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76 v7 DE MAIO DE 2009 SAÚDE SOCIEDADE AEROPORTO DE XANGAI Equipas clínicas examinam passageiros chegados do México, antes de a China suspender os voos de e para aquele país
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O vírus traiçoeiro

Mar 26, 2016

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Vera Costa

Sem que ninguém o aguardasse, o H1N1 tomou conta de um mundo atemorizado e afundado em certezas
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76 v 7 DE MAIO DE 2009

SAÚDE SOCIEDADE

AEROPORTO DE XANGAI Equipas clínicas examinam passageiros chegados do México, antes de a China suspender os voos de e para aquele país

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Vai matar-nos a fome e não o vírus.» É este o medo verbalizado nas ruas de Playa del Carmen, uma das principais estâncias turísticas mexicanas.

O sector hoteleiro receia as consequên-cias da epidemia de gripe que surgiu no início de Abril, no país de Zapata, matando pelo menos 29 pessoas e afectando mais de setecentas. Passada a fase mais crítica, temem-se os efeitos num dos pilares da economia do México.

Noutra latitude e escala, pode dizer-se que os tormentos de quem chega de terras mexicanas não acabam quando se aterra em Portugal. Com ou sem vestígios de gri-pe. Uma passageira de um voo charter que pousou em Lisboa no último dia 28, descre-ve situações anedóticas – e ao mesmo tem-po sem piada nenhuma – que a seguir se passaram. «Dois amigos meus cancelaram jantares que tinham combinado comigo», explica Ana (nome fictício), 56 anos, pro-fessora de Enfermagem. «Um deles, que tem uma saúde frágil, até compreendo.

Mas o outro era uma pessoa informada. Liguei-lhe e ele: ‘Nhã nhã nhã e tal, a gente vê-se para a semana’», relata, com uma pi-tada de sarcasmo divertido na voz. O que ocorreu com a filha, sua companheira de voo, não lhe arranca os mesmos sorrisos. «Do escritório em que trabalha mandaram-na para casa, a ela e à colega que foi connos-co. Quarta e quinta-feira [29 e 30 de Abril] não trabalhou. Só voltou na segunda.»

O mesmo viria a acontecer a um gru-po de 60 a 80 funcionários da seguradora Mapfre, que aterraram na passada terça-feira, 5, em Lisboa, vindos de Cancun. Pe-rante os receios manifestados por vários trabalhadores, a administração da empre-sa aconselhou esses funcionários a perma-necerem em casa até dia 12.

AS RAZÕES DO MEDO«O medo é protector; o que me preocupa é o pânico», comenta a psiquiatra Maria Antónia Frasquilho. Mas será que o mun-do reagiu em excesso perante o surto desta nova gripe? Na última terça-feira, a Organização Mundial de Saúde (OMS)

Sem que ninguém o aguardasse, o H1N1 tomou conta de um mundo atemorizado e afundado

em incertezasPOR FRANCISCO GALOPE E SARA SÁ*

O vírus traiçoeiro

‘BICHO RARO’ O vírus da Gripe A (H1N1) junta três espécies – os humanos, os suínos e as aves

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continuava a classificar a progressão da Gripe A (H1N1) como muito preocupan-te, recomendando aos países o reforço da segurança. «Estão a ser tomadas medi-das que nunca tinham sido adoptadas», nota o pneumologista Filipe Froes. «Há um grande receio do desconhecido, do imprevisível.» Neste momento, o H1N1 é uma verdadeira incógnita. Veio dos por-cos, um animal capaz de conviver com ví-rus humanos e das aves – um «vaso-mis-turador», dizem os cientistas. Foi neste ambiente que surgiu esta nova estirpe que combina genes das três espécies ani-mais. Mas sabe-se ainda pouco sobre a sua taxa de infecção e de mortalidade – os casos fatais estão praticamente circuns-

critos ao México, com culpas atribuíveis à dificuldade de acesso aos cuidados de saúde. Em todo o mundo, terão morrido 31 pessoas infectadas com o H1N1. Só em Portugal e numa época de gripe normal, sucumbem, em média, 2 400 pessoas, de acordo com estimativas do Instituto Nacional de Saúde. O problema é que «estamos a assistir à entrada de um ví-rus novo na transmissão entre humanos, para o qual não há qualquer imunidade», sublinha a epidemiologista, do Instituto Gulbenkian de Ciência, Gabriela Gomes. Ou seja, este vírus apresenta uma gran-de vantagem competitiva: um enorme potencial para infectar pessoas. «Tudo indica que o H1N1 venha a ser o vírus do-minante na próxima gripe sazonal. Para entender o seu comportamento, será de-terminante analisar a próxima estação no Hemisfério Sul, sobretudo na Austrá-lia», explica Gabriela Gomes.

A História ensina também, recuando até à pandemia de 1918, que uma segunda ronda de infecção pode ser mais funesta do que a primeira. «Um dos cenários é sur-girem mutações no vírus, que pode combi-

nar-se com o da gripe sazonal, por exem-plo», alerta Filipe Froes.

MALHA LARGAPode dizer-se que se trata de um vírus com asas. E para o despistar, os voos oriundos do México, o foco original da gripe, e dos EUA, o segundo país em número de in-fecções, são sujeitos a uma visita das autoridades de saúde portuguesas. Ain-da a bordo, depois de terem preenchido o «cartão de localização», com os dados pessoais, contactos e identificação do lu-gar onde estiveram sentados no avião, os passageiros são recebidos por uma equi-pa da Direcção-Geral da Saúde (DGS), para esclarecimentos adicionais. Num voo da Orbest, vindo do México, também na última terça-feira, a tripulação optou por usar máscaras e luvas durante todo o percurso. De resto, o trajecto de 11 ho-ras decorreu na maior das tranquilidades, assegura Teresa Ribeiro, 64 anos, viajan-te experiente. No total, vindos daqueles dois países, aterraram na Portela, entre 20 de Abril e 3 de Maio, cerca de 6 mil pessoas. Vigilância é a palavra de ordem,

A reserva estratégica de medicamentos garante antivirais para 2,5 milhões de pessoas durante uma pandemia

DE CANCUN, COM MÁSCARA Quem aterra em Lisboa, vindo do México, recebe, ainda no avião, a visita de um delegado de saúde

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Forma-se uma nova estirpe, mistura de 4 vírus,ao ocorrerem todos simultaneamente no porco:

Como se designamas estirpesDescrevem-se segundo o tipode Hemaglutinina (H)e Neuraminidase (N)que têm. Exemplo: H3N2

Vírus da gripe

1234

H3N2 do porco (da Eurásia)H1N1 do porco (da América do Norte)H1N1 humanoH1N1 de aves (da América do Norte)

Hemaglutinina (nas aves há 15 tipos)

Neuraminidase (nas aves há 9 tipos)

Membrana

ARN

A evoloção das estirpes O porco dá-se bem com os vírus de aves e de humanos. Desta convivência pode resultar uma mistura explosiva

AVES

FONTE El País INFOGRAFIA VISÃO

HOMEM

1918 1957 1968 1998 2008

1918A estirpe H1N1 provenientedas aves infecta o Homeme substitui a estirpe anterior.Morrem 50 milhõesde pessoas

1918É descrita a gripe suína,transmitida pelo Homem

1998É descrita pela primeira veza estirpe H3N2 em porcosnorte-americanos; segundoparece, contagiada a partirdos seres humanos

2008A nova estirpepassa parao Homem(surto actualno México)

1957A estirpe H2N2passa paraos seres Humanos;1 milhão de mortos

1968Nova pandemia da estirpe H3N2 passa para o Homeme substitui a estirpe H2N2

As aves aquáticas, portadorasde dezenas de estirpes da gripe,são o reservatório natural da doença

Tipo de vírus da gripecomum H3N2:10% da população

H1N1: 90% da populaçãoA estirpe H2N2 é contagiadano Homem durante 10 anos

Antes de 1918, a gripehumana existe, mas nãose sabe de que tipo

H?N? H1N1

H1N1 H1N1H3N2 1

3 4

2

PORCOA gripe suínanão estavadescritaantes de 1918

H1N1

H2N2 H3N2

desde que foi accionado, a 24 de Abril, o Plano de Contingência para a Pandemia de Gripe – definido em 2006, no contexto da gripe das aves.

O controlo quer-se apertado, mas há zo-nas da rede que apresentam malhas largas.

«Existem muitos passageiros que estão a regressar do México, depois de terem fei-to escala em Nova Iorque, Madrid e Paris, e estes casos são mais difíceis de filtrar, quer à chegada a Lisboa, quer no aeroporto onde fazem escala. O risco maior está aí»,

adverte um funcionário de uma compa-nhia aérea, que pediu o anonimato.

Silvério do Canto passou através de uma dessas malhas. Depois de uma viagem a Acapulco e Vera Cruz, o colaborador do site de turismo Presstur regressou a Lisboa no domingo, 3, via Paris. O único controlo por que passou foi a medição da temperatura na Cidade do México. Está agora cinco dias em casa, a fazer uma «quarentena voluntária». Veio também do México o primeiro caso português confirmado de infecção pelo H1N1, uma mulher de 31 anos, da região de Lisboa. A turista apresentou um quadro clí-nico bastante ligeiro, mas, mesmo assim, dirigiu-se a uma unidade de saúde priva-da. A partir daí, foi monitorizada pela DGS e submetida a uma análise das secreções para confirmação do diagnóstico. O pro-blema resolveu-se sem qualquer recurso a medicamentos. «Quando a doente entrou no sistema já estava praticamente curada», avança Graça Freitas, da DGS.

Um cenário bem diferente daquele que acontece neste momento do outro lado da fronteira. Todos os infectados, bem como os seus contactos, são medicados com

MÉXICO As medidas tomadas não evitaram a morte, até terça-feira, de 29 pessoas

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antivirais e mantidos em casa. «Espanha apresenta um enquadramento muito par-ticular, com dezenas de casos positivos, transmissão secundária e fortes ligações ao México», clarifica Filipe Froes.

O QUE ESTÁ PARA VIRAs medidas de emergência encontram-se em marcha. «A máquina já estava montada e oleada para a gripe das aves», diz o médi-co Cipriano Justo, destacando que o nível de alerta nunca regressou ao zero. Aliás, a DGS prepara-se para o nível de alerta 6 – a pandemia declarada. Nesta situação, o contexto legislativo pode permitir, por exemplo, «o internamento compulsivo de doentes, acelerar o processo de aprovação de testes, a extensão da prescrição dos an-tivirais a crianças menores de um ano, ao contrário do indicado, e o encerramento de fronteiras», explica Filipe Froes.

Ao longo da última semana, aquele orga-nismo e as cinco regiões de saúde do País

têm estado a identificar os locais em que funcionarão os serviços de atendimento da gripe (SAG), destinados expressamen-te a doentes com sintomas gripais. Só o Norte deverá contar com três dezenas de unidades, e a Região de Saúde Lisboa e Vale do Tejo possui já 22 locais identificados. A funcionar 24 horas por dia, os SAG dis-põem de salas que permitem isolar doen-tes potencialmente infectados.

Cada unidade, que contará com uma equipa dedicada apenas aos casos de gri-pe, agregará, também, um centro de aten-dimento telefónico, para fazer a triagem de doentes. O objectivo, lê-se no plano de contingência, é «maximizar a eficiência dos serviços e minimizar o risco de trans-missão da doença aos portadores de outras patologias e aos profissionais» de saúde. Outro objectivo é evitar que as pessoas se desloquem em massa às urgências.

Já no início desta semana, os centros de saúde começaram a reforçar os seus stocks de máscaras cirúrgicas e luvas, ma-terial que deverá ser utilizado sempre que cheguem a estas instituições doentes que configurem casos para investigação do vírus H1N1. Quanto aos quatro hospitais de referência – São João (Porto), Santa Maria (Lisboa), Hospitais Universitários de Coimbra e D. Estefânia (Lisboa) –, re-

puseram, também, os stocks de materiais de protecção. Só a unidade portuense terá acrescentado 220 mil máscaras ao seu armazém.

A ministra da Saúde, Ana Jorge, tem ga-rantido, nos seus briefings diários com a Im-prensa, que Portugal dispõe de medicamen-tos em quantidade e qualidade suficientes para enfrentar uma pandemia. Aliás, no final da semana passada, o Ministério da Saúde reforçou essa reserva com mais dez mil doses do antiviral Relenza – que acres-cem a outras tantas de Tamiflu, adquiridas em 2006 e 2007. O grosso da reserva estra-tégica nacional é composto por fosfato de oseltamivir (a matéria-prima do Tamiflu) a granel, suficiente para garantir o tratamen-to a 2,5 milhões de pessoas durante uma pandemia. Esse importantíssimo recurso está guardado em contentores de sete qui-los, num local que, por razões de segurança, é mantido em segredo. Graça Freitas, da DGS, adiantou à VISÃO que já foi contrata-da uma farmacêutica para preparar as doses a distribuir – um processo que só ocorrerá se a epidemia alastrar em Portugal.

Caso seja declarada a pandemia, isto é, se o nível de ameaça avançar para a fase 6 – e como a reserva estratégica de medica-mentos, sobretudo antivirais, mas tam-bém antipiréticos, antibióticos e vacinas,

O H1N1 poderá ser o vírus dominante na próxima gripe sazonal

QUARENTENA À FORÇA Os hóspedes e funcionários do Hotel Metropark, em Hong Kong, foram proibidos de sair à rua durante dez dias

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é finita –, definir-se-ão grupos prioritá-rios para a administração dos remédios. À cabeça dessa lista estão cidadãos como o Presidente da República e o primeiro-ministro, além dos profissionais de saúde, das forças de segurança e de serviços que garantam a operacionalidade de infra-es-truturas vitais (energia, água, saneamen-to básico e transportes). «A ideia é que a sociedade continue a funcionar», diz o médico Cipriano Justo. O adjectivo «prio-ritário», anote-se, não se cola apenas a VIPs. As orientações estratégicas dão uma primazia clara a portadores de doenças crónicas mais susceptíveis de sofrer com-plicações graves associadas ao vírus.

Muitos portugueses acorreram às far-mácias para se abastecerem de antivirais, tentando mesmo adquiri-los sem recei-ta médica. «O disparate surge por causa

da OMS, que, com o aumento dos níveis de alerta, leva os cidadãos e os governos a comprar», comentou o bastonário da Ordem dos Médicos. Citado pelo Públi-co, Pedro Nunes atribuiu o pânico gera-do à confusão sobre os níveis de alerta, relacionados, na verdade, com o grau de disseminação da doença e não com a sua gravidade.

Exagero ou não, o certo é que há quem esteja no epicentro do problema e mal dê por ele, como é o caso de Martha Appelt, 23 anos, natural de Vila Nova de Gaia. A viver desde Janeiro no México, onde é voluntá-ria em projectos destinados a meninos de rua, só deu pela epidemia de gripe por um telefonema da mãe. Quando, em Chiapas, onde está, começaram a circular notícias sobre a doença, não houve sustos. Um amigo viajava de autocarro e o motorista

desligou o rádio precisamente na altura em que se transmitiam informações sobre o vírus. «As pessoas desconfiam bastante das entidades públicas, dos políticos, da Imprensa», diz. «Acham que nem tudo o que lhes dizem é verdade e que se escon-dem sempre outros interesses.» Daí a rela-cionarem a gripe com a crise económica, o tráfico de droga ou o mítico chupa-cabras é um passo.

Nos últimos dias, porém, o cenário mu-dou. Escolas encerraram, e o comércio e a restauração seguiram-lhes os passos. A decisão não é unânime, mas nota-se no quotidiano. Apesar, diz Martha Appelt, de haver «quem continue indiferente e a di-vertir-se, ao ponto de partilhar os copos com os amigos». * Com Miguel Carvalho, Luís Ribeiro, Rita Monteze Vera Mendão Costa

Um vírus (quase) global Como o A H1N1 se foi espalhando pelo mundo, a partir do México

Fases de alerta da Organização Mundial de Saúde

FONTE OMS INFOGRAFIA MT/VISÃO

México

Canadá

Fase 1

Colômbia

Reino Unido

Irlanda

França

Dinamarca

AlemanhaÁustria

ItáliaSuíça

Holanda

Israel

Hong Kong

Coreia do Sul

NovaZelândia

Espanha

PORTUGAL

Costa Rica

El Salvador

EUA

Nenhum vírus animal infectou seres humanos

Fase 2

Infecção de pessoas por um vírus animal. Potencial ameaça pandémica

Fase 3

Casos esporádicos ou pequenos focos de doença, mas sem capacidade de transmissão de pessoa a pessoa

Fase 4

Transmissão de pessoa a pessoa, capaz de causar pequenos surtos. Aumento significativo do risco de pandemia

Fase 5

Declarada a 29 de AbrilO vírus transmite-se de pessoa a pessoa em pelo menos dois países de uma região da OMS. A pandemia é iminente

Fase 6

Começo da pandemia

1 São criados os Serviços de Atendimento da Gripe (SAG) em centros de saúde: 30, a norte, e 22, em Lisboa e Vale do Tejo

2 Accionada a reserva estratégica de medicamentos: antivirais distribuídos

3 Em casos extremos, podem ser encerradas escolas e outros locais públicos e fechadas as fronteiras

5

10

50

100

500

850

N.º casosconfirmados

Como a epidemia alastrou

O que acontecerá em Portugal

25 Abril2627282930

1 Maio2345

Mortes

25 38 73 105 148 257 367 658 898 1085

1490

---7881017202631

Casos confirmadosN.º Países afectados Dias22

47

911

1316

182121

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Margaret ChanDirectora-geral da Organização Mundial de Saúde

«Sabemos que se vai passar algo, mas não o quê», diz a especialista

‘ É cedo para previsões’

Há críticos que dizem que a OMS, os gover-nos e os media exageraram a sua actuação nesta crise. Sempre que surge uma epidemia de uma nova doença, há dois grupos de comentá-rios: uns dizem que se está a fazer muito pouco e muito tarde; e outros que se está a exagerar.

E a senhora, o que acha?Aprendemos com a Síndroma Respira-tória Aguda Grave (SRAG), em 2003, e com o H5N1 [causador da gripe aviária], nos últimos anos, que ambos são amea-ças para as pessoas. Repare no H5N1: de-monstrou que tem uma capacidade letal de 50%, ou seja, que metade das pessoas infectadas morrem. E a SRAG expandiu-se rapidamente pelo mundo e provocou medo, angústia e danos económicos im-portantes. Cada nova doença deve ser tratada com energia e não devemos dar-lhe tréguas. Sendo verdade que, neste momento, este vírus é leve, na maioria dos países, ainda não vimos todo o es-pectro da doença. Quando apenas temos poucos casos, não podemos dizer que di-recção vai tomar.

Nem se aventura a prever?Estamos numa fase muito prematu-ra desta nova doença e, por isso, digo que a nossa obrigação é mantermo- -nos atentos e não deixar escapar nada. A pandemia de 1918 também começou como uma doença muito leve e teve um período de acalmia em que parecia ter recuado. Mas voltou e causou milhões de doentes e mortos. E isto é uma coisa que pretendo destacar: os vírus da gripe são muito imprevisíveis, muito enganadores. Não devemos con-fiar. Nos últimos anos, tivemos muita preparação. Estamos a quilómetros de distância do que estávamos há cinco anos, mas também temos um longo cami-nho a percorrer.

Parece que a situação, nos últimos dias, es-tabilizou. Continuam a surgir, a conta-gotas, novos casos, em novos países, mas dentro das pautas preestabelecidas. No entanto, quase não foram detectados casos nos paí-ses do Sul. A que se deve isso?Ninguém tem uma resposta, mas não é disparatado dizer que pode ser devido ao facto de o vírus ainda não ter chegado a es-ses países ou ao facto de, caso tenha chega-do, não ter ainda sido detectado. Mas, nos países do hemisfério sul, está a começar o Inverno e esta é uma estação em que ocor-rem picos de gripe sazonal. E temos de ser muito cuidadosos. Ninguém pode prever nem dizer agora o que vai acontecer quan-do se verificarem, nos países do Sul, picos de gripe e a chegada desta nova estirpe – e isso vai acontecer, sem qualquer dúvida.

Ninguém o sabe. Porque, no Norte, hou-ve poucos casos, casos leves, mas não po-demos fechar os olhos. O mundo está tão ligado que sabemos que alguma coisa vai acontecer, mas não o quê.

O que lhe parece o anúncio do Centro de Con-trolo de Doenças da UE de que cerca de 40% da população será infectada pelo vírus?Na OMS, não fazemos futurologia. Pas-

sados 30 anos, tenho alguma experiência com vírus emer-gentes e posso dizer-lhe que cada um é diferente. É dema-siado cedo para fazer previ-sões.

Preocupa-a que o vírus tenha chegado ao Sudeste asiático e se possa recombinar com ou-tros, como o da gripe aviária?Naturalmente. Os vírus da gri-pe são promíscuos, e aprovei-tarão qualquer oportunidade para se misturar com outros e intercambiar genes. Por isso, estamos tão dependentes do Sudeste asiático e do hemisfé-rio sul em geral. Não podemos dar a oportunidade ao H1N1 de se misturar com outros vírus. Por isso estamos em alerta.

Esta possível pandemia está a ser compara-da com as anteriores. Faz sentido?A última pandemia ocorreu há 40 anos. Nessa altura, não tínhamos tanta popu-lação idosa, nem o HIV, nem tanta dia-betes, hipertensão ou cancro. Até este momento, o vírus tem-se mostrado suave, mas temos de ter cuidado quando chegar a populações com as caracterís-ticas que acabo de mencionar. Agora, há mais tuberculose, mais paludismo. Não sabemos o que pode acontecer com a sua combinação com estas doenças.

Há outros grupos de risco?Há muitos jovens adultos infectados, quando o normal é que a gripe infecte idosos e crianças. É um modelo parecido

com o da gripe de 1918, que co-meçou pelos jovens. O que não sabemos é se vai mudar. Pode ser que, num mês, este vírus desapa-reça, mas pode ficar como está ou agravar-se.

© El País, Emílio de Bonito 4/04/2009

‘Os vírus da gripe aproveitarão qualquer oportunidade para se misturar com outros’

PNEUMÓNICA «A gripe de 1918 também começou como uma doença muito leve»

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O QUE DISTINGUE O A (H1N1) DO VÍRUS QUE CAUSA A GRIPE SAZONAL?O vírus influenza A (H1N1) é um novo subtipo do vírus da gripe que afecta os humanos. Contém genes dos vírus do porco, das aves e das pessoas, numa combinação única. É esta a principal característica que o distingue do vírus causador da gripe normal.

OS SINTOMAS DESTA GRIPE SÃO DIFERENTES DOS DA GRIPE SAZONAL? Os sintomas – febre alta, tosse, arrepios de frio, fadiga, dores no corpo, na cabeça e na garganta, vómitos e diarreia – coincidem com os da gripe sazonal, mas a componente gastrointestinal surge particularmente acentuada.

QUAL O PERÍODO DE INCUBAÇÃO DO VÍRUS E O DE CONTÁGIO? O vírus pode ficar no organismo de 24 a 48 horas, até que apareçam os primeiros sintomas. O contágio ocorre ainda

Manual do H1N1Perguntas e respostas que tudo explicam

antes do aparecimento dos sintomas, e até sete dias após o início dos mesmos.

COMO SE PROPAGA?O vírus passa de pessoa para pessoa, através do ar. O contágio só é eficaz em distâncias inferiores a um metro. Os espirros, a tosse, as secreções nasais ou dos olhos são as formas de o vírus se espalhar. Tocar numa superfície contaminada e de seguida mexer nos olhos, boca ou nariz também pode levar à disseminação do vírus. COMO NOS PODEMOS

PROTEGER? Lavando as mãos com sabão, várias vezes por dia. Deve- -se evitar tocar nos olhos, no nariz e na boca. É importante comer bem, dormir o necessário e gerir o stresse, para manter o sistema imunitário de boa saúde e pronto a combater o vírus.

QUAIS SÃO OS VÍRUS MAIS PERIGOSOS? Aqueles com grande capacidade de invadir diferentes órgãos, facilidade

em multiplicar-se e de se disseminar. Tipicamente, os vírus influenza A, cujo reservatório natural são as aves aquáticas, são mais agressivos.

QUAL A DIFERENÇA ENTRE A NOVA ESTIRPE A (H1N1) E A GRIPE DOS PORCOS E A DAS AVES?A nova estirpe apresenta genes característicos dos humanos, dos porcos e das aves, pelo que é capaz de atingir cada uma destas três espécies. A gripe dos porcos

É importante comer bem, dormir o necessário e gerir o stresse, para manter o sistema imunitário de boa saúde e pronto a combater o vírus

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afecta preferencialmente estes animais, enquanto a das aves está adaptada a estas espécies. No caso da gripe das aves provocada pelo vírus H5N1, ocorreu transmissão destes animais para as pessoas, em situações de contacto muito próximo, e nunca ficou provada a transmissão pessoa a pessoa.

COMO É FEITO O DIAGNÓSTICO DO H1N1?Numa primeira fase, o diagnóstico faz-se pelos sintomas sugestivos de gripe. A prova final apenas surge após um exame laboratorial a material colhido no nariz. O teste implica uma análise genética ao vírus, de forma a que este seja completamente caracterizado.

HÁ MEDICAMENTOS PARA TRATAR A GRIPE?Há quatro antivirais, mas nem todos são eficazes para a totalidade dos vírus. No caso da gripe H1N1, o vírus é sensível aos medicamentos Tamiflu e Relenza. As substâncias impedem a sua replicação no organismo, tornando mais curto o período de duração da doença, diminuindo a severidade dos sintomas e estancando o contágio. É forçoso que sejam tomadas nas primeiras 24 a 48 horas após o aparecimentos dos sintomas iniciais.

HÁ RISCO DE APARECIMENTO DE RESISTÊNCIA AOS MEDICAMENTOS?Se não forem seguidas as indicações terapêuticas, há um sério risco de o vírus se ir adaptando aos medicamentos e de ganhar resistências. Este processo é semelhante ao que acontece com as bactérias e os antibióticos, e traduz-se numa adaptação dos organismos ao meio ambiente.

FONTES Centro de Controlo de Doenças; Filipe Froes, pneumologista e consultor da Direcção-Geral de Saúde; European Centre for Disease Prevention and Control; Ga-briela Gomes, epidemiologista do Instituto Gulbenkian de Ciência

QUANTO TEMPO O VÍRUS SOBREVIVE FORA DO CORPO?Varia muito, de acordo com as condições de humidade e temperatura. Estima-se que não sobreviva mais do que algumas horas.

FAZ SENTIDO TOMAR MEDICAMENTOS PREVENTIVAMENTE?A estratégia adoptada depende do contexto epidemiológico. Em Espanha, por exemplo, país com fortes ligações ao México, onde tudo começou, existem dezenas de casos confirmados e foi verificada a transmissão secundária – os infectados e as pessoas que com eles mantiveram contacto tomam, profilacticamente, os antivirais. Em Portugal,

o único caso confirmado da infecção (até ao fecho da edição, na terça-feira, 5) não tomou qualquer medicação, já que apresentou uma forma muito ligeira da doença.

A VACINA PARA A GRIPE SAZONAL É EFICAZ CONTRA O A (H1N1)? Quando existe uma coincidência total entre a estirpe causadora da gripe e a que faz parte da vacina, a protecção ultrapassa os 90 por cento. Se a coincidência não é total, mas parcial, ocorre uma certa protecção, dita cruzada. Na última vacina sazonal, estava incluída uma estirpe de um vírus H1N1. É de prever, portanto, que as pessoas imunizadas sejam mais resistentes a esta nova estirpe do que aquelas que não foram vacinadas.

QUANTAS PESSOAS MORREM NA GRIPE SAZONAL EM PORTUGAL? A época de gripe coincide com os meses do Outono e do Inverno. A mortalidade pode variar entre zero e muitos milhares. Em 2008/09 ocorreram cerca de 1 500

óbitos associados à gripe – 80% dos casos correspondendo a idosos. No ano anterior, a mortalidade foi próxima de zero. Em média, há 2 400 mortes anuais, em Portugal, causadas por gripe. Valores muito acima da média aconteceram em 1998/99, com mais de 5 mil mortos. Regra geral, há uma relação directa entre a percentagem da população afectada e a mortalidade.

SE MORREU TÃO POUCA GENTE ATÉ AGORA, PORQUE É QUE ESTÃO A SER TOMADAS TANTAS MEDIDAS?As precauções foram accionadas por se tratar de uma introdução rápida de um novo vírus causador de gripe nos humanos. O facto de se tratar de um organismo desconhecido, para o qual ninguém no mundo apresenta imunidade, fez temer o surgimento de uma nova pandemia. Um vírus novo tem a capacidade de infectar pessoas mesmo fora do período sazonal da gripe, ou seja, de atingir os dois hemisférios em simultâneo.

ESTÁ PREVISTO O APARECIMENTO DE UMA VACINA? Há a possibilidade de esta nova estirpe ser incluída na vacina para a gripe sazonal. A decisão ficará dependente do que se passar nos próximos meses, no hemisfério sul. Os cientistas precisam de perceber se esta estirpe será dominante relativamente às estirpes circulantes. De qualquer modo, a produção de uma vacina tardará, pelo menos, três meses.

No último Inverno, morreram cerca de 1 500 pessoas de gripe, em Portugal

Protecção Corrida às máscaras

A VISÃO quis comprar o produto dito mais resistente – mas já estava esgotado

Francisco George, director-geral de Saúde, diz que, por enquanto, não se justifica o uso de máscaras faciais no nosso país. Se tal for

necessário, acrescentou, a tutela indicará quais os modelos que devem ser adquiridos.

Mas a VISÃO foi às compras e encontrou já esgotadas as chamadas máscaras higiénicas, consideradas mais resistentes. Custam perto de €13 (seis unidades). Restaram-nos, pois,

as máscaras cirúrgicas, que comprámos por €7,30 (50 unidades).