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O TRIUNFO DO BICHO PAPÃO: REPRESENTAÇÕES DO MAL NO JORNALISMO DE
REVISTA
Mariana MENEZES
Centro de Comunicação e Letras, Universidade Presbiteriana
Mackenzie São Paulo, São Paulo, 01241-001, Brasil
e
Alexandre GUIMARÃES Centro de Comunicação e Letras, Universidade
Presbiteriana Mackenzie
São Paulo, São Paulo, 01241-001, Brasil
RESUMO
O jornalismo de revista sempre objetivou informar o leitor e
aproximar-se dele por meio de sua organização temática e narrativa,
buscando retratar notícias e matérias pertencentes ao universo do
público. O intuito do presente artigo é mostrar, por meio de um
breve estudo de caso, como se engendram os discursos e estratégias
narrativas utilizados para retratar a violência e atrair o leitor.
Além da conceituação do jornalismo de revista e das estratégias
discursivas utilizadas, analisa, mais à frente, a capa da edição
2055 da revista Veja, a imagem da matéria de capa, fragmentos do
texto jornalístico que revelam a associação entre a violência e
figuras e arquétipos dos contos de fadas. Por fim, realiza uma
reflexão sobre a relação simbiótica entre violência,
sensacionalismo e figuras arquetípicas das narrativas
populares.
Palavras-Chave: Jornalismo; Violência; Contos de fadas;
Sensacionalismo; Mídia Revista.
1. INTRODUÇÃO
O jornalismo, de acordo com Scalzo [1], divide-se entre o espaço
público revelado pelos jornais e a abordagem de temas mais próximos
ao cotidiano do leitor realizada pelas revistas. O jornalismo de
revista como se conhece atualmente cresceu no século XVIII, quando
o aumento da escolarização criou um público que queria se instruir
de forma leve e agradável sem depender dos livros, vistos como
instrumentos elitizados e pouco acessíveis [2]. Colecionáveis,
fáceis de carregar e com periodicidade diferenciada que permitem o
aprofundamento dos assuntos rapidamente tratados nos jornais. Essa
última característica diretamente no trabalho dos jornalistas [3]
uma vez que o aprofundamento dos temas nas matérias faz necessária
a criação de alguns artifícios para atrair a atenção do leitor.
Assim, constrói-se a estrutura básica e essencial da revista: o
texto precedido e complementado por imagens. A esse respeito,
Scalzo [4] afirma o seguinte:
Uma das grandes vantagens das revistas é que elas oferecem
muitos recursos gráficos para se contar uma história. E o bom
jornalista de revista é aquele que, de antemão, consegue visualizar
a matéria já editada na página. O texto, por mais perfeito que seja
é sempre melhor compreendido e atraente quando acompanhado de uma
boa fotografia ou de um infográfico bem feito.
A partir disso, é possível concluir que apesar de manter um
fazer jornalístico que preze pelo conteúdo, a produção de uma
revista é, antes de tudo, sensorial. Prender o leitor por meio de
apelos visuais muda a forma de fazer o texto, que para complementar
as imagens, pode utilizar os mais diversos tipos de recursos
narrativos que expandam as sensações provocadas pelas imagens:
assim, é possível construir uma matéria de grande repercussão
embasada na temática da violência, ou outra qualquer.
2. SENSACIONALISMO: CASADO COM A SOMBRA
O retrato da violência cotidiana surgiu com grande força e
destaque no século XVIII no Brasil e no exterior [5], como um
esforço dos jornais populares para causar no público uma sensação
maior de pertencimento e proximidade, que dependia da prática
sensacionalista, segundo Márcia Amaral [6]:
As práticas abrangidas pela caracterização sensacionalista tanto
podem significar o uso de artifícios inaceitáveis para a ética
jornalística, como também podem configurar-se numa estratégia de
comunicabilidade com seus leitores
O sensacionalismo pode ser utilizado como uma estratégia
complementar à narrativa por veículos de grande alcance que desejam
alcançar o maior número de pessoas possível dentro de seu escopo,
que além de informar-se, desejam entreter-se com a notícia, ter o
que comentar com as pessoas próximas e sentirem-se pertencentes à
uma comunidade [7]. Crimes, torturas, assassinatos, dramas ou temas
com grande potencial de escândalo e apelo emocional são conteúdos
básicos para a prática sensacionalista, que se define como Amaral
[8] descreve a seguir:
A prática sensacionalista é [...] nutriente psíquico, desviante
ideológico e descarga de pulsões instintivas. As notícias da
imprensa sensacionalista sentimentalizam as questões sociais, criam
penalização no lugar de descontentamento e constituem-se num
mecanismo [...] que particulariza os fenômenos sociais. [...] O
sensacionalismo está ligado ao exagero; à intensificação; à
exploração do extraordinário, à valorização de conteúdos
descontextualizados; à troca do essencial pelo supérfluo ou
pitoresco e inversão do conteúdo pela forma.
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A partir disso, é possível notar que sintaticamente, o texto da
revista dependente da imagem estaria mais sujeito a cair nos graus
mais altos de sensacionalismo, podendo valorizar a forma em
detrimento da informação objetivamente dada, inserindo grandes
traços de subjetividade e singularização temática. Angrimani [9]
trata da utilização oportuna da linguagem clichê dos textos
sensacionalistas, que faz uso de figuras e noções socialmente
correntes para ganhar maior atenção. Mesmo possuindo uma
diversidade de definições, entende que a violência:
pode se expressar através do ataque ou da defesa, e, em geral,
mas não sempre, alicerçada pelo emprego da força, que ou impõe ou
vai contra uma pressão, um excesso calcado na ausência – contrária
à razão e à justiça – da liberdade, gerando danos, os quais podem
ser físicos e/ou morais, que se representem nas posses ou nos
planos simbólicos e culturais de um homem, de um grupo, de uma
sociedade, de uma ou várias nações [10].
A violência seria um assunto clichê não por ser desprovido de
utilidade, mas porque, dentro da organização narrativa
sensacionalista, é frequentemente utilizada para atender ao desejo
de entretenimento do público e permeada por figuras de linguagem e
símbolos incorporados à consciência coletiva. Essa necessidade de
entreter-se com o violento atende inconscientemente às próprias
pulsões de vida e morte inconscientes descritas por Malena Contrera
[11]: para fugir da morte que ronda o cotidiano e reafirmar a força
da vida que contém dentro de si o leitor contempla a violência
virtualizada na revista como algo corriqueiro, por mais chocante e
visceral que possa ser. O relato jornalístico violento
representaria a circulação do arquétipo da sombra, símbolo coletivo
e inconscientemente partilhado pelos indivíduos em sociedade, que
se refere aos traços reprimidos do ser humano que podem ser
meramente negativos como a vontade de mentir, o ato de ser
grosseiro ou elementos nocivos como a maldade, a violência e o
desejo de matar, por exemplo. Para Jung [12], os arquétipos são
estruturas, formas e imagens que canalizam o conteúdo psicológico
do indivíduo. Cada um deles simboliza uma forma primordial que
representa determinado tema pertencente a todos os seres humanos,
que é mantido por meio dos mitos, lendas e contos de fadas. A
partir daí, os temas essenciais ao ser humano - vida, morte, bem e
mal, paz e guerra - passam a ter uma elaboração consciente: uma
impressão psíquica ganha rosto, personalidade, e entra em conflito
com os demais elementos apresentados em um enredo tradicional. Um
herói contra o vilão, a luz contra a sombra, a princesa contra a
madrasta, o bem contra o mal - personagens tornam-se corpo dos
arquétipos. Por essa razão, quando há a decisão de corporificar ou
materializar de alguma forma o arquétipo da sombra (o mal, o crime)
o caráter sensorial da matéria é ressaltado, como explica Baitello
Jr [13]:
As imagens não apenas evocam [...] as representações da
finitude, como também trazem
à tona as figuras associadas ao obscuro universo da sombra,
resgatando seus personagens e sua arqueologia.
Mais do que uma pulsão de vida e morte saciada, a leitura de uma
matéria violenta é a alimentação de um tipo de aproximação com o
público extremamente rentável para o jornalista, pois recupera no
leitor a proximidade e também o terror, o entorpecimento e a
sensação de insegurança diante do descontrole, estimulando o
consumo de mais notícias a respeito da violência que o cerca [14].
Assim, o leitor passa a ser o herói distante diante do mal
virtualizado. Não apenas como instrumento de manutenção do pânico e
do reforço da vida por meio da morte, tratar da violência no
jornalismo serve também para que o leitor julgue a si mesmo por
meio da sombra mostrada no outro retratado na matéria. Von Franz
[15] explica como as narrativas que tratam do duelo entre o bem e o
mal repercutem nos leitores:
Se os demônios coletivos nos afetam, é porque devemos ter algo
deles em nós - caso contrário não nos afetariam e a porta de nossa
psique não estaria aberta à sua entrada.
A partir do momento em que enxerga o crime do outro em si mesmo,
olhando para os próprios instintos que reprime, o leitor utiliza as
sensações desagradáveis que sente ao ler a matéria como um
lembrete. Ao mesmo tempo em que se recorda do pertencimento a uma
camada social que reforça sua condição positiva, sabe que a sombra
ainda existe, mesmo contida, e que pode, em um momento de descuido,
aflorar como uma avalanche de terror sobre ele próprio e os outros.
A partir desse medo do desconhecido, que nada mais é do que o
conjunto de instintos negativos e reprimidos do ser humano
representados pela sombra, os símbolos e figuras conectados a esse
arquétipo começam a surgir das mais diversas formas, permeando a
narrativa jornalística.
3. ESTUDO DE CASO: O BICHO PAPÃO À ESPREITA
A narrativa de uma matéria de revista não é um espaço fechado.
Feita de forma notadamente distinta da notícia do jornal, há uma
infinita possibilidade de complementos e combinações vindas de
outros gêneros textuais que colaboram para a sua construção. Isso
porque, para Sodré [16] os efeitos causados pelo jornalismo - em
especial, feito de maneira mais aprofundada - seriam análogos
àqueles produzidos por meio da literatura em uma narrativa
tradicional. O germe narrativo existe dentro do texto jornalístico
e possui elementos indispensáveis à criação de um enredo, visto na
matéria de revista não apenas como componente estrutural de uma
história, mas como indicador de campos problemáticos da
experiência. Uma vez amplamente materializado por meio de lendas,
mitos e contos de fadas já assimilados e conhecidos pelos leitores,
é possível deduzir que os diversos personagens (representações
fictícias ou não) que já deram rosto para esse arquétipo têm
utilidade para a narrativa jornalística sensacionalista, que ganha
mais força por meio da validade das representações ali colocadas:
utilizar ou fazer alusão a figuras conhecidas por todos transforma
a matéria em algo forte, palpável e dotado de credibilidade, mais
do que isso, chocante.
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A materialização dos arquétipos é essencialmente ligada ao
elemento mágico, espiritual, sobrenatural e esotérico que envolve a
vida humana, porque lida com algo não elaborado conscientemente, a
princípio. [17] Dessa forma, o jornalismo, ao dar corpo a algo que
lida com impressões e dilemas próprios do ser humano pode
transformar um artigo ou matéria de revista sobre a violência em
uma narrativa maior, que representaria o embate entre o homem e o
mal reprimido. Esse embate representa uma exceção, um escape à
lógica da busca pela vida pacífica, daí seu elemento
extraordinário.
3.1 A CRIATURA NA IMAGEM O tema da matéria principal da revista
Veja, da edição 2055 escrita por Jerônimo Teixeira em 9 de abril de
2008 é a violência cometida indiscriminadamente contra crianças e
pessoas indefesas. Na capa da revista, o tema por si só dá corpo ao
arquétipo da sombra - é o mal que será explicado nas páginas que
estão por vir -, e por isso precisa de um complemento bastante
crível e apelativo para sua representação. A montagem da capa
revela os três desdobramentos do sensacionalismo: o gráfico, quando
há descompasso entre o valor e a configuração da imagem e o texto
escrito; o temático, feito para destacar sensações e emoções em
detrimento da responsabilidade social e objetiva da matéria; e o
linguístico, focado na escolha de palavras que ressaltem a tensão a
respeito do tema [18].
Figura 1. Capa da Revista Veja de 09 de abril de 2008.
Já é possível notar os primeiros traços fortemente
sensacionalistas: o tema singularizado e com grande apelo baseado
na configuração da imagem, buscando apoio na ilustração do
arquétipo. O Mal ganha ares de entidade grafado em letra maiúscula
e ao receber um subtítulo com adjetivos profundamente gráficos que
completam a sua materialização. O Mal é um rosto, o olhar de um
indivíduo sem gênero e oculto pela sombra que contempla
maliciosamente uma vítima dentre tantas outras, abandonadas,
torturadas e assassinadas, como apontado pelo texto. A capa é o
primeiro atrativo da revista. Para Ali [19], ela é:
um anúncio que, quando competente, faz o leitor comprar o
exemplar da revista; é o elemento isolado mais importante para
estabelecer a sua imagem; é provavelmente a primeira e a melhor
oportunidade de atrair o leitor na banca, fazer o
assinante abri-la no meio da correspondência, ou despertar o
interesse de um novo anunciante; tem um papel importante no lucro
da publicação, porque boa parte da compra de revistas acontece por
impulso.
No caso, ela não serve apenas para atrair o leitor a abrir a
revista como também faz possível a extensão do assunto para outra
matéria conectada ao tema e posterior à de capa: o brutal
assassinato da menina Isabella Nardoni [20], cujo pai e madrasta
seriam suspeitos. A matéria de capa serve como mote para
desenvolver a comoção do leitor e mantê-lo convencido a prosseguir
para a seguinte, em função da fotografia da menina estampada dentro
do olho da criatura na capa. Pelo subtítulo, vê-se que a revista
estrutura na capa uma espécie de anatomia do mal, um guia
responsável por dissecar aquilo que ronda a sociedade e assola o
cotidiano do público, temeroso daquilo que reprime dentro de si e
que pode também trazer à tona seus outros medos: da morte, do
abandono, da angústia e do desespero. Conforme explica Bettelheim
[21], o medo do Mal como um conjunto de outros medos à espreita
existe em todas as idades, e a princípio é narrado nos contos de
fadas para que a criança traga suas angústias para o campo da
história consciente, onde pode elaborá-las. Os contos de fadas
geralmente representam seus bichos-papões como bruxas, vampiros,
trolls e gigantes. Apesar de não possuírem nomenclatura restrita ao
bicho-papão, pertencem a essa categoria todas as criaturas que
desejam devorar o herói literal ou figuradamente, absorvendo o que
nele há de bom. Nas histórias, o protagonista eventualmente resolve
o conflito no qual se encontra e vence o seu medo, dominando o mal.
[22] A vitória sobre o mal é justamente o contrário do que se
mostra no título e no lead do artigo:
Quando o mal triunfa: crianças assassinadas, abandonadas,
torturadas- as notícias que têm chocado o Brasil lembram que o lado
monstruoso do homem pode até ser contido, mas jamais será
definitivamente domado [23].
De imediato, instaura-se a sensação de medo derivado da qual
trata Bauman: [24]
É uma estrutura mental estável que pode ser mais bem descrita
como o sentimento de ser suscetível ao perigo; uma sensação de
insegurança e vulnerabilidade [...]. Há também aquela terceira
zona, talvez a mais aterrorizante, uma zona cinzenta, entorpecente
dos sentidos e irritante, até agora sem nome, por onde se infiltram
medos cada vez mais densos e temíveis, ameaçando destruir nossos
lares, empregos e corpos com desastres.
A imagem de abertura do artigo aumenta a sensação do mal que
vive não só dentro, mas principalmente fora dos corpos:
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Figura 2. Reportagem da Revista Veja de 09 de abril de 2008. A
composição precisa ser analisada em conjunto com o texto
relacionado a ela porque há uma dependência mútua: é construída uma
relação simbiótica entre o escrito e o ilustrado, em que o poder de
um não se consolida sem o outro. A mistura de diversas fotografias
reais, colocadas em conjunto com a representação de uma figura
sombria que não existe fisicamente no mundo real, indica a busca
pela exaltação de sensações. É a fotografia ilustrada, produzida,
feita sob um processo muito semelhante ao de peças publicitárias
[25]. Há, no centro da imagem, a presença de uma criatura disforme,
apesar de humanoide. É possível intuir que há uma alusão à
tradicional figura da morte, como uma criatura vestida com um manto
negro. No entanto, a partir do momento em que a morte retratada só
ocorre motivada pela injustiça, a figura sombria passa a ser outro
tipo de entidade que motivou a morte, mas que não é a morte em si.
É simplesmente uma coisa que abre os braços para receber as vítimas
que faz, das quais se alimenta por seus meios de medos e
desesperanças, do desastre de seus corpos. A criatura contemporânea
elaborada é um amálgama dos demais seres que retratam o lado
sombrio da condição humana: a dita apoteose de todos os monstros é
o maior dos bichos-papões, cujos traços são simbolizados há séculos
pelos contos de fadas. Não é possível vencer aquilo que não se
conhece e que está à espera, alimentando-se do temor. O Mal como
entidade, monstro híbrido, dá corpo aos piores traços do arquétipo
da sombra e evoca todas as figuras malignas do imaginário capazes
de devorar crianças e heróis, retomando todos os medos presentes no
imaginário humano anteriormente reprimidos. A partir do confronto
visual entre leitor e criatura gerado pela ilustração, o autor
ganha espaço para construir o poder e o alcance da mesma por meio
do texto após a chamada.
4. O MAL CONSTRUÍDO PELO TEXTO Ao iniciar a leitura, nota-se que
na verdade não há traços de uma matéria de revista propriamente
dita, mas de artigo opinativo- que também é comum em revistas. Ao
contrário do que se espera em uma matéria ou notícia, os traços de
subjetividade na escrita não estão ocultos e a construção semântica
concentra-se em adjetivos que ressaltam a violência e substantivos
que indicam o desejo de tratar do tema em um plano mais narrativo,
detalhado:
A morte de uma menina aparentemente jogada da janela do 6ºandar
já seria por si só brutal- mas o caso é tanto mais chocante [...].
Os
brasileiros que se comoveram com o assassinato acabavam de ser
expostos a uma crônica de horrores. Ao lado desses casos
tenebrosos, outras barbaridades despontam [...]. Essa sucessão de
fatos macabros traz a incômoda lembrança de uma constante na
história humana: a maldade. O mal está presente em toda parte
[26].
No artigo, Teixeira [27] apresenta também um juízo de valor que
não necessariamente representa uma unanimidade, mas que se vale da
credibilidade típica do texto sob a tutela da produção jornalística
para ganhar caráter de verdade:
Na grande área da política internacional podemos divisá-lo no
genocídio[...], na repressão política [...], no terrorismo[...], na
leniência do governo [...] com práticas de tortura. Esse tipo de
mal é mais assimilável, pois se esconde atrás de razões de estado e
de pretensas causas nobres.
Não há formas de assegurar que a tortura de jornalistas seguida
de decapitação cometida por terroristas, por exemplo, seja mais
tolerada pelas pessoas que a veem do que o assassinato de uma
criança. A violência institucionalizada, integrada a grupos e
figuras de autoridade não é melhor incorporada do que a violência
cometida no ambiente próximo, porque ambas são parte de um mesmo
bloco temático já virtualizado. Tratar das atrocidades cometidas
com a conivência do estado ou de figuras públicas por meio de um
juízo de valor é, na verdade, uma estratégia de introdução para
atrair o leitor, incitando-o a acompanhar o raciocínio posto na
matéria efetivamente iniciado com os questionamentos a seguir:
Mas como metabolizar na alma o mal doméstico, que vem nu, sem
disfarces [...] e torná-lo suportável pela racionalização de sua
origem? Como entender que o sorriso [...] angelical de Isabella
possa ter sido substituído pela máscara da morte no frescor de seus
5 anos de vida? [28]
Apesar de construir uma série de perguntas que ensejem o diálogo
e a proximidade com o leitor, Teixeira encontra as respostas para
seus questionamentos no parágrafo seguinte e faz a primeira alusão
ao arquétipo da sombra:
Esse tipo de mal não cabe sequer na aceitação de que coisas
ruins podem acontecer a pessoas boas. Esse tipo de mal parece ser
uma zona de sombra que aprisiona a alma humana. Esse tipo de mal
simplesmente existe. É isso que o torna mais assustador. [29]
Teixeira faz alusão ao arquétipo da sombra, que por não
revelá-lo de fato como parte integrante da psique humana, mas sim
como uma espécie de zona inóspita, absorve o homem de maneira
externa a ele. O peso em torno do seu caráter diabólico é
ressaltado: a sombra não é tida como parte necessária e inata do
ser humano, mas um elemento de prisão, que existe da mesma forma
que o ar: invisível, porém real e perceptível.
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Não fazer referência direta ao arquétipo da sombra permite a
elaboração do Mal como entidade extracorpórea, irracional e
absoluta, que prossegue com o início das referências a autores que
já tentaram racionalizar a violência que fugia à lógica:
Xenófanes concluiu [...] que o mal perpassa todo o universo e da
sua força, nem os deuses escapam. [...] Nenhuma teoria é capaz de
abarcá-lo, amainar o choque que ele provoca no corpo e na alma
[...] a destruição que ele causa no seio das famílias e no
julgamento [...] de nós mesmos ao deparar com seres humanos agindo
como bestas. Talvez a única certeza sobre o mal seja esta: ele é
incontornável [30].
Teixeira [31] prossegue, questionando: “A palavra ‘mal’ tende a
levantar objeções dos céticos. Não será uma superstição religiosa
que a modernidade superou? Não, não é.” Logo, o mal não é mais algo
que está no terreno da religião. A coisa corporificada na
ilustração mostrada na capa e no início da matéria é, antes de um
ser humano, uma criatura mística e diabólica, que estaria inclusive
presente na figura de Deus, segundo o autor [32]:
Darwin [...] pôs em xeque a ideia de uma natureza projetada por
um Deus bondoso. Ele lembrava o exemplo de uma vespa que paralisa
outros insetos para que sejam comidos vivos por suas larvas. E
conclui que um deus onipotente e benéfico não teria criado um ser
assim.
Há o exemplo a ser convertido em metáfora que representa a
ligação do Mal - entidade com o fator animal: a vespa não chega a
ser Deus, o ser absoluto, mas é considerada fruto dele, que circula
livremente e também o influencia - uma vez que um Deus que permite
o acontecimento de atrocidades não pode ser plenamente justo e bom.
O Mal se aproveita de outros insetos que podem ser considerados os
sentimentos humanos, presas menores. Ele paralisa suas vítimas -
esperança, fé, bondade e a justiça - para alimentar-se e ganhar
cada vez mais força, espalhando suas larvas para voarem rápida e
sorrateiramente. Feito um bicho, o mal também teria meios de
reproduzir-se e alimentar-se por meio das presas que captura em sua
dita sombra. Portanto, o Mal existiria como entidade mística, capaz
de trazer de volta ao homem suas pulsões mais bestiais. Por ser
também animalesco, retoma o animal que existe em cada indivíduo e
se alimenta da influência que exerce, devorando o que encontra.
Aqui, se retoma o temor psíquico primário de ser engolido,
absorvido e aprisionado por aquilo que se teme - conforme Teixeira
escreveu anteriormente, no caso, pela zona de sombra. O autor
pontua algumas teorias não para desmistificar a maldade humana, mas
sim transformá-la em algo mais misterioso e avassalador, ainda que
fale da possibilidade de explicar a maldade do mundo por meio de
outros mecanismos racionais. Na verdade, o Mal que evoca o animal
não denota apenas algo que seja agressivo, mas, sobretudo, algo que
não reconhece a razão humana. Fugir da tentativa de uma vida pacata
e positiva, movida pela racionalidade, é a deixa para que se
instaure algo que o ser humano desconhece [33].
Teixeira elabora um paradoxo. Apesar de posto no texto como a
construção social que vive fora dos corpos como uma entidade
mística para explicar a motivação de crimes brutais, (a maldade, o
mal, colocados em terceira pessoa do singular) o Mal só existe fora
do homem por estar justamente dentro dele também. Dentro, pelo
impulso que pode surgir, e fora por concretizar-se apenas pela
oportunidade que envolve outras pessoas. A besta é humana, mas ao
mesmo tempo ronda a todos o tempo todo, apossando-se de pessoas que
aparentemente jamais agrediriam ou matariam alguém. É um impulso
que praticamente constitui uma possessão. De repente, o Mal visto
apenas nos outros, virtualizado pela distância das notícias surge
no íntimo de quem menos se esperava. Conforme o artigo, há de fato
um “[...] monstro que habita em cada um de nós e que precisa sempre
ser vigiado”. [34] O fato de estar dentro e fora do ser humano por
meio das outras pessoas o torna ilógico, e por ser assim, pode ser
transformado em qualquer tipo de alusão ou referência a entidade,
bruxa, monstro ou diabo que tenha surgido aos indivíduos nos contos
e histórias apresentados durante a infância. Qualquer coisa
familiar que permita a sua elaboração psíquica é válida. Colocar o
Mal como uma entidade e o ser humano como vítima transforma o
artigo em uma espécie de narrativa centrada no embate histórico do
mal com o bem, que ao contrário das histórias infantis,
dificilmente consegue vencer o primeiro. O diferencial da narrativa
esboçada no artigo reside nisso, pois, ao contrário do que
planejado nos contos de fadas - permitir à criança ganhar coragem e
enfrentar seus medos -, não há, no texto, indícios de que seja
possível vencer o Mal. Teixeira encerra o artigo justamente
concluindo a impossibilidade de vitória diante do Mal onipresente e
mostrando implicitamente a necessidade de deixá-lo acontecer por
meio do afastamento, uma vez que não há meios de prevê-lo pela
racionalidade:
Mas será ingênuo pensar que esse progresso poderá dominar a
besta humana. “A razão não explica tudo. Há uma dimensão monstruosa
no ser humano que parece não fazer sentido. E é preciso
respeitá-la”, diz o filósofo e teólogo Luiz Felipe Pondé. Respeito,
nesse caso, não se confunde com amor: é a distância que se guarda
em relação àquilo que pode nos aniquilar. [35]
Imprevisível, oculto e assustador, o Mal concretiza-se como
bicho papão ao receber a necessidade da distância: já que não é
possível vencê-lo, é necessário afastar-se dele conscientemente
para não ser devorado, mesmo que ele permaneça à espreita, embaixo
das camas, dentro dos armários e nos espelhos que permitam ao
indivíduo contemplar a si mesmo.
5. CONCLUSÃO O artigo apresentado com juízos de valor, adjetivos
e substantivos gráficos que remontem à temática da violência
permite ao autor conferir ao texto traços de uma narrativa maior,
que trata do embate entre o bem e o mal. A composição fotográfica
estampada na capa e a ilustração retomam a figura do Mal como
bicho-papão, apresentada nos contos de fadas pelas mais diversas
formas e consolidada no
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texto por meio do percurso desenvolvido: após questionamentos,
dúvidas, teorias embasadas na fé e na ciência, nota-se que não há
como explicar uma das instâncias humanas por meio da lógica, porque
o mal não é lógico em nada, e daí vem o seu caráter fantástico. O
monstro se constrói principalmente por meio das imagens escolhidas
para acompanhá-lo, extremamente importantes para atrair o leitor
para a narrativa. Tratar de violência e associá-la a tipos de
figuras representantes da crueldade e da agressão torna a notícia
mais chocante e o assunto mais palpável para o leitor, acostumado a
trabalhar com as dicotomias presentes nos contos de fadas. Não é
possível condenar o uso do sensacionalismo por meio da capa, uma
vez que para o jornalismo de revista, ela representa um meio
essencial de chegar ao leitor. Construir um ambiente narrativo
também facilita o entendimento das intenções do autor: criar uma
dicotomia entre o bem e o mal. No entanto, ao valorizar no texto o
traço de conflito no qual não existe a vitória do indivíduo e
apenas a necessidade de afastamento daquilo que também faz parte
dele, é ressaltado o elemento mais nocivo da narrativa, análogo às
canções de ninar ensinadas às crianças: falar sobre o monstro que
pode castigá-las caso não se comportem pode até amansar alguns, mas
também pode instaurar o medo. Conforme explica Abramo [36]:
Depois de distorcida [...] e recriada ficcionalmente, a
realidade é ainda assim dividida pela imprensa em realidade do
campo do bem e [...] do mal, e o leitor/espectador é induzido a
acreditar não só que seja assim, mas que assim será eternamente,
sem possibilidade de mudança.
Incitando a sensação de medo derivado, o juízo de valor mesclado
com a narrativa que entretém também adormece e condiciona o público
a tolerar o terror que assiste, uma vez que não há meios de escapar
do monstro que ronda a todos. Não há como questionar nem buscar
outras soluções. Restaria apenas esperar pela próxima matéria.
Referências [1] M. Scalzo. Jornalismo de Revista. São Paulo:
Contexto, 2006. p. 14. [2] M. Scalzo. Jornalismo de Revista. São
Paulo: Contexto, 2006. p. 20. [3] M. Scalzo. Jornalismo de Revista.
São Paulo: Contexto, 2006. p. 41. [4] M. Scalzo. Jornalismo de
Revista. São Paulo: Contexto, 2006. p. 58. [5] M. F. Amaral.
Jornalismo Popular. São Paulo: Contexto, 2006. p. 20. [6] M. F.
Amaral. Jornalismo Popular. São Paulo: Contexto, 2006. p. 19-26.
[7] M. F. Amaral. Jornalismo Popular. São Paulo: Contexto, 2006. p.
24 [8] M. F. Amaral. Jornalismo Popular. São Paulo: Contexto, 2006.
p. 21.
[9] D. Angrimani. Espreme que sai sangue: um estudo do
sensacionalismo na imprensa. São Paulo: Summus, 1995. p. 152. [10]
A. H. T. Guimarães. A documentação fotográfica da violência como um
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Memorias de la Sexta Conferencia Iberoamericana de Complejidad,
Informática y Cibernética (CICIC 2016)
CB955DB