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Departamento de História OS ESPAÇOS RELIGIOSOS NO ÍNDICO: OLHARES SOBRE A INDUMENTÁRIA MUÇULMANA ATRAVÉS DE FOTOGRAFIAS DO FINAL DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO XX Aluna: Barbara Gomes Prado Orientadora: Regiane Augusto de Mattos Introdução O vigente trabalho busca pensar as conexões culturais por meio dos espaços religiosos voltados para o Islã e sua indumentária, entre o norte de Moçambique e outras sociedades localizadas no oceano Índico, entre o final do século XIX e o início do XX. É importante ressaltar a agência das populações da África Oriental com a aceitação e reinvenção (ou reinterpretação/reelaboração) da religião islâmica, combinados aos aspectos das culturas locais. Nesse sentido, este estudo busca aprofundar os conhecimentos sobre Moçambique e suas contribuições por integrar como patrimônio cultural que necessita de atenção (pois demonstra uma parte da África que está desaparecendo mediante a Ocidentalização) e ricas relações com outras regiões, para além de sua relação com Portugal, por meio do Islã e seus componentes. Objetivo O principal objetivo da pesquisa é analisar a indumentária muçulmana e as conexões culturais no Índico através da análise de algumas fotografias do final do século XIX e início do XX disponíveis em livros publicados por viajantes e autoridades ligadas ao governo português e em cartões postais produzidos em Zanzibar. Metodologia Segundo Eduardo Carise citado por Iracy Carise (1999,pp.18) A ausência de escrita na África não impediu a transmissão de conhecimentos às gerações que se seguiram, graças à transmissão oral e o grande desenvolvimento da memória dos africanos, como, também, à literatura etnológica pela riqueza de símbolos e significados, insofismavelmente demonstrada através da arte ,seu instrumento maior de linguagem. 1 O trabalho possui uma importante missão de fazer com que as formas de conhecimento africanas não sejam menosprezadas ou esquecidas e finalmente não “dar voz” ao outro, pois o “outro” sempre falou de sua própria história, mas agora devemos ouvi-lo com mais atenção, observando detalhes e riquezas que temos deixado passar. O menosprezo pela arte africana e, sobretudo, pela indumentária, pode ser visto no argumento de CARISE (1999, pp.33): “(...) embora (a indumentária) constitua uma realização de beleza dirigida aos sentidos e ao espírito, é considerada uma ‘arte menor’. Entretanto, a indumentária -como a arquitetura- corresponde a uma necessidade vital, com dupla finalidade: dar abrigo ao corpo humano e realçar sua beleza. é por isso, naturalmente que a indumentária é sensível a particularidades étnicas e geográficas, mantendo 1 CARISE, Iracy. África: trajes e adornos. Rio de Janeiro: s. n., 1991.
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Feb 08, 2020

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Departamento de História

OS ESPAÇOS RELIGIOSOS NO ÍNDICO: OLHARES SOBRE A INDUMENTÁRIA MUÇULMANA ATRAVÉS DE FOTOGRAFIAS DO

FINAL DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO XX

Aluna: Barbara Gomes Prado Orientadora: Regiane Augusto de Mattos

Introdução O vigente trabalho busca pensar as conexões culturais por meio dos espaços religiosos

voltados para o Islã e sua indumentária, entre o norte de Moçambique e outras sociedades localizadas no oceano Índico, entre o final do século XIX e o início do XX. É importante ressaltar a agência das populações da África Oriental com a aceitação e reinvenção (ou reinterpretação/reelaboração) da religião islâmica, combinados aos aspectos das culturas locais. Nesse sentido, este estudo busca aprofundar os conhecimentos sobre Moçambique e suas contribuições por integrar como patrimônio cultural que necessita de atenção (pois demonstra uma parte da África que está desaparecendo mediante a Ocidentalização) e ricas relações com outras regiões, para além de sua relação com Portugal, por meio do Islã e seus componentes. Objetivo

O principal objetivo da pesquisa é analisar a indumentária muçulmana e as conexões culturais no Índico através da análise de algumas fotografias do final do século XIX e início do XX disponíveis em livros publicados por viajantes e autoridades ligadas ao governo português e em cartões postais produzidos em Zanzibar.

Metodologia

Segundo Eduardo Carise citado por Iracy Carise (1999,pp.18)

A ausência de escrita na África não impediu a transmissão de conhecimentos às gerações que se seguiram, graças à transmissão oral e o grande desenvolvimento da memória dos africanos, como, também, à literatura etnológica pela riqueza de símbolos e significados, insofismavelmente demonstrada através da arte ,seu instrumento maior de linguagem.

1

O trabalho possui uma importante missão de fazer com que as formas de conhecimento africanas não sejam menosprezadas ou esquecidas e finalmente não “dar voz” ao outro, pois o “outro” sempre falou de sua própria história, mas agora devemos ouvi-lo com mais atenção, observando detalhes e riquezas que temos deixado passar. O menosprezo pela arte africana e, sobretudo, pela indumentária, pode ser visto no argumento de CARISE (1999, pp.33): “(...) embora (a indumentária) constitua uma realização de beleza dirigida aos sentidos e ao espírito, é considerada uma ‘arte menor’. Entretanto,

a indumentária -como a arquitetura- corresponde a uma necessidade vital, com dupla finalidade: dar abrigo ao corpo humano e realçar sua beleza. é por isso, naturalmente que a indumentária é sensível a particularidades étnicas e geográficas, mantendo

1 CARISE, Iracy. África: trajes e adornos. Rio de Janeiro: s. n., 1991.

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suas características individuais em todas as correntes universais. (CARISE, 1999, pp.33)

Portanto, neste trabalho a indumentária é um aspecto analisado para a compreensão das culturas africanas do Índico.

Através de cartões postais elaborados em Zanzibar e imagens (fotografias) publicadas em obras que circulavam em Portugal, como “manuais de etnografia’’, entre o final do século XIX e início do XX, é possível comparar duas diferentes visões acerca das sociedades islâmicas na costa oriental da África. Para uma análise crítica das fontes foram realizadas leituras de autores, tais como Boris Kossoy e Ana Maria Mauad, que teorizam sobre o uso e o entendimento de imagens e fotografias como fontes históricas. O autor Michel Lowy também foi utilizado para a exemplificação da fotografia como a ação de registrar e conhecer um certo instante que pode ser problematizado acerca do seu real propósito. A leitura de obras de Iracy Carise foi realizada para estabelecer conexões na indumentária e adornos na própria África. Artigos para apurar a análise da elaboração ou método da fotografia tendo em vista que há fotógrafos com mais formação que outros comparando a maneira que foi realizada de capturar as imagens nos cartões postais e nos livros que circulavam.

O trabalho com as fontes busca explicitar duas visões distintas acerca da África Oriental. Outras fontes também foram utilizadas, como livros da Junta de Investigações do Ultramar de Estudos Políticos e Sociais localizadas no Real Gabinete Português, mas com caráter mais secundário devido a riqueza de relatos e catalogação feitas por europeus. O trabalho visa valorizar através do estudo e análise relatos sobre a agência de africanos pelo olhar da cultura.

Detalhamento dos resultados parciais obtidos no período

A pesquisa foi dada início no Real Gabinete Português por conter algumas obras com relatos de portugueses e catalogações feitas por europeus nos territórios colonizados e muito mais são citadas nos próprios relatos como bibliografia sobre o assunto. Entretanto, devido à época e o contexto de sua produção não podem mais ser consideradas apenas como bibliografia, pois há novos estudos que rebatem a catalogação executada por portugueses. As referências indicadas pela Junta da Marinha são mais difíceis de encontrar por estarem localizadas fora do Rio de Janeiro. Desta forma, decidimos buscar fontes que estivessem com mais fácil acesso e que fossem relatos sobre a agência africana, neste caso os cartões postais, em contraponto a fontes que foram escritas com o intuito de reforçar a presença e o poder de Portugal na África, como os manuais etnográficos

Na tentativa de encontrar novas fontes, ao longo da pesquisa encontramos os cartões de visita que estão sob a guarda do Museu Nacional de Arte Africana do Smithsonian e disponíveis on line. que permitiram 1- comparar semelhanças e diferenças de obras como a de Eduardo Lupi como exemplo de obras de caráter de catalogação que estão em muitos livros de viagem europeus, que foram analisadas criticamente com a bibliografia levantada até o momento, 2- perceber outro tipo de problemática que são as semelhanças e diferenças entre regiões diferentes que sofreram influência do Islã e 3- questionar até que ponto houve aceitação do Islã combinado com culturais locais como a suaíli sendo necessário estudar com mais detalhes os componentes da cultura islâmica e das culturas da África Oriental.

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Pesquisa e sistematização da bibliografia: HERNANDEZ, Leila M. G. Leite. A África na sala de aula: visita à história contemporânea. 4. ed. São Paulo: Selo Negro, 2008.

AMSELLE, Jean-Loup; M'BOKOLO, Elikia. No centro da etnia: etnias, tribalismo e Estado na África. Petrópolis: Vozes, 2017

M'BOKOLO, Elikia. África Negra: história e civilizações.Vol.2, São Paulo: Casa das Áfricas; Bahia: EDUFBA, 2009

FALOLA, Toyin. Nacionalizar a África, culturalizar o Ocidente e reformular as Humanidades na África. Afro-Ásia, 36, 2007, 9-38.

ANDRADE, Rosane de. Fotografia e antropologia:olhares fora-dentro.São Paulo:Estação LIberdade:EDUC,2002

MATTOS, Regiane. Projeto de Pesquisa. A dinâmica das relações entre as sociedades africanas: circulação de pessoas, intercâmbios de saberes, práticas e produtos. PUC-Rio, 2013

Pesquisa e sistematização das fontes:

VILHENA,Ernesto Jardim. Influência Islâmica na Costa Oriental d’África. Lisboa,1906

PEIRONE, Frederico José. A importância do estudo da língua e cultura árabe para a missionação dos indígenas islamizados de Moçambique.Lisboa. Garcia de Orta : Revista da Junta das Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar. - Vol. IV , Nº 3 (1956)

COTA, José Gonçalves. Projeto Definitivo do Estatuto Privado dos Indígenas da Colónia de Moçambique,Lourenço Marques Imprensa Nacional.Imprensa Nacional de Moçambique(1946)

MUSEU NACIONAL DE ARTE AFRICANA DO SMITHSONIAN. Swahili Coast Daughters. Disponível em: < http://indian-ocean.africa.si.edu/swahili-coast-daughters/ > Último acesso em: 29/06/2018 LUPI, Eduardo do Couto. Angoche:Breve memoria sobre uma das capitanias-móres do districto de Moçambique. Lisboa.Typographia do Annuario Commercial.1907 PIMENTEL,Jayme. Algumas palavras acerca das operações de guerra no districto de moçambique durante o governo do eximio senhor conselheiro Jayme Pereira de Sampaio Forjaz de Serpa Pimentel(1903-1904).Lisboa.Typographia d’ <a editora> Conde Barão,50,1904 PEIRONE, Frederico José. A tribo ajaua do alto niassa (Moçambique) e alguns outros aspectos da sua problemática neo-islâmica. Junta de Investigações do Ultramar. Lisboa. 1967.

LEWIS, Joan M. O Islamismo ao sul do Saara .Universidade Católica Portuguesa.Lisboa,1986

GONÇALVES, José Júlio – O Mundo Árabo-Islâmico e o Ultramar Português. Lisboa: Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigações do Ultramar, 1958

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Conclusões Parciais:

Este relatório tem como objetivo apresentar algumas considerações preliminares da pesquisa realizada até o presente momento, ressaltando-se que ainda é um trabalho em andamento.

Desde o século XII, árabes e persas faziam comércio com as Ilhas de Zanzibar, Comores, Madagascar fazendo com que a língua e a cultura suaíli se expandisse da Tanzânia ao norte de Moçambique. Essas redes de conexões entre a costa da África oriental e a Ásia resultou em conexões políticas, culturais e econômicas com produtos como escravos e outros objetos durante o século XIX. As elites muçulmanas da costa se relacionavam com as de Zanzibar e ambas com a Ásia resultando em conexões até com a Índia como podemos ver no acervo do Museu de Arte Africana de Smithsonian com migrantes que participam dos cartões de visita e como comerciantes que traziam tecidos. As elites muçulmanas promoveram circulação de pessoas, práticas e saberes que pensamos ser possível analisar pelas imagens do livro de Eduardo Lupi e os cartões postais de Zanzibar.

A história dos cartões postais, que resultou posteriormente na exposição online no site do Museu Smithsonian,é explicada por Erin Haney. Segundo o autor, Sailors and Daughters (Marinheiros e filhas) é resultado do trabalho do pioneirismo de estúdios fotográficos em Zanzibar. Nesta coletânea há 23 retratos de mulheres árabes, indianas e da África Central que fizeram parte de migrações para lugares da África Oriental como Zanzibar. O sultão de Zanzibar cujo nome era Barghash bin Said, encomendou uma câmera para o seu palácio por volta de 1883 (cerca de 50 anos depois do invento da fotografia, ou seja, um investimento para um público muito seleto) com o intuito de servir a colecionadores de fotografia gerando ofertas de trabalho para fotógrafos de outros locais. Por volta de 1870, o fotógrafo A.C Gomes mudava o seu estúdio de fotografia para Zanzibar. Desta forma, ele se uniu com os irmãos Félix e J.B Coutinho. Assim outros estúdios surgiram com a demanda de criarem retratos que foram transformados em cartões postais e fotos para a elite real de Zanzibar e para visitantes, migrantes e comerciantes.

Embora essas fotografias fossem comercializadas em massa como cartões postais e lembranças, essas imagens, no entanto, sugerem uma interação complexa. Vestindo roupas caras, muitas das poses e comportamentos das mulheres sugerem uma conexão impressionante e moderna com a câmera. Ocupado no contexto da expansão repentina da fotografia para incluir ricos e pobres, aristocráticos e recém-libertados, esses retratos permanecem um traço extraordinariamente valioso das histórias incontáveis de Zanzibar e economias visuais de estilo, privadas e públicas. (HANEY, 2016, pp.46)

A elaboração dos cartões postais demonstra uma exaltação mais forte de uma memória

cultural local por reafirmarem suas identidades após a escravidão do que as obras elaboradas por funcionários portugueses com a busca de uma memória de submissão repleta de juízos de valores. De acordo com Erin Haney, em Zanzibar a virada do século XIX para o XX foi a época em que mulheres posam sorrindo com suas roupas e adornos anteriormente proibidas , mas que também serviu para uma crescente propaganda. do local para moradores e visitantes, pois a abolição da escravatura em 1897 marcou também a história da fotografia.

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Foto 1: Fotógrafo desconhecido. Zanzibar, c. 1900.

Fonte: SWAHILI COAST DAUGHTERS. MUSEU NACIONAL DE ARTE AFRICANA DO SMITHSONIAN. Disponível em: http://indian-ocean.africa.si.edu/swahili-coast-daughters/

Último acesso em: 29/06/2018.

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Foto 2: Fotógrafo desconhecido. Zanzibar, c. 1900.

Fonte: SWAHILI COAST DAUGHTERS. MUSEU NACIONAL DE ARTE AFRICANA DO SMITHSONIAN. Disponível em: http://indian-ocean.africa.si.edu/swahili-coast-daughters/ Último acesso em: 29/06/2018.

Na foto 1 vemos mulheres vestindo tecidos estampados com o cabelo ocultado pelo turbante

sorrindo de forma descontraída. Alguns adornos são percebidos, como pulseiras, cordões e algo que se assemelha a brincos. Cabe ainda uma pesquisa mais aprofundada se esses elementos são apenas adornos para servir a vaidade ou se tem algum significado religioso. Na foto 2, há duas mulheres (uma de frente e outra de costas) talvez para dar ênfase ao cabelo trançado e joias utilizadas no pescoço e orelha. Ambos os tecidos devem remeter a sua identidade, assim como as joias. Interessante é que nenhuma das mulheres veste a mesma estampa.

A beleza, de certa forma, se tornou mercadoria. Os estúdios experimentaram as qualidades formais de seus modelos, como visto nessas fotografias para o mercado comercial. Fotógrafos emolduravam rostos e corpos de mulheres jovens com iluminação cuidadosa, enfatizando seus adornos, decoro e elegância. O efeito é ao mesmo tempo convidativo e distanciador com o intuito (no papel de cartão postal) ser uma propaganda para imigrantes. (HANEY,2016)

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Entretanto, as fotografias também reforçavam sua identidade e beleza. Mas ainda há questões acerca desses documentos: É interessante pensar quem seriam essas mulheres fotografadas. Elas eram de uma elite de Zanzibar? Pagavam pelas fotos? O que faziam com essas fotos? Eram para elas ou elas eram contratadas? Quem olhava essas fotos? Onde circulavam?

De acordo com o site do Museu de Arte Africana do Smithsonian, até 1897, ou seja antes da abolição da escravidão em Zanzibar as mulheres zanzibari que não trabalhavam na cidade 2

ou no campo sinalizavam sua posição como escravas, vestindo baratos tecidos branco denominados merikani ou o tecido tingido de índigo, conhecidos como kaniki. Assim no momento em que são realizadas as fotos no estúdio essas mulheres estão reassumindo suas próprias identidades, vestindo outros tecidos como a kanga, impressos com cores exuberantes e gráficos arrojados. As mulheres livres podiam escolher cobrir suas cabeças e ombros com turbantes dobrados em público, um sinal de propriedade muçulmana anteriormente a prerrogativa das mulheres de elite de Zanzibar. (MUSEU NACIONAL DE ARTE AFRICANA DO SMITHSONIAN. Swahili Coast Daughters. Disponível em: http://indian-ocean.africa.si.edu/swahili-coast-daughters/ Último acesso em: 29/06/2018). Como podemos ver na foto a seguir:

Foto 3

Gomes & Co. Albumen print. Zanzibar, c. 1900.

2 Em Zanzibar no ano de 1897, o status legal da escravidão é abolido, mas a proibição da prática só ocorre em 1909. Abolição da escravidão e dia da consciência negra. – Brasília : Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2008.

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Fonte: SWAHILI COAST DAUGHTERS. MUSEU NACIONAL DE ARTE AFRICANA DO SMITHSONIAN. Disponível em: http://indian-ocean.africa.si.edu/swahili-coast-daughters/ Último acesso em: 29/06/2018

A imagem seguinte (4) se refere à Tanganica (atual Tanzânia) que pode ter conexões mais fortes com Moçambique tendo em vista que fronteiras entre territórios são artificiais e separam locais que podem possuir mais semelhanças que diferenças.

(...) as negras de Moçambique (tribo dos macuas e angicos): apenas cobriam o busto com tiras largas presas dos lados -uma espécie de faixa de cintura do século XX; ou com faixas estampadas tradicionalmente sobre tecidos listrados, colocados de modo inclinado num dos ombros e presa do lado esquerdo, na altura da cintura.(CARISE,1999,pp.41)

Há informações importantes nessa fala de Carise ,entretanto há a necessidade de cuidado com a sua utilização, pois ela se refere às mulheres de Moçambique como negras e os grupos dos macuas e angicos como tribos que são claramente conceitos que visam depreciar os grupos africanos.

Quando analisamos a imagem 4 não encontramos elementos muçulmanos, mas observamos muitos adornos na cabeça e pescoço principalmente. Também não encontramos as faixas de cinturas citadas por Carise, mas talvez signifique a riqueza e pluralidade de formas de se vestir diferentes. Importante ressaltar que esta imagem é a única entre as 6 imagens retiradas do Museu Nacional de Arte Africana de Smithsonian que não é de Zanzibar podendo Tanganica estar mais próxima através das semelhanças entre Moçambique que Zanzibar.

Foto 4

Daressalam, Native Woman – Tanganyika Territory. C. Fernandes Postcard, collotype. Dar es Salaam, c. 1900.

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Fonte: SWAHILI COAST DAUGHTERS. MUSEU NACIONAL DE ARTE AFRICANA DO SMITHSONIAN. Disponível em: http://indian-ocean.africa.si.edu/swahili-coast-daughters/ Último acesso em: 29/06/2018

Desta forma, a foto 5 mostra a combinação de aspectos muçulmanos como o turbante,

tecidos enrolados ao corpo e sutilmente presos ao ombro e estampas que remetem a outros locais da África, de acordo com obras analisadas de Iracy Carise. A espontaneidade no rosto das mulheres é uma característica muito marcante, parecendo retratar finalmente um alívio de ser quem é. Há novamente muitos adornos no pescoço, orelha e algumas pulseiras.

Foto 5

A.C. Gomes and Co. Zanzibar, c. 1900

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Fonte: SWAHILI COAST DAUGHTERS. MUSEU NACIONAL DE ARTE AFRICANA DO SMITHSONIAN. Disponível em: < http://indian-ocean.africa.si.edu/swahili-coast-daughters/ > Acesso em: 29/06/2018

A padronagem dos “imprimées”, entretanto, é exuberante de forma e cor.Motivos simbólicos e geométricos,abstratos ou mesticos (os repetitivos desenhos dos ashantis, por exemplo),curiosamente recebem designações inspiradas em provérbios e expressões filosóficas .A arte africana neste setor, plena de tradições e significados , contém em si uma reserva verdadeiramente fascinante de formas, de criatividade , com um potencial imenso de espontaneidade, instinto, naturalidade. Isto porque,-inspirada na natureza, na forma de vida ,crenças e tradições -atravessa as fronteiras universais da composição dos ornamentos como uma grande cadeia de pensamentos e de visões, baseada no passado e no presente, realidade africana palpável mas sumamente estranha para nós, de outros continentes.(CARISE,1991,pp.41)

Documentos eurocêntricos

A região de Angoche era islamizada, composta por populações suaílis e localizada no litoral. Portanto, no momento em que os portugueses chegaram nessa região se depararam com populações influenciadas pelo Islã. Atualmente fica em uma província de Nampula, em Moçambique. Os macuas (grupo que viviam no interior) e os suaílis (grupo que vivia no litoral) compartilhavam saberes o que nos leva a crer que Zanzibar possuía uma conexão com Moçambique e ambos com a Ásia unidos principalmente pelo intercâmbio de saberes propiciado pela rede comercial. Os portugueses foram mandados pelo governo para assumir principalmente cargos administrativos e políticos a fim de controlar as relações e construir entrepostos para realizar o comércio e o reabastecimento dos navios enquanto se dirigiam à Índia. Entretanto, muitos portugueses acabaram negociando com essas populações.

No caso dos livros que circularam principalmente em Portugal (pelo motivo de estarem registradas informações de suas colônias) parece que não há o cuidado de exaltar o vestuário como algo importante para aquela sociedade moçambicana. Pontos que sustentam a clara diferenciação: os motivos dos registros, a forma que a fotografia é feita e tratada.O primeiro conjunto de fotografias dos cartões postais possui um certo cuidado, uma preocupação com a pose das pessoas fotografadas. O foco está em suas vestimentas com riqueza de adereços e estampas sendo o enquadramento mais próximo Já o segundo grupo de imagens publicadas nos livros etnográficos possui um enquadramento que busca abarcar mais o entorno, com casas e mesquitas africanas, por exemplo. há um certo distanciamento que mostrando mais a região e o fotografado aparece em seu lugar de ação, de trabalho.

Parece importante diferenciar que no primeiro caso há o retrato de "Quem somos nós?" pela própria agência do Sultão e no segundo caso é o retrato de "Quem são eles e como lidar?"

Em "A Revolução Fotografada" de Michel Lowy afirma que “(...) o grande teórico do cinema Siegfried Kracauer tinha convicção de que a foto não permite conhecer o passado, mas somente a 'configuração de um instante'”. Diante desta informação, há a possibilidade de as fotos inseridas em livros não permitirem o conhecimento efetivamente do passado como ele realmente foi, mas pode-se buscar entender o pensamento da época representado por

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Eduardo Lupi (primeiro tenente da armada e capitão-mor d’Angoche desde 4 de julho de 1905 a 5 de dezembro de 1905).

Interessante comparar os dois tipos de documentos, pois mesmo que os cartões postais só ressaltem a beleza, há a possibilidade de se conhecer (com cuidado) o dia-a-dia de parte da África Oriental com as fotos publicadas no livro de Eduardo Lupi , pois estão menos 3

"maquiadas" que as fotos dos cartões de visita. Enquanto uma é mais pensada em que imagem se quer mostrar sobre o ''eu" e busca exibir a riqueza presente na cultura, na outra está registrado o dia-a-dia sem a preocupação de exaltar o "outro".

Mas mesmo que haja fotos “montadas”, o que tiraria o caráter “natural”, ainda sim pode-se estudar a intenção. Em outras palavras, o caráter não natural das fotos já nos diz algo sobre o passado. A foto é uma construção da realidade. Qual é a imagem que se quer passar? Entretanto, as fotografias do livro de Eduardo Lupi ignoram a riqueza cultural e econômica das populações africanas, corroborando para uma visão unitarista buscando saciar a ambição europeia de exploração. Além disso, essas imagens passivas causaram reflexos até no século XXI a respeito de como atualmente enxergamos a maioria do continente africano. As imagens técnicas e imagens mentais interagem entre si e fluem ininterruptamente num fascinante processo de criação/construção de realidade - e de ficções, segundo Boris Kossoy, ou seja, a imagem montada pode ser reflexo de um imaginário ou esse imaginário pode ser consumido como realidades. Este fato está relacionado a “imagens que, subliminarmente ou explicitamente, pedem para serem consumidas, além do universo da fantasia, na realidade material” (KOSSOY, 2005, pp.38).

Entretanto, as fotos dos cartões postais também podem estar maquiadas a fim de serem consumidas, pois como chama a atenção o autor Erin Haney, no intuito de valorizar ao máximo a tradição silenciada pela escravidão. Mas é um objeto de estudo para o historiador para entender qual a imagem que se queria construir e em que medida ela altera a realidade material.

Portanto, a iconografia é um excelente instrumento para inventariar, mostrar, evidenciar, denunciar, mas dependendo de seu uso político-ideológico funciona também como ferramenta de propaganda (KOSSOY, 2005, pp.39). Segundo Mary Pratt, falta muito para que nos descolonizemos, pois o conhecimento colonial ainda reverbera mesmo que muitos países tenham conquistado a sua independência.

Entretanto, para a sorte dos historiadores, a escrita da história não precisa ser estática. O mesmo documento pode se defender e se acusar.

Destino perverso esse da fotografia que, num dado momento, registra a aparência dos fatos, das coisas, das histórias privadas e públicas, preservando,portanto, a memória desses fatos, e que, no momentos seguinte, e ao longo de sua trajetória documental corre o risco de significar o que não foi. (KOSSOY,2005,pp.39)

Interessante é observar que duas regiões que atualmente são consideradas diferentes (Zanzibar e Moçambique) possuam características semelhantes como o Islã. Isso se dá pela intensa troca de saberes que contaram com possíveis adaptações regionais e também reflete a imposição de fronteiras entre regiões que possivelmente possuem mais semelhanças do que diferenças. Além de observar as semelhanças e diferenças entre as vestimentas das duas

3 LUPI, Eduardo do Couto. Angoche:Breve memoria sobre uma das capitanias- móres do districto de Moçambique. Lisboa.Typographia do Annuario Commercial.1907

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regiões em um futuro estudo mais aprofundado, será permitente buscar quais as permanências e alterações provocadas pelas culturas já existentes na região. Curioso observar que em uma fonte (dos cartões de visita) a presença feminina é mais forte e em outra a presença masculina que pode servir para um estudo mais completo ou uma tentativa de diferenciação na indumentária.

A foto 6 retirada do livro de registro do Eduardo Lupi está alocada no capítulo que busca traçar a etnologia dos macuas. É uma foto vertical que busca registrar o corpo todo em seu local de vivência eao fundo pode-se notar a arquitetura de uma casa, uma criança e árvores. A imagem nos revela elementos da indumentária muçulmana; o cofió (chapéu), blusa branca e um tipo de tecido amarrado na parte inferior do corpo também de cor branca.

O branco sempre foi a cor predileta do africano, ligado a algodões rústicos e tecidos à mão, através de processos rudimentares, utilizando fios grossos e artesanais, uma espécie de lã “bouclé” que formava listras em alto relevo. (CARISE, 1999, pp.41)

Infelizmente, Iracy Carise não especifica a região e em qual período se refere nos restando uma informação muito vaga e genérica. Como dito anteriormente, é necessário tomar cuidado com suas informações algumas vezes tendenciosas, tendo em vista que ela trata o material e os processos para a execução da indumentária como “arcaicos”, hierarquizando e talvez sem perceber que está reafirmando preconceitos.

Foto 6

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Fonte: LUPI, Eduardo do Couto. Angoche: Breve memoria sobre uma das capitanias-móres do districto de Moçambique. Lisboa: Typographia do Annuario Commercial, 1907, p.62

A imagem 7 nos mostra mais de perto a arquitetura que aparece também ao fundo da imagem 6. Item que corrobora para o compartilhamento de saberes; a cultura local exemplificada pela arquitetura da casa somada à indumentária islâmica e possivelmente uma mesquita construída com técnicas e características locais ou seja, adaptadas as culturas já existentes na região que pode ser verificada na imagem 8.

Foto 7

.

Fonte: LUPI, Eduardo do Couto. Angoche: Breve memoria sobre uma das

capitanias-móres do districto de Moçambique. Lisboa: Typographia do Annuario Commercial, 1907, p.90

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Foto 8

Fonte: LUPI, Eduardo do Couto. Angoche: Breve memoria sobre uma das capitanias-móres do districto de Moçambique. Lisboa: Typographia do Annuario

Commercial, 1907, p.77 Conclusão

Como já foi mencionado, este relatório tem como objetivo apresentar algumas considerações preliminares da pesquisa realizada até o presente momento, ressaltando-se que ainda é um trabalho em andamento.

A pesquisa pretende seguir a perspectiva de conexões culturais (translocais) dando destaque para a expansão do Islã no norte de Moçambique e em outras sociedades do oceano Índico como Zanzibar. Os elementos da indumentária muçulmana são muito ricos como os tecidos finos, os desenhos que enfeitam as vestimentas e os adornos, como brincos, pulseiras, dentre outros. O assunto não se encerra aqui pela quantidade de elementos que ainda podem ser explorados.

A pesquisa busca também ressaltar o olhar dos próprios africanos sobre si e sua agência, tendo em vista que a historiografia vigente, sobretudo de influência europeia, possui muita força e colabora para o menosprezo das produções culturais e relações sociais dos

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africanos. A partir de pesquisas como esta é possível perceber não apenas aspectos culturais de diferentes grupos de africanos, mas igualmente como os olhares especificamente sobre a indumentária muçulmana são construídos por diferentes agentes sociais presentes na região através da fotografia entre o final do século XIX e início do século XX.

A descolonização do conhecimento inclui a tarefa de chegar a compreender os caminhos pelos quais o Ocidente (a) constrói seu conhecimento de mundo, alinhado às suas ambições econômicas e políticas, e (b) subjuga e absorve os conhecimentos e as capacidades de produção de conhecimento de outros. (PRATT, 1999, pp.15)

Referências Bibliográficas

1-CARISE, Iracy. África: trajes e adornos. Rio de Janeiro: s. n., 1991. 2-HANEY, Erin. “Daughters of Zanzibar”.Transition, v.1,no. 119,2016, pp. 37-48 3-HOUNTONDJI, P. Conhecimento de África, Conhecimento de Africanos: duas perspectivas sobre Estudos Africanos. SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. (Orgs.) Epistemologias do Sul. São. Paulo; Editora Cortez. 2010. 4-KOSSOY, Boris. "O relógio de Hiroshima: reflexões sobre os diálogos e silêncios das imagens". Revista Brasileira de História, vol. 25, no. 49, 2005, pp. 35-42. 5-LOWY, Michael. “A revolução fotografada” . Revoluções .Boitempo Editorial,2009 6-LUPI, Eduardo do Couto. Angoche:Breve memoria sobre uma das capitanias-móres do districto de Moçambique. Lisboa.Typographia do Annuario Commercial.1907 7-MAUAD, Ana Maria. "Através da imagem: fotografia e história interfaces". Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n °. 2, 1996, pp.73-98 8-MIDDLETON, John. “Merchants: An Essay in Historical Ethnography” The Journal of the Royal Anthropological Institute, Vol. 9, No. 3, 2003, pp. 509-526 9-PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru, SP: EDUSC, 1999. 10-MUSEU NACIONAL DE ARTE AFRICANA DO SMITHSONIAN. Swahili Coast Daughters. Disponível em: < http://indian-ocean.africa.si.edu/swahili-coast-daughters/ > Acesso em: 29/06/2018