O PODER TRANSFORMADOR DO
CRISTIANISMO PRIMITIVO
Raul Branco
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Dedico esta obra a Edlson Almeida Pedrosa, amigo e companheiro
incansvel em minha jornada de escritor e buscador da vida espiritual.
Edlson conhecido em seu amplo crculo de relacionamentos por seu
total desprendimento, generosidade, integridade, dedicao ao dever e
mais alta tica, constante bom-humor, transparncia e sinceridade.
Sempre disposto a ajudar a todos que solicitam sua cooperao,
procura realizar toda tarefa, seja ela modesta ou importante, de forma
meticulosa, como se fosse uma obra de arte a ser exposta para a
posteridade. Edlson um estudioso dedicado da vida espiritual, tendo
escrito vrios artigos e traduzido obras importantes da tradio crist.
Os momentos de convvio com Edlson so para mim ocasio de
alegria, refrigrio e total sintonia. Fico feliz por esta oportunidade de
prestar uma homenagem, ainda que singela, a esse amigo excepcional
que tanto enriqueceu minha vida.
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O PODER TRANSFORMADOR DO CRISTIANISMO PRIMITIVO
NDICE
Convite para um dilogo (Padre Marcelo Barros) 4
1. INTRODUO 6
2. SIMPLICIDADE E DIVERSIDADE NO CRISTIANISMO PRIMITIVO 10
Constantino e a diversidade de doutrinas 10
A disseminao da Boa Nova 13
3. OS ENSINAMENTOS DO CRISTIANISMO PRIMITIVO 16
4. PRIMEIRA ETAPA: A VIDA TICA 20
Estabelecendo a fundao 20
A lei: garantia da justia divina e da perfeio do homem 22
A regra de ouro 26
5. SEGUNDA ETAPA: A VIDA ESPIRITUAL 29
Conhecereis a verdade e a verdade vos libertar 29
Cristo em ns 30
Despertar Cristo em ns ou crer em Cristo? 34
A busca da verdade 39
6. OS INSTRUMENTOS EXTERIORES 41
Estudo do caminho espiritual e da vida dos msticos 41
Interpretao da Bblia 45
Rituais e sacramentos 52
7. OS INSTRUMENTOS INTERIORES 54
A purificao 54
O amor 57
Contemplao ou orao do silncio 62
8 O CRISTIANISMO PRIMITIVO E O MUNDO MODERNO 67
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Convite para um dilogo
Marcelo Barros1
Todo livro um dilogo entre quem escreve e quem l. Este , especialmente, um exerccio espiritual de
dilogo porque, nele, o autor dialoga com o cristianismo primitivo, fala aos cristos de hoje e, ao mesmo tempo,
reinterpreta essas tradies a partir de uma sensibilidade espiritual mais ampla, independentemente de pertencer
ou no a qualquer religio instituda.
Prefaciar um livro referend-lo e aceitar ser para o autor como um paraninfo que o introduz em um novo
crculo de relaes. Estritamente falando, o professor Raul Branco no precisaria disso. um intelectual e
pesquisador muito conhecido em todo o Brasil. Grande conferencista, j trabalhou na ONU e teve o encargo de
representar a ONU e o governo brasileiro em diversas conferncias internacionais. Sua formao em Economia
serve de esteio prtico para sua busca interior mais profunda, o que faz dele, hoje, um dos expoentes da
Sociedade Teosfica no Brasil. Ali, cada semana, ele coordena um grupo de estudos sobre o Cristianismo
Primitivo. Estudou a fundo os fenmenos do Esoterismo e tem como enfoque das suas pesquisas as religies
comparadas. Alm disso, autor consagrado. Livros anteriores seus, como Os Ensinamentos de Jesus e a
Tradio Esotrica Crist (Editora Pensamento, 1999) e Pistis Sophia. Os Mistrios de Jesus (Bertrand Brasil,
1997) j nos preparam para o banquete de erudio e sntese espiritual que este seu novo livro: O Poder
Transformador do Cristianismo Primitivo.
O primeiro captulo se centra sobre a simplicidade e a diversidade do cristianismo primitivo. De fato, at,
ao menos, o sculo II, as comunidades ligadas ao movimento de Jesus pertenciam a culturas bem diversas. Isso
faz com que o cristianismo que aparece refletido no chamado Evangelho de Mateus seja bastante diferente do
que era vivido pelas comunidades paulinas e mais ainda pelos crculos joaninos. Algum prefere mesmo falar em
cristianismos primitivos no plural. Essa diversidade em nada impediu que se mantivesse uma unidade
fundamental. Cipriano de Cartago, pastor no sculo III, dizia: A unidade abole as separaes, mas respeita as
diferenas e com elas se enriquece.
O professor Raul discorre bem sobre essas veredas e, depois, como algum que, afetuosamente, nos toma
pela mo, nos conduz aos ensinamentos do cristianismo primitivo, centrando a ateno especial na proposta
espiritual do Cristo aos seus discpulos.
Quem est habituado a ler os estudos sobre as primeiras geraes crists, oriundos de meios ligados
Teologia da Libertao achar este livro por demais diferente e mesmo divergente das interpretaes de
especialistas que fizeram ps-doutorado na matria aqui no Brasil, como Eduardo Hoornaert, em estudos como
A Memria do Povo Cristo, O Movimento de Jesus e Cristos da Terceira Gerao, mesmo se em alguns
princpios e concluses coincidem, como a crtica ao cristianismo imperial nascido a partir da influncia do
imperador Constantino no sculo IV.
A poca compreendida neste livro como sendo cristianismo primitivo estende-se pelos primeiros sculos,
sem atender tanto a diferenas que existiram de uma gerao a outra. Para o objetivo desse estudo, isso no tem
importncia. Aqui o ponto de partida metodolgico no o de um estudo estritamente histrico. Por isso, a
abordagem muda e nos conduz a concluses diferentes. Tais resultados no se contradizem, mas se completam.
Nos ltimos 25 anos, os estudos dos textos neotestamentrios, ao menos nos ambientes de Igrejas crists no
Brasil, tm sido sempre feitos a partir do contexto histrico. Estudam-se as comunidades e movimentos que
esto por trs dos textos e a partir da se interpreta mesmo o que o Jesus dos Evangelhos diz (que nem sempre
o Jesus histrico). Raul se debrua sobre os textos a partir de seu conhecimento dos crculos esotricos. J vrios
autores cristos e no cristos escreveram sobre a dimenso mstica e mesmo esotrica presentes em alguns
grupos e textos do cristianismo primitivo e como isso foi posteriormente esquecido ou mesmo censurado. Agora,
1 - Marcelo Barros monge beneditino, telogo e autor de 26 livros, dos quais o mais recente "O Esprito vem pelas
guas". Ed. Rede-Loyola, 2003. Email: [email protected]
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nestas pginas do Raul, este veio espiritual novamente valorizado e vem enriquecer nossa forma de abordar os
textos antigos.
Para mim, que trabalho no dilogo entre as diferentes tradies espirituais e desenvolvo uma Teologia do
Pluralismo cultural e religioso, alguns trechos deste livro me recordam a teologia de Raimundo Panikkar. Por
exemplo, a insistncia em sublinhar o Cristo interior, Cristo em ns como essa presena divina que vai
muito alm da tradio crist e se encontra em qualquer outro caminho espiritual. Desculpem-me de citar um de
seus textos: Os cristos tm razo de falar do Cristo e no somente de Deus, porque Deus no se fecha em si
mesmo e sobre ele mesmo. Volta-se para a humanidade e para o mundo com os quais quer entrar em comunho.
isso que significa o termo Cristo. Cristo absolutamente nico e universal smbolo vivo para a totalidade da
realidade, humana, divina, csmica. Est no centro de tudo o que existe. o ponto de cristalizao, de
crescimento e reunio de Deus, da humanidade e de todo o cosmos em seu conjunto. a ao histrica da divina
Providncia que inspira a humanidade por diferentes caminhos e conduz a vida humana sua plenitude. O
mesmo Cristo que tomou forma e corpo em Jesus de Nazar pde tomar corpo sob outros nomes ainda: Rama,
Krishna, Purusha, Tathagata, etc. Jesus tem lugar em uma srie de incorporaes do mesmo Cristo. Jesus o
Cristo, mas o Cristo no somente Jesus2.
Ao ler O poder transformador do Cristianismo Primitivo, voc vai compreender ainda melhor essa
verdade. Quem saboreia estas pginas, mais do que nunca concordar: da f e do sagrado, ningum pode ser
mais do que amante que se pe a servio. Do que divino, no h ttulo de propriedade. S acesso gratuito para
toda busca que engravida o corao.
Os cristos mais habituados reta interpretao da doutrina estranharo, uma vez ou outra, algumas
intuies e no concordaro com certas concluses. Acho isso positivo e fecundo. Tome como um exerccio
espiritual escutar uma interpretao diferente da sua f. Para mim, foi muito enriquecedor, conhecer essa
abordagem da minha tradio por algum que, de certa forma, a estuda de fora ou, ao menos, no a partir da
Igreja.
Este novo livro do Raul um presente de amor para voc que o l e para todo mundo que busca a Paz
atravs do dilogo e da superao das intransigncias, discriminaes e fundamentalismos. Espero que, ao
terminar de sabore-lo, voc possa confirmar o que, em 1969, o monge beneditino Thomas Merton disse na
conferncia inter-religiosa entre monges cristos e budistas em Calcut: O nvel mais profundo da comunicao
no a comunicao, mas a comunho. Ela sem palavras. Ela est alm das palavras, alm dos discursos, alm
dos conceitos. Neste grupo, no estamos descobrindo uma unidade nova. Descobrimos uma unidade antiga.
Queridos irmos e irms, ns j somos Um. Mas imaginamos no ser. O que temos de reencontrar nossa
unidade original. Apenas, temos de ser o que j somos3.
2 - R. PANNIKAR, Le Christ et lHindouisme: une presence cache, Paris, Centurion, 1972, Le Dialogue intra-religieux, Paris Aubier, 1985. 3 - Extemporaneous Remarks by Thomas Merton, citado por JEAN-CLAUDE BASSET, Le Dialogue Interreligieux,
histoire et avenir, Paris, Ed. du Cerf, 1996, p. 122.
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1. INTRODUO
Jesus foi um dos maiores revolucionrios de todos os tempos. Sua ao insidiosa, porm, no estava voltada
para a luta de classes. Tampouco dedicou suas energias para promover a expulso dos opressores estrangeiros do
povo judeu, como os zelotes, seita judaica que lutou contra as foras romanas, e que foi aniquilada no massacre
de Massada no ano 73 de nossa era. Afinal de contas, isso no deve nos surpreender, pois, como ele disse
reiteradamente, seu reino no era desse mundo. Mesmo assim, seu ministrio causou uma revoluo radical na
vida humana, uma revoluo que continua mesmo depois de dois mil anos, porque seu impacto permanente,
pois ele pregava e empregava as armas invencveis do amor e da verdade para conquistar os coraes humanos,
mesmo quando entrincheirados por trs das slidas barreiras da vida mundana.
Qual foi ento o carter da revoluo que ele iniciou? A grande transformao revolucionria que
promoveu foi de cunho espiritual. O irnico, porm, que o objetivo central de sua pregao no era trazer algo
inteiramente novo ao povo judeu e, por meio dele, ao resto do mundo. A essncia de seu ministrio era promover
o retorno ao objetivo bsico de todo movimento espiritual em sua origem, ou seja, a experincia de Deus no
interior do homem. Os grandes instrutores e profetas como Jesus geralmente no fundam religies. Essa tarefa
tende a ser realizada por seus seguidores numa tentativa de institucionalizar os ensinamentos de seu Mestre, para
melhor conserv-los e dissemin-los. Ainda assim, a histria indica que, com o passar do tempo, as religies
tendem a minimizar a experincia mstica interior preconizada em seus primrdios e a dar nfase aos rituais
externos e obedincia das doutrinas estabelecidas pelos hierarcas. Existe uma clara analogia desse processo na
natureza fsica: as guas de um rio so puras e cristalinas perto de sua nascente, mas vo perdendo sua pureza
original ao longo do curso com a introduo de sedimentos e poluentes de vrios tipos.
Ao comentar o ministrio de Jesus, padre Marcelo Barros4 sugere que Jesus foi um profeta judeu que,
como outros profetas e mais do que todos os profetas antigos, insiste na chegada iminente do que ele chama de
Reino de Deus, uma transformao radical do mundo e de todo ser humano, em todas as dimenses da vida,
interior e social, pessoal e coletiva, dos coraes e das estruturas da sociedade, mas a partir de dentro, atravs da
converso. Ele no veio fundar uma nova religio. Sua proposta era viver o caminho humano de forma integral
e responsvel. Ele falou com base em sua cultura religiosa (judaica) de forma nova. O novo que ele trouxe foi a
revelao de Deus como amor universal, inclusivo, presente em todas as culturas e religies, e que ama
gratuitamente. Deus como energia da solidariedade e paz, presente e atuante nos coraes humanos e no
distante como algum externo com o qual as pessoas se relacionavam.
Com o passar do tempo, o afastamento do objetivo primordial da religio, que sempre a experincia
divina interior, gera uma insatisfao da alma que sentida pelo homem exterior de diferentes formas. Um
estudioso sugere: A crise atual das Igrejas e religies histricas reside na ausncia sofrida de uma experincia
profunda de Deus.5 O homem passa ento a procurar explicaes e solues para essa insatisfao interior.
Quando isso ocorre, a hierarquia religiosa, em todos os tempos e tradies, temerosa que essa insatisfao possa
levar a um afastamento de seus membros, passa a pregar uma obedincia mais estrita s suas doutrinas e prticas,
acirrando o sentimento de alienao daqueles em quem o chamado interior se faz sentir.
Esse processo era visvel no mundo judaico no tempo de Jesus. O entendimento literal e materialista das
escrituras judaicas, no contexto da opresso imposta sucessivamente pelos imprios caldeu, persa, grego e
romano, fazia com que os judeus ansiassem cada vez mais pela vinda do Messias anunciado pelos profetas, para
estabelecer o Reino em que eles, como o povo eleito de Deus, governariam sobre todos os povos da Terra.
Para que a promessa da aliana fosse cumprida o mais rpido possvel, procuravam obedecer rigorosamente os
mandamentos da Lei Mosaica, o sinal da aliana. Por isso, a caracterstica fundamental do judeu tradicional era
ser obediente Lei.
Jesus em suas pregaes falava por meio de parbolas sobre o Reino de Deus, atraindo com isso o interesse
de seus compatriotas. No entanto, seu comportamento no ortodoxo com relao a certos preceitos da Lei
Mosaica, em especial aos relacionados com os rituais de pureza, de observncia do sbado e da comensalidade,
4 Irmo Marcelo, como geralmente se apresenta, um monge da ordem beneditina, prior do convento de sua ordem em Gois
Velho, autor de 26 livros. um militante do verdadeiro ecumenismo e do dilogo entre religies. Essa e outras citaes,
foram oferecidas como comentrios a uma verso preliminar deste livro. 5 Leonardo Boff e Frei Betto, Mstica e Espiritualidade (S.P., Rocco, 1999), pg. 18.
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provocava a perplexidade do povo e a hostilidade dos saduceus (sacerdotes do templo) e fariseus (escribas), os
guardies da Lei. A maioria do povo hebreu pautava sua conduta pela observncia religiosa na linha rabnica de
Shammai, estritamente rgida e legalista. Para eles, a nfase da prtica religiosa era o formalismo externo. Jesus,
porm, seguia a linha da escola rabnica de Hillel, de cunho mstico, que enfatizava a atitude interior de entrega a
Deus e de amor ao prximo. Para Jesus, a lei era um instrumento ou caminho revelado a Moiss para facilitar o
retorno do homem ao seio divino. A lei no era uma finalidade em si mesma, mas um mtodo para tornar as
pessoas verdadeiramente livres, e no para as aprisionar.
Interpelado pelos fariseus sobre a no observncia estrita do sbado por seus discpulos, Jesus respondeu:
O sbado foi feito para o homem, e no o homem para o sbado (Mc 2:27). Suas respostas provocavam a ira
dos fariseus que no conseguiam argumentos dentro da ortodoxia judaica para contestar aquele jovem rabino
que, para eles, infringia a Lei. Jesus pregava o retorno essncia espiritual da tradio judaica, em contraste com
a tendncia histrica dos guardies da Lei de enfatizar as prticas externas. Essa tentativa tambm foi feita por
outros profetas antes de Jesus, como mostram as passagens: Porque amor que eu quero e no sacrifcio,
conhecimento de Deus mais do que holocaustos (Os 6:6), e Por acaso no consiste nisto o jejum que escolhi:
em romper os grilhes da iniqidade, em soltar as ataduras do jugo e pr em liberdade os oprimidos e
despedaar todo o jugo? (Is 58:6). O que Deus espera do homem foi expresso por Jesus como: Misericrdia
que eu quero, e no sacrifcio (Mt 9:13).
A doutrina progressista de Jesus era um retorno essncia do ensinamento divino j ministrado aos judeus
por seus patriarcas e profetas, atualizado e aprofundado para atender as necessidades espirituais do povo daquele
tempo e dos sculos vindouros. No entanto, o afastamento progressivo dos ensinamentos originais, que visavam
promover a justia e a compaixo entre os homens e preparar os devotos para o conhecimento de Deus em seus
coraes, levou cristalizao da vida religiosa judaica na forma de obedincia a rituais externos, consolidados
nos 613 preceitos da Lei Mosaica. Deve ficar claro que nem todos esses preceitos eram de origem divina. A
maioria, na verdade, refletia os antigos costumes do povo judeu que foram acrescentados ao Declogo para
formar a Lei. Por isso, os ensinamentos de Jesus chocavam os lderes das sinagogas e do Templo de
Jerusalm, que viam com preocupao seu prestgio e poder abalados pelo jovem nazareno, principalmente
porque seus ensinamentos eram bem aceitos por grande parte do povo.
Mas, se Jesus revolucionou a vida religiosa e espiritual em seu tempo, legando para seus seguidores de
todos os tempos as chaves do Reino de Deus, por que nos dias de hoje tantos lderes religiosos relatam uma
crescente insatisfao no seio de muitos segmentos da famlia crist? Alguns observadores sugerem que a
histria se repete. Na verdade, isso j era conhecido dos sbios antigos, estando registrado na Bblia: O que foi
ser, o que se fez, se tornar a fazer: nada h de novo debaixo do Sol! Mesmo que algum afirmasse de algo:
Olha, isto novo!, eis que j sucedeu em outros tempos muito antes de ns (Ec 1:9). Para algumas pessoas,
existem certos paralelos entre a ortodoxia judaica no tempo de Jesus e a ortodoxia crist atual, como a
observncia do sabath pelos judeus, com seus holocaustos e cerimnias no templo ou nas sinagogas, e a
participao na missa dominical, com seu sacrifcio eucarstico, ou em outros servios religiosos dos cristos
modernos; o estrito pagamento do dzimo sobre toda a produo obtida pelos judeus e o pagamento do dzimo
efetuado pelos cristos sobre salrios e outras rendas, principalmente entre os evanglicos; a obedincia Lei
Mosaica e a crena nas doutrinas e dogmas da Igreja.
Ser que a apatia e descontentamento interior sentidos por tantos cristos no uma indicao de que ns
tambm nos afastamos dos verdadeiros ensinamentos divinos em nossa prpria religio, como os judeus fizeram
no tempo de Jesus? Por que ocorreu esse gradual afastamento dos ensinamentos originais do Mestre? Seria
possvel, em nossos dias, um retorno aos virtuosos costumes do perodo ureo da tradio crist, os primeiros
trs sculos de nossa era, quando a maior parte dos cristos vivia de acordo com os ensinamentos de Jesus com
tal determinao e f que no havia hesitao mesmo diante do martrio e com isso grande nmero de seus
seguidores alcanava a experincia de Deus, o anseio de todas as almas em todos os tempos?
Essas questes sero examinadas detalhadamente ao longo deste trabalho. Podemos adiantar agora que o
cerne da questo deve-se ao fato de a vida do cristo moderno em geral, e do catlico em particular, no estar
realmente pautada naquilo que Jesus pregou. Se observarmos a vida do catlico tpico, seremos forados a
concluir que ela se resume na participao nominal na missa dominical e nas festas e romarias de santos
padroeiros. Mesmo entre os que participam da missa ou do servio religioso de sua igreja, encontramos grandes
nmeros daqueles que esto de corpo presente, mas com a mente e o corao distantes. A missa ou servio
religioso uma obrigao a ser cumprida e no uma prtica que deleita seus coraes e eleva suas almas.
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Alm disso, a maior parte dos catlicos tem um conhecimento extremamente precrio das escrituras
sagradas, em contraste com seus irmos evanglicos. Conseqentemente, esses fieis no esto cientes da riqueza
espiritual que nos foi legada pelo divino Mestre e registrada na Bblia. Os evanglicos, por sua vez, enfrentam a
limitao auto-imposta de aceitar uma interpretao literal das escrituras, sabidamente redigidas com o uso
intenso de parbolas e alegorias.
Esse parece ser, portanto, o mago do problema da cristandade atual: a alienao da religio na vida diria
dos fiis. Essa alienao advm de um considervel grau de ignorncia dos ensinamentos que nos foram legados
por Jesus e sua relevncia para nossa vida nos dias de hoje. Ora, quem no conhece os ensinamentos do Mestre,
no os pode praticar. Nesse ponto o cristo moderno diferente de seus irmos dos primeiros tempos. Os
seguidores de Jesus, mesmo antes dos evangelhos cannicos terem sido escritos, ouviam com ateno o que os
pregadores itinerantes ensinavam e guardavam em sua mente e seu corao as palavras de sabedoria, sentindo-se
compelidos a coloc-las em prtica. As famlias, os amigos e os vizinhos de cada cidade ou lugarejo
conversavam sobre a Boa Nova com mais entusiasmo de que hoje se fala de futebol, novela ou poltica. As
palavras do Mestre, como foram transmitidas por seus discpulos, eram consideradas um tesouro a ser bem
guardado no corao.
As igrejas crists esto conscientes de que existe uma insatisfao latente, quando no ativa e vocifera, no
seio de seus fiis e crentes. Apesar das tentativas de modificao de seus rituais, dos temas de suas pregaes, do
estabelecimento de maior contato com os paroquianos e dos movimentos de evangelizao, ainda assim
permanece a insatisfao interior. Muitos lderes catlicos e protestantes esto procurando encontrar formas de
amenizar os problemas detectados no seio de suas congregaes, sem, contudo, atacar o cerne da questo
espiritual. Alguns chegam a propor objetivos sociais para atender a esse anseio da alma. Surgiram movimentos,
como a teologia da libertao, a pastoral da criana, o movimento dos sem-terra e outros que identificaram claras
injustias sociais em nossa sociedade, que certamente merecem a ateno dos verdadeiros cristos. Muita energia
foi direcionada para superar essas injustias. Os resultados nem sempre atenderam inteiramente aos anseios de
seus idealizadores e muito menos s necessidades daqueles que at hoje sofrem e precisam de ajuda. Ainda que
alguns avanos tenham sido feitos na rea social pelas igrejas catlicas e protestantes, ao que tudo indica, os
anseios da alma no parecem ter sido atendidos.
Alguns observadores dizem que a soluo simples: bastaria vivermos de acordo com o ensinamento
central de Jesus, reiterado ao longo de suas pregaes, ou seja: amai-vos uns aos outros. No entanto, se isso
fosse to simples assim, esse anseio j teria sido atendido h muitos sculos. O problema que a pessoa comum
encontra dificuldade para ser verdadeiramente amorosa com aqueles fora de seu crculo ntimo. Nossas
tendncias materialistas, acirradas pelos valores de nossa sociedade competitiva e consumista, fazem com que o
homem e a mulher comum vivam de forma autocentrada, quando muito aceitando os valores relacionados com o
que chamamos de vida civilizada e educada. Mas, os valores da civilizao e da educao modernas, nada mais
so do que vernizes que tendem a se romper sempre que nossos interesses esto em jogo. A realidade de nossa
vida que agimos como lobos ferozes e egostas, vestidos com peles de ovelha da moralidade do convvio
social.
Todos esses fatos conspiram para que exista hoje na cristandade uma insatisfao crescente que muitos fiis
e crentes sinceros no conseguem definir com facilidade. Sentem que falta algo em suas vidas espirituais. Tal
angstia reflete a ausncia daquela paz interior que caracteriza a vida dos msticos e mesmo de todo aquele que
est realmente engajado na busca espiritual. como se suas almas estivessem querendo dizer alguma coisa que o
homem externo no consegue captar com clareza. Seria possvel que essas almas, sintonizadas com o mundo
espiritual, estivessem com saudade da simplicidade e pureza da mensagem original do Salvador?
O resgate dos ensinamentos essenciais de Jesus tambm tem uma importncia fundamental para a mocidade
e os jovens adultos alienados e desligados da religio nos dias de hoje. Em nosso mundo moderno, com seu
ritmo frentico, podemos constatar que as pessoas passam por mais experincias do que seria possvel em cinco
ou dez vidas h dois mil anos atrs. Portanto, a busca desenfreada do prazer e das sensaes, que caracteriza
nossa sociedade consumista, se por um lado leva alienao e decadncia, por outro, faz com que muitos
alcancem mais rapidamente seu nvel de saturao com a vida mundana e passem a buscar a transcendncia de
outras formas, especialmente na vida espiritual. A maior parte dessas pessoas, especialmente quando viveram
num ambiente cristo tradicional, buscam saciar seus anseios interiores em outras tradies, mormente as
orientais, por desconhecerem as prticas espirituais da tradio crist. Essas pessoas seriam das mais
beneficiadas pelos ensinamentos espirituais do cristianismo primitivo, porque j esto em busca da experincia
de Deus.
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Tenho percebido que Jesus, em sua prescincia e sabedoria, j havia previsto nosso anseio por esses
ensinamentos transformadores essenciais. Por isso, decidi sistematizar o meu entendimento do que o Mestre j
havia ensinado, mas que parece no ter sido devidamente percebido ou enfatizado, para orientar nossa prtica de
vida. Estou convicto de que os ensinamentos e as prticas que sero apresentados aqui atendem ao anseio de
nossas almas de retornarmos essncia da mensagem de Jesus, para que assim possamos viver vidas mais
plenas, realizadas e felizes, pautadas pela verdade e pelo amor ao prximo, e atender aos nossos mais elevados
anelos espirituais de experincia de Deus. O primeiro nvel de prtica est voltado para a fundamentao de
nossa vida neste mundo, servindo, ademais, como elemento de transio para o ensinamento fundamental de
Jesus, o amor a todos os seres. O segundo nvel procura atender o anseio mais profundo daqueles que aspiram
verdadeiramente seguir o Mestre para assim alcanar a experincia de Deus.
No entanto, o poder transformador desses ensinamentos essenciais, como na verdade, de todos os
ensinamentos de Jesus, depender sempre de nossa resposta a eles. As diferentes possibilidades de resposta
foram exemplificadas pelo Salvador em sua parbola do semeador (Mt 13:4-9), que sai para semear. Parte das
sementes cai beira do caminho e comida pelos pssaros, outra parte cai em lugares pedregosos onde por falta
de terra no consegue se enraizar e morre, outra cai entre os espinhos sendo abafada ao crescer e, finalmente,
outra cai em terra boa, produzindo fruto. Os quatro lugares referem-se a quatro fases sucessivas da evoluo
humana. A semente representa a verdade eterna expressa pelos ensinamentos do Mestre. A beira do caminho,
a vida do homem comum desatento e incapaz de apreciar a sabedoria. O terreno pedregoso com pouca terra
representa a situao de muitas pessoas que se entusiasmam com idias novas mas que, por falta de profundidade
de carter, no so capazes de deixar essas idias seguirem seu curso natural para transformar suas vidas. Os
espinhos constituem as distraes e sedues do mundo material que abafam a tenra plantinha da vida espiritual.
A terra boa representa a mente e o corao do homem maduro que percebe a verdade e passa a agir de acordo
com seus ditames.
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2. SIMPLICIDADE E DIVERSIDADE NO CRISTIANISMO PRIMITIVO
Em que consiste o contraste entre o cristianismo primitivo e as religies crists da atualidade? Que
diferenas de doutrina e prtica existem entre o cristianismo professado pelas igrejas crists nos dias de hoje e o
que vigorou nos primeiros tempos aps a morte de Jesus? Existem diferenas to marcantes assim, a ponto de
mudar a perspectiva de vida espiritual do cristo moderno, caso fosse possvel resgatar as prticas originais?
Quando investigamos esses pontos com ateno, verificamos que nos trs primeiros sculos depois da
morte do Salvador, os seguidores do Caminho, como os primeiros cristos eram chamados, formavam um grande
nmero de comunidades, muitas vezes com considerveis diferenas de crenas e terminologias. As primeiras
comunidades foram, na verdade, grupos formados dentro do judasmo na Palestina. Essas comunidades, referidas
como ebionitas, que significa os pobres, permaneceram por vrias dcadas como seitas dentro do judasmo,
obedecendo lei e aos ensinamentos de Jesus. Uma comunidade com considervel diferena de doutrina
comparada com o corpo principal do cristianismo atual parece ter sido o grupo cristo cuja existncia pode ser
inferida do Livro de Q (a fonte para os ensinamentos do Senhor em Mt e Lc no encontradas em Mc). Esse
grupo deve ter exercido importante influncia doutrinria, para que seus escritos servissem como base para a
preparao dos Evangelhos. Ele referia-se a Jesus com o Filho do Homem, considerando-o um grande mestre
ou profeta.6
Com o desenvolvimento de comunidades fora do mbito do judasmo, as diferenas de doutrinas tornaram-
se mais marcantes. bem verdade que, apesar das diferenas de doutrina, as prticas de vida baseadas nos
ensinamentos de Jesus ocupavam o lugar central na vida do devoto. Os helenistas que foram expulsos da
Palestina aps a vitria do exrcito romano e a destruio de Jerusalm no ano 70, foram fundamentais para
disseminar a Boa Nova numa vertente que no exigia a aceitao da lei e da circunciso. O termo cunhado em
Antioquia, cristos, passou a ser usado para referir-se a esse crescente segmento dos seguidores de Jesus, que,
usando a lngua universal daquela poca, o grego, e sem o peso da lei mosaica, expandiu-se muito mais
rapidamente do que os discpulos judeus da Palestina e de outras comunidades do Oriente Mdio que usavam o
aramaico. A vida nessas comunidades, que poderamos chamar de protocrists, era to marcadamente diferente
da de outras comunidades e famlias da poca, que as converses se davam mais em virtude do exemplo de uma
vida amorosa do que por convencimento doutrinrio.
O grande marco da histria do cristianismo ocorreu no incio do sculo IV, quando ele foi adotado como
uma das religies oficiais do Imprio Romano. A partir da o cristianismo deixou de ser perseguido pelas
autoridades, tendo fim o perodo trgico dos martrios cruis, inclusive nos selvagens jogos das arenas, quando
os cristos eram mortos por gladiadores ou devorados por lees e outros animais. Essa mudana foi to marcante
que alguns historiadores sugerem que o cristianismo dificilmente teria alcanado sua enorme disseminao e
persistido como religio universal por dois milnios no fosse o ato do Imperador Constantino. No entanto, as
vantagens obtidas tiveram seu preo. Tudo comeou com a exigncia do Imperador de por um fim diversidade
de doutrinas encontradas no seio da famlia crist naquela poca.
Constantino e a diversidade de doutrinas
Constantino veio a conhecer o cristianismo por intermdio de sua me, Helena, uma devota crist. O
imperador, um astuto poltico, constatou que o cristianismo havia se espalhado por quase todos os recantos do
Imprio. Percebeu, ademais, que a nova religio tinha vrias caractersticas que poderiam facilitar a consolidao
do domnio de Roma, cada vez mais enfraquecido por peridicas rebelies regionais e pelas temidas invases
dos brbaros. Adotou ento o cristianismo como uma das religies oficiais do Imprio Romano. Mas
surpreendeu-se ao verificar que no mundo cristo havia uma grande disparidade de movimentos, crenas e
grupos, alguns dos quais em franca beligerncia com os outros. Concluiu ento, que, para servir aos seus
propsitos polticos, o cristianismo teria que passar por uma uniformizao de crenas. Desde o ano 312, quando
obteve uma impressionante vitria militar em Roma, sobre seu rival do ocidente, Maxentius, passou a favorecer
a religio crist e a promover sua unificao com uma surpreendente pacincia. Finalmente, com a ecloso da
controvrsia, Alexandre versus Arius, chegou a concluso que a uniformizao de crenas dentro do cristianismo
teria que ser promovida de forma mais vigorosa.
6 Norbert Brox, A Concise History of the Early Church (N.Y., Continuum, 1995), pg. 8 e 9.
11
Como o Papa naquela poca no tinha poder para unificar as diferentes crenas regionais e, em particular,
para por fim ao principal pomo de discrdia, a divergncia de opinies quanto natureza de Jesus, o Imperador
convocou um Conclio, conhecido como Conclio de Nicia, tendo presidido parte das reunies. Constantino,
no era telogo e nem mesmo cristo, mas sim um poltico extremamente hbil e perspicaz para perceber o que
iria atender a seus interesses polticos. Menos de 300 bispos compareceram ao conclio, de um colegiado de
cerca de 900. O Papa e a maior parte dos bispos ocidentais, boicotaram o encontro. Sob presso de Constantino,
os bispos presentes, chegaram finalmente a um acordo sobre as doutrinas que deveriam ser aceitas por todos
cristos, sendo a maior parte delas incorporadas no Credo de Nicia. Como havia muitas correntes doutrinrias e
interesses na Igreja daquela poca, o acordo obtido entre os bispos lembra os acordos polticos atuais. Muitas
concesses foram feitas e benesses prometidas, havendo at o recurso extremo da destituio de alguns bispos de
seus cargos, no caso de um grupo que no cedeu s presses e sedues do Imperador.
A doutrina oficial foi ento imposta, a ferro e fogo, a todos os grupos cristos. Alguns resistiram
inicialmente. Mas, com o poder temporal da Igreja de Roma sobre assuntos religiosos garantido pelas tropas do
Imperador, as dissenses foram sendo vencidas e os novos dogmas aceitos. A partir de ento, a virtude
fundamental do cristo passou a ser sua aceitao do Credo oficial da Igreja, transformado em dogma,
semelhana da tradicional obedincia lei por parte dos judeus. A vivncia dos ensinamentos do Mestre foi
relegada a segundo plano, e muitos desses ensinamentos foram sendo esquecidos com o passar dos sculos.
A diversidade de doutrinas no seio da cristandade no incio do sculo IV era reflexo da forma como o
movimento cristo se expandiu aps a morte do Mestre. Tudo indica que aps o retorno de Jesus dos mortos, a
Boa Nova espalhou-se como fogo em capim seco por todo o oriente mdio, por quase toda a Europa at a Gr
Bretanha, no ocidente, e na direo do oriente chegando at mesmo ndia. Fora da Palestina, comunidades
foram estabelecidas na Sria, Mesopotmia, Chipre, ao longo da sia Menor onde hoje a Turquia, na Grcia,
em Roma, sul da Itlia, Alexandria e Alto Egito, na Ilria e Dalmcia (atualmente Srvia), Glia, Espanha,
Alemanha, Tunsia, Algria, Marrocos e Lbia. As converses eram espontneas e o entusiasmo era a principal
caracterstica do seguidor de Jesus. Podemos inferir que os discpulos do Mestre espalhavam a Boa Nova com a
marca da simplicidade que caracterizou a vida do manso e compassivo nazareno. Em lugar de doutrinas e
dogmas que poucos realmente entendiam, os ensinamentos eram simples e pautados pelo exemplo.
O sentimento apocalptico generalizado entre as primeiras comunidades crists, de que o fim dos tempos
estava prximo, era o principal incentivo de suas atividades missionrias. A Boa Nova tinha que ser levada aos
pagos o mais rapidamente possvel, antes que fosse tarde demais. O cristianismo era considerado como uma
religio de redeno. Esse movimento obteve especial alento com a expulso dos helenistas da Palestina. Os
judeus cristos foram expulsos da Palestina durante a Primeira Guerra Judaica (66-70), porm retornaram mais
tarde para Jerusalm. No entanto, aps a revolta Bar Kokhba, a Segunda Guerra Judaica contra os romanos (132-
135), foram obrigados a deixar definitivamente o pas porque, como judeus, eles haviam sido circuncidados, e
todos os judeus foram banidos sob pena de morte.7 A partir de ento s era possvel encontrar-se cristos
gentios na Palestina.
O perodo crucial para entendermos a diversidade das doutrinas e prticas dos diferentes grupos cristos
talvez o que vai da morte de Jesus at a divulgao dos quatro evangelhos cannicos em sua forma final. Esse
perodo geralmente referido como indo do ano 30 ou 33 de nossa era at a dcada de 70, quando teria
aparecido o Evangelho Segundo Marcos, tido como o primeiro evangelho (os outros trs evangelhos, de acordo
com a Igreja, teriam sido publicados entre os anos de 80 e 110). No entanto, alguns fatos sugerem que a tradio
oral e outros textos e evangelhos que no os atuais cannicos permaneceram quase soberanos na transmisso da
mensagem de Jesus por muito mais tempo do que os 40 anos sugeridos pela Igreja. Tanto o limite inferior como
o superior desse perodo parecem ter sido diferentes.
A morte de Jesus pode ter ocorrido bem antes do ano 30, ou 33, de nossa era. De acordo com as Escrituras,
o Rei Herodes teria mandado matar em todo o territrio da Palestina os meninos com menos de dois anos,
quando soube pelos trs magos do Oriente que eles tinham vindo homenagear o recm-nascido rei dos judeus
(Mt 2: 1-16). No entanto, um fato conhecido dos historiadores que o Rei Herodes morreu no ano 4 a.C.,
portanto, quatro anos antes da data de nascimento geralmente atribuda a Jesus. O Papa, reconhecendo essa e
outras incoerncias histricas relacionadas com a vida de Jesus, vem estimulando os historiadores a descobrir as
verdadeiras datas de nascimento e morte do Salvador. Apesar de no termos ainda nenhum resultado
incontestvel dessas pesquisas, as sugestes variam de que Jesus teria nascido cerca de sete anos antes de nossa
7 A Concise History of the Early Church, op.cit., pg. 19.
12
era, referncia preferida por alguns estudiosos ligados ao Vaticano, e at mesmo que ele teria nascido 105 anos
antes da data tradicional,8 sendo conhecido como Jeshua ben Perachia.
Caso seja comprovada uma data mais distante para o nascimento do Mestre, isso resolveria o constrangedor
questionamento de que no existe nenhuma comprovao histrica de que Jesus realmente tenha existido. Os
historiadores so muito enfticos a esse respeito, pelo fato de que tanto o Sindrio judaico quanto o governo
romano na Palestina realizavam censos populacionais peridicos para determinar com preciso a populao
masculina do territrio, pois era sobre os homens de mais de quatorze anos que incidia o imposto que era
recolhido com mo de ferro pelo Estado. Ora, alguns desses registros das trs dcadas em que geralmente se
considera que Jesus teria vivido ainda esto disponveis, e nenhum deles possui qualquer indicao da existncia
Jesus e de seus familiares. Qualquer que possa ter sido o ano em que Jesus realmente nasceu, provvel que sua
morte tenha ocorrido bem antes do ano 30 de nossa era. Uma indicao disso o fato de que, por volta da dcada
de 40, j havia grande nmero de comunidades de seguidores de Jesus espalhadas pelo oriente mdio, norte da
frica, sia Menor e por quase toda a Europa e at na ndia. Como os meios de transporte e comunicao eram
muito rudimentares naquela poca, essa extensa propagao do cristianismo deve ter demandado muito mais
tempo para ocorrer.
A data da preparao dos evangelhos em sua verso final deve ter ocorrido provavelmente tambm mais
tarde do que normalmente aceita pela Igreja (70 a 110 a.C.). Vale lembrar que h dois sculos atrs a Igreja
ainda sustentava que os quatro evangelhos tinham sido escritos pouco depois da morte de Jesus. Somente em
meados do sculo XIX, em funo das pesquisas de estudiosos alemes que apontavam o fato de que algumas
passagens falavam da destruio de Jerusalm e do Templo, o que sabidamente ocorreu no ano 70 de nossa era, a
atual datao dos evangelhos foi ento proposta, para a consternao dos fiis.
Ainda que no existam documentos daquela poca comprovando quando os evangelhos foram realmente
preparados, existe, no entanto a prova contrria, representada pelo que no se falou deles. Significa dizer que,
se os evangelhos atuais estivessem disponveis e fossem aceitos como os mais fidedignos, seria de esperar-se que
os abundantes documentos escritos pelos padres da Igreja durante o final do sculo I e a primeira metade do
sculo II tivessem feito referncias a eles e, melhor ainda, citassem a vida e o ministrio de Jesus a partir desses
documentos cannicos.
Esse raciocnio levou vrios historiadores bblicos a vasculhar as obras dos mais conhecidos escritores
daquele perodo e o resultado foi negativo. Assim, que, nas obras conhecidas dos mais autnticos escritores
eclesisticos, como Clemente de Roma, Barnabs, Hermas, Policarpo e os bispos Igncio e Papias, no feita
nenhuma referncia direta aos quatro evangelhos. Mas, talvez a prova mais contundente venha de uma das mais
reverenciadas personalidades da Igreja, Justino, o mrtir. Ele foi um escritor prolfico, tendo vivido de 110 at
165, quando sofreu o martrio. Suas obras foram examinadas por conceituados eruditos bblicos (Cassel, Keeler,
Tischendorf), e nelas foram identificadas 314 citaes do Antigo Testamento, das quais 197, ou seja, dois teros,
com a indicao correta dos livros dos quais elas tinham sido retiradas. Porm, nas citaes sobre a vida e os
ensinamentos de Jesus, Justino no menciona nenhum dos quatro evangelhos. No entanto, ele cita repetidamente
uma obra referida como Memrias dos Apstolos, ou simplesmente Memrias. Ele faz quase cem citaes de
Memrias, sendo que em somente trs casos elas coincidem literalmente com passagens de nossos quatro
evangelhos. Ele cita tambm o Evangelho dos Hebreus (mencionado por outros autores), o Evangelho de
Nicodemos (tambm conhecido como Atos de Pilatos), o Proto-evangelho e o Evangelho da Infncia.
O primeiro escritor a mencionar algum dos evangelhos (o de Joo, no caso) foi Tefilo de Antioquia, por
volta do ano de 180. O primeiro a citar os quatro evangelhos foi o Bispo Irineu de Lion, entre os anos 180 e 200.
Esses fatos sugerem que os quatro evangelhos passaram por um longo processo de gestao, sendo ultimados na
segunda metade do sculo II. Isso provavelmente ocorreu em face da necessidade sentida pela Igreja de
apresentar textos oficiais, ou cannicos, para enfrentar as posies doutrinrias daqueles que eram considerados
hereges.
As consideraes acima sobre o perodo de vida de Jesus e a data de publicao dos quatro evangelhos,
levam-nos a crer que o perodo entre a morte de Jesus e a data em que os quatro evangelhos cannicos tornaram-
se disponveis seria bem maior do que os 40-70 anos admitidos atualmente, podendo chegar a 100 ou mesmo
200 anos. Esse fato de suma importncia para entendermos a razo da considervel disparidade de doutrinas
dentro da famlia crist no sculo IV, que levou Constantino a agir de forma to radical, com a instituio
forada de um conjunto de doutrinas que viesse a unificar a crena da nova religio oficial do Imprio.
8 G.R.S. Mead, Viveu Jesus 100 a.C.?
13
A disseminao da Boa Nova
Aps a ressurreio de Jesus e sua apario s mulheres e aos discpulos, o Mestre passou algum tempo
preparando-os para a misso que viriam a cumprir. Ainda que a tradio insista em afirmar que Jesus tinha
somente doze discpulos, a verdade que esse nmero era bem maior, provavelmente mais de setenta (Lc 10:1).
Ao trmino de sua misso terrena, Jesus instou seus discpulos a levarem aos povos de outras naes os
conhecimentos da Boa Nova, e a ensin-los a observar tudo o que haviam aprendido com ele (Mt 28:19-20). Os
discpulos, ento, fortalecidos pelo retorno de Jesus dos mortos e devidamente preparados para sua misso,
partiram para execut-la. Eles tornaram-se pregadores itinerantes do evangelho passando pelas cidades da
Palestina e, alguns deles, por algumas cidades em pases vizinhos. Em Israel o seu trabalho foi facilitado pelas
pregaes anteriores do prprio Mestre, que em vrios lugares tinha deixado ncleos de simpatizantes.
Nos primeiros anos a expanso do cristianismo deveu-se ao entusiasmo e carisma dos apstolos e
discpulos. Mas, com a reestruturao social que se observava nessas primeiras comunidades, seu exemplo
tornou-se contagioso. A expanso do cristianismo no era tanto a expanso da Igreja, como um resultado da
misso evangelizadora que passou a ser feita em todos os nveis sociais, por todos os convertidos, que na maioria
das vezes convenciam tanto pelo exemplo como pela palavra. As comunidades locais eram exemplos de
sociedades caridosas: Os membros vulnerveis da sociedade, tais como vivas, rfos, bebs indesejveis e
escravos velhos podiam estar certos que seriam sustentados se pertencessem igreja.9
Seguindo a orientao e exemplo de Jesus, os apstolos escolheram por sua vez alguns discpulos e
passaram a prepar-los, para garantir a continuidade do trabalho quando tivessem partido, pois muitos j eram
idosos.10
Sendo discpulos fiis, seguiram a diretriz do Mestre, de ensinar de forma direta os mistrios do Reino
aos seus discpulos, e de divulgar a Boa Nova ao povo em parbolas, ou seja, de forma alegrica. A continuao
da prtica do ensinamento ao pblico por meio de alegorias, especialmente parbolas, foi um dos principais
fatores responsveis pelas diferenas de doutrinas encontradas mais tarde. No Evangelho de Marcos dito que
Jesus: Anunciava-lhes a Palavra por meio de muitas parbolas como essas, conforme podiam entender; e nada
lhes falava a no ser em parbolas. A seus discpulos, porm, explicava tudo em particular (Mc 4:33-34).
Sabemos pelos relatos dos evangelhos que a capacidade de compreenso dos discpulos era bastante
diversificada. Como em todos os grupos de seres humanos, alguns se mostraram capazes de aprender os
mistrios da alma mais rapidamente e, portanto, estavam melhor preparados para o magistrio do que os outros.
At mesmo a capacidade de lembrana dos ensinamentos do Mestre deve ter variado significativamente, em que
pese a proverbial memria das pessoas que vivem uma vida mais simples, por no serem submetidas, como nos
dias de hoje, ao bombardeio dirio de informaes de toda natureza, a maior parte das quais de pouca utilidade.
Podemos supor, ademais, que nem todos os discpulos estiveram presentes a todas as pregaes e ensinamentos
de Jesus. Portanto, cada um deve ter dado maior ou menor nfase a certos ensinamentos e relatado os fatos
histricos com seu prprio colorido. Essa tambm a explicao para as diferenas marcantes encontradas nos
quatro evangelhos cannicos, como por exemplo a genealogia de Jesus apresentada em Mateus e Lucas. Com o
tempo, e na ausncia de textos uniformes para orientar a pregao dos discpulos e, mais tarde, dos discpulos
deles, certas nuances de doutrina e nfase na vida espiritual comearam a aparecer. Com o passar dos anos e das
dcadas de transmisso oral dos ensinamentos, essas diferenas foram se tornando mais marcantes, gerando em
alguns casos interpretaes e doutrinas divergentes entre os diferentes grupos de seguidores de Jesus.
Os discpulos provavelmente devem ter estabelecido certa sistemtica de apresentao de suas pregaes
que viria a influenciar o ministrio de seus discpulos e das geraes posteriores de seguidores. Parte dos
ensinamentos pblicos era voltada para a questo tica, outra parte para a orientao da vida espiritual
propriamente dita, ou seja, como viver para alcanar o Reino dos Cus e mais outra parte relacionada com a vida
de Cristo e seu significado para a humanidade. H evidncias tambm de que os discpulos e seus seguidores
celebravam, como parte do ministrio, certos rituais sacramentais, com nfase na eucaristia em memria do
Salvador. Como relata uma das maiores autoridades bblicas da atualidade: As refeies comunitrias que Jesus
celebrou com seus seguidores durante seu perodo de vida eram regularmente celebradas como refeies
escatolgicas da comunidade. Essa refeio, que era obviamente uma refeio regular completa, tornou-se assim
um banquete messinico, de forma anloga s refeies dos essnios.11
9 Stuart Hall, Doctrine and Practice in the Early Church (Grand Rapids, Wm. Eerdmans, 1992), pg. 23. 10 Alguns estudiosos afirmam que os seis irmos de Jesus eram mais velhos do que ele, pois eram filhos do primeiro
casamento de Jos. Todos eles tornaram-se discpulos de seu irmo mais novo. 11 Helmut Koester, History and Literature of Early Christianity (N.Y., Walter de Gruyter, 1987), pg. 87-88.
14
Dentre os quatro segmentos do ministrio dos discpulos de Jesus (tica, espiritualidade, vida de Jesus e
rituais), a Igreja preferiu mais tarde dar nfase aos dois ltimos. A vida de Cristo, com suas implicaes
doutrinrias, serviu de base para o Credo de Nicia, que foi transformado em dogma. A refeio sacramental,
mais tarde, foi modificada e estilizada, servindo de base para o principal ritual da Igreja, a Santa Missa,
culminando na Eucaristia. claro que essa deciso teve graves reflexos na formao da moralidade e na vida
espiritual de grande parte da cristandade.
importante frisar que os apstolos, seguindo o exemplo do Mestre, dedicavam boa parte de seu tempo
iniciao de seus discpulos nos Mistrios de Deus. Jesus indica que aos discpulos foi dado conhecer os
Mistrios do Reino (Mt 13:11; Mc 4:11 e Lc 8:10), e Paulo afirma que realmente de sabedoria que falamos
entre os perfeitos, sabedoria que no deste mundo nem dos prncipes deste mundo, votados destruio.
Ensinamos a sabedoria de Deus, misteriosa e oculta, que Deus, antes dos sculos, de antemo destinou para a
nossa glria (1 Co 2:6-7). Essa sabedoria divina, misteriosa e oculta, aludida por Paulo, que existia desde os
primrdios da vida humana, era o cerne dos ensinamentos internos de Jesus que foram ministrados a seus
discpulos.
Podemos supor que foi estabelecido um procedimento rigoroso de seleo para escolher aqueles
considerados dignos de serem iniciados nos Mistrios de Deus, como se deduz das palavras de Jesus: Com
efeito, muitos so chamados, mas poucos escolhidos (Mt 22:14). Dentre os ensinamentos internos estariam os
mtodos de interpretao da linguagem sagrada usada na preparao dos textos incorporados na Bblia. Os
grupos que no contavam com instrutores iniciados na linguagem sagrada para interpretar devidamente as
parbolas e alegorias foram limitados ao entendimento literal da Boa Nova, sendo essa uma razo adicional para
as diferenas de doutrinas desenvolvidas com o tempo. Esse tema ser aprofundado mais adiante nesta obra,
quando apresentarmos as chaves conhecidas para a interpretao da Bblia Sagrada.
Tudo indica, porm, que a histria atropelou os desgnios dos discpulos de Jesus de promover a expanso
do cristianismo de forma bem estruturada. Para isso era necessria a preparao sistemtica de iniciados nos
Mistrios de Jesus, para que um nmero suficiente de instrutores devidamente credenciados estivesse sempre
disponvel para orientar e instruir os seguidores da Boa Nova. Porm, as adeses de simpatizantes e membros
dos seguidores do Caminho, como a nova religio era chamada inicialmente, cresceram num ritmo muito mais
rpido do que a preparao dos discpulos. A mensagem de esperana e conforto disseminada pelos apstolos e,
mais tarde, por seus discpulos tocava os coraes de seus ouvintes, tanto de judeus quanto de gentios. Assim o
movimento foi crescendo em ritmo acelerado.
O exemplo de dedicao e compreenso fraternais para com as necessidades de todos (homens e mulheres,
cidados, servos e escravos, jovens, idosos e vivas desamparadas) tornavam as comunidades recm-formadas
cada vez mais coesas, ainda que, em alguns casos, carecessem de orientao permanente de instrutores
capacitados. Essas comunidades eram exemplos do que, mais tarde, revolucionrios e transformadores sociais
passaram a descrever como utopias, modelos ideais de sociedades que seriam desenvolvidas quando todos os
seres humanos vivessem de acordo com a mais alta tica.
Os discpulos iniciados nos Mistrios do Reino eram poucos e dividiam sua ateno entre muitas
comunidades, viajando de uma para outra, com a morosidade dos meios de transportes da poca, geralmente a p
ou, excepcionalmente, cavalgando uma montaria e ainda, no caso de comunidades litorneas, de barco. Por isso,
as comunidades locais ficavam sob a orientao de lderes nomeados pelos discpulos ou mesmo escolhidos
pelos membros da comunidade. O conhecimento ntimo da Boa Nova nem sempre refletia o entusiasmo desses
evangelizadores. Um historiador comenta: Homens e mulheres comearam a pregar o evangelho de Jesus de
modo entusiasmado e frentico porque acreditavam que ele retornara dos mortos para eles e dera-lhes a
autoridade e poder para agir daquela maneira. Sem dvida, seus esforos evanglicos foram imperfeitos, pois,
apesar das instrues de Jesus, nem sempre eles conseguiam lembrar-se de seus ensinamentos com acurcia ou
coerncia, e no eram sacerdotes treinados, nem oradores, nem sequer pessoas cultas.12
As circunstncias em que se deu a rpida expanso do movimento cristo explicam porque tantas correntes
doutrinrias foram constatadas no incio do sculo IV por Constantino. A ciso mais importante no seio da
comunidade crist, a partir do final do primeiro sculo, ocorreu entre aqueles que se diziam herdeiros da tradio
interna dos discpulos de Jesus, que por razes bvias eram uma minoria, e a grande maioria que era tida como a
herdeira dos ensinamentos pblicos do Mestre, aqueles transmitidos em parbolas ao povo. Dentre os primeiros,
os grupos gnsticos, em particular, apontavam a Igreja dominante como a herdeira dos ensinamentos externos.
12 Paul Johnson, Histria do Cristianismo (R.J., Imago, 2001), pg. 40.
15
Obviamente a Igreja no podia aceitar essas alegaes e, assim, os dois grupos viviam trocando acusaes.
Quando a Igreja dominante se tornou aliada do Imperador Constantino, os grupos dissidentes, principalmente os
gnsticos, foram declarados hereges e, a partir de ento, passaram a ser perseguidos.
A tradio oral que orientava os primeiros pregadores veio mais tarde a ser complementada por vrias obras
atribudas a alguns discpulos de Jesus ou de discpulos da segunda ou terceira gerao. Dentre elas poderamos
mencionar: o Evangelho de Tom (considerado atualmente pela maioria dos estudiosos bblicos como to
fidedigno quanto os quatro evangelhos cannicos),13
os Atos de Tom, o Evangelho de Felipe, Memrias dos
Apstolos, o Evangelho dos Hebreus, o Evangelho dos Egpcios, o Evangelho de Nicodemos, o Evangelho de
Maria, Atos de Joo, o Evangelho do Pseudo-Matias e muitos outros. Convm lembrar que a Igreja aceita que os
atuais evangelhos cannicos foram escritos com base em outros textos existentes apesar desses textos no terem
sido identificados. Fala-se de um possvel texto referido como Q14
(inicial da Quelle, Fonte em alemo), que
teria sido a fonte das logia, ou palavras do Senhor, usadas para a elaborao dos evangelhos segundo Mateus e
Lucas, que no se encontram em Marcos. Na elaborao do Evangelho de Joo teria sido utilizada uma fonte de
sinais, os milagres narrados na vida de Cristo.
As controvrsias dos primeiros sculos foram em parte sanadas pela centralizao do poder na Igreja
Romana. Alguns grupos permaneceram arredios, e novas controvrsias surgiram internamente no seio da Igreja,
demandando confabulaes e decises em Conclios numa tentativa de manter a unidade da doutrina oficial.
Apesar do constante esforo para manter a unidade de crena, dissidncias continuaram a aparecer ao longo dos
sculos, sendo geralmente debeladas pela fora. Dentre esses movimentos, os mais importantes que ameaaram
arranhar a supremacia papal foram o movimento dos ctaros no sul da Frana, reprimido brutalmente no sculo
XIII, bem como a violenta ciso com a Igreja Ortodoxa oriental e, mais tarde, a Reforma Protestante no sculo
XVI. Apesar desses movimentos, em que pese o grande nmero de mortos envolvidos, poucas mudanas de
importncia foram efetuadas na doutrina e na prtica da Igreja, mesmo as reformadas, desde Constantino. Como
as expectativas religiosas e espirituais dos povos so afetadas pelos cambiantes valores culturais de cada poca,
no surpreendente que depois de tantos sculos exista hoje um anseio to claro por mudana no seio da
cristandade.
13 Um extenso grupo de telogos e professores bblicos da Amrica do Norte, da Europa e de outros pases, sob a liderana
dos conhecidos eruditos Robert W. Funk e John Dominic Crossan, organizou um projeto de estudo dos evangelhos para
determinar o que eles consideravam como sendo as verdadeiras palavras de Jesus. Decidiram acrescentar aos quatro
evangelhos cannicos o Evangelho de Tom. Ao final do projeto, mais de 200 telogos catlicos e protestantes estavam
engajados no estudo. Os resultados podem ser consultados na obra: The Jesus Seminar, The Five Gospels, The search for the
authentic words of Jesus (N.Y., Macmillan, 1993). 14 Vide J. S. Kloppenborg, The Shape of Q (Minneapolis, Fortress, 1994).
16
3. OS ENSINAMENTOS DO CRISTIANISMO PRIMITIVO
Como as igrejas enfatizam mais a crena na pessoa e nos atributos de Jesus, em detrimento da mensagem
que ele nos legou, uma recordao dos ensinamentos divinamente inspirados do Mestre, que revolucionaram a
vida de um nmero incontvel de pessoas, desde aquela poca at os dias de hoje, sempre estimulante e
necessria. Deve ficar claro, porm, que o objetivo deste trabalho no a apresentao sistemtica de todos os
ensinamentos transmitidos aos primeiros cristos. O escopo, bem mais modesto, identificar a essncia dos
ensinamentos que permitiram naquela poca, e permitiro nos dias de hoje, uma modificao radical na vida de
seus seguidores. At porque, cabe lembrar, os ensinamentos internos s eram passados aos discpulos mais
preparados e continuam sendo reservados. Esses ensinamentos, como revelavam segredos sobre as leis ocultas
da natureza, que proporcionam poder queles que deles dispem, sempre foram mantidos sob extrema reserva
para a proteo do discpulo e daqueles que interagem com ele.
Jesus demonstrou e transmitiu aos seus discpulos diversos poderes, sendo o mais proeminente o de cura. O
procedimento para o desenvolvimento desses poderes provavelmente estava associado aos rituais e sacramentos
secretos que Jesus ministrava aos discpulos. Como eles eram secretos, muito pouco mencionado na Bblia a
seu respeito. No entanto, no Evangelho de Felipe feita a referncia de que: O Senhor fez tudo num mistrio,
um batismo, uma crisma, uma eucaristia, uma redeno e uma cmara nupcial.15 Pode parecer estranho que o
mais elevado mistrio seja referido por alguns estudiosos como o da cmara nupcial. Porm, a experincia
dos msticos mais avanados, como por exemplo, Teresa de vila e Jan van Ruysbroeck,16
descreve a ltima
etapa da via mstica como sendo equivalente a um casamento da alma com o Bem Amado.
Felizmente, parte desses ensinamentos reservados ainda est nossa disposio nos dias de hoje. possvel
ao cristo moderno obter parte desses ensinamentos, que antes eram exclusivamente reservados aos discpulos,
com as chaves interpretativas adequadas, como as que sero apresentadas no decorrer desta obra.
Os rituais e sacramentos secretos de Jesus visavam, por outro lado, proporcionar uma preparao acelerada
de seus discpulos para a plena realizao do ministrio apostlico. Ora, se na vida material quanto maior a
velocidade de um veculo maior o risco de acidentes, por analogia, o mesmo deve ocorrer com a acelerao da
velocidade de imerso na vida espiritual. Da o cuidado extremado na escolha dos discpulos e a constante
ateno do Mestre na preparao deles, que s foi ultimada aps seu retorno dos mortos. Afortunadamente, da
mesma forma como existem vrios caminhos levando ao topo da montanha, h vrias sendas para a expanso de
conscincia que levam ao Reino. Os ensinamentos do cristianismo original, direcionados como eram para a vida
mstica, oferecem uma alternativa para a experincia de Deus e o acesso ao Reino sem os riscos inerentes ao
caminho acelerado interno.
O ministrio de Jesus, como entendido por seus discpulos diretos e por eles pregado s primeiras
comunidades, visava a promoo de uma mudana de atitude no ser humano, redirecionando sua vida. Era
chegado o momento do povo de Israel cambiar da mera obedincia Lei Mosaica para uma atitude de maior
responsabilidade frente vida que caracteriza o homem e a mulher em sua maturidade. A misso de Jesus visava
despertar o povo da letargia espiritual dissimulada pelo formalismo dos rituais nas sinagogas e no Templo e da
estrita obedincia Lei.
Via de regra, a criana e o jovem esto inteiramente voltados para o gozo da vida e o aproveitamento de
todas as oportunidades para seu deleite, entretenimento e prazer. Sua nica responsabilidade, na prtica,
restringe-se obedincia aos regulamentos impostos pela famlia e, mais tarde, pela escola e a sociedade. De
forma semelhante, o povo judeu era condicionado a crer desde a infncia que sua principal responsabilidade
religiosa era a obedincia aos 613 preceitos da Lei. No tinha sido preparado para pensar por conta prpria e,
com isso, no era capaz de perceber as inmeras ocasies em que a obedincia cega aos preceitos religiosos
conflitava com o cultivo do amor ao prximo caracterizado pelo cuidado compassivo aos necessitados e
sofredores, como exemplificado na parbola do bom samaritano (Lc 10:30-37). Era principalmente por isso que
Jesus entrava seguidamente em choque com os sacerdotes e os escribas, os guardies da Lei, pois o Mestre
colocava prioridade na compaixo e no na mera obedincia aos preceitos da Lei. Jesus procurava abrir a mente
e os coraes de seus ouvintes para a necessidade da adoo de uma atitude mais adulta, visando tomarem a
15 J.M. Robinson (ed.), The Nag Hammadi Library (Harper San Francisco, 1990), pg. 150. 16 Ruysbroeck descreveu suas experincias neste ltimo estgio num livro magistral com o ttulo significativo de: The Adornment of the Spiritual Marriage (Kessinger Publishing Co.).
17
iniciativa de construir progressivamente suas prprias vidas. Poderamos dizer que o ideal de vida indicado pelo
Mestre era que cada homem e mulher na sociedade se tornasse um mestre construtor.
Esse ideal est implcito na Bblia. Como o homem foi criado imagem e semelhana de Deus, ele deve se
tornar, como Deus, um mestre construtor. Nas primeiras palavras do Antigo Testamento lemos que No
princpio, Deus criou o cu e a terra (Gn 1:1). No entanto, a palavra hebraica traduzida como Deus era
elohim, palavra plural equivalente ao termo cabalstico sephiroth que indica a coletividade dos grandes arcanjos
construtores do cosmo. Ora, se a coletividade dos elohim age como prepostos construtores do Deus Supremo do
Universo, eles certamente fazem seu trabalho com base no Plano Divino da criao. Poderamos dizer, que Deus
simbolicamente o Supremo Arquiteto e Construtor do Universo.
No Novo Testamento encontramos as mesmas lies cosmolgicas presentes no Velho Testamento. Assim,
o modelo de construtor divino a ser seguido pelo homem o prprio Jesus. Nos evangelhos, Jesus apresentado
como carpinteiro, seguindo a profisso de Jos, seu pai adotivo. A palavra traduzida como carpinteiro tekton
em grego, que tem a conotao mais abrangente de construtor. Portanto, Jesus e seu pai terreno so apresentados
como modelos de construtores a serem seguidos pelos homens. interessante notar que Paulo, o principal
apstolo itinerante do Senhor, apresentado como fabricante de tendas, tambm um construtor.
Como em todas as lies bblicas, o ideal de construtor deve ser entendido como alegrico. O homem
chamado a construir seu microcosmo bem como a participar na construo do mundo maior, o macrocosmo.
Sendo o homem o prprio microcosmo, ele deve passar a construir sua vida tanto em seus aspectos internos
como externos. Como todo processo de construo comea do mais sutil, da idia ou plano, ou seja, do interior,
o homem deve promover sua transformao interior para que ela se reflita tambm no exterior. Mas a recproca
tambm verdadeira. Toda mudana em nossa natureza exterior, em seus hbitos e virtudes, ser refletida em
nosso interior. Portanto, o homem deve assumir a responsabilidade pela construo de sua vida, aperfeioando
tanto seu exterior quanto seu interior. Mas, como o ser humano uma totalidade, ele deve promover tambm a
integrao de suas naturezas interior e exterior.
O construtor responsvel e experiente cuidadoso na escolha dos materiais usados em sua obra. Esses
materiais no homem so suas aes, palavras e pensamentos, que devem ser conscientemente escolhidos e no
apresentar nenhuma mcula, pois nenhuma impureza deve ser incorporada ao acabamento de sua obra,
desfigurando-a. Uma construo deve atender aos requisitos de funcionalidade e esttica e estar em harmonia
com o meio ambiente. Cada um de ns deve identificar a funo que dar para sua obra, ou seja, a sua vida. Sua
casa, isto , a natureza exterior do homem como apresentada figurativamente na Bblia, deve ser bela no s aos
olhos mas principalmente ao corao. O padro de beleza a ser seguido o das caractersticas permanentes
interiores e no das passageiras externas, ou seja, as virtudes que enobrecem o homem. Essa construo tambm
deve estar inserida harmonicamente no ambiente em que o homem vive.
A necessidade de harmonia com o meio ambiente remete-nos ao segundo aspecto da construo pela qual o
homem maduro deve se responsabilizar. Como todo homem um membro da grande famlia humana, sendo
mais uma expresso do Divino Um, na medida em que vai se tornando mais apto na construo de seu
microcosmo, passa a entender que ele no est sozinho no mundo e que todos seus irmos esto, como ele,
interagindo de forma interdependente. Quanto mais a construo de um microcosmo se harmoniza com o
ambiente em que vive, mais fcil torna-se para seus vizinhos promoverem suas construes individuais e se
harmonizarem com os outros. Quando o trabalho no microcosmo estiver terminado, ou seja, quando o homem
alcanar a perfeio, definida por Paulo como a estatura da plenitude de Cristo, sua responsabilidade ser
inteiramente voltada para a construo do mundo maior, do macrocosmo, como verificamos no ministrio de
Jesus e, em menor grau, no trabalho apostlico de seus discpulos.
Porm, a participao do homem na construo do mundo maior no comea somente quando ele alcana a
perfeio. Quando isso ocorre o homem passa a dedicar-se inteiramente ao trabalho externo de cooperao na
melhoria das condies de vida externa e interna de seus semelhantes. No entanto, bem antes disso, a partir do
momento em que manifesta seu desejo de seguir o Mestre e tornar-se um trabalhador na seara do Senhor, ele
deve dividir seu tempo e sua ateno entre a construo de seu microcosmo e sua cooperao no trabalho maior.
O primeiro passo nessa cooperao com o trabalho maior considerar todas as tarefas de sua vida como
contribuies para a harmonia e o bem estar de seus irmos. Essa atitude especialmente importante no trabalho
profissional. Tudo o que fizermos deve ser bem feito e realizado com amor, como se nosso chefe ou cliente fosse
o Cristo, o que a pura realidade, apesar de no nos darmos conta disso.
Uma parte importante de nosso progresso na senda espiritual depende de nosso comprometimento
verdadeiro com o bem estar espiritual da humanidade. O progresso ser mais rpido na medida em que nosso
18
corao demonstrar uma determinao crescente para ajudar a humanidade, secando suas lgrimas, promovendo
a sade do corpo e da alma de nossos irmos e, sobretudo, procurando diminuir a ignorncia, que a causa raiz
por trs de todos pecados que causam o sofrimento humano. O trabalho de salvao, porm, deve seguir o
modelo estabelecido pelo Mestre: ensinar as leis e processos relacionados vida espiritual com nossas palavras e
principalmente com nosso exemplo e, no menos importante, respeitar o livre arbtrio das pessoas com muito
amor e compreenso para o momento de vida de cada um.
Diferentemente dos projetos de construo no mundo material, que chegam ao seu trmino, a construo da
vida do homem dinmica e nunca termina. O homem e o universo evoluem sempre. No h limite para o
crescimento espiritual. As idias muitas vezes apresentadas de que no cu o homem passar a eternidade
contemplando a Deus passivamente, ao som da msica anglica, uma distoro da verdade. medida que o
homem progride na escala evolutiva, ele ser sempre chamado a cooperar em tarefas cada vez mais amplas e
complexas, seja neste mundo seja em outros planos da natureza.
Vemos, portanto, que a essncia do ministrio de Jesus era nos despertar para a responsabilidade da
construo de nossa vida e ensinar-nos como fazer isso. A forma como Jesus ministrava suas lies, com
parbolas que exigiam o engajamento mental de seus ouvintes para entend-las, era uma forma de promover essa
mudana de atitude. O ensinamento divino no era to detalhado e explcito, como seria apropriado a uma
humanidade infantil que s precisava aprender a obedecer, mas era sim indicativo, sugestivo, para que o homem
aprendesse a pensar por conta prpria. O esperado para o judeu antigo era que fosse obediente Lei. Mas, o
seguidor de Jesus, agora responsvel por sua vida, deve tornar-se um buscador da verdade.
Todo ministrio do Mestre visava, portanto, promover a nossa autotransformao. Essa palavra realmente
apropriada, pois no se trata somente de transformao, mas de mudarmos a ns mesmos. Dai a importncia da
responsabilidade para com nossa prpria vida. Somente assim poderemos deixar para trs o velho homem e
promover o nascimento do homem novo, para quem esto abertas as portas do Reino dos Cus.
Para alguns cristos que conhecem bem a Bblia, pode parecer estranha essa referncia autotransformao
como essencial para a salvao. A razo disso foi um infeliz lapso na traduo de uma das passagens lapidares
do evangelho. Joo, o batista, o precursor do Cristo, apresentado apregoando: Arrependei-vos, porque o Reino
dos Cus est prximo (Mt 3:2). Porm, no original grego do evangelho, a palavra traduzida como arrependei-
vos () significa, na verdade, mudem a vossa mente, renovem o vosso contedo mental ou, simplesmente, transformem o vosso interior. A mente de todo aquele que aspira entrar no Reino dos Cus deve
ser retirada das coisas deste mundo e voltada para a busca da realidade interior. Assim, o Reino dos Cus estar
cada vez mais prximo medida que nos transformarmos interiormente, mudando o foco de nossa ateno do
exterior para o interior.
Curiosamente, essa passagem (Mt 3:2) na verso aramaica (aramaico era a lngua em que Jesus pregava) da
Bblia, plena de significados e conotaes que nos remetem tambm ao ensinamento de transformao e no de
arrependimento. Sua traduo apresentada como: Voltem! Retornem unio com a Unidade, como o mar
fluindo de volta costa com a mar. A viso que capacita, o Eu Posso do cosmo, o reinado de tudo que vibra,
o reino dos cus chega neste momento! Ele se acerca, tocando-nos, arrebatando-nos, puxando-nos de volta para
o ritmo de vibrao com o Um.17
Com a distoro da traduo atualmente aceita, perdemos a noo de que somos responsveis pela
construo de nossa vida, por meio da mudana interior, sendo essa uma condio impretervel para que
possamos alcanar o Reino dos Cus. Em lugar desse ensinamento positivo, recebemos um legado de
negatividade, de culpa por pecados cometidos que devemos nos arrepender. Nossas almas so direcionadas para
um passado pecaminoso em lugar da promessa de um futuro glorioso, que pode ser construdo pela disciplina de
nossa mente. Paulo, o grande apstolo, insistia na necessidade de autotransformao em suas pregaes, dentre
as quais a mais explcita capta e expande o verdadeiro sentido original da exortao de Joo Batista (Mt 3:2): E
no vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, renovando a vossa mente, a fim de poderdes
discernir qual a vontade de Deus (Rm 12:2).
O contraste entre os enfoques de arrependimento de nossos pecados, por um lado, e de mudana interior
para construir nossas vidas, por outro, est presente nas duas grandes correntes teolgicas do cristianismo, que
poderamos chamar de tradio da queda e redeno e tradio centrada na criao. Infelizmente, para a vida
espiritual do cristo, a primeira corrente vem dominando a formao eclesistica de catlicos e protestantes ao
17 Neil Douglas-Klotz, The Hidden Gospel: Decoding the Spiritual Message of the Aramaic Jesus (Wheaton, Ill, Quest
Books, 1999), pg. 83.
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longo dos sculos. Ela remonta principalmente a Agostinho (345-430 d.C.), tendo como grande e influente
expoente Thomas Kempis (1380-1471), autor da obra Imitao de Cristo, que desde ento vem orientando a
vida espiritual de incontveis geraes de cristos. A tradio centrada na criao, porm, muito mais antiga e
seus expoentes muito mais ilustres. Tem suas razes no sculo IX antes de nossa era com os Salmos, os livros de
sabedoria da Bblia e os de muitos profetas. A maioria dos telogos parece ignorar que Jesus foi seu principal
expoente sendo essa tradio sistematizada pelo primeiro telogo do ocidente, Irineu de Lyon (130-200 d.C.).
O foco da ateno da tradio da queda e redeno o pecado e a negatividade, com nfase no pecado
original. Seu ponto alto a morte de Jesus na cruz. Sua espiritualidade baseada na mortificao do corpo, no
controle das paixes e no arrependimento. Para ela a vida eterna vem depois da morte. Prega a obedincia e o
sentimento de culpa. Para essa escola a humanidade pecadora. O esforo dos fiis deve ser a construo da
Igreja, pois o Reino apresentado como expresso pela Igreja.
J para a tradio centrada na criao, tudo comea com Dabhar (heb.) a energia criativa de Deus,
geralmente traduzida como a Palavra, o Verbo. Sua nfase a bno original. Seu ponto alto a ressurreio de
Jesus. Sua espiritualidade baseada na disciplina para o renascimento ou transformao interior, que ocorre no
xtase, na paixo da bem-aventurana. Prega a criatividade e o agradecimento pela vida e a graa. Para ela a
humanidade divina, ainda que capaz de escolhas pecaminosas e mesmo diablicas. O esforo dos fiis deve ser
a construo do Reino, sendo ele equivalente criao, ao cosmo.18
Como os seres humanos esto em diferentes estgios do caminho espiritual e, devido a seus temperamentos
diferentes, so mais facilmente tocados por determinados enfoques, verificamos que o Mestre repetia
seguidamente o mesmo ensinamento sob ngulos diferentes. A pedagogia divina visava facilitar o aprendizado
dos filhos de Deus, levando em conta suas inmeras limitaes, repetindo a mesma lio de formas diferentes,
at que ela fosse aprendida. O processo de renovao, ou renascimento interior, que ocorre com todo aquele que
busca trilhar o caminho espiritual, permite e, na verdade, assegura que, uma vez iniciado o processo de
autotransformao, o devoto passar a incorporar em suas prticas exatamente aquilo que ele mais necessita para
dar o prximo passo.
Por isso estamos confiantes que os ensinamentos essenciais que sero apresentados ao longo deste trabalho
podem atender aos anseios da alma de todo aquele que busca o Reino. O Divino pedagogo nos legou alguns
instrumentos que permitem integrar, de forma natural, a essncia de seus ensinamentos transformadores em
nossa vida. Esses instrumentos podem ser agrupados em dois nveis: (1) o fundamento de uma vida tica, para os
que anseiam melhorar sua qualidade de vida, para assim promover a paz interior e a harmonia no mbito familiar
e social, e (2) a essncia da vida espiritual, para os que sentem o chamado interno para entrar pela porta estreita e
seguir o caminho apertado que leva ao Reino, ou seja, experincia de Deus. Com esses instrumentos podemos
restaurar a paz e o contentamento na nossa vida diria e atender os anseios de nossas almas de acelerar nossa
viagem de retorno Casa Paterna, como filhos prdigos que somos.
18 Vide: Matthew Fox, Original Blessing (Novo Mxico, Bear & Co. Publishing, 1983), pg. 316-19.
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4. PRIMEIRA ETAPA: A VIDA TICA
Estabelecendo a fundao
A tica geralmente confundida com a moral, e por boas razes, pois at mesmo os especialistas de
filosofia moral no esto inteiramente de acordo sobre a repartio do sentido entre os dois termos: moral e
tica.19
A maior parte dos filsofos, porm, sugere que tica, do grego ethos, a morada social do homem, a
estrutura de seu comportamento social construda ao longo do tempo. tico tudo o que ajuda a tornar mais
harmonioso o ambiente humano em suas dimenses material, psicolgica e espiritual. Moral, do latim mores,
expressa as tradies e costumes de um povo, com seu sistema de valores. Cada cultura tem seu cdigo moral. A
moral deve ajustar-se, com o passar do tempo, s mudanas de valor da sociedade, para renovar-se em sintonia
com a mais alta tica.
A construo da tica superior deve comear necessariamente por sua fundao. Para ser slida, a fundao
deve estar sobre a rocha, sempre que possvel. Num sentido figurativo, a rocha slida que constitui a base dos
ensinamentos do Mestre deve, necessariamente, representar algum fundamento, alguma lei bsica e imutvel que
tudo governa no mundo e cuja funo seja promover o retorno harmonia da vida no mundo. Qual seria esse
fundamento de seu ministrio? Podemos identificar alguma lei ou princpio harmonizador que est por trs de
todos os fenmenos fsicos, qumicos, biolgicos, psicolgicos e espirituais?
Se procurarmos atentamente na Bblia e em outros textos inspirados da tradio crist, vamos verificar que
essa lei que est por trs de todos os fenmenos no mundo a lei de causa e efeito. No oriente ela chamada de
lei do carma, e ocupa um lugar central em todos os ensinamentos espirituais. A lei da causao universal, como
tambm chamada, conseqncia natural da unidade de tudo o que existe no mundo, pois, se tudo vem de Deus
e tem um papel no Plano Divino, tudo deve estar intimamente ligado e inter-relacionado. Para entendermos a
unidade da vida, podemos considerar a Terra como um gigantesco organismo vivo do qual somos clulas,
ignorantes de nossa unidade e interdependncia como as clulas do corpo humano. Mas a ignorncia da
interdependncia celular no isenta cada unidade da responsabilidade pelo cumprimento de seus deveres no
conjunto do organismo. As falhas de uma unidade so sentidas pelo organismo como um todo e,
conseqentemente, afetam na mesma medida a clula que iniciou o movimento perturbador.
Em todos os planos e todas as reas de nosso mundo, os efeitos seguem suas causas e, no devido tempo,
retornam sua fonte. Os cientistas identificaram essa lei que rege a natureza fsica, enunciada pela primeira vez
em 1682, pelo fsico Isaac Newton, sendo conhecida como a terceira lei de Newton: A toda ao corresponde
uma reao igual em sentido contrrio. Por essa razo, a natureza na Terra, os planetas e as estrelas so tambm
regidos pela inexorvel lei da causao universal. Visto sob outro ngulo, a lei de causa e efeito o inter-
relacionamento de tudo o que existe no mundo. Esse inter-relacionamento sempre existiu, no tendo comeo
nem fim.
A lei de causa e efeito particularmente importante na vida do homem. Tudo est regido por ela. Se
comermos em demasia (a causa), sentiremos dor de barriga ou engordaremos (o efeito). Se pisarmos num caco
de vidro andando descalos iremos cortar o p e sentir dor. Mas as relaes de causa e efeito no se limitam aos
aspectos fsicos de nossa vida. Os aspectos morais e psicolgicos de nossa interao com o mundo tambm so
regidos pela lei de retribuio universal. Os mandamentos de todas as religies, instando o homem a no fazer o
mal a seus semelhantes, so expresses naturais da lei. A lei de retribuio far com que a conseqncia do
mal que causamos aos outros seja experimentada por ns, mais cedo ou mais tarde. O mesmo ocorre com o bem
que fazemos: fazer o bem aos outros semearmos felicidade para ns. Nesse sentido, a lei de retribuio
universal poderia ser considerada, de forma simplificada, como um boomerang csmico: tudo retorna ao seu
ponto de origem, com a mesma natureza e intensidade.
Obviamente, Jesus deu uma posio de destaque para a operao da lei de causa e efeito em seu ministrio,
como se comprova em diversas passagens dos evangelhos. Uma dessas passagens relacionada lei da causao
universal, muitas vezes entendida como se referindo lei mosaica: Porque em verdade vos digo que, at que
passem o cu e a terra, no ser omitido nem um s i, uma s vrgula da lei, sem que tudo seja realizado (Mt
5:18). Como a lei mosaica, alm da revelao dos dez mandamentos recebidos de Jeov no Monte Sinai, havia
incorporado um grande nmero de preceitos tradicionais do povo judeu, Jesus no iria afirmar que essas leis dos
19 Vide Monique Canto-Sperber, Dicionrio de tica e Filosofia Moral (So Leopoldo, UNISINOS, 2003), vol. I, pg. 591.
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homens, mutveis como so, jamais seriam alteradas ou omitidas, at que se passem o cu e a terra. No entanto,
a lei de causa e efeito, sendo uma lei csmica que rege toda manifestao, eterna e imutvel. Tudo ser
realizado, ou seja, todos efeitos sero experimentados por seu causador. O fato de a lei mosaica incorporar vrios
costumes judaicos que no foram prescritos por Jeov tornado explcito nos evangelhos, como por exemplo:
Sabeis muito bem desprezar o mandamento de Deus para observar a vossa tradio (Mc 7:9); E vs, por
que violais o mandamento de Deus por causa da vossa tradio? (Mt 15:3).
Em Mateus encontramos vrias passagens relacionadas justia divina, dentre as quais destacamos: Todo
aquele que se encolerizar contra seu irmo, ter de responder no tribunal; aquele que chamar ao seu irmo
cretino estar sujeito ao julgamento do sindrio; aquele que lhe chamar louco ter de responder na geena de
fogo (Mt 5:22). No julgueis para no serdes julgados. Pois com o julgamento com que julgais sereis
julgados, e com a medida com que medis sereis medidos (Mt 7:1-2). Eu vos digo que de toda palavra intil,
que os homens disserem, daro contas no dia do julgamento (Mt 12:36). Na primeira passagem, as referncias
ao tribunal, ao sindrio e geena de fogo so alegorias que usam a linguagem e as instituies do povo hebreu
naquela poca para caracterizar a operao da justia divina, tanto neste mundo como no outro (a geena de fogo
dos judeus, por exemplo, tornou-se mais tarde o inferno dos cristos). No caso do alerta contra nosso costume de
julgar os outros, a lei do retorno tornada clara: no julgueis para no serdes julgados. Tambm mencionado
que a retribuio ser feita na mesma natureza e intensidade da ao inicial: com a medida com que medis sereis
medidos. Jesus deixa claro que absolutamente nada escapa lei, pois no s as palavras injuriosas sero objeto
de retribuio da lei, mas at mesmo toda palavra intil.
Uma das mais claras formulaes da lei do retorno na Bblia feita por Paulo: No vos iludais: de Deus
no se zomba. O que o homem semear, isso colher: quem semear na sua carne, na carne colher corrupo;
quem semear no esprito, do esprito colher a vida eterna. No desanimemos na prtica do bem, pois, se no
desfalecermos, a seu tempo, colheremos (Gl 6:7-9). Paulo chama ateno para o fato de que no h um limite
temporal para colhermos o que plantamos. Ainda que a justia divina possa tardar, de acordo com a nossa
perspectiva temporal terrena, chegar o momento em que receberemos a justa medida de nossas boas aes e de
nossos erros.
Em muitas tradies religiosas, inclusive na judaico-crist, a lei de causa e efeito geralmente chamada de
justia divina. Essa terminologia tende a levar o cristo a conceber o carma no como a operao de uma lei
universal impessoal, mas como a retribuio a ser efetuada por uma divindade pessoal. Uma conseqncia desse
entendimento distorcido da operao da justia universal, como sendo efetuada pessoalmente por Deus, a
tendncia natural de muitos devotos de procurarem fazer propiciaes a Deus, com oraes e interminveis
promessas para mudar as conseqncias de suas aes passadas sempre que a pesada, ainda que just