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OBESIDADE INFANTIL E FOME OCULTA – ASSOCIAÇÃO ENTRE ESCASSEZ E EXCESSO Autor: Flávio Diniz Capanema Pediatra, Mestre e Doutor pela Faculdade de Medicina da UFMG Pós-doutor em Gastroenterologia e Nutrição pela Assistance Publique Hopitaux de Paris (APHP), Sorbonne / França. Outubro de 2017
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Nov 22, 2020

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OBESIDADE INFANTIL E FOME OCULTA – ASSOCIAÇÃO ENTRE ESCASSEZ E EXCESSO

Autor: Flávio Diniz Capanema

Pediatra, Mestre e Doutor pela Faculdade de Medicina da UFMG

Pós-doutor em Gastroenterologia e Nutrição pela

Assistance Publique Hopitaux de Paris (APHP), Sorbonne / França.

Outubro de 2017

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SUMÁRIO

1. OBESIDADE INFANTIL: ASPECTOS GERAIS E RELEVÂNCIA CLÍNICA .................................................. 3

2. TRANSIÇÃO NUTRICIONAL, OBESIDADE E FOME OCULTA ............................................................... 6

3. FISIOPATOLOGIA .............................................................................................................................. 8

4. OBESIDADE E HIPOVITAMINOSE D ................................................................................................. 10

5. CONCLUSÃO ................................................................................................................................... 10

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................................... 11

ANEXO ........................................................................................................................................... 13

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1. OBESIDADE INFANTIL: ASPECTOS GERAIS E RELEVÂNCIA CLÍNICA

A obesidade, condição adversa à saúde humana, é definida como um distúrbio do metabolismo

energético que se caracteriza por acúmulo anormal ou excessivo de gordura no organismo,

decorrente da interação entre fatores genéticos, ambientais e comportamentais. O balanço

energético positivo, determinado pela ingestão aumentada de macronutrientes, gasto energético

reduzido e pela termogênese dos alimentos, resultará em ganho de peso corporal na forma de

gordura1. Partindo-se da estimativa de que o excesso de peso e a obesidade causam em todo o

mundo 3,4 milhões de mortes, com perda de 3,8% dos anos de vida ajustados por incapacidade2

dados recentes informam a dimensão global do problema: a proporção de adultos obesos

aumentou entre 1980 e 2013 de 28,8% para 36,9% em homens e de 29,8% para 38,0% em

mulheres. A prevalência de sobrepeso e obesidade também aumentou em crianças e adolescentes

em países em desenvolvimento, passando de 8,1% para 12,9% para meninos e de 8,4% para 13,4%

em meninas3.

No tocante à obesidade infantil, sua prevalência tem crescido tanto nos países desenvolvidos como

nos países em desenvolvimento, caracterizando-se como grave problema de saúde pública. A

Organização Mundial de Saúde (OMS) considera a obesidade infantil uma epidemia, sendo

reconhecido como um dos desafios mais sérios deste século, chamando a sua atenção pela sua

relevância clínica, epidemiológica e social, devendo ser uma prioridade global. Para 2014, a OMS

estimou em mais de 42 milhões o número de crianças abaixo de cinco anos com excesso de peso

no mundo, representando uma sobrecarga sobre os serviços de saúde atuais e futuros, dado o seu

caráter de cronicidade4. Estudo de tendência temporal americano acusou prevalência de excesso

de peso em 8,1% para lactentes e 16,9% para crianças de dois a 19 anos em 2011/12. No entanto,

na comparação com o período anterior (2003/04), não foram observadas mudanças significativas

nas prevalências desses grupos etários, demonstrando a importância da implantação de políticas

de vigilância voltadas para essas crianças5. No Brasil, dados do IBGE extraídos por meio da Pesquisa

Nacional de Saúde (PNS 2013) revelam que 56,9% dos brasileiros com 18 anos ou mais estão acima

do peso, representando o total de 82 milhões de pessoas6. Para a faixa etária pediátrica, estudos

nacionais demonstram prevalências de excesso de peso que variam de 10,8% a 33,8% em

diferentes regiões7.

Do ponto de vista etiológico, a obesidade é classificada nas formas exógena, marcada pelo

desequilíbrio entre aumento de ingestão de calorias e gasto energético reduzido, e a forma

endógena, associada a doenças genéticas e hormonais, sobretudo disfunções da tireoide,

pâncreas e suprarrenal. As causas exógenas de obesidade representam mais de 95% dos casos e

a adequada distinção entre essas duas causas se mostra fundamental, uma vez que a sua

abordagem difere substancialmente em função da forma etiológica presente, com foco na

correção do distúrbio de base8.

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No organismo, o equilíbrio energético é controlado por meio de um sistema neuro-hormonal,

sendo a leptina e a insulina elementos essenciais nesse controle. Tanto a insulina quanto a leptina

são produzidas em proporção à massa adiposa presente. A leptina é produzida no tecido adiposo

branco e atua nos receptores expressos no hipotálamo para promover a sensação de saciedade e

regular o balanço energético. No entanto, em elevadas concentrações séricas, a leptina não

consegue exercer essa ação devido ao surgimento de resistência em seus receptores, que limita o

seu efeito anoréxico. Já a insulina é produzida pelas células beta do pâncreas e a sua concentração

sérica é proporcional à adiposidade. A insulina, a partir do seu efeito anabólico, aumenta a

captação de glicose e a queda da glicemia, provocando o aumento do apetite. A insulina tem

função essencial no SNC para estimular a saciedade, aumentar o gasto energético e regular a ação

da leptina8.

Fatores neuronais estão envolvidos no mecanismo de controle metabólico. O controle na ingestão

de nutrientes e a resposta ao estado de equilíbrio homeostático dependem de uma série de sinais

periféricos, os quais agem diretamente sobre o SNC, levando a respostas adaptativas apropriadas.

A ingestão alimentar e o gasto energético são regulados pela região hipotalâmica do cérebro. A

expressão do apetite também é quimicamente codificada no hipotálamo e por meio de grupos de

neuropeptídeos envolvidos nos processos orexígenos e anorexígenos. Os neurônios que expressam

esses neuropeptídeos interagem também com sinais periféricos, tais como leptina, insulina, grelina

e os glucocorticoides, agindo assim na regulação do controle alimentar e do gasto energético8.

Fatores intestinais também estão envolvidos na obesidade. A absorção ou a presença de

alimento no trato gastrintestinal contribuem para a modulação do apetite e para a regulação de

energia. A colecistocinina, um peptídeo intestinal, age na promoção da saciedade prandial. Isso

ocorre em função da liberação de colecistocinina liberada pelas células I do trato gastrintestinal

em resposta à existência de gorduras e proteínas no intestino. A colecistocinina, além de inibir a

ingestão alimentar, também induz a secreção pancreática e biliar e a contração vesicular. Admite-

se que o peptídeo Y seja expresso pelas células da mucosa intestinal a partir de uma regulação

neuronal, já que os seus níveis aumentam quase imediatamente após a ingestão de alimentos.

Os indivíduos obesos têm menos elevação dos níveis de peptídeo Y pós-prandial, principalmente

após refeições noturnas8.

Ao longo da vida existem determinados períodos críticos nos quais pode ocorrer aumento do

número de células adiposas – hiperplasia adipocitária. A fase intrauterina e os dois primeiros

anos de vida são os períodos de risco nos quais esse fenômeno se instala devido à programação

metabólica secundária aos estímulos dietéticos e hormonais ali presentes. Em relação à

obesidade, um dos períodos críticos para sua manifestação tem sido observado em crianças de

sete a nove anos de idade. Também na adolescência esse tipo de obesidade hiperplásica

adquirida na infância manifesta-se com frequência. Esse aumento do número de células

adiposas no organismo explica a dificuldade de perda de peso vivida por esses jovens e gera uma

tendência natural à obesidade futura8.

O aumento verificado nas taxas de obesidade indica a poderosa participação do ambiente no

programa genético – populações consideradas geneticamente estáveis vêm apresentando

crescimento na incidência de obesos. Também fatores como peso ao nascer, duração de

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aleitamento natural, tipo de amamentação, início de introdução e tipo de alimentos

complementares oferecidos às crianças influenciam na programação metabólica relativa aos

adipócitos. Durante a gravidez, os hábitos nutricionais da mãe podem modificar a composição

corporal do feto em desenvolvimento. Condições intrauterinas adversas tais como diabetes e/ou a

obesidade materna relacionam-se a recém-nascidos grandes para a idade gestacional, sendo

importantes fatores de risco para o desenvolvimento futuro de obesidade, hipertensão arterial e

até mesmo diabetes7,8. Já crianças submetidas à restrição de crescimento intrauterino, pequenas

para a idade gestacional, apresentam alto risco de desenvolvimento da síndrome metabólica

originada ainda na fase fetal9.

Alguns fatores são determinantes para o estabelecimento da obesidade na infância: o desmame

precoce e a introdução de alimentos inadequados; utilização de fórmulas lácteas

inadequadamente preparadas; distúrbios do comportamento alimentar; e relação familiar

problemática7. Especificamente em relação aos prematuros, a introdução de alimentos

complementares deve respeitar a idade gestacional corrigida, idealmente para seis meses e nunca

antes dos quatro meses para o seu início, devido à imaturidade dos sistemas neurológico e

digestivo da criança10.

A obesidade infantil é um importante fator de risco para doenças crônico-degenerativas na idade

adulta, sendo importante a sua identificação precoce em crianças para a redução do risco de se

tornarem adultos obesos. Diversas doenças encontram-se associadas à obesidade, como

hipertensão arterial, dislipidemias, síndrome metabólica, problemas ortopédicos (osteoartrite,

desvio de coluna, pés planos), diabetes tipo II e alguns tipos de cânceres, com alta taxa de

mortalidade relacionada à obesidade. Sabe-se que quanto maior o tempo de exposição à

obesidade, maior a chance de ocorrência de complicações. A criança obesa também tem maior

risco para algumas doenças e distúrbios psicossociais, provocados pelo estigma da obesidade, que

são de grande relevância nessa fase de estruturação da personalidade. Elas frequentemente

exibem baixa autoestima, afetando o desempenho escolar e relacionamentos, levando a

consequências psicológicas de longo prazo7,8.

Por ser uma doença complexa e multifatorial, outros aspectos mostram-se importantes na gênese

da obesidade infantil, tais como estrato social e estrutura familiar na qual a criança se encontra

inserida. A dinâmica familiar encontra-se inteiramente relacionada ao processo de saúde e doença.

E o bom estabelecimento do vínculo afetivo entre os pais e a criança torna-se fundamental na

prevenção da obesidade. Uma família que funciona adequada ou inadequadamente pode

contribuir para o desenvolvimento de doenças e/ou prevenir seus efeitos. Outra situação muito

comum diz respeito àquelas mães que passam a maior parte do tempo fora de casa e adotam a

prática de ofertar aos filhos guloseimas visando compensar sua ausência prolongada. Cabe ao

pediatra estar atento a esse tipo de ligação afetiva e buscar interferir nessa dinâmica

desfavorável7,8.

Além disso, a adoção de hábitos alimentares seletivos por parte das crianças está diretamente

correlacionada com o desenvolvimento do excesso de peso. O aumento do consumo de

carboidratos da dieta (açúcar, farinhas, massas e refrigerantes) contribui para o aumento de peso.

Por fim, o grau de atividade física merece ser considerado, diante do tempo excessivo gasto com

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jogos eletrônicos e computadores em detrimento de atividades esportivas, predispondo ao

sedentarismo. Estudos demonstram que a inatividade física na infância está diretamente

relacionada ao aumento da obesidade, numa associação diretamente proporcional entre o tempo

de exposição às telas e games e o excesso de peso dessas crianças11.

O diagnóstico de sobrepeso e obesidade em crianças varia de acordo com a idade (0-5 anos

incompletos, cinco a 10 anos incompletos e adolescentes), o índice antropométrico a ser utilizado

(peso/estatura, peso/idade, IMC/idade) e os valores de referência adotados (percentil ou escore Z),

conforme o Quadro 1.

Quadro 1. Classificação diagnóstica de sobrepeso e obesidade por idade e de acordo com o índice

antropométrico utilizado

VALORES DE

REFERÊNCIA

ÍNDICES ANTROPOMÉTRICOS

0 a 5 anos incompletos 5 a 10 anos incompletos 10 a 18 anos

incompletos

Peso/

estatura

IMC/

idade Peso/idade

IMC/

idade IMC/idade

>Percentil

85 e

<percenti

l

97

>Escore

z +1 e

<escore

z +2

Risco de

sobrepeso

Risco de

sobrepeso

Peso

adequado

para a

idade

Sobrepeso Sobrepeso

>Percentil

97 e

<percenti

l

99,9

>Escore

z +2 e

<escore

z +3

Sobrepeso Sobrepeso

Peso

elevado

para a

idade

Obesidade Obesidade

>Percentil

99,9

>Escore

z +3 Obesidade Obesidade

Peso

elevado

para a

idade

Obesidade

grave

Obesidade

grave

Fonte: Ministério da Saúde. 2011 (adaptado). Disponível em: <http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/publicacoes/orientacoes_coleta_analise_dados_ antropometricos.pdf>

2. TRANSIÇÃO NUTRICIONAL, OBESIDADE E FOME OCULTA

O fenômeno epidemiológico denominado “transição nutricional” caracteriza-se por uma inversão

nos padrões de distribuição das condições nutricionais na linha do tempo, mostrando-se

diretamente influenciado por diversos fatores econômicos e sociais, a partir das mudanças

verificadas na modernização e globalização presentes nos modos de vida dos diferentes povos12.

Partindo de uma condição de atraso em direção à modernidade, esse fenômeno nutricional

caracteriza-se por uma migração da condição prevalente de escassez (desnutrição proteico-

energética) para o excesso de calorias (obesidade), contribuindo, dessa forma, para o aumento das

doenças crônicas não transmissíveis em todo o mundo.

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No Brasil, esse fenômeno tem sido observado nas últimas décadas, mesmo diante das diferenças

regionais apresentadas, e tem sido associado a fatores diversos como renda familiar, escolaridade

dos pais, peso ao nascer, estilo de vida e dietas inadequadas. Dados do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o excesso de peso foi encontrado com grande

frequência, a partir de cinco anos de idade, em todos os grupos de renda e em todas as regiões

brasileiras. Esse relatório notificou que uma em cada três crianças de cinco a nove anos estava

acima do peso recomendado pela OMS. O número de crianças acima do peso mais que dobrou

entre 1989 e 2009, passando de 15% para 34,8%. Analisando conjuntamente os dados de

obesidade e sobrepeso, apurou-se que 51,4% dos meninos e 43,8% das meninas apresentavam

algum grau de acometimento. O número de obesos aumentou mais de 300% nesse mesmo grupo

etário, indo de 4,1% em 1989 para 16,6% em 2008-2009. Entre as meninas, essa variação foi ainda

maior, de 11,9% para 32%13.

Gráfico 1. Evolução temporal de indicadores antropométricos na população brasileira de 5 a 9 anos

de idade, por sexo.

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Estudo Nacional da Despesa Familiar 1974-1975 e Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009; Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição, Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição 198913.

Outro ponto de destaque no tocante à condição de transição nutricional das crianças brasileiras é

que, ao mesmo tempo em que se assiste à redução contínua dos casos de desnutrição proteico-

energética e aumento nas taxas de obesidade no país, verifica-se, em paralelo, uma situação

paradoxal marcada pelo aumento de carências nutricionais por déficit de micronutrientes – a

chamada “fome oculta”.

A fome oculta é caracterizada por uma carência silenciosa, não manifesta, de um ou mais

micronutrientes no organismo. Segundo a OMS, trata-se do problema nutricional mais prevalente

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em todo o mundo, envolvendo cerca de dois bilhões de pessoas14. Ela ocorre quando a qualidade

dos alimentos consumidos se apresenta deficiente em micronutrientes - vitaminas e minerais –

que atuam nas vias metabólicas e funções fisiológicas do organismo, requisitos estes necessários

ao pleno crescimento e desenvolvimento das crianças.

Essa deficiência marginal, uma vez instalada, irá depletar silenciosamente os estoques desses

micronutrientes, sem sinais e/ou sintomas aparentes, até o esgotamento das suas reservas, muitas

vezes trazendo consigo sequelas irreversíveis, no momento em que o estágio mais avançado da

deficiência é alcançado. Tais prejuízos estão diretamente relacionados à precocidade de instalação

e exposição prolongada à deficiência.

Embora a fome oculta possa ocorrer devido à deficiência de um único micronutriente específico, a

ocorrência de formas combinadas entre deficiências de vitaminas e/ou minerais mostra-se comum,

em razão da inadequação dietética presente na alimentação. Dessa forma, cabe salientar que

carências múltiplas podem estar mascaradas pela carência maior de um único micronutriente,

sobretudo em momentos de mais demanda verificados durante os períodos de mais crescimento

do organismo, como nos dois primeiros anos de vida e na adolescência.

Crianças obesas, em particular, merecem um olhar especial em relação à alta prevalência de fome

oculta, sendo consideradas um grupo de muita vulnerabilidade ao problema. A realidade

vivenciada pelos obesos, marcada pelo excesso de oferta calórica na dieta, frequentemente traz

consigo uma falsa imagem de uma criança bem nutrida, dificultando a sua abordagem precoce.

Seus pais e cuidadores associam o excesso de peso como sinal de saúde, não sendo capazes de

reconhecer a obesidade como um problema a ser enfrentado. E, ainda mais, informar-lhes a real

possibilidade de coexistência de uma forma de desnutrição ligada à carência de micronutrientes,

carência está sem sintomatologia aparente, mostra-se um grande desafio para o profissional de

saúde que assiste essas crianças.

Entre as microdeficiências relacionadas à obesidade infantil, duas delas merecem destaque: a

ferropenia e a deficiência de vitamina D, lembrando que não raramente elas poderão coexistir no

mesmo paciente, sobretudo nos lactentes.

3. FISIOPATOLOGIA

Embora o ferro seja o elemento mineral mais abundante no planeta, contraditoriamente a

ferropenia é considerada a carência nutricional de mais prevalência em todo o mundo. A

deficiência de ferro é marcada por um desequilíbrio entre ingestão e consumo do mineral, entre a

quantidade de ferro biologicamente disponível e sua necessidade orgânica. Essa deficiência surge a

partir do balanço negativo verificado entre a quantidade de ferro biodisponível na dieta e as

necessidades apresentadas pelo organismo ou quando as reservas de ferro do organismo são

insuficientes para a síntese normal de componentes que dependem desse mineral.

A instalação da deficiência de ferro ocorre em três estágios sucessivos. De início, há diminuição dos

níveis de ferro no organismo, pois o aporte advindo da dieta se mostra incapaz de suprir as

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necessidades do elemento, com redução nos seus depósitos, observada a partir da queda na

ferritina sérica. A seguir, instala-se a segunda fase, ainda na forma oculta: a eritropoiese deficiente,

caracterizada por diminuição do ferro sérico, redução na saturação de transferrina e elevação da

protoporfirina eritrocitária. No terceiro estágio, mais tardio, ocorrem os sinais e sintomas

secundários à anemia ferropriva, devido à redução na síntese da hemoglobina, marcada pelas

hemácias do tipo microcíticas e hipocrômicas. O déficit de ferro também leva a alterações de pele

e mucosas, baixo peso para a idade, alterações gastrintestinais, redução do trabalho físico e

mental, perda do apetite, adinamia e diminuição da função imunitária. Do ponto de vista

neurológico, a deficiência de ferro pode causar alterações na função cerebral, repercutindo em

prejuízos no desenvolvimento psicológico e cognitivo15.

Nesse sentido, deve-se ressaltar a associação descrita entre a obesidade e a deficiência de ferro,

mesmo entre aquelas crianças com ingestão adequada desse mineral na dieta. A existência de um

estágio inflamatório crônico em crianças obesas, gerado a partir dos fatores inflamatórios

secretados pelos adipócitos, resulta em menos absorção de ferro por parte dos enterócitos. A

explicação está na ação da hepcidina, hormônio peptídico sintetizado no fígado e detectável no

sangue e na urina, regulador da concentração de ferro no organismo. Doenças inflamatórias

aumentam a hepcidina, diminuindo a absorção de ferro no intestino. Estudos em crianças

ressaltaram relação inversa entre o índice de massa corporal (IMC) e a quantidade de ferro

corporal, mesmo após tentativa de suplementação medicamentosa16.

Figura 1. Mecanismo de regulação celular do ferro pela hepcidina

Idealmente, a detecção precoce da ferropenia, principalmente nas fases iniciais da deficiência,

precedentes da sua forma sintomática – a anemia –, deve ser uma meta a ser perseguida pelo

pediatra. Sabe-se que o exame físico tem baixa sensibilidade para determinação da anemia,

alertando para a necessidade de propedêutica complementar para os grupos de risco, na tentativa

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de se firmar um diagnóstico de deficiência de ferro ainda na sua fase oculta, gerando, assim,

melhor prognóstico para essas crianças17.

4. OBESIDADE E HIPOVITAMINOSE D

Outra forma de fome oculta que vem sendo atualmente detectada nas crianças portadoras de

obesidade é a deficiência de vitamina D. Sabe-se que a vitamina D é, na verdade, um pró-hormônio

responsável pela homeostase do cálcio e fósforo, agindo sobre o metabolismo ósseo e sendo

encontrado no organismo sob duas formas: a ergocalciferol (D2) e colicalciferol (D3). Após sofrer

processo de hidroxilação no fígado e rim ela se transforma na forma ativa: 1,25-OH-calciferol.

Receptores desse hormônio estão presentes em diferentes órgãos e tecidos do corpo; e várias

ações não relacionadas ao metabolismo mineral também vêm sendo a ele imputadas, denotando a

importância crescente atribuída à vitamina D. Sua deficiência está associada à diminuição da força

e da massa muscular, com prejuízo do equilíbrio, propensão a doenças cardiovasculares e diversos

tipos de câncer, além de asma, dermatite atópica, doença inflamatória intestinal, esquizofrenia,

depressão e artrite reumatoide18.

Sabe-se que sua síntese acontece na região cutânea por ação direta dos raios ultravioletas sobre a

pele e somente cerca de 10% das necessidades provêm de alimentos fontes da vitamina,

especialmente peixes marinhos. O leite materno possui baixas concentrações de vitamina D, sendo

indicada a sua suplementação profilática a partir da primeira semana de vida na dose de 400

UI/dia no primeiro ano e 600 UI/dia no segundo ano de vida18,19.

Apesar de a deficiência de vitamina D ser mais comum em crianças desnutridas e portadoras de

doenças crônicas renais ou hepáticas, alguns grupos especiais são considerados de risco para a

hipovitaminose D, incluindo as crianças portadoras de obesidade18. O mecanismo para essa

deficiência relaciona-se ao sequestro promovido pelas células gordurosas do tecido adiposo devido

à maior afinidade das mesmas pela vitamina D. Crianças obesas devem receber entre duas e três

vezes a dose recomendada para sua faixa etária para atender às suas necessidades básicas diárias

de vitamina D19.

5. CONCLUSÃO

A obesidade infantil tem importância crescente na prática do pediatra e, devido ao seu caráter

multifatorial, sua abordagem frequentemente exige atendimento em equipe multiprofissional

(nutrólogo, endocrinologista, ortopedista, geneticista) e interdisciplinar (nutricionista,

fonoaudiólogo, psicólogo, terapeuta ocupacional, educador físico). A tradição cultural de a criança

obesa estar associada a excesso de nutrientes e, portanto, estar bem-nutrida deve ser

desmitificada. A obesidade deve ser encarada como doença e fator de risco para deficiência de

micronutrientes – a fome oculta. Em especial, o profissional de saúde deve considerar a

superposição de deficiência de ferro e vitamina D em crianças obesas e buscar a identificação

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precoce dessas carências, ainda na sua forma assintomática, pois o diagnóstico precoce e o

tratamento adequado têm forte impacto sobre a saúde física e mental, prevenindo danos muitas

vezes irreversíveis.

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12. Kac G, Velásquez-Meléndez G. A transição nutricional e a epidemiologia da obesidade na América

Latina. Cad Saúde Pública. 2003; 19(Suppl 1):S4-S5. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-

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13. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa de orçamentos familiares: 2008-2009.

Antropometria e estado nutricional de crianças, adolescentes e adultos no Brasil, 2010. Disponível em:

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14. WHO. Countries vow to combat malnutrition through firm policies and actions. Media Centre

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16. Dao MC, Meydani SN. Iron biology, immunology, aging, and obesity: four fields connected by the small

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17. Capanema FD, Cerqueira Filho LC, Pedrosa RM, Drumond CA, Norton RC, Lamounier JA. Acurácia do

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Page 13: OBESIDADE INFANTIL E FOME OCULTA ASSOCIAÇÃO ...antropometricos.pdf> 2. TRANSIÇÃO NUTRICIONAL, OBESIDADE E FOME OCULTA O fenômeno epidemiológico denominado “transição nutricional”

13

ANEXO

Referências laboratoriais para deficiência de vitamina D e anemia ferropriva (AF) em crianças

Quadro 2. Critérios laboratoriais para definição de suficiência de vitamina D de acordo com

diferentes entidades

Diagnóstico*

Global Consensus on

Prevention and

Management of

Nutritional Rickets

(2016)

Endocrine

Society Clinical

Practice

Guideline (2011)

American Academy

of Pediatrics

(2008)

Suficiência > 20 30 – 100 21 – 100

Insuficiência 12 – 20 21 – 29 16 – 20

Deficiência < 12 < 20 < 15

* Níveis séricos de 25-OH-vitamina D (ng/mL)

Quadro 3. Diagnóstico laboratorial de AF

VCN. HCM Reduzidos

RDW Elevado

CHr/RetHe Reduzidos

% de hemácias hipocrômicas Elevada

Contagem de reticulócitos Reduzida em relação à anemia

Ferro sérico Reduzido

TIBC Elevado

Saturação de transferrina Reduzida

Ferritina sérica Reduzida

sTfR Elevado

sTfR/logFerritina Elevado

ZPP Elevado

VCM: volume corpuscular médio; HCM: hemoglobina corpuscular média; RDW: índice de anisocitose; CHr, RetHe: conteúdo de hemoglobina nos reticulócitos; TIBC: capacidade total de ligação do ferro à transferrina; sRfR: receptor solúvel de transferrina; ZPP: zincoprotoporfirina.