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O QUE CAPITAL
(Verso atualizada abril 2003)
INDICE
Nota introdutria
Formao do capital
Acumulao do capital
Quem cria o excedente?
A apropriao do excedente
Concentrao e globalizao do capital
Globalizao e desequilbrio dinmico do capital
O capital global: novas tendncias
Indicaes para leitura
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NOTA INTRODUTRIA
Escrever sobre o capital pode parecer pretensioso. Qualquer
economista conhece a
complexidade do conceito. No entanto, qualquer pessoa fala em
"capital" ainda
que se refira a realidades diferentes ou mal comprendidas. Vale
a pena pr um
pouco de ordem nos sentidos que a palavra pode ter, e explicar
de forma simples
as realidades que ela recobre, ainda que no se esgote a
complexidade do
assunto.
E o que capital? Frente aos excelentes mas volumosos estudos de
Karl Marx, ou
s elucubraes economtricas norte americanas, muita gente que fala
diariamente
em capital hesita em empreender o seu estudo, e se contenta com
a vaga noo de
que se trata de assuntos de dinheiro.
Na realidade, uma vez analisados os diversos sentidos que se d
ao termo, e em
particular as determinaes do processo de acumulao de capital,
desvendam-se
muitos problemas que so, afinal, bastante simples.
A confuso inicial tem suas razes: grande parte da complicao vem
dos
malabarismos tericos que minorias privilegiadas usam para
justificar a sua
apropriao do capital. J viram intermedirio financeiro explicando
os seus
lucros?
A nossa ambio aqui tomar simplesmente as formas que o capital
assume,
estudar a sua transformao, ver quem o cria, quem dele se
apropria e com que
fins. Nesta edio revista e atualizada, acrescentamos algumas
pginas sobre as
transformaes recentes do mercado e do planejamento.
Uma nota bibliogrfica no fim deste pequeno trabalho orientar o
leitor sobre
passos seguintes a seguir. A recomendao no formal: guardo a
convico de
que o estudo da acumulao do capital constitui a forma mais fcil
e mais rica
de se penetrar nos problemas econmicos em geral.
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FORMAO DO CAPITAL
A noo de capital familiar e de uso generalizado, mas de difcil
definio.
Antes de tudo, portanto, necessrio esclarecer o prprio conceito
de capital.
O conceito mais prximo o de "riqueza". De forma geral, o
objetivo explcito
de quem maneja capitais num sistema capitalista tornar-se rico.
No entanto, a
riqueza no significa a mesma coisa para o indivduo e para o pas.
Tomemos o
exemplo de uma pessoa que comprou uma casa a baixo preo,
prevendo que a rea em
que se situa a casa ir sofrer valorizao geral. Depois de seis
meses a mesma
pessoa revende a casa, digamos, pelo dobro do preo. indiscutvel
que esta
pessoa enriqueceu. Mas do ponto de vista do pas, da economia
como um todo,
houve alguma modificao? bvio que no, pois o interessado no
construiu
nada, no aumentou o patrimnio de riqueza da sociedade.
Inversamente, podemos conceber - e os exemplos so muitos - uma
pessoa que
empatou o seu dinheiro para construir um prdio, e por uma srie
de razes
acabou perdendo dinheiro, no conseguindo recuperar o
investimento inicial. No
entanto, o prdio est a, e vrias famlias podero viver nos
apartamentos
construdos. O indivduo perdeu, a sociedade ganhou.
preciso distinguir, em consequncia, o problema a nvel do
indivduo, e o
problema a nvel da sociedade. Quando um enriquece custa de
outro, atravs de
especulaes comerciais, jogo sobre os preos, venda de aes, etc.,
h uma
simples transferncia de riqueza, perdendo um o que ganhou o
outro, sendo neutro
o resultado para o pas.
Este tipo de movimento, de aplicaes e especulao financeira, pode
ser muito
importante. No caso da Tailndia, por exemplo, Joseph Stiglitz,
Prmio Nobel de
economia, explica como se depena um pas: um especulador de Wall
Street pede um
emprstimo na Tailndia, em moeda local. Como se trata de uma
grande financeira
americana, os bancos locais ficam encantados. De posse de bilhes
em moeda
local, o especulador passa a comprar dlar no mercado local,
sabendo que as
reservas do pais so limitadas. O dlar sobe rapidamente, pois
outros agentes
econmicos locais, assustados, passam a comprar dlar tambm. Com
pouco tempo, o
dlar duplica de valor, o especulador revende dlares suficientes
para saldar a
dvida com os bancos locais, e leva para casa 400 milhes de
dlares para cada
bilho empatado. Ganhou um rio de dinheiro, no produziu nada pelo
contrrio
desorganizou uma economia, empobreceu os poupadores de uma pas j
pobre. O
mesmo mecanismo foi utilizado na Argentina pelo especulador
americano El-Erian,
e em numerosos outros pases.
Os especuladores gostam de chamar o que fazem de investimento,
quando na
realdiade se trata de aplicaes financeiras, e gostam de falar do
seu
capital, quando se trata de movimentos especulativos. O que nos
interessa
dominantemente aqui, claro, no o movimento especulativo de
dinheiro, e sim
o movimento de recursos econmicos reais, que resultam em prdios,
represas,
produo, escolas: interessa-nos justamente o capital, o processo
de
enriquecimento de uma sociedade. Encher o bolso deixando outra
pessoa mais pobre
constitui um mecanismo importante, o mundo dos espertos.
Investir o dinheiro
de maneira a aumentar o volume de bens disponveis mais
importante, o mundo
dos inteligentes. A sociedade avana quando se usa os recursos
sociais de
maneira inteligente. A imagem que se utiliza, que a mar levanta
todos os
barcos.
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A distino destes dois nveis as transferncias entre indivduos e
o
enriquecimento social - nos permite assim ver com mais clareza a
distino entre
dinheiro e riqueza.
Para o indivduo, ter dinheiro significa ser rico, pois pode
trocar o seu
dinheiro por produtos, bens e servios que so da sua utilidade
real, que lhe
proporcionam satisfao. Para o pas, no entanto, o dinheiro papel,
e podemos
imprimir milhares de toneladas de papel com nmeros inscritos,
chamado dinheiro,
e nem por isso a populao viver melhor, ter melhores casas,
melhor sade,
melhor alimentao. Porque estas dependem da construo de casas, da
existncia
de boas universidades para formar os mdicos, enfim, de um
processo muito
concreto e trabalhoso de produo de bens e servios.
Em outros termos, necessrio ter presente que riqueza, do ponto
de vista
social, no constituda por papel-moeda, nem cheques, nem aes, nem
ttulos:
estes so meros instrumentos de transferncia de bens e servios de
uma mo para
outra. Levam a riqueza a mudar de mos, mas no criam riqueza
nenhuma.
Ou seja, no h tcnicas nem milagres monetrios que faam um pas
enriquecer e
a sua populao viver melhor, se no aumentar a sua produo.
Riqueza, em termos
sociais, capacidade de produo de bens e servios.
Para entender o que o capital, portanto, devemos partir do
processo de
produo.
Partiremos do exemplo mais simples, que pode ser aplicado ao
pequeno ou grande
empresrio, ou ainda ao agricultor que abriu uma roa. Digamos que
uma pessoa
qualquer decida lanar-se na produo de sapatos, tendo como ponto
de partida
dinheiro prprio. Com este dinheiro, ela vai comprar um conjunto
de bens e
servios que lhe permitiro lanar a produo. Trata-se de trs
qualidades de
"mercadorias":
- a mo-de-obra, para fazer a fbrica trabalhar;
- a matria-prima (couro, pregos, cola, etc.) e a ener-
gia necessrios para fazer os sapatos;
- o equipamento (mquinas, prdio, etc.) que a mo-de-
obra utilizar, para transformar a matria-prima.
So os trs componentes bsicos do processo de produo. Com efeito,
esto
presentes em qualquer setor: para produzir pregos, preciso
contratar um
trabalhador, que utilizar mquinas, para transformar o metal.
Para produzir
arroz, preciso o agricultor, que utiliza a enxada, ou o trator,
para tornar
produtiva a semente. Para formar pessoas, precisamos de um
professor, de livros,
e de uma sala de aula.
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Esta composio de elementos pode ser apresentada como segue:
T
D - M ... P ... M' - D'
Cc
C
Cf
D - Dinheiro inicial
M - Mercadoria (capital produtivo)
T - Trabalho
C - Capital constante
Cc - Capital circulante (matrias prima, energia ...)
Cf - Capital fixo (mquinas, instalaes ...)
P - Processo produtivo
M' - Mercadoria final (capital-mercadoria)
D' - Dinheiro obtido como resultado da venda da mercadoria.
O esquema, se bem que complicado primeira vista, simples e
permite entender
bem o processo. Temos o ponto de partida D, ou seja, o dinheiro,
tambm chamado,
quando aplicado produtivamente, de capital-dinheiro. Na segunda
etapa, temos M,
mercadoria produtiva, tambm chamada de capital produtivo, que se
subdivide em
duas partes: a primeira, indicada por T, a mo-de-obra, a
quantidade de fora
de trabalho que utilizamos no processo de produo. A segunda
parte de M o
capital constante C, que representa o conjunto de despesas que
no so com a
mo-de-obra. Assim, dividiremos C em duas grandes partes: uma
(Cc) corresponde
ao capital circulante como o couro, a energia eltrica, os
pregos, etc.,
utilizados para produzir o sapato. Esta parte chamada de capital
circulante na
medida em que entra apenas uma vez no processo de produo: o
couro que se
empregou no sapato est incorporado ao sapato, no se utiliza
mais, o mesmo
acontecendo com a energia eltrica gasta no processo.
Ao contrrio, a segunda parte (Cf), correspondendo ao capital
fixo, entra muitas
vezes no processo de produo e s ser substituda quando gastar: o
caso da
mquina, que resiste produo de milhares de sapatos, ou da enxada,
que
servir para vrias safras, enquanto o couro, ou a sememte, s
entram no
processo uma vez.
A juno destes trs elementos, o trabalho, o capital fixo e o
capital
circulante, permite um processo de produo, que indicamos no
esquema por ...
P....
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O resultado deste processo ... P ... , naturalmente, um novo
produto, uma
mercadoria que incorpora o valor dos diversos elementos postos
dentro dela
trabalho, matria-prima, desgaste de mquinas mas que constitui
uma realidade
nova, o sapato. Esta nova forma de existncia do capital, que
indicamos por M',
tambm chamada de capital-mercadoria.
Qual deles capital, o dinheiro inicial, o capital-produtivo ou o
capital-
mercadoria obtido na fase final do ciclo? Os trs, naturalmente,
so capital no
sentido econmico, na medida em que esto inseridos num ciclo de
valorizao,
num ciclo chamado de reproduo de capital.
Este esquema, por simples e tradicional que seja na literatura
econmica geral,
permite colocar com clareza algumas relaes bsicas da
economia.
Assim, por exemplo, o D, dinheiro inicial: de onde veio? a
poupana de um
pequeno agricultor que agora pode semear uma rea maior, ou o
dinheiro que um
empresrio pediu emprestado num banco onde o pblico o depositou,
ou ainda o
resultado de um subsdio do governo, ou uma composio de vrios
elementos?
Coloca-se aqui todo o problema do capital inicial, do acesso ao
dinheiro que
permite a alguns indivduos comprar capital produtivo, e
tornarem-se
capitalistas.
No nvel da fora de trabalho, coloca-se o problema do trabalhador
dentro do
processo produtivo. O valor de T por hora de trabalho ser maior
ou menor
segundo o nvel salarial, por sua vez ligado ao grau de organizao
sindical dos
trabalhadores, capacidade de presso dos proprietrios dos meios
de produo,
e ao nvel de produtividade. desta relao que vai resultar, por
exemplo, a
queda da parte dos salrios no Brasil, de 45% do Pib em 1990,
para 37% em 2000.
Quanto ao capital constante, coloca-se todo o problema da
escolha dos
investimentos a realizar: o que ser prefervel, utilizar um
trabalhador com um
trator (mais unidades de C e menos unidades de T), ou, pelo
contrrio, utilizar
10 trabalhadores com uma enxada cada um (mais gastos em T, menos
gastos em C)?
A compreenso desta relao, T/C, fundamental para se entender
o
desenvolvimento de uma economia: trata-se da "composio orgnica
do capital".
O estudo da relao permite abordar problemas concretos: por
exemplo, na Suia,
atualmente, o custo de um posto de trabalho industrial da ordem
de 150.000
dlares. Ou seja, para abrir um emprego na indstria, no nvel
atual de
equipamento do setor, o gasto em C ser de cerca de 150.000
dlares. Um esquema
de industrializao deste gnero vivel para um pas pobre? Ser
possvel
abrir empregos para a populao de um pas subdesenvolvido com este
investimento
em capital constante por trabalhador? A frica do Sul
ps-apartheid, por
exemplo, decidiu diferenciar reas de ponta, onde o investimento
tecnolgico
deve ser pesado por exemplo na indstria automobilstica e reas
que podem
ser mais intensivas em mo-de-obra, como a agricultura alimentar,
a sade e da
educao.
Da relao entre C e T, e em particular da proporo de cada um no
processo de
produo, decorre outra linha de estudo importante para a acumulao
de capital:
no caso de um trabalhador utilizar um trator, a escala de produo
deve ser
suficiente para cobrir o investimento fixo importante que
constitui o trator.
No caso de dez trabalhadores com enxada, o empregador pode
reduzir a escala de
produo sem perdas, pois basta recorrer a menos trabalhadores, j
que o
investimento fixo limitado. O resultado que, em pases pobres, ou
muito
pequenos, fica difcil produzir para o mercado interno com uma
composio
orgnica do capital elevada, o que exclu do processo de
industrializao destes
pases uma srie de setores industriais com composio
particularmente elevada.
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No quadro do processo de produo ...P... estuda-se o conjunto de
relaes
tcnicas e de organizao da produo, bem como a inovao
tecnolgica.
Enfim, ponto importante, o capital-mercadoria obtido, M', dever
ser novamente
transformado em dinheiro para que o ciclo de produo possa
recomear. Isto
significa que o produto deve ser vendido a preos que permitam,
no mnimo, a
recuperao do capital inicialmente empatado. Esta transformao
final do
capital-mercadoria em capital-dinheiro, de M' em D', coloca o
conjunto de
problemas ligados chamada "realizao" do produto, sua venda:
problema da
super-produo ou do subconsumo, problema da adequao da produo
s
necessidades do consumidor, problema do martelamento publicitrio
a que nos
submetem as grandes empresas.
Esta ltima relao, entre o valor de capital inicial empatado D e
o valor final
D' obtido com a venda da mercadoria M', permite-nos avaliar os
resultados da
sucesso de ciclos de reproduo do capital.
Com efeito, imaginemos que o investidor obtenha no final do
ciclo o mesmo
dinheiro que empatou inicialmente: isto significa que, no caso
de um roceiro que
plantou arroz, o arroz obtido permite-lhe sobreviver durante o
prximo ano
agrcola (T), pr de lado a semente (Cc), e pagar o desgaste dos
seus
equipamentos de trabalho, (Cf), no sobrando nada para comprar
mais equipamento,
ou adquirir semente melhor. Reproduzido, este ciclo levar ao
mesmo produto de
ano para ano, sem expanso da produo nem do aparelho produtivo:
trata-se de
uma reproduo de subsistncia que no permite desenvolvimento,
porque no
aumenta o capital inicial.
Este tipo de reproduo, chamado de reproduo simples, no constitui
um
exerccio terico. A maioria da populao rural do Terceiro Mundo,
por exemplo,
vive neste ciclo que um economista definiu bem ao dizer que os
pobres so
pobres, porque so pobres. Ou seja, so pobres demais para dispor
do capital
necessrio para sair da pobreza. Quem viajou pelo interior da
Amrica Latina, da
frica ou da sia, sabe a que ponto se trata de um fenmeno
generalizado. E as
pessoas esquecem que neste incio de milnio, a metade da populao
mundial
ainda vive da agricultura. No Brasil de 2000, cerca de 17 milhes
de pessoas
trabalham na agricultura, contra cerca de 8 milhes na
indstria.
Partindo da reproduo simples, em que D igual a D' em valor,
podemos conceber
duas variantes.
A primeira, a de um valor de mercadoria produzida, inferior ao
dinheiro
empatado (D' inferior a D). Neste caso, o produtor v-se, no
segundo ano de
produo, com menos dinheiro para continuar a produo do que no ano
precedente.
Em conseqncia, dever contratar menos mo-de-obra, ou utilizar
menos matria-
prima. O resultado , naturalmente, que produzir menos. Este tipo
de
reproduo, em que D' inferior a D, leva a um processo de
descapitalizao e
falncia da unidade produtiva. Em termos concretos e histricos,
na Argentina
de 1990 vemos quase um tero das empresas em situao de no poderem
fechar o
"ciclo produtivo" porque o dinheiro obtido com a venda dos
produtos no permite
a re-compra do mesmo volume de capital produtivo, entrando em
fase de
descapitalizao, ou de "sucateamento" como diz a imprensa.
A acumulao de capital constitui justamente o caso inverso, em
que o produto
obtido M' tem um valor como mercadoria que permite ao produtor
obter um valor em
dinheiro, no fim do ciclo, superior ao que teve no incio: D'
maior do que o
dinheiro inicial D.
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Voltemos ao exemplo do agricultor que plantou arroz. Uma vez
obtida a colheita,
ele separa a semente que precisa para plantar no ano agrcola
seguinte (Cc),
separa o necessrio para pagar o desgaste das suas ferramentas
(Cf), e separa o
que necessrio para a sua sobrevivncia fsica, que corresponde
reproduo
da sua fora de trabalho (T). Uma vez assim repartido o produto,
o agricultor
constata que ainda lhe resta uma boa quantidade de arroz. Neste
caso, diremos
que h um excedente.
Este excedente o elemento-chave de todo desenvolvimento
econmico. Com efeito,
a partir dele que um pescador pode, por exemplo, comprar uma
rede no lugar da
sua vara de pesca, o que por sua vez o levar a capturar uma
quantidade de
peixe muito maior, obtendo maior excedente ainda no ciclo
seguinte, permitindo,
por exemplo, depois de alguns anos, a compra de um barco a
motor, que aumentar
ainda mais o seu excedente, e assim por diante.
Este o tipo de reproduo, chamado de reproduo ampliada, que
permite a
acumulao de capital, o reforo cumulativo da capacidade de
produzir riqueza.
Em termos de sucesso de ciclos, o processo toma ento a forma
seguinte:
T
D M ... P ... M' - D'
C
T
D' M ... P ... M'' - D''
C
T
D'' M ... P ... M''' - D'''
C
e assim por diante.
Entraremos no detalhe deste processo, base da acumulao do
capital e de todo o
processo de desenvolvimento econmico.
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ACUMULAO DO CAPITAL
A reproduo ampliada do capital permite portanto a acumulao
progressiva da
capacidade de produzir riqueza, ou seja, bens e servios. Por sua
vez, para que
haja reproduo ampliada de capital, essencial a formao do
excedente.
A importncia do excedente para o desenvolvimento faz com que
hoje uma grande
parte da literatura econmica, particularmente a que estuda
alternativas de
estratgia de desenvolvimento, concentre suas anlises nas formas
de aument-lo.
Uma primeira maneira de aumentar o excedente consiste em
trabalhar mais. Mtodo
simples, constitui o caminho inicial de tanta gente que
conseguiu se "arrumar"
na vida. Assim, o operrio que trabalha horas extraordinrias para
dar uma
entrada numa casa, que pagar ao longo dos anos, est simplesmente
formando o
seu excedente, que se materializar numa casa. O carpinteiro, que
trabalha noite
adentro para abrir a sua prpria carpintaria, outro exemplo.
Um exemplo histrico nos vem das minas do sculo XVIII: os
garimpeiros, que
trabalhavam durante o dia para o patro, tinham direito ao que
recolhessem nas
ltimas horas do dia, ou aos domingos. Trata-se aqui de um
excedente, com que
muitos escravos compraram a sua liberdade, resultado de mais
trabalho, dando
lugar ao que chamamos de excedente absoluto.
O excedente absoluto tem limites evidentes: o da resistncia
humana. A fora de
trabalho esgota-se, e j se viu por exemplo que a partir de um
certo nmero de
horas a multiplicao de acidentes ou de trabalho mal feito leva
na realidade a
perdas que tornam o horrio limitado mais produtivo. Mas tem
enorme importncia
em pases subdesenvolvidos, que tm uma grande reserva de
mo-de-obra no
utilizada, conforme veremos adiante.
A forma mais importante de se elevar o excedente consiste, no
entanto, em
trabalhar melhor. Em outros termos, trata-se de aumentar a
produtividade, fazer
render mais cada hora que trabalhamos, dando lugar ao excedente
relativo.
O aumento da produtividade resulta de trs formas fundamentais de
investimento:
no homem, (formao), na organizao (tcnicas de gesto) e no
equipamento
(tecnologias). Vejamos estes pontos mais de perto.
A qualificao da mo-de-obra, atravs da sua formao e
aperfeioamento,
considerada hoje um dos investimentos que mais rendem para
desenvolver um pas.
Se nos anos 1960 ainda se insistia no equipamento como principal
fator de
aumento do excedente, hoje j se v melhor a importncia do
investimento no
homem. Trata-se de um investimento a longo prazo, mas que traz
frutos seguros
para a economia. Vale a pena lembrar que o Japo concentrou a os
seus esforos
iniciais, liquidando o analfabetismo ainda no fim do sculo
passado. Estudos
mais recentes do Banco Mundial mostram que rende mais para o
prprio
desenvolvimento industrial o investimento em educao do que o
investimento
direto em indstria. Gary Becker, outro prmio Nobel de economia,
se irrita com
justa razo com a bobagem dos que acham que uma fbrica
investimento,
enquanto educao seria gasto.
A organizao constitui outro fator longamente subestimado, e que
hoje aparece
como fundamental. Em vrias experincias de desenvolvimento,
constatou-se que se
poderia, praticamente sem investimentos, elevar a produo do
excedente pelo
aumento da produtividade, ao permitir que as populaes se
organizem melhor para
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a produo: utilizao cooperativa de equipamento, para seu
melhor
aproveitamento, utilizao bem dividida da gua, utilizao racional
da terra
segundo as suas vocaes naturais e as necessidades da populao e
assim por
diante. Progressos radicais foram observados por exemplo atravs
da reorientao
de servios bsicos que reforam a organizao da agricultura:
redes
equilibradas de comercializao, de estocagem, de transporte, de
crdito e de
assistncia tcnica, do ao agricultor, que trabalha relativamente
isolado,
estmulo e condies de trabalho que melhoram radicalmente a
produtividade e
levam formao de um excedente maior, mesmo sem grandes
investimentos. Hoje,
com a introduo generalizada da informtica e dos novos sistemas
de comunicao
nos processos produtivos, a modernizao da organizao tornou-se
mais
importante do que nunca.
Quanto ao equipamento, trata-se, a longo prazo, de uma forma
indispensvel de
reduzir o esforo de trabalho por unidade de produo, tendncia
irreversvel
das nossas economias, sobretudo agora com o ritmo de renovao das
tecnologias.
No entanto, preciso tambm conhecer os limites da promoo do
desenvolvimento
atravs do reforo do equipamento.
Antes de tudo, preciso constatar que fornecer equipamento em
grande
quantidade, sem assegurar a formao e capacitao adequada do
trabalhador, e
sem renovar os sistemas de organizao, leva normalmente a
resultados negativos.
Isto se constatou em particular numa srie de experincias de
desenvolvimento na
frica. O trator, por exemplo, ao arar profundamente a terra,
revolvia o
cascalho em baixo da camada de solo frtil, esterilizando-o,
fazendo regredir a
produtividade. Mas se constata igualmente em empresas modernas
que por exemplo
realizam pesados investimentos em computadores e acabam afogadas
em dificuldades
econmicas. A falta de formao e de racionalizao organizacional
que deve
acompanhar o investimento pode assim levar a um aumento
importante dos custos.
Mas a dificuldade maior reside no prprio custo do equipamento.
Hoje, conforme
vimos, normal um posto de trabalho custar 100.000 dlares ou mais
na
indstria. Um pequeno clculo nos fornecer imediatamente os
limites que estes
custos impem: com 175 milhes de habitantes, o Brasil um pas em
que chegam
no mercado de trabalho, anualmente, cerca de 2,5 milhes de
pessoas de 18 anos.
Se fssemos arrumar trabalho na indstria para metade deles, ou
seja, 1,25
milhes de pessoas, teramos um investimento a realizar de 125
bilhes de
dlares por ano, mais do dobro da totalidade de investimento que
o pas j
realiza. H, portanto, limites evidentes ao desenvolvimento
"intensivo", atravs
de equipamento crescente da mo-de-obra: o custo do processo.
Com efeito, investimentos desse montante implicam um nvel de
poupana, por
parte da populao, que no seria suportvel.
Porque o investimento exige poupana? Trata-se de um ponto chave,
que bom
examinarmos em detalhe.
A relao entre investimento e poupana constitui um dos pontos
mais importantes
para a compreenso da acumulao do capital. O problema
fundamentalmente
simples, apesar de revestir-se de uma certa complexidade quando
interferem
mecanismos monetrios.
O ponto de partida a compreenso de que o investimento, para se
traduzir num
aumento efetivo da capacidade de produo do pas, deve
materializar-se em bens
e servios que so desviados da produo de bens de necessidade
imediata, para
possibilitar a produo de um nmero maior de bens em fase
ulterior.
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Ou seja, todo investimento implica em que um conjunto de
fatores, como mo-de-
obra, cimento, ao, capacidade administrativa, etc., deixem
temporariamente de
ser utilizados para produzir bens de consumo, e sirvam para
produzir bens de
produo.
O exemplo clssico, ao nvel do produtor individual, o do
pescador, que tem
como opo pescar com instrumentos rudimentares, ou fabricar uma
rede, ou
qualquer bem de produo mais sofisticado. O tempo que gastar
produzindo a rede
representa horas sem pescar. Para sobreviver durante este tempo,
o pescador
ter que ter posto de lado o suficiente para comer: este
excedente, que ele no
consumiu e poupou, permite-lhe fabricar o seu instrumento de
pesca, e
representa, na realidade, o valor do instrumento.
Assim, se no houvesse excedente, ele no teria como abandonar
temporariamente a
luta pela sua sobrevivncia imediata. Do momento que h excedente,
ele pode
consumi-lo imediatamente, aumentando a sua satisfao, ou poup-lo,
e
transformar esta poupana em investimento. O que essencial que
ele no pode
simultaneamente investir e consumir o excedente, porque investir
representa
horas de trabalho, que no nosso exemplo so desviadas da
pesca.
Em termos tericos, isto tem duas implicaes de peso: na estrutura
da produo
e na estrutura de consumo.
Se considerarmos o esquema de reproduo visto acima
V
D M ... P ...M'- D'
C
que representa a reproduo do capital do ponto de vista cclico, e
buscarmos
desdobr-lo do ponto de vista setorial, obtemos o esquema
seguinte:
Setor I: C + T + L = M1 (Bens de produo)
Setor II: C + T + L = M2 (Bens de consumo)
___________________
C + T + L = M (Produo total)
em que constatamos que a produo total de um perodo, M,
desdobra-se em
produo de bens de produo, M1, e produo de bens de consumo, M2.
Cada um dos
valores composto, por sua vez, pelo valor de bens de produo
consumidos (C),
salrios pagos (T) e lucros (L).
A relao entre o peso relativo do setor I e o do setor II
importante. Em
certas economias particularmente pobres e estagnadas, por
exemplo, o setor I
pode ser quase inexistente. No Japo, que passou por uma fase de
acumulao
muito intensa no incio do seu desenvolvimento, o setor I
adquiriu um peso
absolutamente excepcional. Em termos prticos, isto significa que
no pas, e num
determinado momento, grande parte do esforo destina-se a
produzir bens que no
se consomem, mas que serviro para melhorar o nvel de produo de
bens de
consumo em outra fase.
-
A contrapartida, naturalmente, uma reduo relativa do consumo
imediato. Por
outro lado, realizar o investimento a condio para obter um nvel
mais
elevado de consumo a prazo. Em conseqncia, um dos pontos-chave
da poltica
econmica consiste em determinar o nvel de investimentos, ou
seja, o nvel de
sacrifcios que se impe hoje ao consumidor para que possa
consumir mais amanh.
-
QUEM CRIA O EXCEDENTE ?
O que transparece na anlise anterior que o excedente constitui
uma diferena
entre o que um homem ou uma sociedade conseguem produzir e o que
consomem.
O excedente resulta portanto de um nvel de produtividade a
partir do qual,
depois de satisfeitas as necessidades elementares do trabalhador
e da sua
famlia (reproduo da fora de trabalho T), a reposio de estoques
de matria-
prima (capital circulante que permitir o prximo ciclo de
produo), e a
compensao do desgaste das mquinas e outras instalaes fixas
(capital fixo),
ainda sobra produto.
Este excedente evidentemente polivalente, podendo tomar as mais
diversas
formas. Pode tratar-se de um excedente de arroz do Maranho, que
ser trocado
por excedente sob forma de produtos industriais de So Paulo, ou
ainda de soja
que ser exportada para se obter, em troca, produtos do
Exterior.
Tudo depende de quem ir se apropriar do excedente, se a
multinacional
interessada na sua prpria acumulao a nvel nacional e
internacional, se o
atravessador que paga preos baixos ao agricultor enquanto vende
caro no
mercado, se o prprio agricultor interessado em melhorar as suas
condies de
vida e de trabalho, se a pessoa interessada em consumo de luxo
ou a pessoa
interessada em investir para produzir mais.
O problema do excedente e da sua transformao em capital
desdobra-se portanto
em dois: quem o cria, e quem dele se apropria. Vejamos o
primeiro.
O dinheiro-papel tem algum valor porque corresponde a um produto
que tem valor
de troca. Um carregamento de tijolos, por exemplo, pode me
servir (valor de uso)
para construir uma casa, representando utilidade real. Mas pode
servir tambm
para ser vendido (valor de troca) permitindo a compra de outros
bens, como
alimentos, substituindo-se um valor de uso por outro, por
intermdio do valor de
troca.
Mas o prprio dinheiro no tem valor de uso algum: destina-se
apenas a facilitar
a transao entre valores de uso, valores estes que no momento da
troca so
representados numa unidade-padro de troca - o real, o euro, o
dlar.
Portanto, filosofias parte, a acumulao de riqueza baseia-se na
nossa
capacidade de produzir bens que correspondem s nossas
necessidades de uso,
reais e concretas como casas, alimentos, roupas sendo ainda
fundamental que
estes bens correspondam ao que efetivamente queremos. Com
efeito, sem valor de
uso, no h valor de troca, no h dinheiro.
A luta pelo excedente, portanto, anterior economia monetria, e
inclusive se
torna mais clara nas sociedades pre-monetrias. Com efeito, no
existindo a
separao entre os sistemas de atribuio de dinheiro e o sistema de
produo de
bens que caracteriza as sociedades modernas, o excedente tem de
ser tomado pelas
classes dirigentes onde existe, onde foi produzido: ou seja, na
mo do
trabalhador.
o caso, por exemplo, da apropriao do excedente no sistema de
escravido. O
dono vive numa casa construda por escravos, come o alimento
produzido e
cozinhado por escravos, anda carregado por escravos ou por um
cavalo cuidado por
escravos. bvio que se os escravos s produzissem o mnimo para a
prpria
-
sobrevivncia, no poderiam sustentar o seu dono. o fato de
atingirem uma
produtividade mais elevada que permite que haja excedente e, em
conseqncia, a
riqueza...do dono.
No h dvida, aqui, que a totalidade do excedente produzida
pelo
trabalhador, mesmo se lhe cabe apenas parte do produto. Os bens
produzidos pelo
trabalhador so o fruto do seu suor, como o so os servios que
presta na casa,
pois o trabalho no produtivo de alguns escravos deve ser
compensado pelo
trabalho produtivo de outros.
Na base do sistema feudal, as coisas so igualmente bastante
claras: o senhor
feudal, ao se apropriar do seu feudo, ou seja, da terra sobre a
qual trabalha o
campons, cobra um imposto sobre o produto que o campons consegue
tirar da
terra com o seu trabalho. Este imposto, inicialmente sob forma
de valores de uso
(galinhas, porcos, trigo, e outros produtos, ou ainda sob forma
de dias de
trabalho), passou com o tempo a ser pago em moedas, dando mais
liberdade ao
senhor de comprar os bens que quisesse. Nem por isso ir-se-ia
atribuir o fato do
senhor dispor de muitas moedas sua prpria capacidade produtiva.
Trata-se,
mais uma vez, da apropriao do produto do trabalho dos outros.
Com que base?
Mais uma vez, sobre a base de uma lei, que lhe confere direito
sobre as terras e
os homens que a trabalham. E por trs da lei, existia
evidentemente a
apropriao de fato, baseada em relaes de fora.
O dono de escravos ganhou os seus trabalhadores "em guerra
justa" como se dizia
na poca, e como diziam os portugueses ao se referir apropriao da
fora de
trabalho dos ndios no Brasil. Para os aristocratas do sistema
feudal, o direito
ao fruto do trabalho dos outros era justificado pelos altos
muros do seu
castelo, construdo, alis, por outros trabalhadores.
Mas o fato essencial para ns que no havia riqueza qual fosse
atribuda
outra fonte que no o trabalho. Mais tarde, com o desenvolvimento
da cincia
econmica, o raciocnio tornou-se mais sofisticado: o homem s
transforma, e
quem produz efetivamente riqueza, pelo milagre natural da
reproduo, a terra.
E, como a terra propriedade do aristocrata, seria natural que o
produto a ele
pertena.
O argumento inaugurava uma gerao de justificativas para a
apropriao do
excedente por quem no o produz: aos poucos, multiplicar-se-iam
os "fatores de
produo" destinados a atribuir uma parcela de riqueza a quem
assegurasse o seu
monoplio. Na poca da Renascena, aliando-se a busca de
justificaes
cientficas com o poder de fato dos aristocratas, definiu-se a
terra como fator
de produo, com direito a retribuio. Esta terra, sobra dizer,
pertenceria a
algum que no a produziu, mas dela se apropriou.
Adam Smith, analisando este raciocnio na fase final do sculo
XVIII, j se
mostra bem mais cauteloso, sobretudo porque defende a participao
maior do
empresrio capitalista, em detrimento do aristocrata: "Assim que
a terra de
qualquer pas tornou-se propriedade privada, os senhores da
terra, que como
todos os homens gostam de colher onde nunca araram, exigem uma
renda mesmo por
este produto natural." Assim, Adam Smith define a renda paga
pela terra como uma
"deduo do produto do trabalho que empregado na terra". (Adam
Smith, Riqueza
das Naes, 1776).
Na realidade, o argumento da terra como fator de produo passvel
de
remunerao no absurdo: verdade que a terra contribui para fazer a
planta,
como contribuem tambm o sol, que fornece energia, e o ar que
fornece o carbono,
ou ainda a gua. Mas se trata de fatores tcnicos de produo, e no
caso da
-
terra quem remunerado no o solo, e sim uma pessoa, o
proprietrio. Na
medida em que no possvel uma minoria apropriar-se pela fora do
sol ou do ar
e monopoliz-los, no existe ningum para teorizar sobre o seu
carter de "fator
de produo". No caso da gua, alis, j h gente se apropriando e
privatizando
mais este produto natural, e quem sabe vai aparecer a
justificativa para este
fator natural tambm se tornar fator de produo. a teoria econmica
subindo
literalmente para a nuvens.
O valor do produto resulta portanto do esforo que o trabalhador
nele incorpora,
e no da terra. Na medida em que a terra escassa, ou que minorias
monopolizam-
na pela fora, os que controlam a terra passam a cobrar um
tributo sobre o seu
uso, ou seja, uma renda, que lhes permite apropriarem-se de uma
parte do produto
do trabalhador. A renda constitui uma forma entre outras de
transferncia do
excedente, e paga no terra, mas a outros homens, os seus
proprietrios. o
trabalho destes proprietrios que poderia justificar a sua
participao no
excedente, e no a propriedade em si.
Se no sculo 16, tempo dos fisiocratas como Quesnay, todas as
atividades que no
fossem rurais eram consideradas "estreis" do ponto de vista
econmico, na poca
da Revoluo Industrial aparecia outro fator de produo: o capital,
aqui
entendido como o conjunto do equipamento fixo que permite a
produo. O
raciocnio, aqui ainda, simples: o operrio traz a sua fora de
trabalho,
recebe o seu salrio, e o capitalista entra com o capital, e
recebe o lucro.
Cada um tem acesso a uma parte do produto, segundo o seu aporte,
no quadro da
nova "justia".
O problema reside, naturalmente, na definio de quem produz o
capital, neste
caso visto como o equipamento de propriedade do capitalista.
bvio que os instrumentos de trabalho so produzidos pelo prprio
trabalhador,
ou por outros trabalhadores, e no pelo capitalista. Se formos
buscar a cadeia
tcnica de cada bem de produo, veremos que se trata de uma
acumulao de fases
sucessivas de trabalho, desde a extrao do minrio at a finalizao
da
mquina. Todas as etapas foram preenchidas por trabalhadores,
inclusive
possivelmente pelo capitalista, mas na parcela do seu trabalho
incorporado.
Na realidade, em sistemas anteriores ao capitalismo, no havaia
capitalista a se
remunerar, e o capital fixo, os instrumentos de trabalho,
formaram-se, como se
formaram tambm nas economias socialistas.
De onde vem ento a remunerao do capitalista?
Antes de tudo, devemos reforar o fato de que o capitalista, e no
o capital,
que est sendo remunerado, tal como o proprietrio da terra e no a
terra que
remunerado no exemplo anterior.
Foi a partir de Karl Marx, e da obra O Capital, que a origem da
remunerao do
capitalista tornou-se clara. A fora de trabalho, medida que
aumenta a
produtividade, produz mais valor do que o necessrio para a sua
reproduo. Ao
pagar ao operrio o mnimo que lhe necessrio, e ao se apropriar da
totalidade
do produto que resulta da interveno do trabalhador no processo
produtivo, o
capitalista realiza um lucro, aqui chamado de mais-valia, ou
seja, o valor do
produto que ultrapassa o valor pago ao trabalhador.
Em outros termos, a subvalorizao da fora de trabalho empregada
permite fazer
aparecer o lucro com o qual o capitalista compra as mquinas, e
as mquinas
-
aparecem por sua vez como justificativa para o lucro
capitalista, definido ento
como remunerao do capital.
O direito a essa remunerao tem assim, como nos outros casos, um
fundamento, a
fora, pela qual os capitalistas apropriaram-se dos bens de
produo. E hoje o
sistema se reproduz, j que o monoplio dos capitalistas sobre os
meios de
produo, sobre o "capital", obriga os trabalhadores a aceitar
pelo seu trabalho
uma remunerao menor do que o valor da produo que criaram.
Esta apropriao do capital pelo capitalista no difere
fundamentalmente das
outras formas histricas de apropriao de meios de produo: do
prprio homem
no regime de escravido, ou da terra no regime feudal.
Muitos outros argumentos foram levantados para justificar o
lucro capitalista:
seria um prmio pelo "risco" que o capitalista assume o risco,
alis, de se
tornar um trabalhador como outro, sem privilgios , seria a
remunerao pelo
"esprito de empreendimento", pela capacidade de inovao, sem
falar da
compensao que exigiria o peso das responsabilidades que
carrega.
Na verdade, o capitalista tem acesso a esta forma do excedente
que constitui o
lucro, porque monopolizou o acesso ao capital, e no porque o
tenha produzido.
No sculo XIX, o processo era bastante mais transparente, na
medida em que os
proprietrios de pequenos parques de mquinas iam-se apropriando
gradualmente do
excedente de um nmero crescente de trabalhadores, at se tornarem
capitalistas.
Hoje, a viso do capitalista que "comeou pequeno" e constituiu o
seu capital
pelo trabalho e economia, uma realidade para muitos pequenos e
mdios
produtores, mas um mito quando nos referimos s grandes empresas
modernas:
ningum, em toda sua vida, poderia trabalhar o suficiente para
produzir e
"poupar" a riqueza correspondente s grandes fortunas modernas, e
a explicao
exige a anlise de processos de apropriao mais sofisticados.
Sofisticados, mas, no conjunto, semelhantes. Por baixo das
complexas operaes
financeiras, est a luta nua e crua pelo resultado do trabalho de
toda a
coletividade de trabalhadores, pelo excedente. No o capital que
"produz", e
sim o trabalhador que produz o capital, que por sua vez permite
aumentar a
produtividade de outros trabalhadores.
O milagre, como o grosso do excedente social produzido e o
prprio capital vo
parar nas mos de quem no os produziu, numa proporo que tem pouco
a ver com o
que uma pessoa contribuiu para form-los.
-
A APROPRIAO DO EXCEDENTE
O excedente resulta do trabalho, ou mais precisamente, da
capacidade de produzir
que ultrapassa o desgaste sofrido no prprio processo de
produo.
Desde que o mundo mundo, no entanto, apareceram candidatos para
viver do
excedente dos outros, pela simples razo de que, no momento que o
produto de um
homem ultrapassa o que lhe necessrio para sobreviver e repor os
seus fatores
de produo, h um excedente disponvel, e a explorao pode
ultrapassar o
simples roubo para se tornar sistema.
Um Drake, pirata enobrecido pela rainha da Inglaterra, ou os
expedicionrios
espanhis que roubaram metais preciosos das populaes do Mxico,
eram bandidos,
realizando assaltos com apoio dos seus governos. Quando so
conquistadas as
colnias para se lhes impor uma forma de produo de riqueza que
assegura uma
transferncia permanente do excedente, estamos j num sistema, num
modo de
produo e acumulao do capital.
Da mesma forma, a apropriao do excedente por uma classe
dirigente que no o
produziu obedece a um sistema, a um modo de produo, que envolve
tanto a
produo como a distribuio do produto.
J vimos que o excedente indispensvel para a acumulao do capital.
Somente a
existncia de um excedente social permite que uma parte da
populao dedique-se
a outra coisa que no a produo dos bens que lhe so imediatamente
necessrios.
Enquanto constri uma estrada, o trabalhador precisa comer,
morar, vestir-se, e
isto implica em que a parte da populao que trabalha no setor II,
setor de bens
de consumo, tenha uma produtividade suficiente para cobrir as
suas prprias
necessidades e as necessidades de quem trabalha no setor I, na
produo de bens
de produo.
Mas no basta que haja excedente para que haja acumulao de
capital. A
acumulao do capital exige que a poupana seja utilizada
produtivamente, seja
transformada em investimento produtivo.
O investimento produtivo, exige um processo de produo,
consumindo fora de
trabalho, matria-prima, energia, equipamento. Ou seja, exige
capital trabalho,
capital circulante e capital fixo. Este capital, sob suas
diversas formas,
poderia ser utilizado para produzir, por exemplo, alimentos. Na
medida em que
foi desviado da produo de alimentos ou de outros bens de
consumo, para ser
utilizado na construo de um dique, de uma fbrica, de uma estrada
em objetos
do setor I haver menos bens produzidos no setor II, j que os
fatores de
produo utilizados para produzir bens de consumo tero sido em
quantidade
menor.
Em outros termos, o investimento exige poupana ma medida em que
h desvio de
fatores de produo que poderiam servir para aumentar a quantidade
disponvel de
bens de consumo, para o setor de bens de produo.
Mas como se pode chegar a uma igualdade de investimento e
poupana, se as
decises de poupar, feitas por milhares de famlias e empresas,
so
independentes das decises de investir, tomadas por empresrios e
pelo governo?
Os desequilbrios da economia, e em particular o processo de
inflao, resultam
em grande parte da necessidade de se buscar o equilbrio entre o
movimento real
-
de investimento, que implica modificao da utilizao dos fatores
de produo,
e os movimentos financeiros e monetrios de atribuio de riqueza s
diversas
camadas sociais.
Vamos estudar este processo com algum cuidado, j que se reveste
de particular
importncia para a compreenso do processo de acumulao do
capital.
Vejamos por exemplo o caso de um empresrio que obtm um subsdio
do Estado para
construir uma fbrica. O Governo, no caso de estar esgotada a
poupana forada
que recolheu atravs do imposto, pode financiar o empresrio
emitindo a moeda
necessria. Trata-se de produzir papel, que pouco custa ao
Estado. O empresrio
utilizar o dinheiro para pagar fatores de produo, pagar
trabalhadores,
comprar cimento e mquinas, matria prima. De uma maneira ou de
outra, o
dinheiro se transformar em salrios de trabalhadores, seja
diretamente aos que
constroem a fbrica, (trabalho direto), seja indiretamente aos
que produziram o
tijolo, as mquinas, etc. (trabalho indireto).
Resultar assim uma fluxo de renda que se transforma, nas mos do
trabalhador,
em presso sobre o mercado de bens de consumo. Ora, a este
aumento de consumo
no correspondeu um aumento de produo de bens de consumo, pelo
contrrio,
j que meios de produo foram desviados para construir uma
empresa, produzindo-
se relativamente menos bens de consumo.
Temos assim mais renda para comprar bens de consumo, e
relativamente menos bens
de consumo. Como no h milagres, e s se pode consumir o que
efetivamente a
sociedade produziu, haver dois processos possveis: ou os preos
se mantm
estveis, e faltar ao consumidor a mercadoria que quer comprar
sendo
obrigado a poupar por falta de produto ou, hiptese normal, o
comerciante
aumentar o preo do produto para aproveitar a maior procura. O
resultado,
naturalmente, que com o aumento dos preos todos os trabalhadores
consumiro
menos, j que o seu salrio s ser reajustado mais tarde, depois de
lutas e
presses, e todos os trabalhadores pouparo, queiram ou no, para
pagar a
construo do empreendimento.
Temos assim a inflao aumento de preos como processo de poupana
forada,
levando o trabalhador a pagar, com o menor consumo da sua
famlia, a empresa
construda.
Uma caracterstica importante desta poupana, alm de ser forada, o
fato de
ser poupana posterior. Em outros termos, em vez de se tratar de
um marceneiro
que, por exemplo, poupou durante anos, reduzindo o seu prprio
consumo, para
abrir a sua prpria marcenaria neste caso h poupana anterior
ao
investimento , no caso da fbrica visto acima houve emisso
monetria, processo
artificial destinado a pr nas mos de um empresrio recursos
financeiros
papel para comprar fatores de produo, acarretando uma poupana
social
posterior e involuntria, por parte dos trabalhadores em geral.
No caso citado
do marceneiro, quem poupou foi le. No caso do produtor
subsidiado, a poupana
foi social, constituindo-se em uma extrao de mais-valia
social.
A poupana posterior, ou ex-post, tornou-se um processo-chave da
acumulao no
sistema capitalista, na medida em que a relativa autonomia dos
mecanismos
financeiros e monetrios modernos permite iniciativas que no
correspondem
base produtiva real da economia, levando a um conjunto de
desequilbrios e
reajustes para que a correspondncia entre os dois nveis possa
ser reencontrada
num momento ulterior.
-
Ora, o que observamos que os trabalhadores no seu conjunto
fizeram a poupana
para pagar o empreendimento so eles que consumiram menos e no o
empresrio
e a fbrica desponta como propriedade do empresrio. Como? Porque
foi a ele
que se atribuiu o papel-moeda que representa o valor dos fatores
de produo
utilizados.
O Estado s tinha papel, e deu ao empresrio o que tinha. Quem
realizou o
esforo para transformar este papel em meios concretos de produo
na fbrica
construda foi o trabalhador, e quem fez a poupana foram os
trabalhadores
tambm: no entanto, a fbrica do capitalista.
O empresrio ganhou assim uma fbrica sem poupar, milagre das
nossas leis sobre
propriedade privada dos bens de produo. Em outra fase, se o
governo considerar
que se trata de emprstimo e no de subsdio, o empresrio poder
devolver-lhe
o dinheiro por outro mecanismo simples, e que j vimos no captulo
anterior:
pagar aos seus trabalhadores menos do que o valor do produto
obtido, e com a
diferena saldar a dvida para com o Estado, ao mesmo tempo que
aufere lucros
pessoais. E dir, tranqilamente, que o seu lucro constitui a
remunerao do
seu capital.
Capital que, evidentemente, ele nem produziu e nem poupou.
Este processo curioso de transferncia da poupana para o conjunto
da populao,
enquanto a propriedade vai s mos de quem freqentemente s fez
manter boas
relaes de amizade com as fontes de financiamento, reveste-se de
formas
mltiplas, s vezes complexas, que no escondem no entanto a
caracterstica
comum e fundamental vista no exemplo acima.
Para maior clareza, no entanto, veremos mais alguns
exemplos.
A mesma transferncia do "nus" da poupana para a populao se faz
no caso do
empresrio pedir dinheiro emprestado no Banco. Com efeito, ou o
Banco empresta
dinheiro que foi depositado como poupana neste caso quem
depositou que
est poupando, ou ainda, o Banco empresta o dinheiro que no
tem.
Este ltimo caso normal, e se baseia no fato de que nunca todos
os credores ou
depositantes de um banco pedem simultaneamente o dinheiro total
a que tm
direito, permitindo ao Banco emitir crditos em nvel muito mais
elevado do que
os depsitos que recebe. No caso, inclusive, de haver uma presso
um pouco
forte, por coincidncia de retiradas que pem em perigo a caixa do
Banco, este
recorrer a outros Bancos que, solidrios, asseguraro a sua
passagem pelo mau
momento. E se muitos forem irresponsveis, haver sempre um
programa de governo
que os socorrer com recursos pblicos.
H, na realidade, neste caso como no anterior, emisso monetria, j
que os
Bancos emprestam mais dinheiro do que h poupana, levando a
investimentos mais
elevados do que o nvel existente de poupana permite.
Necessariamente, o fluxo
salarial criado pelos investimentos levar a maior procura de
bens de consumo,
e inflao, obrigando o conjunto da populao a realizar o esforo
de
poupana, de privaco, que tornar possvel ao empresrio apresentar
satisfeito
as chaves da sua nova empresa.
Outra forma de transferncia do nus pode ser feita atravs do
emprstimo no
exterior. Trata-se de outra forma de poupana, que afetar as
geraes
posteriores, que devero saldar a dvida: trata-se de uma poupana
diferida,
compensada pela poupana atual do pas fornecedor de recursos.
Assim o milagre
econmico dos anos 1970 levou naturalmente s dificuldades dos
anos 1980 e 1990,
-
e quem endividou o pas nos diz tranquilamente que no tempo dle
as coisas
funcionavam melhor. Quem j pediu dinheiro emprestado sabe que na
hora de
receber as coisas so timas. Ao slogan "Delfim, eu era feliz e no
sabia", a
sabedoria popular acrescentou "...que eu ia pagar por isso".
Assim, a inflao constituiu um dos instrumentos fundamentais da
apropriao do
excedente pelas classes dominantes. Diz-se que para elas tambm
os preos sobem:
o argumento, freqentemente invocado, falso. O empresrio, o
comerciante, o
banqueiro, so agentes econmicos que podem alterar os seus preos.
Em
conseqncia, ao subirem os preos dos produtos que compram,
aumentam os seus
preos de venda, passando o nus da inflao para a frente. Quem
paga,
evidentemente, quem tem remunerao fixa, o assalariado, o
aposentado, o
funcionrio que ter o seu salrio reajustado, mas com um atraso
que o torna no
proporcional ao aumento de preos, assegurando a realizao da
poupana.
Na realidade, quando se estuda a inflao, til dividir a populao
em dois
grupos, os que dependem de renda fixa (assalariados,
aposentados, e pequenos e
mdios produtores que no tm como influnciar os pros), e os que tm
renda
varivel (empresrios, banqueiros, comerciantes e outros). A
inflao tornou-se
um mecanismo privilegiado de extrao de mais-valia social da
populao
tabalhadora, e importante analiz-la distinguindo quem se
prejudica (populao
de renda fixa) e quem se beneficia (populao de renda varivel),
com o aumento
desordenado de pros. Todos se dizem prejudicados, sem dvida, mas
a inflao
produzida por quem com ela ganha, e apenas mantida por
mecanismos inerciais.
Os instrumentos de transferncia social de renda so muitos.
Veja-se o exemplo
dos subsdios do Estado. Este recolhe os impostos do conjunto da
populao, e em
particular da populao trabalhadora que, tendo os seus impostos
declarados por
terceiros e retidos na fonte, no tem acesso aos mesmos
mecanismos de evaso
fiscal que os grandes proprietrios e membros das profisses
liberais. Trata-se,
neste caso, de poupana forada a ser transformada, em geral, em
financiamentos
para o prprio setor empresarial. A transferncia da poupana
popular para
grupos privados atravs deste sistema atinge, no Brasil, valores
muito elevados.
Outro exemplo ainda, o das isenes fiscais. Uma empresa que
exporta, ou que
se instala no Nordeste, ou ainda uma multinacional que decide se
instalar no
pas, recebem frequntemente isenes fiscais durante uma srie de
anos: ou
seja, funcionam, utilizam servios pblicos, realizam lucros, e no
pagam. O
gasto correspondente ser coberto atravs de poupana forada via
imposto, ou,
se o Estado ultrapassou as suas disponibilidades, atravs de
emisso monetria,
que levar a uma poupana forada posterior pelo conjunto da
populao de renda
fixa.
Outra forma ainda de transferncia do excedente para as classes
dirigentes
constitui o investimento do Estado em reas pouco lucrativas. Ao
construir uma
estrada de ferro ou um porto para a exportao do minrio, o Estado
realiza, com
poupana pblica, um enorme investimento cujo rendimento s se faz
sentir a
muito longo prazo, razo pela qual este tipo de empreendimento no
realizado
pelos prprios capitalistas. No entanto, o investimento realizado
com fundos
pblicos permite empresa nacional ou multinacional explorar o
minrio com
enorme margem de lucro, j que as obras de infra-estruturas
custeadas pelo
Estado permitem economias vultosas chamadas de "economias
externas".
Entre as numerosas formas de fazer festa com o chapu do outros,
necessrio
mencionar a especulao imobiliria: um capitalista compra terras,
e aguarda a
sua valorizao pelas infraestruturas criadas com recursos
pblicos, ou at de
outros capitalistas. As estradas, as ruas, a luz eltrica, a
urbanizao e
-
outros elevam o valor da sua terra sem que tenha que mexer um
dedo, e lhe
permitem revender a terra dezenas de vezes mais caro, comprando
mais terras em
outros lugares, com dois efeitos: fica rica uma pessoa que no
trabalha, e
sobretudo esteriliza-se o solo, pois o maior temor do
especulador deste tipo
que a terra venha ser apropriada para fins produtivos, deixando
de ser
mercadoria especulativa. Na maioria dos paises, hoje j se impem
durssimos
impostos sobre terras ociosas, improdutivas ou sub-utilizadas,
devolvendo
sociedade a valorizao que resulta de esforo social, e nos casos
de
desequilbrios mais fortes, como no Japo e numerosos outros
paises, se procedeu
a reformas agrrias.
Outro grupo de mtodos de apropriao do excedente do trabalhador
resulta da
variao dos preos relativos. A amplitude da transferncia de
capital por meio
dos preos relativos foi bastante estudada e evidenciada a partir
da teoria dos
termos de troca entre pases ricos e pobres, entre Norte e
Sul.
Em termos simples, a deteriorao dos termos de troca significa
que um pas
precisa, por exemplo, produzir cada vez mais cacau ou soja para
importar uma
quantidade cada vez menor de produtos industrializados. Isto
porque os
produtores de bens manufaturados tm condies de controle sobre os
preos que
asseguram a sua elevao, enquanto os preos das matrias-primas ou
dos produtos
agrcolas baixam. O resultado que hoje os pases subdesenvolvidos,
que
exportam volumes crescentes de produtos primrios, constatam que
a sua
capacidade de importao no acompanha o aumento do volume de
exportaes.
A deteriorao dos termos de troca, estudada em particular por
Prebisch, levou a
um outro conjunto de estudos, sobre as razes desta deteriorao:
na realidade,
por trs do preo cada vez menor pago aos pases pobres, e do preo
cada vez
mais elevado pago aos pases ricos, est o problema da diferenciao
salarial
entre o Norte e o Sul. Ao pagar 350 dlares a tonelada de arroz
do Paquisto,
por exemplo, o Norte paga 350 dlares o valor de trabalho de um
ano de um
agricultor, enquanto o agricultor poder comprar, com este valor,
duas
bicicletas para a sua famlia, equivalente a algumas horas de
trabalho de um
operrio dos pases industrializados. A produtividade da empresa
do Norte sem
dvida mais elevada, mais isto no resolve o fato da aquisio de
equipamentos s
modernos, por exemplo, representar um custo muito mais elevado
justamente para
os pases que tm menos recursos, e que mais precisariam ser
reequipados para se
equilibrar as relaes.
A base desta troca desigual situa-se na desigualdade do preo
pago pela fora de
trabalho. Ao comprar a bicleta, o trabalhador do pas
sub-desenvolvido paga um
valor de trabalho incorporado correspondente ao nvel de renda de
um pas rico,
que se situa em torno de 30 mil dlares por ano, enquanto que ao
importar, por
exemplo, o leo de palma para os seus sabonetes, a multinacional
paga um valor
incorporado de mo-de-obra de um pas com renda per capita da
ordem de mil
dlares por ano.
Os clculos realizados por Emmanuel, principal terico da troca
desigual,
mostram que, mesmo com incorporao das diferenas de
produtividade, o desnvel
salarial continua enorme, superior a 1 para 20. Ou seja, com
nvel igual de
produtividade, o trabalhador do pas subdesenvolvido teria, em
mdia, um salrio
20 vezes menor.
Ora, se descontadas as diferenas de produtividade e o salrio 20
vezes menor,
bvio que h un fluxo importante de transferncia de renda. E como
entretanto
os clculos mostram que a diferena de taxa de lucros nunca atinge
as mesmas
-
propores, constatamos uma transferncia de capital do pas pobre
para o pas
rico.
A apropriao do excedente por preos relativos, se bem que mais
estudada no
plano internacional das relaes entre o Norte e o Sul, funciona
perfeitamente
dentro dos prprios pases subdesenvolvidos. Assim, os
agricultores do Brasil,
com poder de barganha bastante mais reduzido do que os
empresrios urbanos,
recebem pelo seu esforo uma remunerao incomparavelmente menor do
que a
populao urbana. Isto porque os preos ao produtor so mantidos em
nvel baixo
para a agricultura, levando a uma situao em que a populao rural
aufere
apenas 10% da renda nacional, enquanto os intermedirios
financeiros, que pouco
produzem, e contribuem em grande parte para a esterilizao das
atividades
produtivas ao desviar recursos para atividades especulativas,
participam com um
renda do setor superior totalidade da produo agrcola.
No caso brasileiro, a interiorizao da troca desigual tornou-se
sistema nas
relaes entre as regies mais pobres, como o Nordeste, e as regies
mais ricas,
particularmente o Sudeste, conforme mostrou Celso Furtado ainda
nos anos 1960.
Conseguimos criar o nosso prprio Norte-Sul, com todas as
tragdias do
desequilbrio de renda que ocorre no plano internacional.
O sistema dos preos, dos termos de troca entre os grandes grupos
sociais do
pas, constitui portanto mais um instrumento muito importante de
apropriao do
excedente.
Outra forma de utilizao dos preos para se apropriar do excedente
utilizada
pelo monoplio. H tempos que o mercado de livre concorrncia,
descrito por
Adam Smith, deixou de existir, ou pelo menos sofreu profundas
transformaes. O
importante para ns no denunciar aqui o monoplio, mas constatar
que uma
empresa, ao controlar o mercado por acordos com outras empresas,
por monopolizar
certa tecnologia, ou ainda por se localizar sozinha numa regio,
realiza lucros
mais elevados, o que lhe permite adquirir mais fatores de produo
para
reinvestir e se expandir, sem que esta apropriao de riqueza
social corresponda
sequer ao esforo dos seus prprios trabalhadores. A poupana
complementar ser
realizada pelo consumidor que pagar mais, e a nova fbrica
construda com os
lucros extraordinrios pertencer ainda ao empresrio.
A autonomia que adquiriu o sistema monetrio e financeiro,
relativamente base
produtiva real de uma economia, permite assim este milagre da
apropriao do
capital por quem no o produziu, sem que tenhamos a capacidade de
indicar, em
qualquer momento, quem nos enfiou a mo no bolso. Ao
constatarmos, na feira ou
no supermercado, um preo mais elevado, sabemos que o nosso
salrio foi
reduzido, que o dinheiro que tnhamos na mo ficou valendo menos,
exatamente da
mesma forma como se algum tivesse nos roubado uma parte. E no
entanto, ao
buscarmos o responsvel, este se dilui no sistema, no sorriso
amvel do
banqueiro, no abrao generoso do poltico, no rosto preocupado e
cheio de
subentendidos patriticos do empresrio. No se trata de gente bem
ou mal-
intencionada: trata-se de um sistema, de um modo de produo.
Vejamos duas ilustraes clssicas deste tipo de processo de
apropriao do
excedente, extraidas da vida real:
Nos tempos de inflao descontrolada, a modalidade preferida era
fazer
emprstimos sem correo, processo claramente descrito neste artigo
de Aoysio
Biondi de 1982, exemplo antigo mas que reflete perfeitamente a
apropriao do
trabalho dos outros (mais-valia social) gerada pela inflao: "uma
empresa que
tenha conseguido um emprstimo de Cr$ 1.000.000 em 1974, (e houve
quem
-
levantasse um bilho de cruzeiros, na poca), deveria Cr$ 1,54
milho ou 15
vezes mais, em 1981, se o saldo devedor fosse atualizado de
acordo com a
correo monetria real de cada ano. Como os contratos previam 20%
de correo
tabelada, todos os anos, o dbito real estar na casa de 423 mil
cabendo ao
Tesouro pagar a diferena de 1,1 milho (isto , praticamente trs
vezes a
dvida da empresa) ao BNDE. Em resumo, a empresa forma um
fabuloso patrimnio e
o Tesouro continua a pagar seus compromissos ao BNDE."
Em outros termos, os empresrios recebem o dinheiro do Estado,
pagam um juro
ridculo, e restituem quatro vezes menos, porque sem correo, ou
correo
subestimada. De onde veio o dinheiro para cobrir o que os
empresrios no
pagaram? Dos impostos, ou de emisso monetria, ou seja, num como
no outro caso,
do bolso da populao, que teve que realizar a poupana
correspondente, enquanto
o empresrio torna-se proprietrio de mais uma empresa.
Com a queda da inflao, a partir de 1994, a apropriao do
excedente deslocou-
se para os intermedirios financeiros, que por meio de juros
altos, tarifas
bancrias e credirios comerciais, apropriam-se no ano de 2003 de
30% da renda
familiar brasileira, esterilizando a poupana da populao e
levando
estagnao da economia. O comentrio de um editorial da Folha de So
Paulo de
mais que explcito: As taxas de juros pagas por empresas e
consumidores
continuam exorbitantes e com tendncia de alta. Em janeiro
(2003), estima-se que
a taxa mdia para emprstimos pessoais tenha atingido 99,98% ao
ano. Para as
empresas, o custo mdio de desconto das duplicatas alcanou 64,03%
anuais e o do
capital de giro chegou a 59,5%...Margens de lucro to elevadas
garantem os
lucros atronmicos dos bancos brasileiros, muito acima da mdia
mundial...A
concentrao do mercado de crdito brasileiro as 10 maiores
instituies
controlavam 62% dos ativos em dezembro de 2001 parece justificar
uma regulao
mais estreita desse oligoplio.1
Um exemplo histrico deste processo, mas na rea internacional, o
da compra
de grande parte do parque industrial europeu pelos americanos,
na seqncia do
acordo de Bretton Woods: pelo acordo, os bancos europeus
aceitavam manter suas
reservas em dlares, e em nvel bastante elevado, acima de um
determinado piso.
Assim, os americanos podiam emitir moeda, ou seja, fabricar
papel sem cobertura
produtiva, porque este dinheiro, ao entrar na Europa, seria
congelado nos bancos
centrais, evitando a deteriorao da moeda americana por excesso
de circulao.
O resultado que um parque produtivo, fruto do trabalho do
operariado europeu,
passou para mos americanas em troca de simples papel. O sistema
est descrito
com detalhes em O Desafio Americano de Jean Jacques
Servan-Schreiber, e levou na
poca conhecida declarao de De Gaulle: "Ns os pagamos para que
nos
comprem". Quando De Gaulle comeou a trocar os dlares da Frana
por ouro,
conforme aos acordos de Bretton Woods, os Estados Unidos
constataram que tinham
emitido muito mais dlares do que lastro em ouro que se tinham
comprometido a
manter, e denunciaram o acordo, no maior calote j visto no
planeta.
Que moral tirar desta histria? A primeira, de que no h nenhuma
razo moral
que nos obrigue a respeitar a propriedade privada quando
financiada com
recursos e poupana sociais. Em consequncia, o problema da
propriedade dos
meios de produo tem de ser colocado fora da rea do "direito
natural" do
capitalista, e na rea pragmtica de quem deve controlar os meios
de produo
para que a economia funcione melhor. No mais uma questo de
direito, e sim
uma questo de produtividade social.
1 Folha de So Paulo, editorial de 6 de fevereiro de 2003; este
novo mecanismo est detalhado no nosso artigo Altos
Juros e Descapitalizao da Economia, disponvel em
http://dowbor.org sob Artigos Online.
-
Quando se coloca o problema desta maneira prtica, desaparecem as
solues
simples, e torna-se necessrio ver mais de perto como funciona a
economia no seu
conjunto, nas suas dimenses estruturais.
-
CONCENTRAO E GLOBALIZAO DO CAPITAL
O investimento produtivo transforma-se, no esquema cclico de
reproduo do
capital, em capital produtivo, sob forma de mo-de-obra e capital
constante. A
proporo dos dois elementos varia profundamente, no entanto,
medida que
entramos na fase moderna da produo, seja nas economias
capitalistas, seja nas
economias socialistas.
Voltando ao nosso esquema de reproduo do capital, podemos
estudar a composio
tcnica do capital produtivo segundo os seus principais
componentes:
T Fora de trabalho (tambm chamado de capital varivel)
C Capital constante
Cc Capital circulante
Cf Capital fixo
A relao entre a quantidade de fora de trabalho e a quantidade de
capital
constante, C/T, chamada de composio orgnica do capital, conforme
vimos no
primeiro captulo. O conceito permite distinguir, por exemplo,
uma tecelagem do
sculo XIX, onde o equipamento pequeno e a mo-de-obra numerosa,
de uma
empresa moderna que monta carros com mquinas de comando numrico
e
computadores, onde a mo-de-obra tem uma contribuio relativamente
mais
limitada.
Para termos uma idia das diferenas, os custos de mo-de-obra por
unidade de
produto podem representar 80% em alguns setores tradicionais,
enquanto em
setores avanados comum esta proporo situar-se em torno de 15% ou
menos.
Em princpio, produzir o mesmo bem e a custos unitrios idnticos
pode ser
conseguido com muita mo-de-obra e poucas mquinas, ou o inverso.
Assim, podemos
chegar por exemplo ao mesmo valor de produo com duas composies
diferentes de
fatores de produo: com um gasto de 50 em mo-de-obra e 10 em
capital
constante, ou com um gasto de 50 em capital e 10 em mo-de-obra,
com todas as
possibilidades intermedirias de combinao de fatores.
Muito j se debateu sobre se o crescimento dos pases menos
desenvolvidos deve
ser mais ou menos capital-intensivo. O essencial para ns que a
composio
orgnica do capital tem uma tendncia histrica clara para a
elevao: utiliza-
se cada vez mais capital fixo, relativamente fora de
trabalho.
Esta tendncia tem duas implicaes fundamentais para a transformao
do
processo de acumulao do capital: pelo lado do financiamento, e
pelo lado da
comercializao. Veremos os dois problemas.
A elevao da composio orgnica do capital leva a custos globais
de
investimento cada vez mais elevados, ou, como se formula s
vezes, a um desvio
maior do processo produtivo, para se chegar a um maior volume de
produo de
bens de consumo. Na prtica, isto significa que mais fatores de
produo so
desviados para produzir bens de produo, impondo maiores
sacrifcios para a
sociedade.
Este desvio maior significa, a nvel das empresas, que somente
grupos ou
empresas cada vez mais ricos podero enfrentar as novas
tecnologias e os
gigantescos investimentos necessrios.
-
Em outros termos, a elevao da composio orgnica do capital (ou o
crescimento
capital-intensivo, em outra terminologia) leva a uma concentrao
do capital, na
medida em que os pequenos so eliminados, absorvidos pelos
grandes, dando lugar
ao processo de monopolizao do sistema capitalista. Assim, o mais
rico que
pode melhor suportar os custos das sucessivas inovaes, dos
novos
investimentos, e criar condies de enriquecer mais ainda.
Mas esse processo de concentrao funciona particularmente no
nvel
internacional. Tomemos por exemplo o caso dos 24 pases
ocidentais
industrializados (Estados Unidos, Europa Ocidental, Japo, etc.).
A sua
populao dispe de uma renda per capita da ordem de 30 mil dlares
por ano.
Com um sacrifcio relativamente pequeno, j que tem amplamente
asseguradas todas
as suas necessidades bsicas, esta sociedade pode dedicar um
quarto da sua
renda, 7.500 dlares por pessoa e por ano, ao aumento da sua
capacidade de
produo.
Enquanto isto, um trabcalhador do Terceiro Mundo, com uma renda
de mil dlares,
ter de realizar um sacrifcio imenso para economizar e investir
25% da sua
renda, e estes 25% representam apenas 250 dlares.
Assim, enquanto num plo investe-se com facilidade 7.500 dlares
por pessoa e
por ano, no pas subdesenvolvido, que deveria justamente investir
muito mais
para cobrir a distncia e restabelecer o equilbrio do mundo
capitalista, a
capacidade de investir 30 vezes menor.
O resultado deste processo simples: quanto mais avana o
capitalismo, maior o
investimento exigido para modernizar a economia. Torna-se assim
cada vez mais
estreita a porta de quem tem recuros limitados, e tem que entrar
no mercado j
dominado por outros.
Assim, constatamos que a capacidade de investimento tanto mais
elevada quanto
mais desenvolvido o pas, o que coloca problemas srios de
acumulao nos
pases pobres, enquanto os relativamente mais ricos avanam mais
rapidamente.
O problema absolutamente fundamental: a capacidade de
financiamento tanto
menor quanto mais necessria, enquanto as exigncias financeiras
aumentam
rapidamente no quadro da tendncia histrica de elevao da composio
orgnica
do capital. Isto explica em boa parte a polarizao catastrfica
que atinge o
mundo.
A maior parte dos pases subdesenvolvidos no consegue sequer
financiar os
parques industriais j instalados, que envolvem custos
recorrentes em divisas
muito elevados, contraindo dvidas a nvel internacional que
atingem hoje um
nvel difcil de sustentar. Cerca de dois teros das novas dvidas
contradas
servem para pagar dvidas anteriores.
O impasse financeiro atingido manifesta-se nesta situao
paradoxal: hoje os
paises pobres no s no recebem os fluxos de financiamento que
deveriam receber
para alcanar os paises mais ricos, como financiam estes
ltimos.
A concluso evidente: o fenmeno do "imperialismo" mais presente
do que
nunca, e simplesmente invivel para os paises em desenvolvimento
romper o
crculo vicioso da pobreza sem uma redefinio profunda da ordem
econmica
internacional. Em termos morais, absolutamente escandaloso um
sistema em que
os paises pobres, que j carregam o nus estrutural das pocas
coloniais, so
levados a financiar os paises mais ricos do planeta.
-
Mas a elevao da composio orgnica do capital leva a um outro
impasse, de
mercado. Em termos do nosso esquema de reproduo, trata-se da
transformao do
produto (M') em dinheiro (D').
Consideremos uma empresa de terraplanagem. Se a empresa utiliza
uma baixa
composio de capital fixo, fazendo por exemplo o trabalho
fundamentalmente com
homens equipados de ps e picaretas, os custos sero proporcionais
ao trabalho
realizado. Quando h pouco trabalho a fazer, a empresa utiliza
menos mo-de-
obra, e corta proporcionalmente os seus custos. No caso, no
entanto, da empresa
utilizar uma mquina de terraplanagem sofisticada e, por exemplo,
5 empregados,
o custo unitrio do metro cbico de terra deslocado depender
diretamente da
escala de trabalho:
1 metro cbico 100.000 dlares + 5 salrios
10 " " 10.000 " + 5 salrios
100 " " 1.000 " + 5 salrios
Assim, se por exemplo a mquina representa um investimento fixo
de 100.000
dlares, o empresrio ter de obter a sua mxima utilizao para
redistribuir os
custos fixos no maior nmero possvel de unidades de produo. Ao
reduzir o
custo de produo pela escala mais elevada, pode vender mais
barato, e
conquistar assim faixas mais importantes de mercado pela melhor
posio de
concorrncia. Isto por sua vez lhe permite produzir em maior
escala, compensando
investimentos mais sofisticados, e assim por diante.
O resultado que, quanto mais evoluem os processos econmicos, na
sua
complexidade tnica e no desvio de fatores de produo, maior o
interesse em
obter amplos mercados e produzir em escala mais elevada. um
crculo vicioso,
j que a tecnologia, com seus grandes investimentos, exige, e ao
mesmo tempo
torna possvel, a produo em massa.
Em termos globais, a ampliao da "fronteira econmica" que exige o
aumento da
produo em massa se choca com a misria dos dois teros da populao
mundial.
No se pode querer que o Terceiro Mundo seja simultneamente uma
fonte de mo de
obra barata - ou seja, mal paga - e um grande mercado.
Os dois processos, tanto a elevao dos custos de financiamento
quanto a
necessidade de mercados, levam crescente concentrao e
internacionalizao da
produo, ao famoso processo de globalizao.
-
GLOBALIZAO E DESEQUILBRIO DINMICO DO CAPITAL
Uma das principais razes de falta de clareza sobre o conceito de
capital
resulta da confuso entre as suas formas tcnicas de existncia
(valor de uso),
e as formas valor (valor de troca).
Se voltarmos ao nosso esquema de reproduo do capital,
constatamos que podemos
analisar as diversas formas de sua existncia fazendo um corte
vertical ao nvel
de capital produtivo M, obtendo ento:
T
M Cc
C
Cf
ou seja: M = Capital produtivo
T = Capital trabalho
C = Capital constante
Cc = Capital circulante
Cf = Capital fixo
Estas so as diversas formas de existncia do capital do ponto de
vista da sua
composio tcnica, do seu valor de uso, que guardam caractersticas
semelhantes
qualquer que seja o modo de produo.
Mas o esquema de reproduo pode tambm ser analisado
horizontalmente, nas
diversas etapas do seu ciclo de reproduo, e acompanharemos ento
as diversas
formas-valor do capital, em termos de valor de troca:
D M ... P ... M' D'
ou seja: D = Capital-dinheiro
M = Capital-produtivo
M' = Capital-mercadoria
De certa maneira, a primeira classificao interessa ao
engenheiro, ao produtor
que quer assegurar a coerncia tcnica do seu processo. A segunda,
em termos de
valor de troca, interessa ao capitalista, para quem as formas
tcnicas de
existncia do capital s tm importncia na medida em que vo lhe
render mais
dinheiro.
O problema da globalizao e do desequilbrio dinmico do capital
parte do
segundo processo, ou seja, das sucessivas formas de valorizao do
capital como
valor de troca.
A internacionalizao do capitalismo, como processo de acumulao,
surge junto
com o capitalismo, e no com o imperialismo nos fins do sculo
XIX. O que se
-
modifica a forma de internacionalizao e, conseqentemente, a funo
dos
pases hoje subdesenvolvidos no processo de acumulao do
capitalismo.
Christian Palloix distingue trs tipos de internacionalizao do
capital,
segundo as etapas histricas: at o sculo XIX, predomina a
internacionalizao
do capital-mercadoria (M'). No fim do sculo XIX, toma peso
fundamental o
capital financeiro (D), atravs de investimentos e emprstimos em
dinheiro aos
pases subdesenvolvidos, visando a financiar infra-estruturas
como estrada de
ferro e intensificar a produo de matrias-primas. A partir da II
Guerra
Mundial, toma papel dominante a internacionalizao do capital
produtivo (M).
Assim, a fase atual de internacionalizao do capital produtivo
levou extenso
dos grandes grupos americanos e europeus, que criaram ramificaes
sob forma de
empresas instaladas nos prprios pases subdesenvolvidos, atravs
das chamadas
companhias transnacionais.
Constatamos assim ao mesmo tempo a diferenciao das etapas e a
unidade do
processo. Trata-se, atualmente, de internacionalizao do capital,
como
anteriormente, se bem que sob uma forma diferente e com uma
intensidade nova que
permitiu falar, como o fez Samir Amin, em acumulao de capital em
escala
mundial.
importante captarmos este processo no seu conjunto.
Dentro da distino vista acima, entre as formas de valor de uso e
de valor de
troca do capital, o problema dos equilbrios da reproduo do
capital pode ser
visto sob prismas diferentes.
Por um lado, exige determinados equilbrios que so tcnicos:
preciso que haja
coerncia entre o consumo de equipamentos exigido pela instalao
de novas
empresas e a produo destes equipamemtos nas unidades existentes,
entre o tipo
de produto criado e o tipo de mercado existente e assim por
diante.
Por outro lado, o capitalismo, como modo de produo, exige mais
do que a
coerncia tcnica do processo produtivo: exige uma dinmica de
equilbrios
sucessivos destinados a corrigir a contradio bsica entre as suas
necessidades
de financiamento, e as necessidades de mercado.
J vimos o processo bsico de apropriao do capital pelo
capitalista: a fora
de trabalho tem como caracterstica prpria de poder produzir mais
valor do que
as necessidades da sua reproduo. Frente a esta capacidade de
criar valor, o
capitalista tem a possibilidade, ao controlar os meios de
produo, de pagar a
mo de obra segundo o valor social de sua reproduo, e no segundo
o valor
produzido. Esta diferena, definida como mais-valia, constitui a
base do lucro
capitalista, e a forma privilegiada de apropriao do excedente no
sistema
capitalista, hoje fortemente complementada pelos mecanismos de
apropriao da
mais-valia social.
Esta forma de explorao j levou o operariado dos paises
desenvolvidos, no
incio do sculo, a um nvel de misria que ficava no limite da
sobrevivncia.
No entanto, ao considerarmos hoje a Unio Europia ou a Amrica do
Norte, vemos
que houve um progresso muito significativo na situao dos
trabalhadores.
A partir da crise dos anos 30, e particularmente depois de 1945,
o grupo dos
pases ocidentais industrializados, o chamado "Norte", passou a
elevar os
salrios num ritmo prximo da elevao da produtividade do
trabalho.
-
No essencial para ns aqui definir o peso que tiveram os diversos
elementos
que contriburam para esta transformao, as lutas sindicais, o
peso das
teorias de Keynes, o choque que representou a grande crise de
1929 e sim o
fato de o capitalismo do "Norte" ter encontrado com a
redistribuio da renda
aos operrios uma dinmica muito mais forte que antes, quando
aplicava uma taxa
muito elevada de explorao.
A razo da transformao situa-se na contradio elementar entre
financiamento e
comercializao.
O capital busca extrair o mximo de excedente, pagar o menos
possvel pela fora
de trabalho, para poder elevar a taxa de mais-valia e reforar a
formao do
capital. Assim, ao aumentar a taxa de explorao, aumenta a sua
capacidade de
investir, por dispor de um excedente que pode ser transformado
em aquisio de
mais fatores de produo.
Esta mesma explorao, no entanto, ao manter a misria, reduz o
mercado
disponvel, ou o expande num rtmo insuficiente, dificultando o
ciclo de
reproduo do capital.
D M ... P ... M' D'
financiamento comercializao
O que ocorre simples: ao explorar o trabalhador alm de um certo
limite, o
capitalismo priva-se do seu mercado; ao elevar os salrios alm de
um certo
limite, o capitalismo reduz a sua capacidade de financiamento.
De uma certa
maneira, o capitalismo ou tem a capacidade de investir (salrios
baixos, lucros
elevados), mas enfrenta a fraqueza dos mercados para escoar a
produo, ou tem
um amplo mercado (salrios elevados, taxa de lucros mais
moderada) sem ter a
mesma capacidade de investir, porque grande parte do excedente
transformada em
consumo extra pelo trabalhador.
O resultado uma oscilao entre as fases de subfinanciamento e de
subconsumo,
dando origem conjuntura complexa e instvel que caracteriza o
capitalismo.
O capitalismo particularmente vulnervel a este processo por duas
razes.
Primeiro, porque o investidor capitalista tem como motivao
principal a demanda
do consumidor final. Se este se retrai, como acontece agora no
Brasil com as
esferas de consumo da classe mdia, o conjunto do processo que
entra em semi-
estagnao: ningum vai investir se no sabe qual a perspectiva
de
comercializao, logo a indstria de bens de produo no recebe
encomendas, a
produo de matrias-primas estagna, os fluxos salariais se
reduzem, reduzindo
mais ainda a procura final e assim por diante, num ciclo bem
descrito por Keynes
e Kalecki.
Segundo, porque no sistema capitalista, conforme vimos, o
"capital-dinheiro", ou
o mercado financeiro que organiza o acesso aos fatores de produo
e ao
excedente em geral, goza de importante autonomia relativamente
base produtiva.
Assim, os desequilbrios criados pela "base estreita" de demanda
podem ser
fortemente ampliados pelos mecanismos especulativos ou
simplesmente de defesa
dos capitalistas, levando desorganizao do processo de acumulao:
em termos
prticos, o excendente, em vez de ser investido, aplicado em
movimentos
especulativos.
-
Assim, o capitalismo tem necessidade ao mesmo tempo de uma "base
ampla", do
ponto de vista do consumo, e de uma slida capacidade de
financiamento, que
implica uma taxa elevada de explorao e uma forte centralizao do
excedente em
poucas mos.
Esta contradio encontrou, no ps-guerra, uma soluo que teve
resultados
radicalmente diferentes nos dois plos do capitalismo, nos pases
do Norte por
um lado, e no Terceiro Mundo por outro.
No caso dos pases industrializados do Norte, no era mais possvel
produzir a
massa elevada de produtos que a nova tecnologia permitia, sem
elevar
sistematicamente a capacidade de compra da populao em geral. Com
efeito, o
trabalhador entra no ciclo de reproduo do capital no s como
produtor, como
tambm na fase