8/10/2019 O Tempo Em Relao a Obra de Arte e a Restaurao
1/6
O Tempo em Relao
Obra de Arte e
Restaurao
Depois de ter reconhecido a peculiar estrutura da
obra de arte como unidade e explicitado como e at que
ponto possvel a reconstituio da unidade potencial,
que o prprio imperativo da instncia esttica em rela-
o ao restauro, deve-se aprofundar, em relao
instn-
cia histrica, o exame do tempo no que se refere obra
de arte.
uma verdade consolidada que a distino das ar-
tes no tempo e no espao provisria e ilusria, pelo fato
de tempo e espao constiturem as condies formais
para qualquer obra de arte e se encontrarem estreitamen-
te fundidos no ritmo que a forma institui.
No entanto, o tempo alm de ser estrutura do rit-
mo, est na obra de arte, no mais sob o aspecto formal,
8/10/2019 O Tempo Em Relao a Obra de Arte e a Restaurao
2/6
54
Cesare Brandi
mas no fenomenolgico, em trs momentos diversos, e
para qualquer obra de arte. Ou seja, em primeiro lugar,
como
durao
ao exteriorizar a obra de arte enquanto
formulada pelo artista; em segundo lugar, como interva-
lo inserido entre o fim do processo criativo e o momento
em que a nossa conscincia atualiza em si a obra de arte;
em terceiro lugar, como timo dessa fulgurao da obra
de arte na conscincia.
Essas trs acepes do tempo histrico na obra de
arte esto longe de estar sempre presentes e de ser pers-
pfcuas para quem se volta para a obra de arte; ao contr-
rio, em geral se tende a confundi-Ias ou a substituir, pela
acepo temporal do tempo histrico da obra de arte, glo-
balmente entendido, o tempo extratemporal que, na con-
dio de forma, a obra de arte realiza.
A confuso mais comum a que visa a identificar o
tempo da obra de arte com o presente histrico em que o
artista ou o observador, ou ambos, vivem. Ao enunci-]o,
parece quase impossvel que esse sofisma possa ocorrer;
mas, ao contrrio, corresponde a uma atitude de paralo-
gismo quase inata, afim ao bom senso. Alm disso, na
base do sofisma est, de modo incontestvel, a implcita
negao da autonomia da arte. Ou seja, presume-se, pelo
fato de, por exemplo, Giotto ter pintado composies que
so universalmente consideradas obras de arte, ademais
aclamadas j no prprio tempo de Giotto, que essas obras
de arte
representem
de forma inegvel a poca em que
Giotto viveu, no sentido de que a poca teria expresso
Giotto ainda mais do que Giotto a sua poca. claro que
Teoria da
Restaurao 55
nessa suposio grosseira est implcita a confuso dos
dois momentos basilares do processo criativo: no primei-
ro, que leva individuao simblica do objeto , o artis-
ta far ou no confluir na sua escolha incontestveis gos-
tos e preocupaes, teorias e ideologias, aspiraes e
conspiraes que pode ter em comum com a sua poca.
Ser problema seu. Mas quando passar formulao
daquele objeto, assim consagrado individual e secre-
tamente, as concomitncias externas que se coagularam
no objeto constitudo no permanecero, de modo algum,
ou permanecero como o inseto que ficou encerrado na
gota de mbar. O tempo em que o artista vive, ser ou no
reconhecido naquela obra sua, e a validade desta no
crescer nem diminuir em nada por causa disso.
No momento da reassuno atual, na conscincia,
da obra de arte, tenha ela sido formulada h poucos ins-
tantes ou h cem sculos, se a obra de arte quiser ser sen-
tida em uma atualidade de participao, alm da que
unicamente lhe compete, a saber, de ser um eterno pre-
sente, isso significar que se submeter a obra de arte a
fazer as vezes de estmulo, dando lugar quela que al-
guns chamam de interpretao sugestiva; ou seja, no
ser suficiente o fato de a obra de arte vir a irromper no
tirno da conscincia, timo que se pe no tempo hist-
rico, mas que tambm se identifica com o presente extra-
L Para tudo o que se refere
teoria da criao artstica nos seus momentos
essenciais da constituio do objeto e da formulao de imagem, remete,
mos ao nosso
Carmine
o
delta Pit tura
Firenze, Vellecchi, 1947 Torino,
Einaudi,1962),
8/10/2019 O Tempo Em Relao a Obra de Arte e a Restaurao
3/6
56 Cesare Brandi
temporal da obra. Pedir-se- obra para descer do pe-
destal, suportar a gravitao do tempo em que vivemos,
na prpria conjuno existencial de que a contemplao
da obra nos deveria extrair. E ento, em se tratando de
uma obra de arte antiga, ser exigida dela uma atualida-
de que pode ser sinnimo de moda ou valer como tenta-
tiva de devoluo da obra a finalidades que, quaisquer
que sejam, sero sempre estranhas forma, a que no
competem finalidades dessa sorte. Assim se configura-
ram as venturas e desventuras, no curso dos sculos, de
Giotto ou de Rafael, de Correggio ou de Brunelleschi, e
as negaes absolutas, bem como as exaltaes absolu-
tas que se alternaram no decorrer do tempo. Essas vicis-
situdes no so, por certo, indignas de histria, mas so,
sim, histria e histria da cultura, entendida como gosto
atual, seleo interessada para certos fins e, portanto, em
consonncia com um dado pensamento.
Essa histria ser com certeza legtima e indiscuti-
velmente til, e poder ser campo de consideraes pre-
ciosas para a leitura da prpria forma, mas jamais ser
histria da arte. Isso porque a histria da arte a hist-
ria que se volta, ainda que na sucesso temporal das ex-
presses artsticas, ao momento extratemporal do tempo
que se encerra no ritmo; enquanto essa histria do gosto,
histria do tempo temporal que colhe no seu fluxo a
obra de arte concluda e imutvel.
No entanto, a confuso entre tempo extratemporal
ou interno da obra de arte e tempo histrico do observa-
dor, torna-se muito mais grave e danosa quando ocorre-
Teoria da Restaurao 57
e quase sempre ocorre - com as obras da prpria atuali-
dade em que vivemos, para as quais parece legtima e
impretervel a consubstancialidade em relao s aspi-
raes, aos fins, moralidade e sociedade da poca ou
de certa frao dela, que se deve reconhecer legtima,
mas no peremptria, s se sentida pelo artista como pre-
missa para o ato de individuao simblica do objeto. De
qualquer modo, fora da esfera liminar do processo cria-
tivo, no se pode buscar nem exigir do artista moderno
mais do que do antigo.
Mas, viu-se que o
tempo
se insere tambm em um
segundo momento, que representado pelo intervalo que
se introduz entre o trmino do processo criativo, ou seja,
da formulao concluda, e o momento em que a formu-
lao irrompe na conscincia atual do observador.
Esse lapso de tempo no pareceria, no entanto, po-
der entrar na considerao da obra como objeto esttico,
porque a obra de arte imutvel e invarivel, a menos
que traspasse para uma obra de arte diversa e, para tan-
to, o cmputo do tempo decorrido entre a sua concluso
e a sua nova atuao no incide, mas resvala na realidade
da obra. Essa considerao poderia parecer irrefutavel,
mas no o , porque no leva em conta afisicidade de que
a imagem precisa servir-se para atingir a conscincia. A
[isicidade pode ser mnima, e, no entanto, sempre subsis-
te, mesmo onde virtualmente desaparece. Objetar-se-a,
por exemplo, que uma poesia, se lida com os olhos e no
em voz alta, no necessita de meios fsicos, porque a es-
critura apenas um expediente convencional para in-
8/10/2019 O Tempo Em Relao a Obra de Arte e a Restaurao
4/6
58 Cesare Brandi
dicar certos sons, e, portanto, em teoria, deveria ser pos-
svel a atualizao como poesia tambm de uma srie de
signos de que se ignora a pronncia e se conhece apenas
o significado. Mas seria uma cavilao. A ignorncia do
som a que corresponde o signo no implica que o
som
seja suprfluo na concretude da imagem potica, que
ser to reduzida na sua figuratividade quanto o que
acontece com aquelas composies clebres da pintura
antiga, de que se conhece a descrio, mas no a ima-
gem.
A exigncia do som subsiste e o som, ainda que no
proferido, vive na imagem da lngua, na sua totalidade,
que todo ser falante possui potencialmente e realiza em si
de modo progressivo. Ocorre que, nessa realizao, mes-
mo tcita, tem grande importncia o lapso de tempo de-
corrido entre o momento em que a poesia foi escrita, - e a
lngua se pronunciava de um certo modo - e o tempo em
que a poesia lida e no mais se pronunciar daquele
mesmo modo, dado que s das lnguas mortas, artificiosa-
mente fixadas na pronncia e no lxico, se pode dizer que
so estveis no tempo; e a rigor, nem mesmo elas, uma vez
que a influncia da pronncia se produzir at mesmo so-
bre elas, se bem que em menor medida. E a quem taxasse
essas observaes de excessiva sutileza, bastaria recon-
duzir memria as fases da pronncia do francs, fator
pelo qual no recitamos a
Chanson de
geste mas nem
2. Em francs no original. Refere-se cano de gesta, poema pico medie-
val, cantado, feito para celebrar grandes feitos ou personagens, reais ou
lendrios. N. da T.)
Teoria da Restaurao 59
mesmo Pascal pronunciamos do modo de Pascal; ou o es-
panhol, em que o valor diverso do
jota
altera profunda-
mente a leitura da prosa e da poesia seiscentista.
E, portanto, tambm para essas obras de arte, que
pareceriam mais ao abrigo do tempo - as poesias -, o
tempo passa e no tem incidncia menor do que nas co-
res das pinturas ou nas tonalidades dos mrmores.
Nem a msica escapa. Os instrumentos antigos se
modificaram de tal modo, no som e tambm no diapaso,
que talvez nada seja mais aproximativo do que o som com
que um rgo atual faz soar Bach, ou at mesmo um vio-
lino antigo, mas com cordas metlicas, faz soar Corelli ou
Paganini.
Nesse sentido, apesar de a considerao do tempo
intercorrente se colocar logo depois da iluminao do
timo que faz irromper na conscincia a obra de arte,
essa considerao no ser apenas histrica, mas se in-
tegrar imprescindivelmente ao juzo que damos obra,
e o iluminar de modo com toda certeza no suprfluo ou
marginal, assim como no marginal ou suprfluo conhe-
cer as variaes e as flutuaes de significado sofridas
pela palavra nos sculos.
Chegando a esse ponto, seria possvel tambm per-
guntar para que serviria esse exame para uma teoria da
restaurao: mas a resposta ser imediata e evidente. Era
necessrio, com efeito, estabelecer os momentos que ca-
racterizam a insero da obra de arte no tempo histrico
para poder definir em qual desses momentos podem ser
8/10/2019 O Tempo Em Relao a Obra de Arte e a Restaurao
5/6
60 Cesare Brandi
produzidas as condies necessrias a essa particular in-
terveno a que se chama restauro, e em qual desses mo-
mentos lcita tal interveno.
Claro est que no se poder falar de restaurao
durante o perodo que vai da constituio do objeto
for-
mulao concluda. Se poder parecer que seja um res-
tauro, dado que a operao acontece sobre uma imagem
por sua vez concluda, na realidade, tratar-se- de uma
refuso da imagem em uma outra imagem, de um ato sin-
ttico e criativo que desautoriza a primeira imagem e a
sela em uma nova.
E tampouco faltar, nem sem dvida faltou, quem
quis inserir a restaurao exatamente na zelosssima e
no repetvel fase do processo artstico.
a mais grave heresia da restaurao: a restau-
rao fantasiosa.
Por mais que possa parecer igualmente absurdo,
seria possvel tentar fazer a restaurao cair no lapso de
tempo entre a concluso da obra e o presente; e tambm
isso foi feito e possui um nome.
o restauro de repris-
tinao, que quer abolir aquele lapso de tempo.
Se ento for recordado nesse ponto que a restaura-
o chamada arqueolgica, por mais que seja louvvel pelo
respeito, no realiza a aspirao fundamental da conscin-
cia em relao obra de arte - ou seja, que a de reconsti-
tuir a sua unidade potencial-, mas dela representa quan-
do muito a primeira operao, em que forosamente dever
parar o restauro quando as relquias remanescentes daqui-
lo que foi uma obra de arte no consentirem integraes
Teoria da Restaurao 61
plausveis; ver-se- que no ser possvel haver oscilaes
ou dvidas sobre a via a escolher, dado que outras no
existem alm da indicada e das refutadas.
No ser, ento, necessrio insistir mais para afir-
mar que o nico momento legtimo que se oferece para
o ato da restaurao o do prprio presente da conscin-
cia observadora, em que a obra de arte est no tirno e
presente histrico, mas tambm passado e, a custo, de
outro modo, de no pertencer conscincia humana,
est na histria. A restaurao, para representar uma
operao legtima, no dever presumir nem o tempo
como reversvel, nem a abolio da histria. A ao de
restauro, ademais, e pela mesma exign i que impe o
respeito da complexa historicidade que compete obra
de arte, no se dever colocar como secreta e quase fora
do tempo, mas dever ser pontuada como evento histri-
co tal como o , pelo fato de ser ato humano e de se in-
serir no processo de transmisso da obra de arte para o
futuro. Na atuao prtica, essa exigncia histrica de-
ver traduzir-se no apenas na diferena das zonas inte-
gradas, j explicitada quando se tratou do restabele-
cimento da unidade potencial, mas tambm no respeito
pela ptina, que pode ser concebida como o prprio
sedimentar-se do tempo sobre a obra, e na conservao
das amostras do estado precedente restaurao e ainda
das partes no coevas, que representam a prpria trans-
lao da obra no tempo. Naturalmente, para esta ltima
exigncia, pode-se apenas dar o enunciado geral, por-
que oportunidade a avaliar caso a caso, jamais a des-
8/10/2019 O Tempo Em Relao a Obra de Arte e a Restaurao
6/6
62 Cesare Brandi
peito da instncia esttica, qual se d sempre a prece-
dncia.
No que concerne ptina, apesar de ser questo a
ser examinada e resolvida na prtica de vez em vez, exi-
ge-se, no entanto, uma impostao terica que a tire,
como ponto capital para a restaurao e a conservao
das obras de arte, do domnio do gosto e do opinvel.
5 A Restaurao Segundo a
Instncia da Historicidade
Com os captulos que precedem, a teoria fundamen-
tal da restaurao j est delineada.
Mas entre explicitar os princpios que devem reger
a restaurao e a interveno efetiva de restauro, falta
ainda colmar um intervalo que corresponde quele que,
juridicamente, representa o regulamento. Isto , estando
claro que, seja pelo prprio conceito de obra de arte como
um
uni um
seja pela singularidade no repetvel da vi-
cissitude histrica, todo caso de restaurao ser um caso
parte e no um elemento de uma srie paritria; ser
possvel, no entanto, delimitar alguns vastos agrupamen-
tos de obras de arte, exatamente com base no sistema de
referncia pelo qual uma obra de arte uma obra de arte,
como monumento histrico e como forma.