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Gluks v. 7 n. 2 (2007) 176-198
A HISTRIA COMO ELEMENTO ESTRUTURANTE DO ROMANCE PORTUGUS
CONTEMPORNEO: A IMAGINAO CONSTRUTIVA DE ALMEIDA FARIA E JOS
SARAMAGO*
Alex Alves Fogal** Felipe dos Santos Matias***
Gerson Luiz Roani****
RESUMO: O presente artigo investiga os elos de aproximao entre a
Literatura e a Histria, e o entrecruzamento do ficcional com o
historiogrfico dentro do romance portugus contemporneo,
principalmente no que concerne aos romances Cavaleiro Andante, de
Almeida Faria, e O ano da morte de Ricardo Reis, de Jos Saramago.
Entre os expoentes da literatura portuguesa atual, Almeida Faria e
Jos Saramago destacam-se como dois dos mais significativos
ficcionistas, pois suas narrativas seduzem o leitor e o fazem
participar do processo de ficcionalizao da histria pela arte
literria. Faria e Saramago aproveitam-se da interlocuo entre a
Histria e a
* Este artigo fruto das investigaes desenvolvidas nos seguintes
projetos de
pesquisa: O jornal e a inveno da histria em O ano da morte de
Ricardo Reis, de Jos Saramago (PIBIC/CNPq) e O romance portugus e
os cravos de abril: a narrativa de Almeida Faria
(PROBIC/FAPEMIG).
** Alex Alves Fogal bolsista do PROBIC/FAPEMIG e graduando em
Letras pela Universidade Federal de Viosa.
*** Felipe dos Santos Matias bolsista do PIBIC/CNPq e graduando
em Letras pela Universidade Federal de Viosa.
**** Orientador. Doutor em Letras-Literatura Comparada pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Professor Adjunto II de
Literatura Portuguesa do Departamento de Letras da Universidade
Federal de Viosa.
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A Histria como Elemento Estruturante do Romance Portugus ...
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Literatura para resgatar e problematizar a matria histrica por
meio do universo ficcional. PALAVRAS-CHAVE: Histria; Literatura;
romance portugus contemporneo; Almeida Faria; Jos Saramago.
1. Pontos de intercesso entre o histrico e o literrio
No presente artigo, enfatizaremos a ficcionalizao da Histria
pela arte romanesca, o que representa o mtodo adotado pelos
romancistas contemporneos de Portugal ao criarem suas obras, que
possuem como matria prima a Histria do Portugal contemporneo,
marcada pelo novo panorama scio-cultural, surgido aps a Revoluo dos
Cravos de 1974. Desse modo, adotamos aqui a perspectiva da Nova
Histria para observar como se do as relaes entre a produo ficcional
e o processo da Histria social no mbito do romance portugus
contemporneo.
A partir das contribuies dos pensadores que se dedicaram ao
estudo das relaes entre Literatura e Histria, pode-se dizer que a
perspectiva defensora do distanciamento entre as duas reas sofreu
grandes modificaes. O discurso histrico e toda sua suposta vocao
epistemolgica de se constituir como um saber cientfico sofreu
enorme abalo ao ser comparado com o discurso literrio (at ento tido
como mera fico). Acerca de tal fato, Hayden White realiza algumas
colocaes sobre o elemento trpico contido em todo discurso, seja
este realista ou do tipo mais imaginativo:
Acredito que este elemento no possa ser expungido do discurso
das cincias humanas, por mais realistas que aspirem a ser. Trpico a
sombra da qual todo discurso realista tenta fugir. Entretanto, esta
fuga intil, pois trpico o processo pelo qual todo discurso
constitui os objetos que ele apenas
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Gluks 178
pretende descrever realisticamente e analisar objetivamente
(WHITE, 1994, p. 14).
A palavra trpico deriva de tropikos, que de acordo com
o grego clssico quer dizer mudana de direo ou desvio, no
entanto, os tropos no so apenas um desvio de sentido realizvel, mas
tambm um desvio que segue rumo um sentido segundo, com teor de
veracidade dentro do mbito da realidade. O fato dos trpicos estarem
presentes nos discursos das cincias humanas demonstra como estes
tambm exibem a necessidade de gerarem figuras de linguagem para
alcanarem seus objetivos, pois White deixa claro como o emprego de
tropos se torna a alma do discurso, contrariando a idia de que
apenas o texto literrio se utiliza de tal subterfgio na constituio
do discurso.
Influenciados por Schopenhauer, alguns historiadores comeam a
perceber que qualquer tentativa de dar forma ao mundo atravs da
verdade para todos estava fadada ao insucesso, pois a nica forma de
impor uma forma, mesmo que fosse transitria, ao caos do mundo, era
a afirmao individual. Os adeptos do paradigma tradicional da
Histria se recusavam (e se recusam) a aceitar tal argumentao.
O paradigma tradicional da Histria pode ser entendido como a
histria rankeana, produzida pelo historiador alemo Leopold Von
Ranke, embora Peter Burke afirme brilhantemente que no se deve
entender as consideraes do prprio Ranke como constitutivas desse
paradigma tradicional, pois no perodo de sua produo no estava to
limitado quanto seus seguidores, no se estabelecendo assim, a noo
do que vem a ser tradio, pois assim como Marx no um marxista, Ranke
no era rankeano (BURKE, 1992, p.18).
A questo acerca do paradigma tradicional pode tambm ser
esclarecida de maneira pertinente se for entendida
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A Histria como Elemento Estruturante do Romance Portugus ...
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como a viso do senso comum histrico, no a ttulo de
enaltecimento, mas para deixar bem claro que ela tem sido
considerada a maneira oficial de se fazer Histria, ao invs de
figurar como uma abordagem entre as inmeras existentes para se
tratar do passado. A noo tradicional de uma Histria impessoal e
objetiva impossibilitada pelos diversos estudos de grande relevncia
j feitos que aproximam a Histria da narrativa ficcional. Um desses
estudos o de Luiz Costa Lima em A Aguarrs do Tempo.
A obra citada acima trata de maneira extremamente pertinente a
idia generalizada pelo senso comum de que a narrativa algo
exclusivo dos escritores e de tudo o que est distante do campo
cientfico, assim como possvel observar nas preconizaes do socilogo
Max Weber acerca da postura ideal do cientista.
O crtico e terico Costa Lima faz apontamentos brilhantes que so
contrrios limitao da narrativa apenas aos campos da Histria e da
fico, pois considera tal modelo de distino insuficiente e tambm
porque apenas reproduz a velha distino entre cincias nomotticas e
idiogrficas. Embora o autor no negue a importncia do exame mais
acurado das proximidades e diferenas dos discursos historiogrfico e
ficcional, encerr-lo a daria a entender que este seria o prprio
limite da narrativa, sendo seu oposto o nomos, ou seja, o plano
normativo, que demonstra identificao da lei com as cincias duras, o
que uma noo limitada e incorreta. Portanto, apenas o fato de no
identificar o campo das cincias exatas pela formulao e
estabelecimento de leis, mostra que um equvoco afirmar que a
narrativa secundria quanto s cincias. A narrativa considerada por
Costa Lima como o estabelecimento de uma organizao temporal, atravs
da qual o diverso, irregular e acidental entram em uma ordem, que
no precede o
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ato da escrita, mas sim coincide com ele. Segundo Costa Lima,
essa associao entre Histria e narrativa no pde acontecer
enquanto o modelo da biologia continuou a fascinar as nascentes
cincias sociais e o paradigma positivista, com sua exaltao do
cientfico, continuou a tranqilizar as testas srias dos
historiadores. Droysen podia deblaterar quanto quisesse e Michelet
reviver as sombras picas do passado de 89, sem que o ideal da
objetividade historicizada fosse perturbado (LIMA, 1989, p.
17).
Sabe-se que o historiador lida muitas vezes com
vestgios degradados e com enormes buracos, que a investigao
histrica nunca ser capaz de cobrir. Segundo Georges Duby,
Antes de mais, o que tento fazer, com base nesses testemunhos,
estabelecer relaes avulsas entre esses vestgios. A partir desse
momento, a imaginao intervm. Como tambm tento colmatar essas
lacunas, esses interstcios, lanar pontes, preencher essas falhas,
esse no-dito, esse silncio, de uma certa forma, com o auxilio do
que sei (DUBY, 1989, p. 37).
Apesar de todas as consideraes acerca da importncia
da narrativa bem construda no discurso histrico, Duby deixa
ntida a importncia que o fato possui na Histria, pois a boa histria
s pode ser reconhecida como tal se for capaz de colocar um problema
e tentar resolv-lo.
2. Almeida Faria e Jos Saramago: A transformao da
Histria lusitana a partir do objeto literrio A possibilidade de
dilogo entre a histria e a fico tem
estimulado o interesse dos escritores portugueses contemporneos
que tm, atravs da fico, tentado despertar a
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A Histria como Elemento Estruturante do Romance Portugus ...
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conscincia dos leitores para uma outra face da histria
portuguesa, diferente da que tida como oficial.
A queda do regime salazarista em abril de 1974 proporcionou a
Portugal um momento de ruptura. Foi este momento e os
acontecimentos subseqentes redutveis, grosso modo, expresso
recuperao das liberdades individuais e coletivas que propiciaram ao
povo portugus, atravs dos seus escritores, um novo olhar sobre a
realidade do pas. Aps a Revoluo dos Cravos, as letras portuguesas
passam por um momento de grande erupo na criao literria, j que
muitos textos que at ento tinham a publicao vetada pela censura
comearam a aparecer no pas.
A Revoluo dos Cravos de 1974, com a sua conseqente carga de
liberdade e de novidade, obriga os escritores portugueses a uma
renovao de temas e de formas de linguagem, na medida em que a luta
contra a ditadura findara e havia uma sociedade que se reorganizava
acerca da importncia da revoluo dos cravos para a atividade
artstica portuguesa. Gerson Luiz Roani registra:
O 25 de abril transformou a vida de todos os portugueses,
modificando as instituies sociais e, sobretudo, influenciando o
mbito artstico lusitano. A abordagem da produo literria portuguesa
destes ltimos 25 anos no pode prescindir de sondar o modo como esse
acontecimento histrico influenciou a atividade escritural dos
autores do Portugal contemporneo. Essa sondagem mostra-se
instigante, no caso da fico portuguesa contempornea, pois pode ser
demonstrada uma estreita vinculao das alteraes sociais com a
renovao do prprio percurso artstico dos escritores portugueses
anteriores e subseqentes a 1974 (ROANI, 2006, p. 23-24).
De acordo com Roani (2006), a literatura portuguesa,
sob as formas da lrica, do romance e da dramaturgia,
transfigurou, na plenitude de suas modalidades discursivas,
esse
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delicado momento da recente histria portuguesa, no se limitando
a realizar a mera representao da revoluo como evento transformador
dessa sociedade. O universo literrio portugus captou, no advento
desse novo tempo, a necessidade de repensar os caminhos da expresso
literria, sobre a qual havia pairado, durante quase meio sculo, o
crivo de uma censura impiedosa e limitadora da livre manifestao
artstica.
Apesar do efeito castrador que a censura causava na produo
literria durante a ditadura de Salazar, os autores dessa gerao
foram capazes de criar as bases estticas para a renovao literria
que viria a ocorrer nas dcadas de setenta, oitenta e noventa do
sculo XX. Nesse ponto, possvel dizer que a censura (guardadas as
devidas propores) teve certo carter de contribuio para com a
esttica que se criava. Tal fato pode ser afirmado pelo empenho da
palavra artstica que essa gerao de escritores demonstrou devido
necessidade de manter um velamento metafrico discursivo, ou seja,
tinham a necessidade de fugirem do rgo repressivo da censura e para
isso, se utilizavam de artimanhas silenciosas atravs da camuflagem
do que diziam. De certo modo, possvel dizer que isso criou uma
preocupao esttica maior com as obras que eram produzidas, surgindo
da um novo estilo de escrita. Ao contrrio do que ocorre quando a
revoluo j est consolidada, quando aparecem obras de qualidade
literria extremamente baixa, com um ntido tom de grandiloqncia e
carter panfletrio, exaltando os novos tempos portugueses. Tais
obras almejavam ser revolucionrias e atuais, mas se esqueciam de
ser literrias, o que deveria constituir a preocupao primordial no
ato de composio.
A quebra das amarras colocadas pelo regime salazarista ao
trabalho intelectual de geraes de artistas propiciou o empenho de
escritores portugueses na realizao de um compromisso revolucionrio.
Segundo lvaro Cardoso Gomes,
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A Histria como Elemento Estruturante do Romance Portugus ...
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a arte do romance exprimir a inteno de traduzir todos os passos
e descompassos da sociedade portuguesa no contexto ps-revoluo
(GOMES, 1993, p. 84).
nesse contexto de ps-revoluo que emergem Jos Saramago e Almeida
Faria, dois dos expoentes mais importantes do atual panorama
literrio portugus. A produo literria de Saramago e Faria revela uma
conscincia aguda dos problemas polticos, sociais e culturais que a
sociedade portuguesa enfrentou aps a Revoluo dos Cravos.
O texto desses escritores, na construo do universo ficcional,
faz da histria matria da literatura, estabelecendo um dilogo tenso
com o passado, para buscar o sentido da contemporaneidade. Saramago
e Faria, conscientes do papel que todo escritor engajado deve
desempenhar, buscaram por meio de suas obras preencher as inmeras
lacunas que a histria oficial portuguesa deixou. Cientes de que a
vida vivida no jogo do imaginrio que se torna senso comum e que a
partir disso a histria contada, os seus discursos revelam a
importncia e os limites da memria (individual e coletiva), que
precisa ser permanentemente reativada, em relao a um passado que
irrecupervel, runa e vestgio do que foi ou poderia ter sido. Dessa
forma Saramago e Faria nos mostram que o imaginrio da fico pode,
voltando-se para o passado, enquanto registro no presente, do que j
no , apontar para o projeto (a utopia) de um tempo que poder vir a
ser.
O romance portugus contemporneo incorpora a concepo da
modernidade sobre a fico, que no se v mais como expresso individual
do sujeito ou do modelo mtico da nao, como fazia entender o
Romantismo, nem o retrato do observado, como desejava o
Realismo-Naturalismo, mas como espao e processo de construo de
mundo, na diversidade da representao, na mesma medida de uma
compreenso da
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Histria como discurso, referncia a um passado presumvel, de que
faz seu correlato intencional.
Os textos ficcionais de Saramago e Faria ultrapassam a inteno de
contar uma histria, visto que configuram um espao de questes
relacionadas a paradigmas determinados e tornados conveno. Entre
essas questes est a compreenso de processos historiogrficos e
ficcionais vinculados ao problema do tempo e da escrita, numa forma
de auto-referencialidade e interdiscursividade.
A conscincia do tempo, do discurso e da histria percorre a
escrita dos escritores portugueses contemporneos, que, ao
apoderarem-se da matria histrica, rasuram a tradio monumentalista,
numa atitude crtica que dialetiza tradio e transformao, por meio do
exerccio da literatura. Para romancistas como Saramago e Faria, a
literatura deve sempre ser uma prtica da escrita que convoca o
olhar diferena e heterogeneidade, atravs do drama
interdiscursivo.
Depois das consideraes iniciais que foram feitas na primeira
parte do artigo, a qual dedicamos anlise da teoria da Nova Histria,
pode-se compreender de maneira mais satisfatria, de que modo a Nova
Histria investe numa desestabilizao na tradicional definio da
Histria como cincia do passado. A partir disso, torna-se necessrio
investigar tal particularidade no mbito da obra de Faria e
Saramago, onde a defesa de um olhar sobre a Histria nos moldes do
pensamento de Nietzche pode ser observada, ou seja, uma perspectiva
acerca do conhecimento histrico onde o indivduo no um simples
voyeur, pois leva o passado aos tribunais numa interrogao sem
remorso.
A apropriao que Almeida Faria e Jos Saramago realizam no que
tange a matria histrica efetuada a partir do que White (1994)
conceitua como imaginao construtiva.
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A Histria como Elemento Estruturante do Romance Portugus ...
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Com a utilizao de tal mtodo, os autores preenchem e reutilizam
as lacunas deixadas pelo discurso histrico para, a partir disso,
realizar a confeco de seus romances.
Tal apropriao atravs do mtodo comumente aplicado na narrativa
histrica, como coloca White, permite ao romancista exercer a funo
de artfice do espao social do qual o autor objetiva criar uma
representao subjetiva e alegrica.
Almeida Faria destaca-se no campo do romance epistolar, subgnero
adequado presena de mltiplas vozes que colaboram para o
desenvolvimento da interlocuo entre a Histria e a Literatura,
havendo um tratamento interessante da categoria de tempo, visto que
h um tempo cronolgico delimitado que se identifica com a Histria, e
um tempo psicolgico que remete, muitas vezes, para um novo enfoque
da mesma Histria, ao eliminar os limites impostos pelo primeiro (o
tempo cronolgico).
O tempo cronolgico do romance Cavaleiro Andante, de Almeida
Faria, o que envolve a Revoluo dos Cravos, possibilitando ao
leitor, por meio dos conflitos existenciais das personagens
principais, um confronto entre as estruturas scio-polticas
anteriores e posteriores aos 25 de abril de 1974, revelando um
perodo conturbado para os portugueses, que se dividiam entre a
esperana e a frustrao. Para Adriana Alves de Paula Martins, as
angstias de J.C, uma das personagens de Almeida Faria, recuperam o
poder dos latifundirios alentejanos e a crise com a revoluo; a
transio de uma posio de domnio para uma atitude de incerteza; a
crise de identidade de valores(MARTINS, 1994, p. 21).
As cartas trocadas entre as personagens J.C e Marta, ou entre
Andr e Snia, ou entre Snia e a me, para se citar apenas alguns
remetentes/destinatrios, permitem entrever a transposio, entre
realista e alegrica, da oscilao do
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imaginrio portugus, em torno do 25 de abril, por meio da
recomposio dos tempos revolucionrios e do questionamento ontolgico
de Portugal. importante ressaltar que essa referncia do processo
histrico portugus qual Almeida Faria nos remete no desenvolvimento
de seu romance similar atitude dos historiadores para com o fato
histrico de acordo com a perspectiva terica (Nova Histria) aqui
adotada e desenvolvida na parte inicial do artigo. Tal processo de
referenciao da esfera histrica abrange o perodo ps-Revoluo dos
Cravos, conforme se observa no fragmento abaixo:
Fui no minicomboio por entre dunas at Fonte da telha onde um
subdesenvolvido povo desagua em grupos, famlias, hordas, desde a av
vestida de viva sofrendo horrores com o calor e o pai barrigudo que
pela primeira vez se pe em fato de banho e se envergonha, at aos
bandos de raquticas crianas gritando pelos irmos que jogam
obsessivamente bola, possessos da fria futebolina de doentes
mentais. Na deliriosa anarquia que aqui se vive, desataram a
construir clandestinas casotas na areia, cada qual arma a barraca
de campismo onde lhe apetece, sem esgotos nem gua, servindo-se do
mar como banheira, bid, pia de lavagem, sujando tudo, destruindo a
paisagem numa liberdade para papalvos a quem tudo permitido, o povo
quem mais ordena e quem no concorda fascista (FARIA, 1983, p.
85).
A obra Cavaleiro Andante permite ao leitor entender a
importncia dos acontecimentos ocorridos logo aps a Revoluo dos
Cravos na formao da nova identidade nacional portuguesa. Almeida
Faria cria nesse romance um universo ficcional paralelo ao
histrico, o qual decifrado na relao que se instala entre o passado
histrico e o presente ficcional e que permite a leitura ideolgica
de produo e recepo contextualizada de sentido.
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A Histria como Elemento Estruturante do Romance Portugus ...
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Ao falarmos da multiplicidade do texto do romancista portugus,
torna-se importante que seja abordada tambm outra questo de ampla
relevncia presente em Cavaleiro Andante: a questo da
intertextualidade. Assim como o prprio ttulo do romance j deixa
claro, existe uma significativa relao com o mito medieval do
cavaleiro andante que realiza a busca do Santo Graal. Desde o
momento em que se observam as epgrafes, j possvel ter essa
intertextualidade com o mito cristalizada em nosso entendimento, j
que foram escolhidos um trecho de um pensamento de Hegel acerca da
figura do cavaleiro andante dentro da modernidade e um trecho de um
poema de Antero de Quental, poeta lusitano que faz referncia direta
ao tema.
A figura do cavaleiro um tema intrnseco mentalidade cultural
portuguesa j pelo mito de D. Sebastio, o rei guerreiro. Desse modo,
Almeida Faria se aproveita dessa familiaridade e realiza o processo
intertextual entre Cavaleiro Andante e A Demanda do Santo Graal
visando retomar mito do Graal, percebendo-o no seu carter mstico, o
mesmo da empreitada de Galaaz, conhecido como o puro dos puros. O
autor portugus em questo redimensiona o mito e o atualiza em relao
realidade poltico-social do pas, portanto, enquanto a novela
medieval constituda por uma proposta tico-religiosa e mstica, a
narrativa de Almeida Faria uma proposta tica de carter
existencialista, numa tentativa de alcanar o entendimento da vida e
acerca da identidade lusitana. A obra de Almeida Faria pode ser
considerada como uma epopia negativa, pois conta o Portugal
decadente, ao passo de Cames que cantava a nao herica. O tom solene
de A Demanda do Santo Graal convertido no tom dessacralizante de
Cavaleiro Andante, alterando assim o sentido da demanda
empreendida.
Nesse ponto torna-se relevante retomar o pensamento de
Schopenhauer (2007) acerca da representao do mundo, j que essa foi
uma grande influncia na corrente da Nova Histria.
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Gluks 188
Segundo o filsofo alemo, a nica forma de se colocar uma forma ao
caos que o mundo a partir da representao individual, a partir
disso, pertinente fazer uma relao de tal concepo com o mtodo de
Faria em Cavaleiro Andante, j que o romancista lusitano toma posse
de um dos maiores mitos da humanidade, que a Demanda do Santo
Graal, para exprimir sua viso particularizada do que seria a
identidade do portugus no mundo contemporneo. O autor associa duas
idias at ento sem nenhuma relao para constituir sua representao
individual do mundo lusitano.
Nessa representao do mundo lusitano pela perspectiva de Faria so
colocadas questes como o nacionalismo exacerbado, a situao
territorial do pas no momento da crise de 1975, certo saudosismo da
outra poca ditatorial e a insegurana existencial vivenciada pelo
povo portugus (e tambm pelos personagens do romance).
A grande agonia gerada pela expectativa de integrao na organizao
da velha Europa, altiva e imponente, juntamente com as dvidas sobre
a validade ou no disso, assusta a pequena burguesia portuguesa.
Para que a questo da busca pela identidade portuguesa seja colocada
de modo minimamente satisfatria, torna-se indispensvel a reflexo do
portugus Eduardo Loureno(2000):
O que singular nos comeos do sculo XIX, entre ns, que a matria
mediadora entre a conscincia individual e o mundo constituda pela
situao nacional e nela, e atravs dela, pelo sentido de ser
portugus. A conscincia da nossa fragilidade histrica projeta os
seus fantasmas simultaneamente para o passado e para o futuro. J
noutra ocasio, a propsito do Frei Lus de Sousa o tentamos mostrar.
O drama de Garrett fundamentalmente a teatralizao de Portugal como
um povo que s j tem ser imaginrio (ou mesmo fantstico)- realidade
indecisa, incerta do seu perfil e lugar na histria, objeto de
saudades impotentes ou pressentimentos trgicos
(LOURENO,2000,p.86)
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A Histria como Elemento Estruturante do Romance Portugus ...
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O Portugal dos fins do sculo XIX e incio do XX, mendigo das
sobras europias, ser espectador de uma operao mgica e potica que ir
subtra-lo eternamente ao complexo de inferioridade anmico que a
Gerao de 70 ilustrou de modo to negro e sutil. esse Portugal, que
pode ser visto como uma prodigiosa reverso do no-ser imaginrio em
ser supremo, mtica e mstica saudade que Almeida Faria constri e
desconstri em sua obra.
A insegurana do pas provoca um forte desejo de um messias
salvador, o que na obra aparece expresso por alguns personagens
como o desejo do retorno de D. Sebastio, que no regressou da
batalha na frica. No plano mtico da conscincia coletiva portuguesa,
esse D. Sebastio seria o responsvel por restabelecer Portugal e
afirmar o Quinto Imprio, como se pode observar nas profecias de
Bandarra, tambm abordadas por Fernando Pessoa em Mensagem. A
presena do mito de D. Sebastio to forte nos portugueses que
Arminda, uma das personagens do romance, em correspondncia com seu
irmo Andr, afirma:
Talvez os mestres da Filosofia Portuguesa tenham afinal razo
quanto ao advento do reino do E.S., que ser chamado Quinto Imprio e
ter sede social em Portugal: simbolizado pelas cinco quintas, alis,
cinco quinas do nosso escudo cada vez mais desvalorizado, o Quinto
Imprio ver a vitria do E.S. sobre os outros imprios da Terra e o
regresso de D. Sebastio ao reino do Quinto Elemento; ento a falida
ptria voltar ao poder e glria mas desta vez s espiritual, sem as
tentaes ,materialistas que, parece, so a causa atual da misria
financeiro-moral. (FARIA, 1983, p136)
A crise em que se encontra o pas faz desencadear a crise
de cada indivduo e a certeza de que a imobilidade de quem fica
parado na ptria, no trar nada de positivo, portanto, cada um deve
sair e realizar de alguma forma suas andanas. Em meio a
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Gluks 190
tantas inseguranas, a busca do sentido e da mnima noo da razo
pela qual se est vivendo a vida que se vive marcam os personagens
de Cavaleiro Andante. Segundo coloca Eduardo Loureno (1994):
Os heris de Cavaleiro Andante - em particular aquele que seu
heri epnimo, Andr - so heris perdidos em busca de um Graal mais
perdido ainda. O paradigma do andante cavaleiro j tinha na nossa
lngua, em Riobaldo, a sua verso contempornea e arcaica, menos
encarnao triunfal do Bem do que anjo imune, por essncia, ao Mal que
o rodeia. O mundo dos personagens dispersos, mais do que errantes,
do romance de Almeida Faria, no o dos Gerais de Guimares Rosa, o
mundo-deserto da cultura ocidental procurando s cegas uma sada para
o sem-sentido com que se vive enquanto Histria e Destino
(LOURENO,1994, p.238)
Andr, tido como o ltimo cavaleiro andante de Portugal, cumpre
sua funo de errante entre o Brasil, espao de utopia natural e
reconstruo de destinos (El Dorado), e Angola, pas em transe de
parturio com seu destino nacional marcado pelo signo revolucionrio.
O tringulo do ex-espao colonial de Portugal o percurso que o
cavaleiro andante lusitano realiza, na esperana da busca do
Graal.
A partir de uma viso calcada em Sartre, pode-se dizer que a
insatisfao existencial intrnseca natureza humana. Os personagens de
Cavaleiro Andante, de uma ou outra forma, buscam um outro espao, um
outro modo de configurao no mundo. So cavaleiros em busca do clice
sonhado, que no contm o sangue de Cristo, mas o sangue do portugus,
que vai se esvaindo em meio a uma indiferena universal.
O Cavaleiro Andante de Almeida Faria pode ser entendido, enfim,
como a representao das mltiplas buscas s quais a humanidade est
acometida e que no possuem sentido nelas mesmas, mas so buscas mais
significativas que o
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A Histria como Elemento Estruturante do Romance Portugus ...
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encontro com os dolos modernos que assentaram no lugar de Deus
aps a sua morte.
Entretanto, assim como consta no ttulo do presente artigo, o
mtodo da imaginao construtiva que White (1994) estuda no
historiador Colingwood, no caracterstica exclusiva de Almeida
Faria, mas tambm uma das linhas constituintes da obra do romancista
Jos Saramago. Assim como o autor de Cavaleiro Andante, Saramago
toma posse do fato histrico para reinvent-lo de acordo com sua
representao particular atravs do objeto literrio. A mimese
fragmentria que o autor de O Ano da Morte de Ricardo Reis realiza,
desestabiliza e individualiza ideologicamente o processo histrico
de Portugal para que o autor possa represent-lo a seu modo.
Jos Saramago, na grande maioria dos seus romances, tambm explora
a relao dialgica entre Histria e Literatura. Em suas obras, os
eventos histricos no servem apenas como pano de fundo para a
narrativa, mas so motivos que levam a um embate de tempos e a uma
problematizao da Histria sob a tica do presente, o que conduz a uma
reestruturao da Histria. A respeito da presena do dilogo entre
literatura e histria nos romances de Saramago, Gerson Luiz Roani
registra:
No romance de Saramago, essas vrias faces reveladas pelo dilogo
entre a histria e a literatura assumem as funes de elementos
inerentes, portanto essenciais, estruturao discursiva. Por mais
variados que possam ser os caminhos tericos e temticos adotados
pela abordagem da prtica narrativa desse escritor, inevitvel no
recorrer problematizao de tais elos constitutivos no mbito da obra
ficcional, escolhida como objeto de estudo (ROANI, 2003, p.
55).
Dos romances de Saramago que tratam da problemtica
Histria/fico, podemos citar como exemplo as obras O ano da
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Gluks 192
morte de Ricardo Reis e Histria do cerco de Lisboa (1989). A
obra Histria do cerco de Lisboa muito instigante, pois ela
destaca-se, dentro da produo saramaguiana, na medida em que a
partir de um episdio bem conhecido da Histria portuguesa a
conquista de Lisboa aos mouros no ano de 1147 com a ajuda dos
cruzados que aportaram em Portugal a caminho da Terra Santa
Saramago promove uma reflexo acerca dos discursos histrico e
ficcional.
Logo no primeiro captulo do livro, encontra-se um dilogo entre
um historiador e o revisor Raimundo Silva (protagonista). Nessa
conversa, Saramago trabalha a questo da relao entre Histria e fico,
conforme se observa no trecho abaixo:
O meu livro, recordo-lhe eu, de histria, Assim realmente o
designariam segundo a classificao tradicional dos gneros, porm, no
sendo propsito meu apontar outras contradies, em minha discreta
opinio, senhor doutor, tudo quanto no for vida literatura, A
histria tambm, A histria sobretudo, sem querer ofender (SARAMAGO,
1989, p. 15).
Ao afirmar que tudo quanto no for vida literatura, a
personagem Raimundo Silva aproxima a Histria da literatura,
tornando vulnervel o discurso historiogrfico. Para Saramago, a
verdade histrica relativa, visto que toda histria apenas um
discurso sobre o passado dentro os muitos possveis.
No romance Histria do cerco de Lisboa, Saramago joga com a seleo
dos fatos a relatar, com a credibilidade das fontes histricas e com
o erro histrico, desconstruindo a noo de uma verdade absoluta. Para
ter xito em tal projeto, o ficcionista escolhe como protagonista de
sua narrativa um revisor de livros, o qual corrige um livro de
Histria, promovendo, com isso, uma reflexo acerca da funo e
importncia da emenda e da correo.
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A Histria como Elemento Estruturante do Romance Portugus ...
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Resgatando a teoria exposta na abertura deste artigo, podemos
notar que Saramago em seus romances compartilha com as diretrizes
da Nova Histria, para a qual a atitude de ressurreio integral do
passado v, pois existem lacunas, fendas e silncios que so
irrecuperveis. Saramago, por compreender que o discurso histrico
nasce de um trabalho com fontes selecionadas em detrimento de
outras, nos mostra por meio de seus narradores que em todo discurso
histrico h a presena de um sujeito comprometido com sua carga
ideolgica pessoal e com a carga ideolgica do seu tempo.
O romance O ano da morte de Ricardo Reis tambm evidencia muito
bem a problematizao saramaguiana dos caminhos percorridas pela
literatura e pela histria no processo de resgate e escrita da
experincia humana. Nesse romance, Saramago apropria-se de figuras,
imagens, eventos e acontecimentos oriundos do universo histrico, e,
a partir disso, realiza muito mais do que um simples resgate, pois
a narrativa no se impe como apenas um nico discurso sobre a
histria, mas sim como espao privilegiado de convivncia de
discursos, de vozes e de referncias sobre o passado, os quais
evidenciam a pluralidade discursiva. Segundo Maria Alzira
Seixo,
o romancista, fiel ao modo temtico que inaugurara em Memorial do
Convento, trabalha em O ano da morte de Ricardo Reis tambm uma poca
histrica determinada, que evoca por meio de processos descritivos
de tipo realista (radicao cronolgica, fidelidade aos
acontecimentos, encenao de personagens com existncia real), ao
mesmo tempo que organiza ambos os conjuntos narrativos em torno de
um facto (acontecimento) inteiramente inventado, e que se manifesta
em plena impossibilidade de sucesso, se se tiver em conta a sua
relao com o mundo emprico (SEIXO, 1999, p. 83).
No romance O ano da morte de Ricardo Reis,
Saramago colocou em cena um protagonista que quase um
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terico da alienao, em confronto com uma realidade atroz (regime
salazarista), na qual a alienao no permitida, pois torna-se smbolo
de desumanidade. Nesse romance, Saramago faz uma interlocuo com a
histria a partir de um perodo opressivo da vida portuguesa, visto
que, em 1936, Portugal se encontrava sob o regime autocrtico e
policial do governo de Salazar. Na Espanha estalara a guerra civil
entre o governo eleito da Repblica e as foras militares rebeldes
encabeadas pelo general Franco. Hitler e o nazismo ganhavam cada
vez mais fora e a Segunda Grande Guerra Mundial comeara a se esboar
sobre a Europa. O trecho a seguir, retirado do romance, ilustra
isso:
Voc sabia que o Hitler fez anos, quarenta e sete, No acho que a
notcia seja importante, Porque no alemo, se o fosse seria menos
desdenhoso, E que mais, Diz aqui que passou revista a trinta e trs
mil soldados, num ambiente de venerao quase religiosa, palavras
textuais, se quer fazer uma idia oua s esta passagem do discurso
que Goebbels fez na ocasio, Leia l, Quando Hitler fala como se a
abbada de um templo se fechasse sobre a cabea do povo alemo,
Caramba, muito proftico, Mas isto nada vale em comparao com as
palavras de baldur von Schirach, Quem esse von Schirach, no me
lembro, o chefe das Juventudes do Reich, Que foi que ele disse,
Hitler, presente de Deus Alemanha, foi o homem providencial, o
culto por ele est acima das divises confessionais (SARAMAGO, 1984,
p. 280)
No trecho acima, Ricardo Reis l as notcias do jornal O
Sculo a Fernando Pessoa, informando-o acerca da situao da
Alemanha nazista, a qual estava sob o domnio de Hitler. Aqui,
percebe-se a funo essencial do jornal dentro da malha narrativa,
pois o discurso jornalstico que faz dentro do romance uma
interlocuo com a histria, dando uma conformao histrica aceitvel
fico saramaguiana.
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Ao optar por inserir o heternimo pessoano Ricardo Reis como
protagonista, um ser completamente passivo e alienado com relao sua
realidade e aos acontecimentos histricos da poca em que vive
(salazarismo, nazismo, fascismo, guerra civil na Espanha, iminncia
de uma segunda grande guerra mundial), Saramago quis mostrar aos
seus leitores que o ideal reisiano sbio aquele que contenta-se com
o espetculo do mundo completamente inadmissvel, pois, para o
escritor, todo ser humano agente do processo histrico, todo ser
humano deve interagir com a sua realidade social.
A obra O ano da morte de Ricardo Reis tambm instaura uma questo
fundamental perseguida pela narrativa portuguesa contempornea: a
busca de uma nova identidade ou de respostas para o perfil
identitrio de uma nao presa a sonhos grandiosos, que a Literatura e
a Histria instituram, ajudaram a cristalizar e disseminaram pelos
sculos seguintes. Diante desse cenrio cultural, a fico de Saramago
empreende uma leitura crtica e relativizadora do passado portugus,
reinventando no romance o ano conturbado de 1936, por meio da
insero do discurso jornalstico da dcada de 30 na malha narrativa e
dos comentrios irnicos do narrador saramaguiano acerca desse
discurso. Com isso, o escritor portugus desmascara a ideologia
salazarista propagada pela imprensa portuguesa da poca e
proporciona aos seus leitores uma nova viso a respeito dos fatos
histricos.
3. Consideraes finais
Os dois romancistas lusitanos aqui enfocados so a representao do
romance portugus contemporneo em sua essncia, caracterizado por sua
fico lcida e cida que, por motivos de fora do destino nacional, foi
obrigada a se empenhar numa revisitao demolidora dos mitos que
causavam
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uma aparncia fantasmagrica no legado cultural portugus e que,
por muito tempo, sufocaram a dinmica do processo histrico do pas.
Assim como a Nova Histria assumiu uma postura combativa frente ao
paradigma da Histria tradicional, Faria e Saramago ousaram realizar
um diagnstico crtico do Portugal contemporneo atravs de suas obras.
Os dois autores sentiram-se impelidos a repisar os recalques e
complexos coletivos da nao portuguesa, guiados pelo intuito de
retirar da inrcia a nau portuguesa, j velha e sem seu antigo poder
de fogo e mpeto desbravador.
Almeida Faria e Jos Saramago so escritores conscientes de que a
histria sempre nos chega como um discurso marcado pelo signo da
parcialidade. E com isso, nota-se claramente que eles compartilham
das diretrizes e preceitos da Nova Histria, pois consideram que a
viso da historiografia no origina a nica histria possvel. Ao
resgatar e dialogar em seus romances com o passado portugus, ambos
demonstram ter a convico de que a histria sempre fabricada por meio
de ideologias e interesses, visto que o historiador escreve a
histria a partir de documentos, os quais propagam sempre os ideais
de uma determinada classe, fazendo com que a viso acerca do passado
seja sempre relativa.
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ABSTRACT: This article investigates the links of approximation
between Literature and History, and the interrelationship between
fiction and historiography in the contemporary Portuguese romance,
mainly in the novels Cavaleiro Andante, by Almeida Faria and O ano
da morte de Ricardo Reis by Jos Saramago. Among the exponents of
the current Portuguese Literature, Almeida Faria and Saramago are
considered the two most important writers, since their narratives
seduce the reader and provide his participation in the process of
fictionalizing History through Literature. Faria and Saramago make
good use of the interlocution between History and
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Literature to rescue and question the historical matter through
the fictional universe. KEY-WORDS: History; Literature;
Contemporary Portuguese romance; Almeida Faria; Jos Saramago.