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OUTUBRO DE 2010Ano I Edio ISo Borja / RS
A notcia da vida da gente.
NESTA EDIO VOC CONFERE: As histrias de vida dos moradores do
Bairro do Passo
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X, olho gordo!
Pedalada ChiqueEx-jogador, maratonista e inventor de bicicletas
diferentes. Seu Ricardinho, como conhecido no Bairro do Passo,
relata causos na Oficina de Histrias
E AInDA
O que Seu Viriato est aprontando?
A viagem de Ana Carolina a Paris!
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Asas Imaginao
H sentimentos escondidos em cores, atitudes e at mesmo no
silncio. H quem no faa nada para mudar. H quem trans-forme tudo. H
saudades que calam, h saudades que afloram atravs de aes.
Em uma rua de terra molhada pela chu-va que havia cado na noite
anterior, a cria-tividade chama a ateno. Moradores do Bairro do
Passo transformam objetos des-cartados em coisas teis: a banheira
velha, a lata de tinta, a chaleira enferrujada ga-nham vida e
colorido, pois, acreditem, so transformadas em vasos de flores.
Tampas de fogo, carcaas de mquinas de lavar, carrinhos de
supermercado e at grades de geladeira, hoje ganham outro sentido,
nova vida, agora como lixeiras.
Entre tantas coisas diferentes e criati-vas, atrai o olhar um
cisne preto feito de pneus velhos. Esta arte pertence casa de um
pescador de 60 anos, Seu Joo Ori
Foto: Larissa Lucero
Seu Lucena no ateli mostrando as obras de arte
Tavares da Silva, que, com sua criativida-de, montou, alm do
cisne, um girassol e um corao, que acolhem vrios tipos de plantas.
E, nessa mesma casa, tambm tem uma bota velha pendurada, toda
co-lorida, espera de moradores. O coturno que, provavelmente, foi
usado enquanto o ex-fuzileiro naval ainda estava na ativa, no pisa
mais com os ps de um militar, agora guarda palha e abriga
visitantes de asas, virou casa de passarinho.
Essa foi a ideia de Edgar Lucena Schenkel, conhecido Seu Lucena,
o mi-litar que faz renascer em objetos como esse, sua memria dos
velhos tempos em que vivia camuflado. Numa casa que, por fora, tem
cores verde, azul e amare-lo, por dentro repleta de lembranas, e
uma paixo: colees de copos, mini-soldados e casas de
passarinho.
segue, pg. 3
Na medicina campeira, o que o rem-dio no cura, se cura com
brasa, e prece e tesoura, de quem sabe benzedura .
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2 o pASSo Do AVESSo - So BoRJA, oUTUBRo DE 2010 - ANo I - NI
EXPEDIEnTEO Passo do Avesso um jornal experimental da disciplina
de Agncia de Notcias I do Curso de Comunicao Social/Jornalismo da
Unimpampa Campus So Borja. Perodo letivo: 2010/2. DISCENTES
Reportagem: Ana Camila Costa, Anderson Cogo, Camila Schmitt, Dase
Carvalho, Gabriella Oliveira, Larissa Lucero, Lenise Morgental,
Leonardo Jorge de Moraes e Mrcia Solares. Diagramao: Lusa Aranha.
Edio: Ana Paula Kemerich e Elder Nunes Junior. DOCENTES
Professora-editora: Prof Dr Adriana Duval. Coord. Curso de
Jornalismo: Prof. Dr. Miro Bacin. Dir. Acadmico: Prof. Dr. Flavi
Lisba Filho. Dir. Campus: Prof Dr Denise Silva. Reitora Pr-Tempore:
Prof Dr Maria Beatriz Luce.
EditorialPASSAR, VER, CONTAR
O Passo guarda histrias em cada quadra. Histrias de gente
simples, trabalhadora; de crianas a idosos, de ces e gatos a
cavalos e vacas. No bairro grande e diverso, as ca-sinhas abrigam
narrativas e sonhos; revelam receitas caseiras, conselhos de me,
causos curiosos.
O Passo do Avesso tem essa pro-posta: passar por suas ruas, ver
seu povo e contar suas histrias. Reve-lar o que se esconde no
interior da rotina alheia e que tem algo de inte-ressante, de
diferente, de inusitado.
Nesta edio de estreia, voc convidado a percorrer o Passo sob a
conduo de alunos da disciplina de Agncia de Notcias I, do curso de
Jornalismo da Unipampa. Eles descobriram inventores e invenes,
gente criativa, que d vida ao que foi por outros descartado, atravs
da concepo de objetos reciclados. Conversaram com moradores que
abriram a casa e o corao.
Parafraseando Saint Exupry, o essencial invisvel aos olhos para
a produo deste jornal, o grupo foi estimulado a exercitar os
sentidos, voltados percepo sensvel dos fatos e pessoas escondidos
em suas vidas privadas.
Boa leitura! Adriana
[email protected]
Bom d e g a r f oBarata na MesaPor Mrcia Solares
A Pastoral da Criana, do Bairro do Passo, oferece cursos de
artesanato, recicla-gem, pintura, bordados e reaproveitamento de
alimentos.
Nesta edio, voc confere duas receitas prticas, fceis, baratas e
gostosas, que voc pode fazer em casa utilizando frutas e
verduras.
Quem tiver interesse, procure mais informaes na Pastoral da
Criana.Rua: Monsenhor Patrcio Petit Jean, 2485Teras e
quartas-feiras, das 14hs s 17hs.
Ingredientes:
*03 limes bem lavados e com casca*02 folhas de couve bem
lavada*01 litro de gua*acar a gosto* geloModo de fazer:
Bata todos os ingredientes no liquidi-ficador e coe.
Sirva bem gelado e tome na hora.
Ingredientes:
*04 ovos*leo para untar a forma*03 bananas*01 colher (sopa),
rasa de maisena ou
farinha de mandioca*meia colherinha de sal (pitada pe-
quena)
Modo de fazer:
Batata as claras, junte as gemas e mis-ture a maisena e o sal.
Leve uma frigi-deira ao fogo com pouco leo e deixe esquentar.
Coloque um pouco da mistu-ra. Junte as bananas cortadas em fatias
finas. Dobre o omelete e deixe terminar de assar.
Suco de Couve com Limo Omelete de Banana
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So BoRJA, oUTUBRo DE 2010 - ANo I - NI - o pASSo Do AVESSo 3
Mat r i a d e c a paBota o Passarinho na botaPor Larissa Lucero
e Lenise Morgental
Seu Lucena conta sua histria com pa-lavras que demonstram uma
mescla de orgulho e nostalgia, a emoo grita nas palavras e vem tona
no brilho do olhar.
Edgar Lucena Schenkel, 69 anos, apo-sentado morador do bairro do
Passo e transforma e faz arte com materiais que iriam para o
lixo.
Para expressar seu amor pela natu-reza, ele fundou e coordenou o
grupo Comandos de Defesa da Natureza, que
tinha como objetivo fazer mutires para realizar a limpeza da
costa do rio Uruguai, teve a idia de arrecadar dinheiro para
comprar os uniformes das crianas que participavam do grupo, mas
nunca quis pedir sem dar algo em troca. Eu nunca quis que as
crianas pedissem o dinheiro para a compra do uniforme, ento
come-cei ensinar eles a fazer as casas de passari-nho, porque, ao
invs das pessoas darem o dinheiro sem nada em troca, elas ga-nhavam
uma casinha, explica.
Com brilho nos olhos e fotografias antigas empunhadas como
trofus, Seu Lucena relembra vrios momentos de sua vida. Atualmente
aposentado, ele consegue fazer uma casa por dia, e diz: Quando eu
dou uma casinha de presen-te, logo fao outra para colocar no lugar
da que dei, nunca deixo um lugar vazio. Ele calcula que tem, pelo
menos, 500 ca-sinhas de passarinhos no seu ateli.
As botas dos passarinhos so feitas com coturnos gastos e velhos,
desses que a maioria das pessoas jogaria no lixo. Mas a
criatividade dele no deixa a desejar: as botas-casinhas so pintadas
com cores coloridas e alegres. A sade j no mais a mesma do que a de
alguns anos atrs, sendo assim o arteso militar j no lidera o grupo
ambiental, mas um de seus maiores sonhos um dia ainda poder
reerguer a luta pela fauna e flora, e ensinar ainda mais jovens a
valorizarem a natureza. Falando assim, seu sonho ga-nha asas, voa
alto, e adormece na espe-rana das casinhas inusitadas servirem de
abrigo a essa conscincia cidad.
Hoje ele usa o trabalho de confeco dessas casinhas como terapia,
ali ele se sente til e feliz. Aqui eu me sinto bem, ajudo o meio
ambiente do jeito que pos-so, fao a minha parte. Arrumo os
cotur-nos, fao a pintura, os desenhos, tem flor, cogumelos, sol,
nuvens e assim vai.
Samos da casa verde, amarela e azul, muito mais conscientes de
que realmente penssvamos que sairamos. O meio am-biente precisa
cada vez mais de pessoas com atitudes assim como Seu Lucena. Com
poucas horas de conversa ele conse-guiu nos passar lio de uma vida
inteira.
E ainda ganhamos duas botas de passa-rinho para enfeitar nossas
casas e vidas. E, assim, sempre lembrar dos ensinamentos de um
morador do bairro do Passo, militar da reserva, que alm de honrar
sua ptria com enfeites na sua casa, presenteia a na-tureza com a
reutilizao de materiais e as aves com lindas moradias para fazerem
seus ninhos e terem seus filhotes.Um ate-li improvisado, uma vida
cheia de hist-rias, grandes ideias na cabea, muitas coi-sas para
recordar e um grande amor por tudo aquilo que se pode
transformar.
Floreira feita com restos de cmaras de pneus
Casa de passarinhos em coturnos velhos
Fotos: Lenise Morgental
Arte em madeira
Exposies das obras no ateli
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4 o pASSo Do AVESSo - So BoRJA, oUTUBRo DE 2010 - ANo I - NI
VariedadesBenza Deus!
Quem vai benzer no futuro As crianas ao nascer? Quem benzia est
indo embora E o novo no quer aprender Tradio e caridade Que vai
desaparecer
O trecho da msica benzedura, de Carlos Moreira, traduz os dias
atuais, que ainda independe de religies, crenas, cultura ou tradio.
Quando no h mais remdio, literalmente, somos surpreendidos pelo
desespero. Todo mundo, algum dia, j procurou uma benzedeira. Seja
ela espiritual, umbandista ou at mesmo algum sem religio definida,
mas que tenha f em algo supremo. Alis, segundo elas, o que cura, a
f. acreditar.
Ultimamente so raras, escassas. En-contradas mais no interior do
que nas grandes cidades, a maioria j morreu, elas fazem curas
atravs de rezas, ba-nhos, efuses e chs. Muitos estudio-sos no sabem
explicar o milagre que as benzedeiras praticam. a cincia do
Por Mrcia Solares e Gabriella Oliveira
povo passada de gerao em gerao.Como tradio familiar, as rezas
cos-
tumam ser segredo, costume esse que vem se perdendo no tempo. As
benze-deiras tm uma bondade muito grande, so pessoas simples e
humildes.
Exatamente assim Olinda de Sou-
za Gonalves, 63 anos, ou melhor, Dona Moraes, como conhecida no
Bairro do Passo. A mais velha entre nove irmos, nos recebe com um
acolhedor sorriso e o convite para sentarmos na sombra de seu ptio.
Quando pergunto se ela benze, ela hesita um pouco, olha pra mim e
diz:
Benzia minha filha, benziaPor problemas de sade Dona Moraes
parou de benzer as pessoas que a procu-ravam, ela conta que
quando se tem pro-blemas, no se deve benzer os outros:
Doente, no d pra benzer, os pro-blemas passam todos pra pessoa.
Adoe-ci e tive que parar
Descendente de uma famlia de ben-zedeiras, sua av, Aurora, antes
de fale-cer, lhe ensinou todas as rezas que sabia. Moradora do
Bairro do Passo h 20 anos, Dona Moraes, diz que hoje em dia dif-cil
encontrar benzedeiras por aqui e que a cura est na f, no importando
no que se acredita.
S aprende a benzer e a rezar, quem quer ajudar os outros. Mas
ningum se cura se no acreditar, se no tiver f que a reza vai
curar.
No distante dali, encontramos uma senhora muito vaidosa. Olhos
claros e
Dona Ramona aprendeu a rezar na infncia com sua av, que era
bezendeira de mo cheia
Fotos: Ana Camila Costa
Dona Moraes diz que a f traz a cura para pessoas que acreditam
no poder da reza
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So BoRJA, oUTUBRo DE 2010 - ANo I - NI - o pASSo Do AVESSo 5
cabelos pintados, Dona Ramona Aja-la, uma descendente de
argentinos, 85 anos, sentada na varanda, com o olhar de quem muito
j viveu. Benzedeira h quatro anos, em So Borja, no Bairro do Passo,
ela diz que as crianas da vi-zinhana sempre a procuram quando saem
da escola.
o que fazem os filhos de Marilete Reinosso Goulart, 35 anos, a
Nica. Dois, de seus quatro filhos, todos os dias pas-sam na casa de
Dona Ramona para que a benzedeira lhes coloque um galho de ar-ruda
atrs da orelha, aps uma reza con-tra mau olhado mas que tambm pode
ser contra ar no dente, empate, mau jei-to, rendimento ou cobreiro,
o problema no importa muito, desde que o ritual seja cumprido
diariamente.
s vezes eles nem tem nada, mas quando chegam em casa com aquela
ar-ruda atrs da orelha, j sei que passaram na casa da Dona
Ramona.
Como a maioria das benzedeiras, Dona Ramona aprendeu com sua av
e seu pai. Ela lembra com alegria, que tarde da noite, sua av lhe
chamava e ficava rezando, para que ela aprendesse cada orao.
Ensinou uma das filhas, mas diz que esta, j foi embora, como tantas
ou-tras benzedeiras do bairro que se muda-ram ou morreram.
Assim, se est perdendo a tradio, costume, prtica ou religio, o
nome no importa. A cultura de um povo, cidade, regio ou bairro, so
a identidade destes e quando se perde isso, se perdem as
ca-ractersticas que identificam sua popula-o, sua gente.
Por isso, talvez, essas mulheres aben-oadas com um dom, com uma
tradio familiar esto cada vez mais raras. Os tempos so outros e
assim como surgem cada vez mais religies diferentes, sur-gem crenas
e filosofias de vida distintas, algo em que procuramos
acreditar.
E hoje em dia...
Nas lojas, nas ruas, nos acessrios. Amuletos, os talisms ou
balangands, esto por toda parte. Tornaram-se obje-tos indispensveis
contra inveja ou mau-olhado e so um complemento em brin-cos,
colares, anis, bolsas e chaveiros.
Ao longo dos anos ocorreram mudan-as nos amuletos,
principalmente em re-
lao aos formatos, mas o poder de seus significados continua o
mesmo. Alm de atrair sorte, tem como funo afastar qualquer tipo de
energia negativa. Para que tenham um poder maior, o ideal ser
presenteado com um desses objetos.
Hoje em dia, o Olho Grego e a pimen-ta so os mais usados
juntamente com o trevo de quatro folhas. Abaixo voc co-nhece o
significado destes e de outros amuletos para sorte e proteo.
Olho grego protege contra olho-gordo e inveja. Em alguns casos,
o olho quebra-se, isso acontece porque ele ab-sorve toda energia
negativa que esto depositando na pessoa que o usa;
pimenta vermelha - usada para atrair boa sorte, e a cor vermelha
afasta o mal, a inveja e traz proteo;
Trevo de quatro folhas propicia vida longa, chama dinheiro,
favorece sorte no jogo e atrai felicidade. Por sua raridade, pode
ser considerado como smbolo de uma unio, de um encontro
importante;
Figa tem a forma da mo fechada com o polegar entre os dedos mdio
e indicador. Serve contra mau-olhado e inveja. Quem a perde, no
deve procura - l, porque ela leva o mal que devia cair sobre a
pessoa;
Olho-de-cabra amuleto feito atra-vs das sementes vermelhas e
pretas da planta chamada olho-de-cabra. Carre-gar dentro da
carteira afasta toda inveja que estiver atrapalhando sua vida;
p de Coelho afasta as ms energias que impedem a fertilidade em
qualquer campo da vida, como na famlia, no amor e nos negcios;
Rezas
Aqui voc pode conferir algumas das oraes feitas pelas
bezendeiras que po-dem ser repeitdas em casa. Basta ter f e
acreditar na cura:
paralisia facial ou total (Ramo-de-ar):Eu te benzo do ar morto,
ar vivo, ar
do sol, ar da lua. Ar das estrelas. Ar do meio-dia, ar da
meia-noite e o ar da Ave Maria.
para sapinho:Sapo, te corto em nome de Deus e da
Virgem Maria. (fazer cruzes na boca do nenm, uti-
lizando os cinco dedos da mo, come-ando pelo polegar, enquanto a
orao acima proferida.
Contra mau olhado:Com trs te boto e com dois te tiro. Em
nome de So Julio te tiro o mau olhado (citar o nome da pessoas)
e te tiro todo o mal que no teu corpo se meteu.
Leve o que trouxeste.Deus me benze com Sua Santssima cruz.Deus
me de-fenda dos maus-olhos e maus olhados e de todo os males que me
queiram fazer.Tu s o ferro e eu sou o ao.Tu s o de-mnio e eu te
embarao com o nome de Deus e da Virgem Maria.e as trs pessoas da
santssima trindade.
Amm
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6 o pASSo Do AVESSo - So BoRJA, oUTUBRo DE 2010 - ANo I - NI
SO N H O M E U. . .Voyage a ParisPor Leonardo Jorge de
Moraes
mentaes. Mas, como a esperana a ltima que morre, resolvi indagar
uma senhora de, aparentemente, 40 anos, parada no porto da escola,
observando a movimentao das crianas que ali res-tavam. Rosa
Oliveira disse que esperava por sua filha, Carol. Perguntei se
poderia conversar um bocado com a menina e, felizmente, recebi um
claro como res-posta. Ao que ela exclamou Carooool,
materializou-se, ao meu lado, uma linda menina de 7 anos. Cabelos
negros e lon-gos, de olhinhos puxados, batizada Ana Carolina
Oliveira Teixeira.
Como no sou de fazer cerimnias, logo inquiri:
- Carol, tu tens algum sonho? - Sim. disse ela.
- E qual ? - Conhecer Paris! respondeu,
com muito menos cerimnia.Mas que brbaro, pensei. Pensei
nada! Exclamei isso na frente da menina, e ela, risonha, ficou
ali, parada. Pergun-tei a Rosa se poderamos ir a casa de-las, para
que Carol pudesse transcrever aquilo que me disse para o papel.
Mais uma vez, a solcita Rosa respondeu sim, e perguntou se poderia
ir na frente, para arrumar a menina para as fotos. Foi a nossa vez
de consentir.
Chegando onde morava, fomos rece-bidos pelos latidos da cadela
Bolinha, a mimosa da Carol. Ao adentrarmos a casa, conhecemos mais
um morador, o
gato, Corujinha que passeava por ali.Enquanto Carol escrevia seu
texto,
fiquei na sala, na companhia de Rosa, conversando sobre o sonho
da menina. A me nem fazia idia daquela estranha, mas surpreendente,
vontade da meni-na de conhecer a capital francesa. Rosa acredita
que o sonho de Carol manifes-tou-se pelas vrias horas que a menina
passa na frente da TV. Posteriormente, Carol confirmou a tese da
me. Para as-sistir TV e conhecer o mundo atravs da telinha, Carol
faz o dever de casa e rev a matria estudada no dia, sem nem mesmo a
me exigir. Ana Carolina cursa a 2 srie do Ensino Fundamental, e diz
gostar muito de estudar.
Quinze minutos depois, estvamos, eu, Rosa, Carol e Camila (a
fotgrafa) na sala, com o texto da menina escrito em sua agenda
rosa, a mesma cor da caneta, conversando sobre as viagens que Carol
pretendia fazer. Disse que, embora ain-da no tenha conhecido outra
cidade alm de So Borja, pretende logo, logo desbravar esse
mundo.
Nos despedimos, desejando toda a sorte Carol, para que consiga
realizar seu sonho. E que ningum se surpre-enda se, futuramente,
ver a sonhadora so-borjense l pelas bandas da Europa, tamanha sua
vontade de cruzar essas fronteiras e ir longe, to longe quanto
possa lev-la seu desejo de conhecer de perto aquilo que, at hoje, s
sabe que existe atravs da telinha quadrada.
Foto: Camila Schmitt
Ana Carolina em seu quarto
Meu sonho viajar para Paris, porque a ci-
dade linda. Quando eu chegar l,vou conhecer
amigos novos.
Quando decidi aceitar a incumbn-cia de escrever a coluna Sonho
Meu, acreditei que teria tarefa fcil, afinal, a proposta da coluna
simples: exibir o sonho de algum morador do bairro do Passo. Fcil,
claro! Quem que no tem sonhos e aspiraes?
Convidei a colega que fotografaria os entrevistados, e fomos em
busca dos nossos sonhadores. Nossa primeira para-da foi na Escola
Tusnelda Lima Barbosa, reduto de crianas residentes no Passo. Na
chegada, iniciei uma conversa bem informal com a gurizada que
estava es-palhada ali pela frente, alguns correndo, outros
gritando. Depois de ter pergunta-do a uns cinco meninos quais eram
seus sonhos, obtive quase o mesmo tipo de resposta: todos queriam
ou um videoga-me, ou uma bicicleta.
Como disse no incio do texto, achei que minha tarefa seria fcil,
pois pensei que me depararia com respostas sur-preendentes, com
sonhos mirabolantes. Mas o que tive de material eram apenas aquelas
aspiraes e desejos de receber alguma coisa que quase toda criana
sonha em ganhar. Nada que fugisse ao comum. Mas eu queria mais,
queria es-crever sobre algo diferente.
Passei a mirar os mais velhos. A guriza-da das stimas e oitavas
sries rumavam, em bando, para o porto da sada. Tinha certeza de que
ali conseguiria alguma coisa diferente. Mais uma vez, nada! Os
alunos mais velhos, ao serem pergunta-dos sobre seus sonhos, entre
risos, mur-muravam: Ai, eu no sei....
Restavam ainda algumas poucas crianas no ptio da escola, e o
reprter pensava que seu dia seria apenas de la-
Ilust
ra
o: M
iro B
acin
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So BoRJA, oUTUBRo DE 2010 - ANo I - NI - o pASSo Do AVESSo 7
GenteOficina de HistriasPor Ana Paula Kemerich e Anderson
Cogo
Casas de passarinho, amarelas, azuis, e outras desbotadas pelo
tempo. No gramado em frente residncia, a pas-sarada fazia festa
naquela manh de sol. Aproveitava o caf oferecido pelo Seu
Ricardinho. As casinhas ficam aqui pelo ptio, tinha mais, muito
mais passari-nho, mas o temporal veio e derrubou. De manh, ele d
arroz para eles, vem de tudo, pomba, canarinho, tico-tico, conta
dona Olinda, esposa do Seu Ricar-do, enquanto nos recepciona no
porto.
Uma caracterstica peculiar do Bairro do Passo so as inmeras
oficinas de ve-culos ou casas de conserto de produtos variados. E
numa dessas que reside o Ri-cardo Ballejo Rodrigues, 63 anos.
Quando questionado sobre a bicicleta enfeitada, objeto da nossa
pauta, que nos levou at sua oficina, ele responde: No, no tenho
mais. Pediu que esperssemos. E saiu, num passo rpido, por entre as
trs casas principais, entrando na oficina ze-lada por um co
amarelo, baixinho e gor-do, que nos fitava com os olhos curiosos,
porm, preguiosos.
Enquanto isso, dona Olinda nos distraa com os passarinhos que
escolheram mo-rar com eles. Inquilinos da parte externa da
propriedade, suas habitaes se espa-lham pela trinca de casas
pequenas. At na oficina, feita de tbuas recicladas, h as pequenas
moradas para os bichinhos.
Seu Ricardo retorna trazendo um esto-jo preto nas mos e senta
conosco, e vai logo retirando fotografias, fragmentos da vida,
enquanto nos conta a histria da sua bicicleta enfeitada. Trinta e
trs lm-padas e motor de carro diz orgulhoso, com a fotografia nas
mos. Mostra-nos dezenas de imagens, que estampam o rosto de um
homem feliz ao lado da sua estimada criao. A bicicleta do Seu
Ri-cardo, que alm de atrao da vizinhana era meio de transporte para
o trabalho, para as prticas esportivas e tambm as pescarias. Entre
risos e brincadeiras, numa conversa descontrada, oscila mo-mentos
de alegria e feies tristes, princi-palmente quando conta do
acidente que quase lhe tirou a vida no ano de 2001, na
Avenida Jlio Trois, e da tristeza de ter que desmontar a querida
bicicleta. Sem condies de reconstru-la, deixa claro que, assim que
tiver dinheiro suficiente, vai unir pea por pea da saudosa obra de
arte, que hoje divide espao com fer-ramentas e ferragens na
oficina.
Em meio a tantos relatos, associa a paixo pelo trabalho com
bicicletas a outras atividades que pratica, uma delas o futebol,
ilustrado pelas fotos dos mais de sete times de So Borja em que
jogou. Mostra-nos, com or-gulho, um recorte de jornal do ano de
1991, quando foi destaque como atleta exemplar, 25 anos jogando sem
nunca levar um carto amarelo, isso que ele era um defensor: lateral
esquerdo.
Tambm nos fala do gosto pelas rsti-cas, as quais se envolve
desde o ano de 1988 quando aposentou-se do futebol. Eu comecei a
correr de brincadeira e gostei, eu ganhei o primeiro lugar e o cara
ficou bravo, pois eu ganhei dele. Foi meu primeiro trofu. nos conta
alegre. Logo sa por entre as casas para buscar o prmio da primeira
corrida que ganhou.
Nas paredes da casa esto muitos trofus e medalhas. Um aro de
bicicleta, suspen-so por uma haste de metal, no teto, sus-tenta as
medalhas por ttulos conquista-dos como jogador e maratonista.
Seu Ricardo sempre com um sorriso no rosto, vai nos mostrando
vivncias de um mundo divertido que s vezes foram registradas com
fotos, outras ape-nas guardadas na memria e traduzidas em palavras
simples, que nem por isso deixam de ser encantadoras. Outra pai-xo
que eu tenho pescar, pra mim no tem distncia eu pego a bicicleta e
me vou. Vou por tudo, mais no Camaqu. s vezes d peixe outras no, um
dia da pesca e outro do pescador.
Diz fazendo piada.Do estojo saram fotografias antigas,
que nos renderiam belas histrias. Relatos que ouvimos com ateno,
e nos trans-portamos para o mundo de um homem que no era s um
inventor de peas ex-cntricas. Ali naquele lugar no foi apenas
enfeitada uma bicicleta, mas sua vida in-teira, atravs de sonhos, f
e esperana, agraciada por inmeras conquistas.
Foto: Dase Carvalho
Ao lado do que restou de sua estimada bicicleta, Seu Ricardo faz
planos de reconstru-la
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o pASSo Do AVESSo - So BoRJA, oUTUBRo DE 2010 - ANo I - NI
A trama de ViriatoFotos: Dase Carvalho