobre as sanguessugas. Referências literárias – como Ruthwen, vampiro
aristocrático de O Vampiro (1821), de John William Polidori – junto à descrição de Eugène
Sue dos morcegos gigantes de Java, assinalam as fontes que, entrelaçadas, encerram a
chave da interpretação vampírica da obra. Das subsequentes considerações acerca da lenda
do “defunto ambulante”, uma se sobressai:
Todos aqueles a quem ele exauriu o suco vital, se escapam à morte,
tornam-se por sua vez Vampiros, se não comem um pouco da terra da
cova de que se eles levantam, molhando-se no próprio sangue que o
Vampiro extraiu etc.
cuja presença é sugerida já na primeira estrofe: “Só ousa violar mudez tão erma / Do pássaro da noite o guincho agudo, / E uivos de cães, quiçá correndo em cata / De maligno Vampiro redivivo”. 14 Entre os poemas de Byron que o futuro Barão verteria ao português, O Giaur (1813) destaca-se como único
aceno do Lorde aos sugadores. Por conseguinte, Péricles Eugênio da Silva Ramos, crítico paulista, especula
ter sido a leitura das notas aos versos vampíricos daquele o que primeiro atraiu o interesse do santista à lenda. 15 Nesse ponto, cabe uma observação. Já que boa parte dos poemas de inspiração baladesca não seguiam
métricas adequadas ao canto, seus frontispícios distinguiam-nos através de designações como “xácara”,
“soláo”, “rimance” e “romance”. Otávio e Branca incorre neste último caso, a fim de indicar sua fonte
popular em detrimento da iconografia clássica.
Nesse excerto, evidencia-se a intimidade do autor com a repercussão do Visum et
repertum (1732), auto da infantaria austríaca responsável por primeiro disseminar o termo
Vampir. Comparativamente, reproduzimos da perícia os trechos recontados no respeitado
tratado de Dom Augustin Calmet, de 1746:
Foi há aproximadamente cinco anos que um heiduque, habitante de
Medreira, chamado Arnold Paul, ficou esmagado debaixo de um carro de
feno. Trinta dias após a sua morte, quatro pessoas morreram subitamente,
e da mesma maneira que morrem, segundo a tradição daquele país, os que
são molestados pelos vampiros. As pessoas lembraram-se então que o tal
Arnold tinha muitas vezes contado que, para os lados de Cassova e nas
fronteiras da Sérvia turca, tinha sido atormentado por um Vampiro, e elas
acreditavam que aqueles que tinham sido Vampiros passivos em vida
tornavam-se ativos depois da morte, quer dizer, que todos aqueles que
tinham sido sugados iriam por sua vez sugar. Mas ele tinha encontrado o
modo de se curar comendo terra do sepulcro do Vampiro e esfregando-se
com o seu sangue. Precaução que não o impediu, contudo, de o vir a ser
depois de morto, pois foi desenterrado quarenta dias depois do funeral e o
cadáver apresentava todas as marcas de um arquivampiro. O seu corpo
estava vermelho, os cabelos, as unhas e a barba tinham sido renovadas, e
as veias estavam cheias de sangue fluído, o qual corria de todas as partes
do corpo para o lençol em que estava envolto.16
Outro dado relevante entre os apontamentos do poeta trata do desenvolvimento, no
âmago do enredo, da crença “de que a justa maldição dos pais cai como o anátema de Deus
sobre a cabeça do filho culpado”. Novamente, é o gótico literário do século XVIII que nos
fornece a mais imediata analogia: O Castelo de Otranto, publicado por Horace Walpole em
1764, fundamenta-se no pressuposto bíblico de que “os pecados dos pais se fazem presentes
em seus filhos até a terceira ou quarta geração”17
.
No século XIX, o mergulho desbravador às intempéries emocionais obsoletou muitos
mecanismos terríficos anteriores, como o tema baladesco da “sobrevivência do amor além
da morte”, que se “manifesta pela vingança contra quem impediu a sua realização em
vida”18
. Alheio à reforma, João Cardoso reafirma o caráter autorreferencial da ficção
gótica, debruçando-se sobre cada tópos como um enxadrista que, respeitando as limitações
de suas peças, procura rearranjos insuspeitos no conservador manejo de arquétipos e, numa
época em que o papel de acusar e reparar injustiças incidia tradicionalmente sobre
aparições intangíveis, as sombras vampíricas de Otávio e Branca possivelmente insurgem-
se palpáveis das abafadas sepulturas de seus amos.
Pois bem, após A Harpa Gemedora, nossa poesia romântica engendrou apenas um
punhado de poemas que tocaram o vampirismo casual e superficialmente. No verso “Vem
16 CALMET, A. In: AMBELAIN, R. O Vampirismo. Trad. Ana Silva e Brito. Lisboa: Bertrand, 1978. p.
136-137. 17 WALPOLE, H. Prefácio para a primeira edição. In: O Castelo de Otranto. Trad. Alberto Alexandre
Martins. São Paulo: Nova Alexandria, 1994. p. 15. 18 SOUSA, M. L. M. Op. cit. p. 27.
às horas dos pálidos vampiros”, por exemplo, o carioca Teixeira de Melo nada mais faz do
que sugerir uma noturnidade feérica. Relativamente contemporâneos, Álvares de Azevedo,
Casimiro de Abreu, Zoroastro Pamplona e Castro Alves não reservam mais que piscadelas
às sanguessugas… Na prosa, Couto de Magalhães é uma exceção, com seus demônios
vampíricos escondidos sob os hábitos de monges.
Diante dessa escassez de referências, só nos restam os bibliótafos, onde podemos
sondar os acervos de livros que já não têm registro em nossa memória comum. A despeito
dessas dificuldades, eis – na grafia original, incluindo deslizes tipográficos – uma pequena
agulha vampírica do nosso vasto palheiro literário.