O Que ReligioRubens AlvesPERSPECTIVASAqui esto os sacerdotes; e
muito embora sejam meus inimigos. . . meu sangue est ligado ao
deles." (F. Nietzsche, Assim falava Zaratustra).
Houve tempo em que os descrentes, sem amor a Deus e sem religio,
eram raros. To raros que os mesmos se espantavam com a sua descrena
e a escondiam, como se ela fosse uma peste contagiosa. E de fato o
era. Tanto assim que no foram poucos os que foram queimados na
fogueira, para que sua desgraa no contaminasse os inocentes. Todos
eram educados para ver e ouvir as do mundo religioso, e a conversa
cotidianamente, este tnue fio que sustenta vises de mundo,
confirmava, por meio de relatos de milagres, aparies, vises,
experincias msticas, divinas e demonacas, que este um universo
encantado e maravilhoso no qual, por detrs e atravs de cada coisa e
cada evento, se esconde e se revela um poder espiritual. O canto
gregoriano, a msica de Bach, as telas de Hieronymus Bosch e Pieter
Bruegel, a catedral gtica, a Divina Comdia, todas estas obras so
expresses de um mundo que vivia a vida temporal sob a luz e as
trevas da eternidade. O universo fsico se estruturava em torno do
drama da alma humana. E talvez seja esta a marca de todas as
religies, por mais longnquas que estejam umas das outras: o esforo
para pensar a realidade toda a partir da exigncia de que a vida faa
sentido.Mas alguma coisa ocorreu. Quebrou-se o encanto. O cu,
morada de Deus e seus santos, ficou de repente vazio. Virgens no
mais apareceram em grutas. Milagres se tornaram cada vez mais
raros, e passaram a ocorrer sempre em lugares distantes com pessoas
desconhecidas. A cincia e a tecnologia avanaram triunfalmente,
construindo um mundo em que Deus no era necessrio como hiptese de
trabalho. Na verdade, uma das marcas do saber cientfico o seu
rigoroso atesmo metodolgico: um bilogo no invoca maus espritos para
explicar epidemias, nem um economista os poderes do inferno para
dar Contas da inflao, da mesma forma como a astronomia moderna,
distante de Kepler, no busca ouvir harmonias musicais divinas nas
regularidades matemticas dos astros.Desapareceu a religio? De forma
alguma. Ela permanece e frequentemente exibe uma vitalidade que se
julgava extinta. Mas no se pode negar que ela j no pode frequentar
aqueles lugares que um dia lhe pertenceram: foi expulsa dos centros
do saber cientfico e das cmaras onde se tomam as decises que
concretamente determinam nossas vidas. Na verdade, no sei de
nenhuma instncia em que os telogos tenham sido convidados a
colaborar na elaborao de planos militares. No me consta,
igualmente, que a sensibilidade moral dos profetas tenha sido
aproveitada para o desenvolvimento de problemas econmicos. E
altamente duvidoso que qualquer industrial, convencido de que a
natureza criao de Deus, e, portanto sagrada, tenha perdido o sono
por causa da poluio. Permanece a experincia religiosa fora do nulo
da cincia, das fbricas, das usinas, das armas, do dinheiro, dos
bancos, da propaganda, da venda, da compra, do lucro. compreensvel
diferentemente do que ocorria em passado muito distante, poucos
pais sonhem com carreira sacerdotal para os seus filhos.A situao
mudou. No mundo sagrado, a experincia religiosa era parte
integrante de cada um, da mesma forma como o sexo, a cor da pele,
os membros, a linguagem. Uma pessoa sem religio era uma anomalia.
No mundo dessacralizado as coisas se inverteram. Menos entre os
homens comuns, externos aos crculos acadmicos, mas de forma intensa
entre aqueles que pretendem j haver passado pela iluminao
cientfica, o embarao frente experincia religiosa pessoal inegvel.
Por razes bvias. Confessar-se religioso equivale a confessar-se
como habitante do mundo encantado e mgico do passado, ainda que
apenas parcialmente. E o embarao vai crescendo na medida em que nos
aproximamos das cincias humanas, justamente aquelas que estudam a
religio.Como isto possvel?Como explicar esta distncia entre
conhecimento e experincia?No difcil. No necessrio que o cientista
tenha envolvimentos pessoais com amebas, cometas e venenos para
compreend-los e conhec-los. Sendo vlida a analogia, poder-se-ia
concluir que no seria necessrio ao cientista haver tido experincias
religiosas pessoais como pressuposto para suas investigaes dos
fenmenos religiosos.O problema se a analogia pode ser invocada para
todas as situaes. Um surdo de nascena poderia ele compreender a
experincia esttica que se tem ao se ouvir a Nona Sinfonia de
Beethoven? Parece que no. No entanto, lhe seria perfeitamente
possvel fazer a cincia do comportamento das pessoas, derivado da
experincia esttica. O surdo poderia ir a concertos e, sem ouvir uma
s nota musical, observar e medir com rigor aquilo que as pessoas
fazem e aquilo que nelas ocorre, desde suas reaes fisiolgicas at
padres de relacionamento social, consequncias de experincias
pessoais estticas a que ele mesmo no tem acesso. Mas, que teria ele
a dizer sobre a msica? Nada. Creio que a mesma coisa ocorre com a
religio. E esta a razo por que, como introduo sua obra clssica
sobre o assunto, Rudolf Otto aconselha aqueles que nunca tiveram
qualquer experincia religiosa a no prosseguirem com a leitura. E
aqui teramos de nos perguntar se existem, realmente, estas pessoas
das quais as perguntas religiosas foram radicalmente extirpadas. A
religio no se liquida com a abstinncia dos atos lamentais e a
ausncia dos lugares sagrados, mesma forma como o desejo sexual no
se nina com os votos de castidade. E quando a dor bate porta e se
esgotam os recursos da tcnica que nas pessoas acordam os videntes,
exorcistas, os mgicos, os curadores, os benzedores os sacerdotes,
os profetas e poetas, aquele que reza e suplica, sem saber direito
a quem. . . Ento as perguntas sobre o sentido e o sentido da morte,
perguntas das horas e diante do espelho. . . O que ocorre frequncia
que as mesmas perguntas religiosas do passado se articulam agora,
travestidas, por meio de smbolos secularizados. Metamorfoseiam-se
os nomes. Persiste a mesma funo religiosa. Promessas teraputicas de
paz individual, de harmonia ntima, de liberao da angstia, esperanas
de ordens sociais fraternas e justas, de resoluo das lutas entre os
homens e de harmonia com a natureza, por mais disfaradas que
estejam nas mscaras do jargo psicanaltico/psicolgico, ou da
linguagem da sociologia, da poltica e da economia, sero sempre
expresses dos problemas individuais e sociais em torno dos quais
foram tecidas as teias religiosas. Se isto for verdade, seremos
forados a concluir no que o nosso mundo se secularizou, mas antes
que os deuses e esperanas religiosas ganharam novos nomes e novos
rtulos, e os seus sacerdotes e profetas novas roupas, novos lugares
e novos empregos. fcil identificar, isolar e estudar a religio como
o comportamento extico de grupos sociais restritos e distantes. Mas
necessrio reconhec-la como presena invisvel, sutil, disfarada, que
se constitui num dos fios com que se tece o acontecer do nosso
cotidiano. A religio est mais prxima de nossa experincia pessoal do
que desejamos admitir. O estudo da religio, portanto, longe de ser
uma janela que se abre apenas para panoramas externos, como um
espelho em que nos vemos. Aqui a cincia da religio tambm cincia de
ns mesmos: sapincia, conhecimento saboroso. Como o disse
poeticamente Ludwig Feuerbach:
A conscincia de Deus autoconscincia, conhecimento de Deus
autoconhecimento. A religio o solene desvelar dos tesouros ocultos
do homem, a revelao dos seus pensamentos ntimos, a confisso aberta
dos seus segredos de amor.E poderamos acrescentar: e que tesouro
oculto no religioso? E que confisso ntima de amor no est grvida de
deuses? E quem seria esta pessoa vazia de tesouros ocultos e de
segredos de amor?OS SMBOLOS DA AUSNCIA
O homem a nica criatura que se recusa a ser o que ela . (Albert
Camus).
Atravs de centenas de milhares de anos os animais conseguiram
sobreviver por meio da adaptao fsica. Os seus dentes e as suas
garras afiadas, os cascos duros e as carapaas rijas, seus venenos e
odores, os sentidos hipersensveis, a capacidade de correr, saltar,
cavar, a estranha habilidade de confundirem-se com o terreno, as
cascas das rvores, as folhagens, todas estas so manifestaes de
corpos maravilhosamente adaptados natureza ao seu redor. Mas a
coisa no se esgota na adaptao fsica do organismo ao ambiente. O
animal faz com que a natureza se adapte ao seu corpo. E vemos as
represas construdas pelos castores, os buracos-esconderijo dos
tatus, os formigueiros, as colmeias de abelhas, as casas de
joo-de-barro. . . E o extraordinrio que toda esta sabedoria para
sobreviver e arte para fazer seja transmitida de gerao a gerao,
silenciosamente, sem palavras e sem mestres. Lembro-me daquela
vespa caadora QUE sai em busca de uma aranha, luta com ela, pica-a,
paralisa-a, arrastando-a ento para o seu ninho. Ali deposita os
seus ovos e morre. Tempos depois as larvas nascero e se alimentaro
da carne fresca da aranha imvel. Crescero. E sem haver tomado lies
ou frequentado escolas, um dia ouviro a voz silenciosa da sabedoria
que habita os seus corpos, h milhares de anos: Chegou a hora.
necessrio buscar uma aranha...E o que extraordinrio o tempo em que
se d a experincia dos animais. Moluscos parecem luas conchas hoje
da mesma forma como o faziam h milhares de anos atrs. Quanto aos
Joos de barro, no sei de alterao alguma, para melhor ou para pior,
que tenham introduzido no plano de suas casas. Os pintassilgos
cantam hoje como cantavam no passado, e as represas rs, as colmeias
das abelhas e os formigueiros tm permanecido inalterados por
sculos. Cada corpo produz sempre a mesma coisa. O O seu corpo. Sua
programao biolgica completa, fechada, perfeita. No h problemas no
correspondidos. E, por isto mesmo, ele no possui qualquer brecha
para que alguma coisa nova seja inventada. Os animais praticamente
no possuem uma histria, tal como a entendemos. Sua vida se processa
num mundo estruturalmente fechado. A aventura da liberdade no lhes
oferecida, mas no recebem, em contrapartida, a maldio da neurose e
o terror da angstia.Como so diferentes as coisas com o homem! Se o
corpo do animal me permite prever que coisas ele produzir a forma
de sua concha, de sua toca, do seu ninho, o estilo de sua corte
sexual, a msica de seus sons e as coisas por ele produzidas me
permitem saber de que corpo partiram, no existe nada semelhante que
se possa dizer dos homens. Aqui est uma criana recm nascida. Do
ponto de vista gentico ela j se encontra totalmente determinada:
cor da pele, dos olhos, tipo de sangue, sexo, suscetibilidade a
enfermidades. Mas, como ser ela? Gostar de msica? De que msica? Que
lngua falar? E qual ser o seu estilo? Por que ideais e valores
lutar? E que coisas sairo de suas mos? E aqui os geneticistas, por
maiores que sejam os seus conhecimentos, tero de se calar. Porque o
homem, diferentemente do animal que o seu corpo, tem o seu corpo.
No o corpo que o faz. ele que faz o seu corpo. verdade que a
programao biolgica no nos abandonou de todo. As criancinhas
continuam a ser geradas e a nascer, na maioria das vezes perfeitas,
sem que os pais e as mes saibam o que est ocorrendo l dentro d o
ventre da mulher. E igualmente a programao biolgica que controla os
hormnios, a presso arterial, o bater do corao. . . De fato, a
programao biolgica continua a operar. Mas ela diz muito pouco, se
que diz alguma coisa, acerca daquilo que iremos fazer por este
mundo afora. O mundo humano, que feito com trabalho e amor, uma
pgina em branco na sabedoria que nossos corpos herdaram de nossos
antepassados.O fato que os homens se recusaram a ser aquilo que,
semelhana dos animais, o passado lhes propunha. Tornaram-se
inventores de mundos, plantaram jardins, fizeram choupanas, casas e
palacios, construram tambores, flautas e harpas, fizeram poemas,
transformaram os seus corpos, cobrindo-os de tintas, metais, marcas
e tecidos, inventaram bandeiras, construram altares, enterraram os
seus mortos e os prepararam para viajar e,na ausncia, entoaram
lamentos plos dias e pelas noites. . .E quando nos perguntamos
sobre a inspirao para estes mundos que os homens imaginaram e
construram , vem-nos o espanto. E isto porque constatamos que aqui,
em oposio ao mundo o imperativo da sobrevivncia reina supremo, o
corpo j no tem a ltima palavra. O homem capaz de cometer suicdio.
Ou entregar o seu corpo morte, desde que dela um outro mundo venha
a nascer, como o fizeram muitos revolucionrios. Ou de abandonar-se
vida monstica, numa total renncia da vontade, do sexo, do prazer da
comida. certo que podero dizer-me que estes so exemplos extremos, e
que a maioria das pessoas nem comete suicdio, nem morre por um
mundo melhor e. nem se enterra num mosteiro. Tenho de concordar.
Mas, por outro lado, necessrio reconhecer que toda a nossa vida
cotidiana se baseia numa permanente negao dos imperativos imediatos
do corpo. Os impulsos sexuais, os gostos alimentares, a
sensibilidade olfativa, o ritmo biolgico de acordar/adormecer
deixaram h muito de ser expresses naturais do corpo porque o corpo,
ele mesmo, foi transformado de entidade da natureza em criao da
cultura. A cultura, nome que se d a estes mundos que os homens
imaginam e constroem, s se inicia no momento em que o corpo deixa
de dar ordens. Esta a razo por que, diferentemente das larvas,
abandonadas pela vespa-me, as crianas tm de ser educadas. necessrio
que os mais velhos lhes ensine como o mundo. No existe cultura sem
educao. Cada pessoa que se aproxima de uma criana e com ela fala,
conta estrias, canta canes, faz gestos, estimula, aplaude, ri,
repreende, ameaa, um professor que lhe descreve este mundo
inventado, substituindo, assim, a voz da sabedoria do corpo, pois
que nos umbrais do mundo humano ela cessa de falar.Se o corpo, como
fato biolgico bruto, no a fonte e nem o modelo para a criao dos
mundos da cultura, permanece a pergunta: porque razo os homens
fazem a cultura? Por que motivos abandonam o mundo slido e pronto
da natureza para, semelhana das aranhas, construir teias para sobre
elas viver?Para que plantar jardins?E as esculturas, os quadros, as
sinfonias, os poemas?E grandes e pequenos se do as mos, e brincam
roda, e empinam papagaios, e danam.. ....e choram os seus mortos, e
choram a si mesms nos seus mortos, e constrem altares, falam sobre
a suprema conquista do corpo, o triunfo final sobre a natureza, a
imortalidade, a ressurreio da carne. . .E eu tenho de confessar que
no sei dar resposta a estas perguntas. Constato, simplesmente, que
assim. E tudo isto que o homem faz me revela um mistrio
antropolgico. Os animais sobrevivem pela adaptao fsica ao mundo. Os
homens, ao contrrio parece ser constitucional-mente desadaptados ao
mundo, tal como ele lhes dado. Nossa tradio filosfica fez seus
srios esforos no sentido de demonstrar que o homem um ser racional,
ser de pensamento. Mas as produes culturais que saem de suas mos
sugerem, ao contrrio, que o homem um ser de desejo. Desejo sintoma
de privao de ausncia. No se tem saudade da bem-amada presente. A
saudade s aparecer na distncia, quando estiver longe do carinho.
Tambm no se tem fome desejo supremo de sobrevivncia fsica com o
estmago cheio. A fome s surge quando o corpo privado do po. Ela
testemunho da ausncia do alimento. E assim , sempre, com o desejo.
Desejo pertence aos seres que se sentem privados, que no encontram
prazer naquilo que o espao e o tempo presente lhes oferece.
compreensvel, portanto, que a cultura no seja nunca a reduplicao da
natureza. Porque o que a cultura deseja criar exatamenteo objeto
desejado. A atividade humana, assim, no pode ser compreendida como
uma simples luta pela sobrevivncia que, uma vez resolvida, se d ao
luxo de produzir o suprfluo. A cultura no surge no lugar onde o
homem domina a natureza. Tambm os moribundos balbuciam canes, e
exilados e prisioneiros fabricam poemas. Canes fnebres exorcizaro a
morte? Parece que no. Mas elas exorcizam o terror e lanam plos
espaos afora o gemido de protesto e a reticncia de esperana. E os
poemas do cativeiro no quebram as correntes e nem abrem as portas,
mas, por razes que no entendemos bem, parece que os homens se
alimentam deles e, no fio tnue da fala que os enuncia, surge de
novo a voz do protesto e o brilho da esperana. A sugesto que nos
vem da psicanlise de que o homem faz cultura a fim de criar os
objetos do seu desejo. O projeto inconsciente do ego, no importa o
seu tempo e nem o seu lugar, encontrar um mundo que possa ser
amado. H situaes em que ele pode plantar jardins e colher flores. H
outras situaes, entretanto, de impotncia em que os objetos do seu
amor s existem atravs da magia da imaginao e do poder milagroso da
palavra. Juntam-se assim o amor, o desejo, a imaginao as mos e os
simbolos para criar um mundo que faa sentido, e esteja em harmonia
com os valores d homem que o constri, que seja espelho, espao
amigo, Realizao concreta dos objetos do desejo ou para fazer uso de
uma terminologia que nos vem de Hegel, objetivao do Esprito.
Teramos ento de nos perguntar que cultura esta que ideal se
realizou? Nenhuma. possivel discernir a inteno do ato cultural,mas
parece que a realizao efetiva para sempre escapa quilo que nos
concretamente possvel. A volta do jardim est sempre o deserto que
eventualmente o devora; a ordo amoris (Scheller) esta cercada pelo
caos; e o corpo que busca amor e prazer se defronta com a rejeio, a
crueldade, a solido, a injustia, a priso, a tortura, a dor, a
morte. A cultura parece sofrer da mesma fraqueza que sofrem os
rituais mgicos: reconhecemos a sua inteno, constatamos o seu
fracasso e sobra apenas a esperana de que, de alguma forma, algum
dia, a realidade se harmonize com o desejo. E enquanto o desejo no
se realiza, resta cant- lo, diz-lo, celebr-lo, escrever-lhe poemas,
compor-lhe sinfonias, anunciar-lhe celebraes e festivais. E a
realizao da inteno da cultura se transfere ento para a esfera dos
smbolos.Smbolos assemelham-se a horizontes. Horizontes: onde se
encontram eles? Quanto mais deles nos aproximamos, mais fogem de
ns. E, no entanto, cercam-nos atrs, plos lados, frente. So o
referencial do nosso caminhar. H sempre os horizontes da noite e os
horizontes da madrugada. . . As esperanas do ato pelo qual os
homens criaram a cultura, presentes no seu prprio fracasso, so
horizontes que nos indicam direes. E esta a razo por que no podemos
entender uma cultura quando nos detemos na contemplao dos seus
triunfos tcnicos/prticos. Porque justamente no ponto onde ele
fracassou que brota o smbolo, testemunha das coisas ainda ausentes,
saudade de coisas que no nasceram. ..E aqui que surge a religio,
teia de smbolos, rede de desejos, confisso da espera, horizonte dos
horizontes, a mais fantstica e pretenciosa tentativa de
transubstanciar a natureza. No composta de itens extraordinrios.H
coisas a serem consideradas: altares, santurios, comidas, perfumes,
lugares, capelas, templos, amuletos, colares, livros. . . e tambm
gestos, como os silncios, os olhares, rezaas , encantaes, renncias,
canes, poemas romarias, procisses, peregrinaes, exorcismos,
milagres, celebraes, festas, adoraes.E teramos de nos perguntar
agora acerca das propriedades especiais destas coisas e gestos, que
fazem deles habitantes do mundo sagrado, enquanto outras coisas e
outros gestos, sem aura ou poder, continuam a morar no mundo
profano.H propriedades que, para se fazerem sentir e valer dependem
exclusivamente de si mesmas, Por exemplo, antes que os homens
existissem j brilhavam as estrelas, o sol aquecia, a chuva caia e
as plantas e bichos enchiam o mundo. Tudo isto existiria e seria
eficaz sem que o homem jamais existido, jamais pronunciado uma
palavra, jamais feito um gesto. E provvel que que continuaram,
mesmo depois do nosso desaparecimento. Trata-se de realidades
naturais, indepente do desejo, da vontade, da atividade prtica dos
homens. H tambm gestos que uma eficcia em si mesmos. O dedo que
puxa o gatilho, a mo que faz cair a bomba, os ps que fazem a
bicicleta andar: ainda que o assassinado nada saiba e no oua
palavra alguma, ainda que aqueles sobre quem a bomba explode no
recebam antes explicaes, e ainda que no haja conversao entre os ps
e as rodas no importa, os gestos tm eficcia prpria e so,
praticamente habitantes do mundo da natureza.Nenhum fato, coisa ou
gesto, entretanto, encontrado j com as marcas do sagrado. O sagrado
no uma eficcia inerente s coisas. Ao contrrio, coisas e gestos se
tornam religiosos quando os homens os balizam como tais. A religio
nasce com o poder que os homens tm de dar nomes s coisas, fazendo
uma discriminao entre coisas de importncia secundria e coisas nas
quais seu destino, sua vida e sua morte se dependuram. E esta a
razo por que, fazendo uma abstrao dos sentimentos e experincias
pessoais que acompanham o encontro com o sagrado, a religio se nos
apresenta como um certo tipo de fala, um discurso, uma rede de
smbolos. Com estes smbolos os homens discriminam objetos, tempos e
espaos, construindo, com o seu auxlio, uma abbada sagrada com que
recobrem o seu mundo. Por qu? Talvez porque, sem ela, o mundo seja
por demais frio e escuro. Com seus smbolos sagrados o homem
exorciza o medo e constri diques contra o caos.E, assim, coisas
inertes pedras, plantas, fontes e gestos, em si vulgares, passam a
ser os sinais visveis desta teia invisvel de significaes, que vem a
existir pelo poder humano de dar nomes s coisas, atribuindo-lhes um
valor. No foi sem razo que nos referimos religio como "a mais
fantstica e pretenciosa tentativa de transubstanciar a natureza".
De fato, objetos e gestos, em si insensveis e indiferentes ao
destino humano, so magicamente a ele integrados. Camus observou que
curioso que ningum esteja disposto a morrer por verdades
cientificas. Que diferena faz se o sol gira em torno da Terra , se
a Terra gira em torno do sol? que as verdades cientficas se referem
aos objetos na a mais radical e deliberada indiferena a vida, morte
felicidade e infelicidade das pessoas. H verdades que so frias e
inertes. Nelas no se dependura o nosso destino. Quando, ao
contrario, tocamos nos smbolos em que nos dependuramOS, o corpo
inteiro estremece. E este estremecer a marca emocional/existencial
da experiencia do sagrado.Sobre que fala a linguagem,
religiosa?Dentro dos limites do mundo profano tratamos de coisas
concretas e visveis. Assim, discutimos pessoas, contas, custo de
vida, atos dos polticos, golpes de Estado e nossa ltima crise de
reumatismo .Quando entramos no mundo sagrado, entretanto
descobrimos que uma transformao se processou. Porque agora a
linguagem se refere as coisas invisveis, coisas para alm dos nossos
sentidos comuns que, segundo a explicao, somente os olhos da f
podem contemplar .O zen-budismo chega mesmo a dizer que a
experincia da iluminao religiosa, satori, um terceiro olho que se
abre para ver coisas que os outros dois no podiam ver. .O sagrado
se instaura graas ao poder do invisivel. E ao invisvel que a
linguagem religiosa se refere ao mencionar as profundezas da alma,
as alturas dos cus, o desespero do inferno, os fluidos e influncias
que curam, o paraso, as bem-aventuranas eternas e o prprio Deus.
Quem, jamais, viu qualquer uma destas entidades?Uma pedra no
imaginria. Visvel, concreta. Como tal, nada tem de religioso. Mas
no momento em que algum lhe d o nome de altar, ela passa a ser
circundada de uma aura misteriosa, e os olhos da f podem vislumbrar
conexes invisveis que a ligam ao mundo da graa divina. E ali se
fazem oraes e se oferecem sacrifcios.Po, como qualquer po, vinho,
como qualquer vinho. Poderiam ser usados numa refeio ou orgia:
materiais profanos, inteiramente. Deles no sobe nenhum odor
sagrado. E as palavras so pronunciadas: "Este o meu corpo, este o
meu sangue. . ." e os objetos visveis adquirem uma dimenso nova, e
passam a ser sinais de realidades invisveis.Temo que minha explicao
possa ser convincente para os religiosos, mas muito fraca para os
que nunca se defrontaram com o sagrado. difcil compreender o que
significa este poder do invisvel, a que me refiro. Peo, ento,
licena para me valer de uma paYbola, tirada da obra de Antoine de
Saint-Exupry, O Pequeno Prncipe. O prncipe encontrou-se com um
bichinho que nunca havia visto antes, uma raposa. E a raposa lhe
disse:"Voc quer me cativar?""Que isto?", perguntou o
menino."Cativar assim: eu me assento aqui, voc se assenta l, bem
longe. Amanh a gente se assenta mais perto. E assim, aos poucos,
cada vez mais perto. . ."E o tempo passou, o principezinho cativou
a raposa e chegou a hora da partida."Eu vou chorar", disse a
raposa."No minha culpa", desculpou-se a criana. "Eu lhe disse, eu
no queria cativ-la. .. No valeu a pena. Voc percebe? Agora, voc vai
chorar!""Valeu a pena sim", respondeu a raposa. "Quer saber por qu?
Sou uma raposa. No como trigo. S como galinhas. O trigo no
significa absolutamente nada, para mim. Mas voc me cativou. Seu
cabelo louro. E agora, na sua ausncia, quando o vento fizer balanar
o campo de trigo, eu ficarei feliz, pensando em voc. . ."E o trigo,
dantes sem sentido, passou a carregar em si uma ausncia, que fazia
a raposa sorrir. Parece-me que esta parbola apresenta, de forma
paradigmtica, aquilo que o discurso religioso pretende fazer com as
coisas: transform-las, de entidades brutas e vazias, em portadoras
de sentido,, de tal maneira que elas passem a fazer parte do mundo
humano, como se fossem extenses de ns mesmos.E poderamos ir
multiplicando os exemplos,sem fim, relatando a transformao das
coisa profanas em coisas sagradas na medida em que so envolvidas
plos nomes do invisvel.Mas necessrio prestar ateno s diferenas.
Acontece que o discurso religioso no vive em si mesmo. Falta-lhe a
autonomia das coisas da natureza, que continuam as mesmas, em
qualquer qualquer lugar. A religio construda pelos smbolos que os
homens usam. Mas os homens so diferentes. E seus mundos sagrados .
O mundo dos felizes diferente do mundo dos infelizes"
(Wittgenstein). Assim. . .... h aquele que fazem amizade com a
natureza, e reconhecem de que dela recebem a vida.E eles envolvem
ento, com o difano vu do invisivel, os ventos e as nuvens, os rios
e as estrelas, os animais e as plantas,lugares sacramentais. E po
isso mesmo pedem perdo aos animais que vo ser mortos, e aos galhos
que sero quebrados, e a me terra que escavada, e protegem as fontes
de seus excrementos....h tambm os companheiros da fora e da vitria,
que abemoa as espadas, as correntes, os exrcitos e o seu prprio
riso. H os sofredores que transformam os gemidos dos oprimidos em
salmos, as espadas em arados as lancas em podadeiras e constrem,
simbolicamente, as utopias da paz e d justia eterna, em que o lobo
vive com o cordeiro e a criana brinca com a serpente.Que estranho
discurso! Bem que teramos de nos perguntar acerca do poder mgico
que permite que os homens falem acerca daquilo que nunca viram. . .
E a resposta que, para a religio, no importam os fatos e as
presenas que os sentidos podem agarrar. Importam os objetos que a
fantasia e a imaginao podem construir. Fatos no so valores:
presenas que no valem o amor. O amor se dirige para coisas que
ainda no, nasceram, ausentes. Vive do desejo e da espera. E
justamente a que surgem a imaginao e a fantasia, "encantaes
destinadas a produzir. . . a coisa que se deseja. . ." (Sartre).
Conclumos, assim, com honestidade, que as entidades religiosas so
entidades imaginrias.Sei que tal afirmao parece sacrlega.
Especialmente para as pessoas que j se encontraram com o sagrado.
De fato, aprendemos desde muito cedo a identificar a imaginao com
aquilo que falso. Afirmar que o testemunho de algum produto da
imaginao e da fantasia, acus-la de perturbao mental ou suspeitar de
sua integridade moral. Parece que a imaginao um engano que tem de
ser erradicado. De maneira especial queles que devem sobreviver nos
labirintos institucionais, sutilezas lingusticas e ocasies rituais
do mundo acadmico, de importncia bsica que o seu discurso seja
assepticamente desinfetado de quaisquer resduos da imaginao e do
desejo. Que a imaginao seja subordinada observao! Que os fatos
sejam valores! Que o objeto triunfe sobre o desejo! Todos sabem,
neste mundo da cincia, que a imaginao conspira contra a
objetividade e a verdade. Como poderia algum, comprometido com o
saber, entregar-se embriaguez do desejo e suas produes?No, no estou
dizendo que a religio apenas imaginao, apenas fantasia. Ao
contrrio, estou sugerindo que ela tem o poder, o amor e a dignidade
do imaginrio. Mas, para elucidar decla-rao to estapafrdia, teramos
de dar um passo atrs, at l onde a cultura nasceu e continua a
nascer. Por que razes os homens fizeram flautas, inventaram danas,
escreveram poemas, puseram dores nos seus cabelos e colares nos
seus pescoos, construram casas, pintaram-nas de cores alegres
puseram quadros nas paredes? Imaginemos que estes homens tivessem
sido totalmente objetivos, totalmente dominados plos fatos,
totalmente verdadeiros sim, verdadeiros! poderiam eles ter
inventado coisas? Onde estava a flauta antes de ser inventada? E o
jardim? E as danas? E os quadros? Ausentes. Inexistentes. Nenhum
conhecimento poderia jamais arranc-los da natureza. Foi necessrio
que a imaginao grvida para que o mundo da cultura nascesse.
Portanto, ao afirmar que as entidades da religio pertencem ao
imaginrio, no as estou colocando ao lado do engodo e da perturbao
mental. Estou apenas estabelecendo sua filiao e reconhecendo a
fraternidade que nos une.Comeamos falando dos animais, de como eles
sobrevivem, a adaptao dos seus corpos ao ambiente, a adaptao do
ambiente aos seus corpos. Passamos ento ao homem, que no sobrevive
por meio de artifcios de adaptao fsica, pois ele cria a cultura e,
com ela, as redes simblicas da religio.E o leitor teria agora todo
o direito de nos perguntar:"Mas, e estas redes simblicas? Sabemos
que so belas e possuem uma funo esttica. Sabemos que delas se
derivam festivais e celebraes, o que estabelece o seu parentesco
com as atividades ldicas. Mas, alm disto, para que servem? Que uso
lhes do os homens? Sero apenas ornamentos suprfluos? A sobrevivncia
depende de coisas e atividades prticas, materiais, como
ferramentas, armas, comida, trabalho. Podero os smbolos, entidades
to dbeis e difanas, nascidas da imaginao, competir com a eficcia
daquilo que material e concreto?"Sobrevivncia tem a ver com a
ordem. Observe os animais. Nada fazem a esmo. No h improvisaes. Por
sculos e milnios seu comportamento tem desenhado os mesmos padres.
Quando, por uma razo qualquer, esta ordem inscrita nos seus
organismos entra em colapso, o comportamento perde a unidade e
direo. E a vida se vai.Cada animal tem uma ordem que lhe especfica.
Beija-flores no sobrevivem da mesma forma que besouros. E foi
pensando nisto que o bilogo Johannes von Uexkll teve uma ideia
fascinante. O que nos parece bvio que o ambiente em que vivem os
animais uma realidade uniforme, a mesma para todos e quaisquer
organismos, uma espcie de mar em que cada um se arranja como pode.
Uexkll teve a coragem de se perguntar: "Ser assim para os animais?
Moscas, borboletas, lesmas, cavalos marinhos vivero num mesmo
mundo?" E poderamos imaginar o ambiente como se fosse um grande
rgo, adormecido, e cada organismo um organista que faz brotar do
instrumento a sua melodia especfica. Assim, no existiria um
ambiente, em si mesmo. O que existe, para o animal, aquele mundo,
criado sua imagem e semelhana, que resulta da atividade do corpo
sobre aquilo que est ao seu redor. Cada animal uma melodia que, ao
se fazer soar, faz com que tudo ao seu redor reverbere, com as
mesmas notas harmnicas e a mesma linha sonora.A analogia no serve
de todo, porque sabemos que os homens no so governados por seus
organismos. Suas msicas no so biolgicas, mas culturais. Mas, da
mesma forma como o animal lana sobre o mundo, como se fosse uma
rede, a ordem que lhe sai do organismo, em busca de um mundo sua
imagem e semelhana; da mesma forma como ele faz soar sua melodia e,
ao faz-lo, desperta, no mundo ao seu redor, os sons que lhe so
harmnicos, tambm o homem lana, projeta, externaliza suas redes
simblico-religiosas suas melodias sobre o universo inteiro, os
confins do tempo e os confins do espao, na esperana de que cus e
terra sejam portadores de seus valores. O que est em jogo a ordem.
Mas no qualquer ordem que atende s exigncias humanas. O que se
busca, como esperana e utopia, como projeto inconsciente do ego, um
mundo que traga as marcas do desejo e que corresponda s aspiraes do
amor. Mas o fato que tal realidade no existe, como algo presente. E
a religio aparece como a grande hiptese e aposta de que o universo
inteiro possui uma face humana. Que cincia poderia construir tal
horizonte? So necessrias as asas da imaginao para articular os
smbolos da ausncia. E o homem diz a religio, este universo simblico
"que proclama que toda a realidade portadora de um sentido humano e
invoca o cosmos inteiro para significar a validade da existncia
humana" (Berger& Luckmann).Com isto os homens no podero arar o
solo, gerar filhos ou mover mquinas. Os smbolos no possuem tal tipo
de eficcia. Mas eles respondem a 'um outro tipo de necessidade, to
poderosa quanto o sexo e a fome: a necessidade de viver num mundo
que faa sentido. Quando os esquemas de sentido entram em colapso,
ingressamos no mundo da loucura. Bem dizia Camus que o nico
problema filosfico realmente srio o problema do suicdio, pois que
ele tem a ver com a questo de se a vida digna ou no de ser vivida.
E o problema no material, mas simblico. No a dor que desintegra a
personalidade, mas a dissoluo dos esquemas de sentido. Esta tem
sido uma trgica concluso das salas de tortura. verdade que os
homens no vivem s de po. Vivem tambm de smbolos, porque sem eles no
haveria ordem, nem sentido para a vida, e nem vontade de viver. Se
pudermos concordar com a afirmao de que aqueles que habitam um
mundo ordenado e carregado de sentido gozam de um senso de ordem
interna, integrao, unidade, direo e se sentem efetiva-mente mais
fortes para viver (Durkheim), teremos ento descoberto a efetividade
e o poder dos smbolos e vislumbrado a maneira pela qual a imaginao
tem contribudo para a sobrevivncia dos homens.
O EXLIO DO SAGRADO"Quando percorremos nossas bibliotecas,
convencidos destes princpios, que destruio temos de fazer! Se
tomarmos em nossas mos qualquer volume, seja de teologia, seja de
metafsica escolstica, por exemplo, perguntemo-nos: ser que ele
contm qualquer raciocnio abstrato rela-tivo quantidade e ao nmero?
No. Ser que ele contm raciocnios experimentais que digam respeito a
matrias de fato e existncia? No Ento, lanai-o s chamas, pois ele no
pode conter coisa alguma a no ser sofismas e iluses." (David
Hume)
As coisas do mundo humano apresentam uma curiosa propriedade. J
sabemos que elas so diferentes daquelas que constituem a natureza.
A existncia da gua e do ar, a alternncia entre o dia e a noite, a
composio do cido sulfrico e o ponto de congelamento da gua em nada
dependem da vontade do homem. Ainda que ele nunca tivesse existido,
a natureza estaria a, passando muito bem, talvez melhor. . . Com a
ujtura as coisas so diferentes. A transmisso da herana, os direitos
sexuais dos homens e das mulheres, atos que constituem crimes e os
castigos que so aplicados, os adornos, o dinheiro, a propriedade, a
linguagem, a arte culinria tudo isto surgiu da atividade dos
homens. Quando os homens desaparecerem, estas coisas desaparecero
tambm. Aqui est a curiosa propriedade a que nos referimos: ns nos
esquecemos de que as coisas, culturais foram inventadas e, por esta
razo, elas aparecem aos nossos olhos como se fossem naturais. Na
gria filosfico-sociolgica este processo recebe o nome de reificao,
Seria mais fcil se falssemos em coisificao, pois isto mesmo que a
palavra quer dizer, j que ela se deriva do latim res, rei, que quer
dizer "coisa". Isto acontece, em parte, porque as crianas, ao
nascerem, j encontram um mundo social pronto, to pronto to slido
quanto a natureza. Elas no viram este mundo saindo das mos dos seus
criadores, como se fosse cermica recm-moldada nas mos do oleiro.
Alm disto, as geraes mais velhas, interessadas em preservar o mundo
frgil por elas contrudo com tanto cuidado, tratam de esconder dos
mais novos, inconscientemente, a qualidade artificial (e precria)
das coisas que esto a. Porque, caso contrrio, os jovens poderiam
comear a ter ideias perigosas. . . De fato, se tudo o que constitui
o mundo humano artificial e convencional, ento este mundo pode ser
abolido e refeito de outra forma. Mas quem se atreveria a pensar
pensamentos como este em relao a um mundo que tivesse a solidez das
coisas naturais?Isto se aplica de maneira peculiar aos smbolos. De
tanto serem repetidos e compartilhados, de tanto serem usados, com
sucesso, guisa de receitas, ns os reificamos, passamos a trat-los
como se fossem coisas. Todos os smbolos que so usados com sucesso
experimentam esta metamorfose. Deixam de ser hipteses da imaginao e
passam a ser tratados como manifestaes da realidade. Certos smbolos
derivam o seu sucesso do seu poder para congregar os homens, que os
usam para definir a sua situao e articular um projeto comum de
vida. Tal o caso das religies, das ideologias, das utopias. Outros
se impem como vitoriosos pelo seu poder para resolver problemas
prticos, como o caso da magia e da .cincia. Os smbolos vitoriosos,
e exata-mente por serem vitoriosos, recebem o nome de verdade,
enquanto que os smbolos derrotados so ridicularizados como
supersties ou perseguidos como heresias.E ns, que desejamos saber o
que a religio, que j sabemos que ela se apresenta como uma rede de
smbolos, temos de parar por um momento para nos perguntar sobre o
que ocorreu com aqueles que herdamos. Que fizeram conosco? Que
fizemos com eles? E para compreender o processo pelo qual nossos
smbolos viraram coisas e construram um mundo, para depois
envelhecer e desmoronar em meio a lutas, temos de reconstruir uma
histria. Porque foi em meio a uma histria cheia de eventos
dramticos, alguns grandiosos, outros mesquinhos, que se forjaram as
primeiras e mais apaixonadas respostas pergunta "o que a religio?"
No processo histrico atravs do qual nossa civilizao se formou,
recebemos uma herana simblico-religiosa, a partir de duas
vertentes. De um lado, os hebreus e os cristos. Do outro, as
tradies culturais dos gregos e dos romanos. Com estes smbolos
vieram vises de mundo totalmente distintas, mas eles se
amalgamaram, transformando-se mutuamente, e vieram a florescer em
meio s condies materiais de vida dos povos que os receberam. E foi
da que surgiu aquele perodo de nossa histria batizado como Idade
Mdia.No conhecemos nenhuma poca que lhe possa ser comparada. Porque
ali os smbolos do sagrado adquiriram uma densidade, uma con-cretude
e uma onipresena que faziam com que o mundo invisvel estivesse mais
prximo e fosse mais sentido que as prprias realidades materiais.
Nada acontecia que no o fosse pelo poder do sagrado, e todos sabiam
que as coisas do tempo esto iluminadas pelo esplendor e pelo terror
da eternidade. No por acidente que toda a sua arte seja dedicada s
coisas sagradas e que nela a natureza no aparea nunca tal como
nossos olhos a vem. Os anjos descem terra, os cus aparecem ligados
ao mundo, enquanto Deus preside a todas as coisas do topo de sua
altura sublime. E havia possesses demonacas, bruxas e bruxarias,
milagres, encontros com o diabo, e as coisas boas aconteciam porque
Deus protegia aqueles que o temiam, e as desgraas e pestes eram por
Ele enviadas como castigos para o pecado e a descrena. Todas as
coisas tinham seus lugares apropriados, numa ordem hierrquica de
valores, porque Deus assim havia arrumado o universo, sua casa,
estabelecendo guias espirituais e imperadores, no alto, para
exercer o poder e usar a espada, colocando l em baixo a pobreza e o
trabalho no corpo de outros.Tudo girava em torno de um ncleo
central, temtica que unificava todas as coisas: o drama da salvao,
o perigo do inferno, a caridade de Deus levando aos cus as almas
puras. E perfeita-mente compreensvel que tal drama tenha exigido e
estabelecido uma geografia que localizava com preciso o lugar das
moradas do demnio e as coordenadas das manses dos bem
aventurados.Se o universo havia sado, por um ato de criao pessoal,
das mos de Deus e era inclusive possvel determinar com preciso a
data de evento to grandioso e se Ele continuava, pela sua graa, a
sustentar todas as coisas, conclua-se que tudo, absolutamente tudo,
tinha um propsito definido. E era esta viso teleolgica da realidade
(de tetos, que, em grego, significa fim, propsito) que determinava
a pergunta fundamental que a cincia medieval se propunha: "para
qu?. Conhecer alguma coisa era saber a que fim ela se destinava. E
os filsofos se entregavam a investigao dos sinais que, de alguma
forma, pudessem indicar o sentido de cada uma e de todas as coisas.
E assim que um homem como Kepler dedica toda sua vida ao estudo da
astronomia na firme convico de que Deus no havia colocado os
planetas no cu por acaso. Deus, era um grande msico-gemetra, e as
regularidades matemticas dos movimentos dos astros podiam ser
decifradas de sorte a revelar a melodia que Ele fazia os planetas
cantarem em coro, no firmamento, para o xtase dos homens. No final
de suas investigaes ele chegou a representar cada um dos planetas
por meio de uma nota musical. O que Kepler fazia em relao aos
planetas os outros faziam com as plantas, as pedras, os animais, os
fenmenos fsicos e qumicos, perguntando-se acerca de suas
finalidades estticas, ticas, humanas. . . De fato, era isto mesmo:
o universo inteiro era compreendido como algo dotado de um sentido
humano. justamente aqui que se encontra o seu carter essencialmente
religioso.Aqui eu me detenho para um parntesis. Imagino que o
leitor sorria, espantado perante tanta imaginao. Curioso, mas
sempre assim: de dentro do mundo encantado das fantasias, elas
sempre se apresentam com a solidez das montanhas. Para os medievais
no havia fantasia alguma. Seu mundo era slido, constitudo por
fatos, comprovados por inmeras evidncias e alm de quaisquer dvidas.
Sua atitude para com o seu mundo era idntica nossa atitude para com
o nosso. Como eles, somos incapazes de reconhecer o que de
fantasioso existe naquilo que julgamos ser terreno slido, terra
firme. E o que fascinante que uma civilizao construda com as
fantasias tenha sobrevivido por tantos sculos. E nela os homens
viveram, trabalharam, lutaram, construram cidades, fizeram msica,
pintaram quadros, ergueram catedrais.. . Curioso este poder das
fantasias para construir teias fortes bastante para que nelas os
homens se abriguem. Poucos foram os que duvidaram. Receitas que
produzem bolos gostosos no so questionadas; quando um determinado
sistema de smbolos funciona de maneira adequada, as dvidas no podem
aparecer. A receita rejeitada quando o bolo fica sistematicamente
duro; a dvida e os questionamentos surgem quando a ao frustrada em
seus objetivos. Aqueles que duvidam ou propem novos sistemas de
ideias, ou so loucos ou so ignorantes, ou so iconoclastas
irreverentes.Aconteceu, entretanto, que aos poucos, mas de forma
constante, progressiva, crescente, os homens comearam a fazer
coisas no previstas no receiturio religioso. No eram aqueles que
ficavam na cpula da hierarquia sagrada que as faziam. E nem aqueles
que estavam condenados aos seus subterrneos. Os que esto em cima
raramente empreendem coisas diferentes. No lhes interessa mudar as
coisas. O poder e a riqueza so benevolentes para com aqueles que os
possuem. E os que se acham muito por baixo, esmagados ao peso da
situao, gastam suas poucas energias na simples luta por um pouco de
po. Evitar a morte pela fome j um triunfo. Foi de uma classe social
que se encontrava no meio que surgiu uma nova e subversiva
atividade econmica, que corroeu as coisas e os smbolos do mundo
medieval.Em oposio aos cidados do mundo sagrado, que haviam criado
smbojos que lhes permitissem compreender a realidade como um drama
e. visualizar seu lugar dentro de sua trama, nova classe
interessavam atividades como produzir comercianalizar, racionalizar
o trabalho, viajar para descobrir novos mercados, obter lucros,
criar riquezas. E, se os primeiros se definiam em termos das marcas
divinas que possuam por nascimento, os ltimos afirmavam: "Por
nascimento nada somos. Ns nos fizemos. Somos o que produzimos". E
assim contrastava a sacralidade intil dos que ocupavam os lugares
privilegiados da sociedade medieval com a utilidade prtica daqueles
que, sem marcas de nascimento, eram entretanto capazes de alterar a
face do mundo por meio do seu trabalho. Em nome do princpio da
utilidade a tradio ser, de maneira sistemtica, sacrificada
racionalidade da produo da riqueza. Aquilo que no til deve
perecer.Na medida em que o utilitarismo se imps e passou a governar
as atividades das pessoas, processou-se uma enorme revoluo no campo
dos smbolos. Alguns acham que isto ocorreu por entenderem que os
smbolos so cpias, reflexos, ecos daquilo que fazemos. Se isto for
verdade, os smbolos no passam de efeitos de causas materiais, eles
mesmos vazios de qualquer tipo de eficcia. Acontece que, como j
sugerimos, os smbolos no so meras entidades ideais. Eles ganham
densidade, invadem o mundo e a se colocam ao lado de arados e de
armas. Por isto rejeito que eles sejam uma simples traduo, numa
outra linguagem, das formas materiais da sociedade e suas
necessidades vitais. O que necessidades vitais. O que ocorre que,
ao surgirem problemas novos, relativos vida concreta, os homens so
praticamente obrigados a inventar receitas conceptuais novas.
Produziu-se, ento, uma nova orientao para o pensamento, derivada de
uma vontade nova de manipular e controlar a natureza. O homem
medieval desejava contemplar e compreender. Sua atitude era
passiva, receptiva. Agora a necessidade da riqueza inaugura uma
atitude agressiva, ativa, pela qual a nova classe se apropria da
natureza, manipula-a, controla-a, fora-a a submeter-se s suas
intenes, integrando-se na linha que vai das minas e dos campos s
fbricas, e destas aos mercados. E silenciosamente a burguesia
triunfante escreve o epitfio da ordem sacral agonizante: "os
religiosos, at agora, tem buscado entender a natureza; mas o que
importa no entender, mas transformar".Que ocorreu ao universo
religioso?O universo religioso era encantado. Um mundo encantado
abriga, no seu seio, poderes e possibilidades que escapam s nossas
capacidades de explicar, manipular, prever. Trata-se, portanto, de
algo que nem pode ser completamente compreendido pelo poder da
razo, e nem completamente racionalizado e organizado pelo poder do
trabalho.Mas como poderia o projeto da burguesia sobreviver num
mundo destes, obscurecido por mistrios e anarquizado por
imprevistos? Sua inteno era produzir, de forma racional, o
crescimento da riqueza. Isto exigia o estabelecimento de um aparato
de investigao que produzisse os resultados de que se tinha
necessidade. E que instrumento mais livre de pressupostos
irracionais religiosos, mais universal, mais transparente pode
existir que a matemtica? Linguagem totalmente vazia de mistrios,
totalmente dominada pela razo: instrumento ideal para a construo de
um mundo tambm vazio de mistrios e dominado pela razo. Por outro
lado, como a atividade humana prtica s se pode dar sobre objetos
visveis e de propriedades sensveis evidentes, as entidades
invisveis do mundo religioso no podiam ter funo alguma a
desempenhar neste universo. E eu o convidaria a voltar ao curto
trecho de Hume, que coloquei como epgrafe deste captulo, pois que
ele revela claramente o esprito do mundo utilitrio que se
estabeleceu, e o destino que ele reservou para os smbolos da
imaginao: as chamas.Perde a natureza sua aura sagrada. Nem os cus
proclamam a glria de Deus, como acreditava Kepler, e terra anuncia
o seu amor. Cus e terra no so o poema de um Ser Supremo invisvel. E
por isto que no existe nenhum interdito, nenhuma proibio, nenhum
tabu a cerc los. A natureza nada mais que uma fonte de
matrias-primas, entidade bruta, destituda de valor. O respeito pelo
rio e pela fonte. que poderia impedir que eles viessem a ser
poludos, o respeito pela floresta, que poderia impedir que ela
viesse a ser cortada, o respeito pelo ar e pelo mar, que exigiria
que fossem preservados, no tm lugar no universo simblico instaurado
pela burguesia. O seu utilitarismo s conhece o lucro como padro
para a avaliao das coisas. E at mesmo as pessoas perdem seu valor
religioso. No mundo medieval, por mais desvalorizado que fossem, o
seu valor era algo absoluto, pois lhes era conferido pelo prprio
Deus. Agora algum vale o quanto ganha, enquanto ganha. Muito do que
se pensou sobre a religio tem suas origens neste conflito. E
asrespostas dadas pergunta "o que a religio?" tm muito a ver com as
leaIdades das pessoas envolvidas. A condenao do sagrado era exigida
plos interesses da burguesia e o avano da secularizao. Este
conflito, na verdade, no se circunscreve de maneira precisa, no est
contido dentro de limites estreitos de tempo e espao, porque ele
ressurge e se mantm vivo nas fronteiras da expanso do capitalismo e
onde quer que a dinmica da produo dos lucros colida com os mundos
sacrais. Basta abrir os nossos jornais e tomar cincia das tenses
entre Igreja e Estado, Igreja e interesses econmicos. A argumentao
a mesma. As ideias se repetem. Que a religio cuide das realidades
espirituais, que das coisas materiais a espada e o dinheiro se
encarregam. necessrio reconhecer que a religio representava o
passado, a tradio. Tratava-se de uma forma de conhecimento surgido
em meio a uma organizao social e poltica derrotada.A cincia, por
sua vez, alinhava-se ao lado dos vitoriosos e era por eles
subvencionada. Seus mtodos e concluses se mostravam
extraordinariamente adaptados lgica do mundo burgus. Importava-lhe,
antes de mais nada, para no dizer exclusivamente, saber como as
coisas funcionam. Conhecer saber o funcionamento. E quem sabe o
funcionamento tem o segredo da manipulao e do controle. E assim que
este tipo de conhecimento abre o caminho da tcnica, fazendo a ligao
entre a universidade e a fbrica, a fbrica e o lucro. A que distncia
nos encontramos da cincia medieval que se perguntava acerca da
finalidade das coisas e buscava ouvir harmonias e vislumbrar
propsitos divinos nos acontecimentos do mundo!O sucesso da cincia
foi total. Coisas bem-sucedidas no podem ser questionadas. Como
duvidar da eficcia? Impe-se a concluso: a cincia est ao lado da
verdade. O conhecimento s nos pode chegar atravs da avenida do
mtodo cientfico. E isto significa, antes de mais nada, rigorosa
objetividade. Submisso do pensamento ao dado, subordinao da
imaginao observao. Os fatos so elevados categoria de valores.
Instaura-se um discurso cujo nico propsito dizer as presenas. As
coisas que so ditas e pensadas devem corresponder s coisas que so
vistas e percebidas. Isto a verdade.E o discurso religioso?
Enunciado de ausncias, negao dos dados, criao da imaginao: s pode
ser classificado como engodo consciente ou perturbao mental.
Porque, se ele "no contm qualquer raciocnio abstraio relativo
quantidade e ao nmero", "no contm raciocnios experimentais que
digam respeito a matrias de fato e existncia", "no pode conter
coisa alguma a no ser sofismas e iluses".Pior que enunciado de
falsidades, discurso destitudo de sentido. Se digo "o fogo frio",
estou dizendo uma falsidade. Digo algo que qualquer pessoa entende;
s que no verdade. Mas se afirmo "o fogo, diante da probabilidade,
escureceu o silncio", o leitor ficar pasmo e dir: "Conheo todas as
palavras, uma a uma. Mas a coisa no faz sentido". Para que um
enunciado possa ser declarado falso necessrio que ele faa sentido.
Mas a cincia nem mesmo a falsidade concedeu religio. Declarou-a
discurso destitudo de sentido, por se referir a entidades
imaginrias. . .Estabeleceu-se, assim, um quadro simblico no qual no
havia lugar para a religio. Foi identificada com o passado, o
atraso, a ignorncia de um perodo negro da histria. Idade das
Trevas, e explicada como comportamento infantil de povos e grupos
no evoludos, iluso, pio, neurose, ideologia. Opondo-se a este
quadro sinistro, um futuro luminoso de progresso, riqueza, e
conhecimento cientfico. E assim no foram poucos os que escreveram
precoces necrolgios do sagrado, e fizeram profecias do
desaparecimento da religio e do advento de uma ordem social
totalmente secularizada e profana.Mas, se tal quadro de interpretao
do fenmeno religioso se estabeleceu, foi porque, de fato, ela
perdeu seu poder e centralidade. Como dizia Rickert, com o triunfo
da burguesia Deus passou a ter problemas habitacionais crnicos.
Despejado de um lugar, despejado de outro. .. Progressivamente foi
empurrado para fora do mundo. Para que os homens dominem a terra
necessrio que Deus seja confinado aos cus.E assim se dividiram reas
de influncias.Aos negociantes e polticos foram entregues a terra,
os mares, os rios, os ares, os campos, as cidades, as fbricas, os
bancos, os mercados, os lucros, os corpos das pessoas. A religio
foi aquinhoada com a administrao do mundo invisvel, o cuidado da
salvao, a cura das almas aflitas.Curioso que ainda tivesse sobrado
tal espao para a religio. Curioso que os fatos da economia no
tivessem liquidado, de vez, o sagrado. Parece, entretanto, que h
certas realidades antropolgicas que permanecem, a despeito de tudo
As pessoas continuam a ter noites de insnia e a pensar sobre a vida
e sobre a morte.. . E os negociantes e banqueiros tambm tm alma, no
lhes bastando a posse da riqueza, sendo-lhes necessrio plantar
sobre ela tambm as bandeiras do sagrado. Querem ter a certeza de
que a riqueza foi merecida, e buscam nela os sinais do favor divino
e a cercam das confisses de piedade. No por acidente que a mais
poderosa das moedas se apresente tambm como a mais piedosa,
trazendo gravada em si mesma a afirmao "In God we trust" "ns
confiamos em Deus". .. E tambm os operrios e camponeses possuem
almas e necessitam ouvir as canes dos cus a fim de suportar as
tristezas da terra. E sobreviveu o sagrado tambm como religio dos
oprimidos. . .A COISA QUE NUNCA MENTE"No existe religio alguma que
seja falsa. Todas elas respondem, de formas diferentes, a condies
dadas da existncia humana." (E. Durkheim)
No mundo dos homens encontramos dois tipos de coisas. Em
primeiro lugar, h as coisas que significam outras: so as
coisas/smbolo. Uma aliana significa casamento; uma cdula significa
um valor; uma afirmao significa um estado de coisas, alm dela
mesma. Mas algum pode usar uma aliana na mo esquerda sem ser
casado. Uma cdula pode ser falsa. Uma afirmao pode ser uma mentira.
Por isto, quando nos defrontamos com as coisas que significam
outras, inevitvel que levantemos perguntas acerca de sua verdade ou
falsidade.Depois, h as coisas que no significam outras. Elas so
elas mesmas, no apontam para nada, so destitudas de sentido. Tomo
um copo d'gua. A gua mata a sede. Isto me basta. No me pergunto se
a gua verdadeira. Ela cristalina, fria, gostosa.. . O fogo fogo.
Que que ele significa? Nada. Significa-se a si mesmo. Ele aquece,
ilumina, queima. Perguntar se ele verdadeiro no faz sentido. Aquela
flor, l no meio do jardim, nascida por acidente de uma semente que
o vento levou, tambm no significa coisa alguma. A flor a flor. De
uma flor, como de todas as coisas que no significam outras, no
posso levantar a questo acerca da verdade, a questo epistemolgica.
Mas posso perguntar se ela perfumada, se bela, se perfeita. ..
Coisas que nada significam podem ser transformadas em smbolos. A
raposa comeou a ficar feliz ao olhar para o trigal.. . Tambm o fogo
se transforma em smbolo nas velas dos altares ou nas piras
olmpicas. E a flor pode ser uma confisso de amor ou uma afirmao de
saudade, se jogada sobre uma sepultura... Coisas que nada
significam podem passar a significar, por meio de um artifcio:
basta que sobre elas escrevamos algo, como fazem os namorados que
gravam seus nomes nas cascas de rvores, e aqueles que, acreditando
em sua prpria importncia, mandam colocar placas comemorativas com
seus nomes em letras grandes sobre as pirmides e viadutos que
mandam construir.s vezes at mesmo as palavras, coisas/smbolo por
excelncia, se transformam em coisas. A arte nos ajuda a compreender
isto. Ao olhar para um quadro ou uma escultura fcil ver neles
smbolos que significam um cenrio ou uma pessoa. Assim, o grau de
verdade da obra de arte seria medido por sua fidelidade em copiar o
original. Uma obra de arquitetura copia o qu? No copia coisa
alguma. Trata-se de uma construo que o artista faz, usando certos
materiais, e esta obra passa a ser uma coisa entre outras coisas.
Uma tela de Picasso deveria ter um baixo grau de verdade. Em nada
se parece com o original. No poderamos aventar a hiptese de que o
artista plstico no est em busca de verdade, de conformidade entre
sua obra e um original, mas que, ao contrrio, est construindo uma
coisa, ela mesma original e nica?Algum perguntou a Beethoven,
depois de haver ele executado ao piano uma de suas composies:"Que
quer o senhor dizer com esta pea musical? Que que ela significa?"
"O que ela significa? O que quero dizer? E simples."Assentou-se ao
piano e executou a mesma pea.Ela no significava coisa alguma. No se
tratava de uma coisa que significa outra, um smbolo. Ela era a
prpria coisa.Arquitetos, artistas plsticos, msicos, constrem coisas
usando tijolos, tintas e bronze, sons. E h aqueles que constrem
coisas usando palavras. Medite sobre esta afirmao de Archibald Mac
Leish.
"Um poema deveria ser palpvel e mudo como um fruto redondo,um
poema deveria no ter palavras como o voo dos pssaros, um poema no
deveria significar coisa algumae simplesmente. . . ser."
Lembro-me que, quando menino, em uma cidade do interior, os
homens se reuniam aps o jantar para contar casos. As estrias eram
fantsticas, e todos sabiam disto. Mas nunca ouvi ningum dizer ao
outro: "Voc est mentindo". A reao apropriada a um caso fantstico
era outra: "Mas isto no nada". E o novo artista iniciava a construo
de um outro objeto de palavras. Faz pouco tempo que me dei conta de
que, naquele jogo, o julgamento de verdade e falsidade no entrava.
Porque as coisas eram ditas no para significar algo. As coisas eram
ditas a fim de construir objetos que podiam ser belos, fascinantes,
engraados, grotescos, fantsticos - mas nunca falsos. . .H certas
situaes em que as palavras deixam de significar, abandonam o mundo
da verdade e da falsidade, e passam a existir ao lado das
coisas.Quem confunde coisas que significam com coisas que nada
significam comete graves equvocos.As obras de Bach foram
descobertas por acaso quando eram usadas para embrulhar carne num
aougue. O aougueiro no entendia os smbolos, no conseguia entender o
texto escrito e, consequentemente, no podia ouvir a msica. Para ele
a nica realidade era a coisa: o papel, muito bom para embrulhar.A
cincia medieval olhava para o universo e pensava que ele era um
conjunto de coisas que significavam outras. Cada planeta era um
smbolo. Deveriam ser decifrados para que ouvssemos a mensagem de
que eram portadores. E Kepler tentou descobrir as harmonias
musicais destes mundos. . . A Fsica s avanou quando o universo foi
reconhecido como coisa. E foi assim que Galileu parou de perguntar
o que que o universo significa e concentrou-se simplesmente em
saber o que ele , como funciona, quais as leis que o regem.Quem se
propuser a entender a funo do dlar a partir da coisa escrita que
est impressa nas cdulas chegaria a concluses cmicas. O dlar no se
entende a partir do significado de In God we trust", mas a partir
do seu comportamento como coisa do mundo da economia. Foi isto que
os empiristas/positivistas fizeram com a religio. Ignoraram-na como
coisa social e se concentraram nos enunciados e afirmaes que
aparecem junto a ela. Concluram que o discurso religioso nada
significava. Concluso to banal quanto afirmar que a gua, o fogo e a
flor no tm sentido algum. No lhes passou pela cabea que as palavras
pudessem ser usadas para outras coisas que no significar. No
perceberam que as palavras podem ser matria-prima com que se
constrem mundos.A situao irnica. Na Idade Mdia os filsofos, de
dentro de sua perspectiva religiosa, desejavam ver mensagens
escritas nos cus. Contemplavam o universo como um texto dotado de
significao. Mas a cincia no saiu do seu impasse enquanto no se
reconheceu que estrelas e planetas so coisas, nada significam.Agora
a situao se inverteu. So os empiristas/positivistas que insistem em
interpretar a religio como um texto, ignorando-a como coisa. E ento
que ocorre a revoluo sociolgica. Mudana radical de perspectiva. E
um novo mundo de compreenso da religio se instaura com a
afirmao:"Considere os fatos sociais como se fossem coisas."E
Durkheim comenta:
"Diz-se que a cincia, em princpio, nega a religio. Mas a religio
existe. Constitui-se num sistema de fatos dados. Em uma palavra:
ela uma realidade. Como poderia a cincia negar tal realidade?"
Ora, se a religio um fato, os julgamentos de verdade e de
falsidade no podem ser a ela aplicados. "No existe religio alguma
que seja falsa", continua ele, horrorizando empiricistas e
sacerdotes, blasfemos e beatos. A religio uma instituio e nenhuma
instituio pode ser edificada sobre o erro ou uma mentira. "Se ela
no estivesse alicerada na prpria natureza das coisas, teria
encontrado, nos fatos, uma resistncia sobre a qual no poderia ser
triunfado." E ele continua:
"Nosso estudo descansa inteiramente sobre o postulado de que o
sentimento unnime dos crentes de todos os tempos no pode ser
puramente ilusrio. Admitimos que estas crenas religiosas descansam
sobre uma experincia especfica cujo valor demonstrativo , sob um
.determinado ngulo, um nada inferior quele das experincias
cientficas, muito embora sejam diferentes."
Todos concordariam em que seria acientfico denunciar a lei da
gravidade sob a alegao de que muitas pessoas tm morrido em
decorrncia de quedas. Se assim procedemos em relao aos fatos do
universo fsico, por que nos comportamos de forma diferente em relao
aos fatos do universo humano? Antes de mais nada necessrio
entender. E j dispomos de uma suspeita: ao contrrio daqueles que
imaginavam que a religio era um fenmeno passageiro, em vias de
desaparecimento, a sua universalidade e persistncia nos sugerem que
ela nos revela "um aspecto essencial e permanente da humanidade".
Que so as religies? primeira vista nos espantamos com a imensa
variedade de ritos e mitos que nelas encontramos, o que nos faz
pensar que talvez seja impossvel descobrir um trao comum a todas.
No entanto, assim como no jogo de xadrez a variedade dos lances se
d sempre em cima de um tabuleiro, quadriculado e dividido em espaos
brancos e pretos, as religies, sem exceo alguma, estabelecem uma
diviso bipartida do universo inteiro, que se racha em duas classes
nas quais est contido tudo o que existe. E encontramos assim o
espao das coisas sagradas e, delas separadas por uma srie de
proibies, as coisas seculares ou profanas.Sagrado e profano no so
propriedades das coisas. Eles se estabelecem pelas atitudes dos
homens perantes coisas, espaos, tempos, pessoas, aes. O mundo
profano o crculo das atitudes utilitrias. Que uma atitude
utilitria? Quando minha esferogrfica Bic fica velha, eu a jogo
fora. Fao o mesmo com pregos enferrujados. Um medicamento cujo
prazo de validez foi esgotado vai para o lixo. Antigamente se usava
o coador de pano para fazer o caf. Depois apareceram os coadores de
papel, mais "prticos", e os antigos foram aposentados como inteis.
Depois a inflao fez com que o velho coador de pano ficasse mais til
que o de papel. mais econmico. Num mundo utilitrio no existe coisa
alguma permanente. Tudo se torna descartvel. O critrio da utilidade
retira das coisas e das pessoas todo valor que elas possam ter, em
si mesmas, e s leva em considerao se elas podem ser usadas ou no.
assim que funciona a economia. De fato, o crculo do profano e o
crculo do econmico se superpem. O que no til abandonado. Mas como o
indivduo que julga da utilidade ou no de uma determinada coisa,
esta uma rea em que os indivduos permanecem donos dos seus narizes
todo o tempo. Ningum tem nada a ver com as suas aes. Na medida em
que avana o mundo profano e secular, assim avana tambm o
individualismo e o utilitarismo.No crculo sagrado tudo se
transforma. No mbito secular o indivduo era dono das coisas, o
centro do mundo. Agora, ao contrrio, so as coisas que o possuem.
Ele no o centro de coisa alguma e se descobre totalmente dependente
de algo que lhe superior (Schleiermacher). Sente-se ligado s coisas
sagradas por laos de profunda reverncia e respeito; ele inferior; o
sagrado lhe superior, objeto de adorao. O sagrado o criador, a
origem da vida, a fonte da fora. O homem a criatura, em busca de
vida, carente de fora. Vo-se os critrios utilitrios. O homem no
mais o centro do mundo, nem a origem das decises, nem dono do seu
nariz. Sente-se dominado e envolvido por algo que dele dispe e
sobre ele impe normas de comportamento que no podem ser
transgredidas, mesmo que no apresentem utilidade alguma. De fato, a
transgresso do critrio de utilidade uma das marcas do crculo do
sagrado. O jejum, o perdo, a recusa em matar os animais sagrados
para comer, a autoflagelao e, no seu ponto extremo, o
autosacrifcio: todas estas so prticas que no se definem por sua
utilidade, mas simplesmente pela densidade sagrada que a religio
lhes atribui. E isto que as torna obrigatrias.Durkheim no
investigava a religio gratuitamente, por simples curiosidade. Ele
vivia num mundo que apresentava sinais de desintegrao e que estava
rachado por todos os problemas advindos da expanso do capitalismo
problemas semelhantes aos nossos. E era isto que o levava a
perguntar: como possvel a sociedade? Que fora misteriosa esta que
faz com que indivduos isolados, cada um deles correndo atrs dos
seus interesses, em conflitos uns com os outros, no se destruam uns
aos outros? Por que no se devoram? Qual a origem da razovel
harmonia da vida social?A resposta que havia sido anteriormente
proposta para esta questo dizia que os indivduos, impulsionados por
seus interesses, haviam criado a sociedade como um meio para a sua
satisfao. O indivduo toma a deciso, a sociedade vem depois. O
indivduo no centro, a sociedade como sistema que gira ao seu redor.
Tudo isto se encaixa muito bem naquele esquema utilitrio,
pragmtico, do mundo secular, que indicamos. E, ainda mais, se a
sociedade um meio, ela praticamente tem o estatuto daqueles objetos
que podem ser descartados quando perdem a sua utilidade.O problema
est em que a vida social, tal como a conhecemos, no se enquadra
neste jogo secular e utilitrio. As coisas mais srias que fazemos
nada tm a ver com a utilidade. Resultam de nossa reverncia e
respeito por normas que no criamos, que nos coagem, que nos pem de
joelhos.. Do ponto de vista estritamente utilitrioseria mais
econmico matar os velhos, castrar os portadores de defeitos
genticos, matar as crianas defeituosas, abortar as gravidezes
acidentais e indesejadas, fazer desaparecer os adversrios polticos,
fuzilar os criminosos e possveis criminosos... Mas alguma coisa nos
diz que tais coisas no devem ser feitas. Por qu? Porque no. Por
razes morais, sem justificativas utilitrias. E mesmo quando as
fazemos, sem sermos apanhados, h uma voz, um sentimento de culpa, a
conscincia, que nos diz que algo sagrado foi violentado.Que ocorre
quando a secularizao avana, o utilitarismo se impe e o sagrado se
dissolve? Roubadas daquele centro sagrado que exigia a reverncia
dos indivduos para com as normas da vida social, as pessoas perdem
os seus pontos de orientao. Sobrevm a anomia. E a sociedade se
estilhaa sob a crescente presso das foras centrfugas do
individualismo. Se possvel quebrar as normas, tirar proveito e
escapar ileso, que argumento utilitrio pode ser invocado para
evitar o crime?O sagrado o centro do mundo, a origem da ordem, a
fonte das normas, a garantia da harmonia. Assim, quando Durkheim
explorava a religio ele estava investigando as prprias condies para
a sobrevivncia da vida social. E isto o que afirma a sua mais
revolucionria concluso acerca da essncia da religio.Qual esta coisa
misteriosamente presente no centro do crculo sagrado? Donde surgem
as experincias religiosas que os homens explicaram e descreveram
com os nomes mais variados e os mitos mais distintos? Que
encontramos no centro das representaes religiosas? A resposta no
difcil.Nascemos fracos e indefesos; incapazes de sobreviver como
indivduos isolados; recebemos da sociedade um nome e uma
identidade; com ela aprendemos a pensar e nos tornamos racionais;
fomos por ela acolhidos, protegidos, alimentados; e, finalmente,
ela que chorar a nossa morte. compreensvel que ela seja o Deus que
todas as religies adoram, ainda que de forma oculta, escondida aos
olhos dos fiis. Assim, "esta realidade, representada pelas
mitologias de tantas formas diferentes, e que a causa obje-tiva,
universal e eterna das sensaes sui generis com as quais a
experincia religiosa feita, a sociedade".Aos fiis pouco importa que
suas ideias sejam correias ou no. A essncia da religio no a ideia,
mas a fora. "O fiel que entrou em comunho com o seu Deus no
meramente um homem que v novas verdades que o descrente ignora. Ele
se tornou mais forte. Ele sente, dentro de si, mais fora, seja para
suportar os sofrimentos da existncia, seja para venc-los." O
sagrado no um crculo de saber, mas um crculo de poder.Durkheim
percebe que a conscincia do sagrado s aparece em virtude da
capacidade humana para imaginar, para pensar um mundo ideal. Coisa
que no vemos nos animais, que permanecem sempre mergulhados nos
fatos. Os homens, ao contrrio, contemplam os fatos e os revestem
com uma aura sagrada que em nenhum lugar se apresenta como dado
bruto, surgindo apenas de sua capacidade para conceber o ideal e de
acrescentar algo ao real. Na verdade, o ideal e o sagrado so a
mesma coisa.Sua certeza de que a religio era o centro da sociedade
era to grande que ele no podia imaginar uma sociedade totalmente
profana e secularizada. Onde estiver a sociedade ali estaro os
deuses e as experincias sagradas. E chegou mesmo a afirmar que
"existe algo de eterno na religio que est destinado a sobreviver a
todos os smbolos particulares nos quais o pensamento religioso
sucessivamente se envolveu. No pode existir uma sociedade que no
sinta a necessidade de manter e reafirmar, a intervalos, os
sentimentos coletivos e ideias coletivas que constituem sua unidade
e personalidade". A religio pode se transformar. Mas nunca
desaparecer. E ele conclui reconhecendo um vazio e anunciando uma
esperana:"Os velhos deuses j esto avanados em anos ou j morreram, e
outros ainda no nasceram".
Entretanto,
"Um dia vir quando nossas sociedades conhecero de novo aquelas
horas de efervescncia criativa, nas quais ideias novas aparecem e
novas frmulas so encontradas que serviro, por um pouco, como um
guia para a humanidade. .."
AS FLORES SOBRE AS CORRENTES
"O sofrimento religioso , ao mesmo tempo, expresso de um
sofrimento real e protesto contra um sofrimento real. Suspiro da
criatura oprimida, corao de um mundo sem corao, esprito de uma
situao sem esprito: a religio o pio do povo." (K. Marx)
Entramos num outro mundo. Durkheim contemplou as tnues cores do
mundo sacral que desaparecia, como nuvens de crepsculo que passam
de rosa ao negro, sob as mudanas rpidas da luz que mergulha.
Fascinado, empreendeu a busca das origens, do tempo perdido. .. E l
se foi atrs da religio mais simples e primitiva que se conhecia,
sob a esperana de que o mundo sacra l-to tm io dos aborgenes
australianos nos oferecesse vises de um paraso uma ordem social
construda em torno de valores espirituais e morais. Penetra no
passado a fim de compreender o presente. Compreender com esperana.
. .Marx no habita o crepsculo. Vive j em plena noite. Anda em meio
aos escombros. Anali-sa a dissoluo.Elabora a cincia do capital e
faz o diagnstico do seu fim. Nada tem a pregar e nem oferece
conselhos. No procura parasos perdidos porque no acredita neles.
Mas dirige o seu olhar para os horizontes futuros e espera a vinda
de uma cidade santa, sociedade sem oprimidos e opressores, de
liberdade, de transfigurao ertica do corpo. . .Mas o solo em que
pisa desconhece o mundo sacral, de normas morais e valores
espirituais. Ele secularizado do princpio ao fim e somente conhece
a tica do lucro e o entusiasmo do capital e da posse. No importa
que os capitalistas frequentem templos e faam oraes, nem que
construam cidades sagradas ou sustentem movimentos missionrios, nem
ainda que haja gua benta na inaugurao das fbricas e celebraes de
aes de graas pela prosperidade, e muito menos que missas sejam
rezadas pela eterna salvao de suas almas. .. Este mundo ignora os
elementos espirituais. Salrios e preos no so estabelecidos nem pela
religio e nem pela tica. A riqueza se constri por meio de uma lgica
duramente material: a lgica do lucro, que no conhece a compaixo. Na
verdade, aqueles que tm compaixo se condenam a si mesmos destruio.
. . No se pode negar que os gestos e as falas ainda se referem aos
deuses e aos valores morais: maquila-gem, incenso, desodorante,
perfumaria, uma aura sagrada que tudo envolve no seu perfume, sem
que nada se altere. E Marx tem de insistir num procedimento
rigorosamente materialista de anlise. De fato, materialismo que uma
exigncia do prprio sistema que s conhece o poder dos fatores
materiais. a lgica do lucro e da riqueza que assim estabelece e no
as inclinaes pessoais daquele que a analisava.Poucas pessoas sabem
que o pensamento de Marx sobre a religio tomou forma e se
desenvolveu em meio a uma luta poltica que travou. E a luta no foi
nem com clrigos e nem com telogos, mas com um grupo de filsofos que
entendia que a religio era a grande culpada de todas as desgraas
sociais de ento, e desejava estabelecer um programa educativo com o
obje-tivo de fazer com que as pessoas abandonassem as iluses
religiosas. Marx estava convencido de que a religio no tinha culpa
alguma. E que no existia nada mais impossvel que a eliminao de
ideias, ainda que falsas, das cabeas dos homens. . . Porque as
pessoas no tm certas ideias porque querem. E imagino que clrigos e
religiosos podero esfregar as mos com prazer: "Finalmente
descobrimos um Marx do nosso lado". Nada mais distante da verdade.
A religio no era culpada pela simples razo de que ela no fazia
diferena alguma. Como poderia um eunuco ser acusado de deflorar uma
donzela? Como poderia a religio ser acusada de responsabilidade, se
ela no passava de uma sombra, de um eco, de uma imagem invertida,
projetada sobre a parede? Ela no era causa de coisa alguma. Um
sintoma apenas. E, por isto mesmo, os filsofos que se apresentavam
como perigosos revolucionrios no passavam de rplicas de D. Quixote,
investindo contra moinhos de vento.Marx no desejava gastar energias
com drages de papel. Estava em busca das foras que realmente movem
a sociedade. Porque era a, e somente a, que as batalhas deveriam
ser travadas.Que foras eram estas?Os filsofos revolucionrios a que
nos referimos, hegelianos de esquerda, desejavam que a sociedade
passasse por transformaes radicais. E eles entendiam que a ordem
social era construda com uma argamassa em que as coisas materiais
eram cimentadas umas nas outras por meio de ideias e formas de
pensar. Assim, armas, mquinas, bancos, fbricas, terras se
integravam por meio da religio, do direito, da filosofia, da
teologia. . . A concluso poltico-ttica se segue necessaria-mente:
se houver uma atividade capaz de dissolver ideias e modificar
formas antigas de pensar, o edifcio social inteiro comear a tremer.
E foi assim que eles se decidiram a travar as batalhas
revolucionrias no campo das ideias, usando como arma alguma coisa
que naquele tempo se chamava crtica. Hoje, possivelmente, eles
falariam de conscientizao. E investiram contra a religio.Marx se
riu disto. Os hegelianos vem as coisas de cabea para baixo. Pensam
que as ideias so as causas da vida social, quando elas nada mais so
que efeitos, que aparecem depois que as coisas aconteceram. . . "No
a conscincia que determina a vida; a vida que determina a
conscincia." E ele afirmava:"At mesmo as concepes nebulosas que
existem nos crebros dos homens so necessariamente sublimadas do seu
processo de vida, que material, empiricamente observvel e
determinado por premissas materiais. A produo de ideias, de
conceitos, da conscincia, est desde as suas origens diretamente
entrelaada com a atividade material e as relaes materiais dos
homens, que so a linguagem da vida real. A produo das ideias dos
homens, o pensamento, as suas relaes espirituais aparecem, sob este
ngulo, como uma emanao de sua condio material. A mesma coisa se
pode dizer da produo espiritual de um povo, representada pela
linguagem da poltica, das leis, da moral, da religio, da metafsica.
Os homens so os produtores de suas concepes."" o homem que faz a
religio; a religio no faz o homem." o fogo que faz a fumaa; a fumaa
no faz o fogo.
E, da mesma forma como intil tentar apagar o fogo assoprando a
fumaa, tambm intil tentar mudar as condies de vida pela crtica da
religio. A conscincia da fumaa nos remete ao incndio de onde ela
sai. De forma idntica, a conscincia da religio nos fora a encarar
as condies materiais que a produzem.Quem esse homem que produz a
religio?Ele um corpo, corpo que tem de comer, corpo que necessita
de roupa e habitao, corpo que se reproduz, corpo que tem de
transformar a natureza, trabalhar, para sobreviver.Mas o corpo no
existe no ar. No o encontramos de forma abstraia e universal. Vemos
homens indissoluvelmente amarrados aos mundos onde se d sua luta
pela sobrevivncia, e exibindo em seus corpos as marcas da natureza
e as marcas das ferramentas. Os bias-frias, os pescadores, os que
lutam no campo, os que trabalham nas construes, os motoristas de
nibus, os que trabalham nas forjas e prensas, os que ensinam
crianas e adultos a ler cada um deles, de maneira especfica, traz
no seu corpo as marcas do seu trabalho. Marcas que se traduzem na
comida que podem comer, nas enfermidades que podem sofrer, nas
diverses a que podem se dar, nos anos que podem viver, e nos
pensamentos com que podem sonhar suas religies e esperanas.Marx
tambm sonhava e imaginava. E muito embora haja alguns que o
considerem importante em virtude da cincia econmica que
estabeleceu, desprezando como arroubos juvenis os voos de sua
fantasia, coloco-me entre aqueles outros que invertem as coisas e
se detm especialmente nas fronteiras em que o seu pensamento invade
os horizontes das utopias. E Marx se perguntava sobre um outro tipo
de trabalho que daria prazer e felicidade aos homens, trabalho
companheiro das criaes dos artistas e do prazer no utilitrio do
brinquedo e do jogo. . . Trabalho expresso da liberdade, atividade
espiritual criadora, construtor de um mundo em harmonia com a
inteno. . . claro que Marx nunca viu este sonho utpico realizado em
sociedade alguma. Foi ele que o construiu a partir de pequenos
fragmentos de experincia, trabalhados pela memria e pela esperana.
Mas so estes horizontes utpicos que aguam os olhos para que eles
percebam os absurdos do "topos", o lugar que habitamos. E, ao
contemplar o trabalho, o que ele descobriu foi alienao do princpio
ao fim.O que alienao?Alienar um bem: transferir para uma outra
pessoa a posse de alguma coisa que me pertence. Tenho uma casa:
posso do-la ou vend-la a um outro. Por este processo ela alienada.
A alienao, assim, no algo que acontece na cabea das pessoas.
Trata-se de um processo objetivo, externo, de transferncia, de uma
pessoa a outra, de algo que pertencia primeira.Por que o trabalho
marcado pela alienao?Voltemos por um instante ao trabalho no
alienado, criador, livre, que Marx imaginou. Sua marca essencial
est nisto: o homem deseja algo. Seu desejo provoca a imaginao que
visualiza aquilo que desejado, seja um jardim, uma sinfonia ou um
simples brinquedo. A imaginao e o desejo informam o corpo, que se
pe inteiro a trabalhar, por amor ao objeto que deve ser criado. E
quando o trabalho termina o criador contempla sua obra, v que muito
boa e descansa. ..Que acontece com aquele que trabalha dentro das
atuais condies?Em primeiro lugar, ele tem de alienar o seu desejo.
Seu desejo passa a ser o desejo de outro. Ele trabalha para
outro.Em segundo lugar, o objeto a ser produzido no resultado de
uma deciso sua. Ele no est gerando um filho seu. Na verdade, ele no
est metido na produo de objeto algum porque com a diviso da produo
numa srie de atos especializados e independentes, ele rebaixado da
condio de construtor de coisas condio de algum que simplesmente
aperta um parafuso, aperta um boto, d uma martelada. Se se
perguntar a um operrio de uma fbrica de automveis: "que que voc
faz?", nenhum deles dir "eu fao automveis. Voc j viu como so
bonitos os carros que fabrico?". Eles no diro que objetos produzem,
mas que funo especializada seus corpos fazem: "Sou torneiro. Sou
ferramenteiro. Sou eletricista."Em terceiro lugar, e em consequncia
do que j foi dito, o trabalho no atividade que d prazer, mas
atividade que d sofrimento. O homem trabalha porque no tem outro
jeito. Trabalho forado. Seu maior ideal: a aposentadoria. O prazer,
ele ir encontrar fora do trabalho. E por isto que ele se submete ao
trabalho e ao pago do salrio.Em ltimo lugar, o trabalho cria um
mundo independente da vontade de operrios. . . e capitalistas.
Porque tambm os capitalistas esto alienados. Eles no podem fazer o
que desejam. Todo o seu comportamento rigorosamente determinado
pela lei do lucro. No difcil compreender como isto acontece.
Imaginemos que voc, sabendo que o bom do capitalismo ser
capitalista, e dispondo de uma certa importncia ajuntada na
poupana, resolva dar voos mais altos e investir na bolsa de
valores. Como que voc ir proceder? Voc dever consultar tabelas que
o informem dos melhores investimentos. E que que voc vai encontrar
nelas? Nmeros, nada mais. Nmeros indicam as possibilidades de
lucro. Se as firmas em que voc vai investir esto derrubando
florestas e provocando devastaes ecolgicas, se elas prosperam pela
produo de armas, se elas so injustas e cruis com os seus
empregados, tudo isto absolutamente irrelevante. Estabelecida a
lgica do lucro, todas as coisas da talidomida ao napalm se
transformam em mercadorias, inclusive o operrio. Este o mundo
secular, utilitrio, que horrorizava Durkheim. o mundo capitalista,
regido pela lgica do dinheiro. E o que ocorre que o mundo
estabelecido pela lgica do lucro que inclui de devastaes ecolgicas
at a guerra est totalmente alienado, separado dos desejos das
pessoas, que prefeririam talvez coisas mais simples. . . Assim, as
reas verdes so entregues especulao imobiliria, os ndios perdem suas
terras porque gado melhor para a economia que ndio, as terras vo-se
transformando em desertos de cana, enquanto que rios e mares viram
caldos venenosos, e os peixes biam, mortos...Mas que fatores levam
os trabalhadores a aceitar tal situao? Por que trabalham de forma
alienada? Por que no saem para outra? Porque no h alternativas.
Eles s possuem os seus corpos. Para produzir devero acopl-los s
mquinas, aos meios de produo. Mquinas e meios de produo no so seus,
e so governados pela lgica do lucro. E assim que o prprio conceito
de alienao nos revela uma sociedade partida entre dois grupos, duas
classes sociais. Duas maneiras totalmente diferentes de ser do
corpo. Os trabalhadores so acoplados s mquinas e, por isto, tm de
seguir o seu ritmo e fazer o que elas exigem. Isto deixar marcas
nas mos, na postura, no rosto, nos olhos, especialmente os olhos. .
. Os corpos que habitam o mundo do lucro tambm tm suas marcas, que
vo do colarinho branco (os americanos falam mesmo nos trabalhadores
white collar), passando plos restaurantes que frequentam, as
aventuras amorosas que tm, e as enfermidades cardiovasculares que
os afligem. . .E no necessrio pensar muito para compreender que os
interesses destas duas classes no so harmnicos. Para Marx aqui se
encontra a contradio mxima do capitalismo: o capitalismo cresce
graas a uma condio que torna o conflito entre trabalhadores e
patres inevitvel. Marx nunca pregou luta de classes. Achava tal
situao detestvel. Apenas como um mdico que faz um diagnstico de um
paciente enfermo, ele dizia: o desenlace inevitvel porque os rgos
esto em guerra.. . O problema no de natureza moral nem de natureza
psicolgica. No se resolve com boa vontade por parte dos operrios e
generosidade por parte dos patres. Nenhum salrio, por mais alto que
seja, eliminar a alienao. Trata-se de uma lei, sob o ponto de vista
de Marx, to rigorosa quanto a lei da qumica que diz: comprimindo-se
o volume de um gs a presso aumenta; expandin-do-se o volume, a
presso cai. E aqui poderamos afirmar: "Salrios comprimidos ao seu
mnimo produzem milagres econmicos expandidos ao seu mximo".Isto a
realidade: homens trabalhando, em relaes uns com os outros, sob
condies que eles no escolheram, fazendo com seus corpos um mundo
que no desejam.. . E disto que surgem ecos, sonhos, gritos e
gemidos, poemas, filosofias, utopias, critrios estticos, leis,
constituies, religies.. .Sobre o fogo, a fumaa,sobre a realidade as
vozes,sobre a infra-estrutura a superestrutura,sobre a vida a
conscincia. . .S que tudo aparece de cabea para baixo, confuso. Diz
Marx, l em O Capital, que s veremos com clareza quando fizermos as
coisas do princpio ao fim, de acordo com um plano previamente
traado. Mas quem faz as coisas do princpio ao fim? Quem compreende
o plano eral? Os presidentes? Os planejadores? Os ministros? O
FMI?Compreende-se que o que as pessoas tm normalmente em suas
cabeas no seja conhecimento, no seja cincia, mas pura ideologia,
fumaas, secrees, reflexos de um mundo absurdo.E aqui que aparece a
religio, em parte para iluminar os cantos escuros do conhecimento.
Mas, pobre dela. . . Ela mesma no v. Como pretende iluminar?
Ilumina com iluses que consolam os fracos e legitimaes que
consolidam os fortes.
"A religio a teoria geral deste mundo,o seu compndio
enciclopdico,sua lgica em forma popular,sua solene completude,sua
justificao moral,seu fundamento universal de consolo e
legitimao."
De fato, quando o pobre/oprimido, das profundezas do seu
sofrimento, balbucia: " a vontade de Deus", cessam todas as razes,
todos os argumentos, as injustias se transformam em mistrios de
desgnios insondveis e a sua prpria misria, uma provao a ser
suportada com pacincia,na espera da salvao eterna de sua alma. E os
poderosos usam as mesmas palavras sagradas e invocam os poderes da
divindade como cmplices da guerra e da rapina. E os habitantes
originais deste continente e suas civilizaes foram massacrados em
nome da cruz, e a expanso colonial levou consigo para a frica e a
sia o Deus dos brancos, e constituies se escrevem invocando a
vontade de Deus, e um representante de Deus vai ao lado daquele que
foi condenado a morrer. . . Nada se altera, nada se transforma, mas
sobre todas as coisas dos homens se espalha o perfume do incenso. .
.Religio,
"expresso de sofrimento real, protesto contra um sofrimento
real,suspiro da criatura oprimida, corao de um mundo sem corao,
espritode uma situao sem esprito, pio do povo".E, desta forma, as
palavras que brotam do sofrimento se transformam, elas mesmas, no
blsamo provisrio para uma dor que ele impotente para curar. E por
isto que pio, "felicidade ilusria do povo", que deve ser abolida
como condio de sua verdadeira felicidade. Mas o abando-no das
iluses no se consegue por meio de uma atividade intelectual. As
pessoas no podem ser convencidas a abandonar suas ideias
religiosas. Ideias so ecos, fumaa, sintomas. . . Se elas tm tais
ideias porque a sua situao as exige. necessrio, ento, que sua
situao seja mudada, as fendas curadas, para que as iluses
desapaream."A exigncia de que se abandonem as iluses sobre uma
determinada situao, a exigncia de que se abandone uma situao que
necessita de iluses." "A crtica arrancou as flores imaginrias da
corrente no para que o homem viva acorrentado sem fantasias ou
consolo, mas para que ele quebre a corrente e colha a flor viva. A
crtica da religio desilude o homem, a fim de faz-lo pensar e agir e
moldar a sua realidade como algum que, sem iluses, voltou razo;
agora ele gira em torno de si mesmo, o seu sol verdadeiro. A
religio nada mais que o sol ilusrio que gira em torno do homem, na
medida em que ele no gira em torno de si mesmo."Marx antev o fim da
religio. Ela s existe numa situao marcada pela alienao.
Desaparecida a alienao, numa sociedade livre, em que no haja
opressores, no importa que sejam capitalistas, burocratas ou quem
quer que ostente algum sinal de superioridade hierrquica,
desaparecer tambm a religio. A religio fruto da alienao. E com isto
os religiosos mais devotos concordariam tambm. Nem no Paraso e nem
na Cidade Santa se e/nitem alvars para a construo de templos. ..O
equvoco pensar que o sagrado somente aquilo que ostenta os nomes
religiosos tradicionais. Bem lembrava Durkheim que as roupas
simblicas da religio se alteram. Onde quer que imaginemos valores e
os acrescentemos ao real, a est o discurso do desejo, justamente o
lugar onde nascem os deuses. E Marx fala sobre uma sociedade sem
classes que ningum nunca viu, e na viso transparente e conhecimento
cristalino das coisas, e no triunfo da liberdade e no
desaparecimento de opressores e oprimidos, enquanto o Estado murcha
de velhice e inutilidade, ao mesmo tempo que as pessoas brincam e
riem enquanto trabalham, plantando jardins pela manh, construindo
casas tarde, discutindo arte noite. . . De fato, foram-se os
smbolos sagrados, justamente aqueles "j avanados em anos ou j
mortos. . .". Mas eu me perguntaria se a razo por que o marxismo
foi capaz de produzir "horas de efervescncia criativa, nas quais
ideias novas apareceram e novas frmulas foram encontradas, que
serviram, por um p