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NOVOS ESTUDOS 74 MARO 2006 25
[1] Trabalho apresentado na confe-rncia A Esquerda na Amrica
Lati-na, organizada pelo Instituto Uni-versitrio de Investigao
Ortega yGasset, com a colaborao da Funda-o Friedrich Ebert e da
Fundao Pa-blo Iglesias.Madri,28-29 nov.2005.
A idia de esquerda, como todas as demais idias e ins-tituies na
Amrica Latina, transplantada e em grande parte inau-tntica. No
obstante, um fenmeno real, na medida em que sem-pre possvel
distinguir a esquerda da direita em pases capitalistas
edemocrticos. No caso do Brasil, objeto deste trabalho, a esquerda
uma realidade to viva e poderosa que se justifica a questo central
quequero responder aqui: por que a esquerda no Brasil ganha as
eleiesmas no governa? Este trabalho gira em torno dessa questo
quepressupe um conceito amplo de esquerda e do problema
relacio-nado: existe uma especificidade para a esquerda na Amrica
Latina e,especificamente,no Brasil? Em que ela se distingue ou deve
se distinguirda esquerda na Europa, que sempre lhe serviu de
parmetro, para poderser autntica e ter condies de governar?
O PARADOXO DA ESQUERDA NO BRASIL1
RESUMO
A esquerda costuma vencer as eleies no Brasil, mas nogoverna.
Para sustentar o argumento, este artigo repassa os conceitos de
direita e esquerda, definindo os grupos pol-ticos de esquerda pela
disposio a arriscar a ordem em nome da justia social. Em segundo
lugar, argumenta que, nasdemocracias modernas, no h inconsistncia
entre uma coalizo de esquerda e o capitalismo. Por fim, mostra
comona experincia brasileira a esquerda de fato vence as eleies,
mas no governa.
PALAVRAS-CHAVE: partidos polticos; esquerda; democracia
moderna;sociedade civil.
SUMMARY
The left usually wins elections in Brazil but eventually doesnot
govern. In order to validate this claim, the paper, first, reviews
the concept of left and right, defining the left politi-cal groups
by their disposition to risk social order in the name of social
justice. Second, the paper argues that in moderndemocracies there
is no inconsistency between a left coalition and capitalism. Third,
it says that in Brazil the experienceshows that the left indeed
wins elections but does not govern.
KEYWORDS: political parties; left; modern democracy; civil
society.
Luiz Carlos Bresser-Pereira
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Essas questes no tm respostas unvocas. Estamos no campominado
das ideologias, no qual preciso combinar o mtodo histrico-dedutivo
da boa cincia social com o mtodo normativo da teoria pol-tica.
Espero, entretanto, conseguir dar uma resposta que nos ajude
acompreender a dinmica e as crises da esquerda no Brasil.Uma
respostaque seja aberta o suficiente para poder abrigar uma
realidade to com-plexa e, ao mesmo tempo, precisa a ponto de no se
constituir em merorol de lugares-comuns.
Para responder primeira questo, terei que definir esquerda
edireita. E justificar por que no trabalho com o conceito de
centro, pres-supondo que uma pessoa ou um partido de esquerda ou de
direita.Issono significa que no admita as situaes ambguas,e sim que
no querome perder nelas. Em segundo lugar, terei que mostrar que a
esquerdaquase sempre ganha as eleies no Brasil,desde a transio
democrticade 1985.Em seguida,terei que explicar por que a esquerda
ganha as elei-es mas o governo que se forma afinal no de
esquerda,no representaos interesses dos pobres.Para isso,precisarei
de duas coisas:do conceitode sociedade civil, que, no Brasil e nos
demais pases da Amrica Latina,diverge, muito mais do que em pases
desenvolvidos, do conjunto doseleitores votantes,que chamarei de
povo;e de um entendimento maior doque sejam efetivamente esquerda e
direita na regio ou no Brasil.
ESQUERDA E DIREITA
H alguns anos venho propondo um conceito geral de esquerda
edireita que reproduzirei aqui. Esse conceito supe que o objetivo
pol-tico das sociedades modernas a ordem ou segurana, a liberdade,
obem-estar, a justia e a proteo da natureza ou do meio ambiente.
Aesquerda no se distingue da direita em termos de liberdade ou de
pro-moo do bem-estar atravs do desenvolvimento econmico.Ainda quea
liberdade poltica tenha sido originalmente uma conquista da
burgue-sia, que fez uso da ideologia do liberalismo, a democracia
foi, antes quequalquer outra coisa, uma conquista dos pobres e das
classes mdias,que durante o sculo XIX lutaram com os liberais para
obter o sufrgiouniversal. No entanto, embora uma parte da esquerda
a utpica desdenhe o desenvolvimento econmico, que considera
asseguradopelo capitalismo, quando partidos ou coalizes de esquerda
chegaramao poder na Europa revelaram-se to interessados e capazes
de promo-ver o desenvolvimento econmico quanto partidos e coalizes
dedireita.J em relao a ordem,justia e proteo do ambiente,as
diferen-as so claras. So to claras que possibilitam a seguinte
definio deesquerda e direita. A direita o conjunto de foras
polticas que, em umpas capitalista e democrtico, luta sobretudo por
assegurar a ordem,dando prioridade a esse objetivo, enquanto a
esquerda rene aquelesque esto dispostos,at certo ponto,a arriscar a
ordem em nome da jus-tia ou em nome da justia e da proteo
ambiental,que s na segunda
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Bresser-Pereira
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[2] Bresser-Pereira, Luiz Carlos.Por um partido democrtico,
deesquerda e contemporneo. LuaNova Revista de Cultura e
Poltica,no39,1997,pp.53-71;e A nova esquerda:uma viso a partir do
Sul. Revista deFilosofia Poltica Nova Srie, vol. 6,2000. Porto
Alegre: UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul,Depar-tamento de
Filosofia, pp. 46-52. Nosegundo trabalho, desenvolvi
maisextensamente esse conceito,contras-tando-o com o de Bobbio
(Bobbio,Norberto. Destra e sinistra. Roma:Donzelli Editore, 1994.
Existe tradu-o para o portugus.)
[3] Sader,Emir.O anjo torto: esquerda(e direita) no Brasil. So
Paulo:EditoraBrasiliense, 1995, p. 164.
metade do sculo XX assumiu estatuto de objetivo poltico
fundamentaldas sociedades modernas2.
Adicionalmente, a esquerda se caracteriza por atribuir ao
Estadopapel ativo na reduo da injustia social ou da desigualdade,
enquantoa direita,percebendo que o Estado,ao se democratizar,foi
saindo do con-trole,defende um papel do Estado mnimo,limitado
garantia da ordempblica, dando preponderncia absoluta para o
mercado na coordena-o da vida social. Porm, em relao ao Estado, h
divergncias dentroda prpria direita, porque a experincia histrica
mostra que apenasquando h forte aliana dos empresrios com a
burocracia do Estado seconsubstancia uma estratgia nacional de
desenvolvimento. Por suavez, por muito tempo a esquerda rejeitou o
Estado, que para Marx seriao comit executivo da burguesia,e para os
anarquistas,o mal maior.Noentanto, a experincia histrica demonstrou
que nas democracias oEstado foi deixando de representar apenas os
interesses da classe domi-nante para transformar-se em principal
instrumento de ao coletiva disposio da sociedade.Enquanto no
processo histrico o capitalismose revelava,a um s tempo,um regime
injusto e corrupto mas o nicosistema econmico vivel porque
relativamente eficiente ,a democra-cia se revelava o instrumento
por excelncia atravs do qual as socieda-des modernas domavam esse
capitalismo: tornavam-no menos injustoe menos corrupto.Por isso,a
esquerda reconciliou-se com o Estado,tor-nando-se prioritrio para
ela, nos termos de Sader, a deslocao dapolarizao neoliberal entre
estatal/privado para a construo do carterpblico do Estado
brasileiro3. Quanto mais democrtico se torna ogoverno do Estado,
mais pblico ele se torna, ou seja, atende mais sdemandas dos
cidados e menos s das minorias poderosas.
Embora a defesa da interveno do Estado regulando e corrigindo
ocapitalismo seja importante na distino entre direita e esquerda, o
ele-mento central dessa definio est na oposio entre ordem e
justiasocial. A proteo do meio ambiente tambm cada vez mais
impor-tante, na medida em que os grupos polticos que adotam essa
posiosejam em geral tambm mais de esquerda que de direita. J os
outrosdois objetivos polticos centrais das sociedades modernas (a
liberdade eo bem-estar) no distinguem historicamente a esquerda da
direita, jque,no passado,tivemos a defesa ardorosa da liberdade e a
competnciaem promover o bem-estar dos cidados partindo de governos
deesquerda e de direita, como tivemos a violncia contra a
democracia e aincompetncia em promover o desenvolvimento econmico
origi-nando-se em partidos polticos com as duas orientaes.
Quando,porm, se trata da ordem, o verdadeiro conservador no hesita,
e lhe dsempre prioridade sobre a igualdade, que, para ele muitas
vezes nemsequer um valor significativo. J o verdadeiro progressista
tambmpreza a ordem,a segurana,contudo sabe que o progresso social
envolveliberdade de protesto por parte dos mais pobres, dos que de
algumaforma se sentem oprimidos o que implica certo risco para a
ordem.O
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conservador afirma em qualquer hiptese o primado da lei; o
progres-sista reconhece a necessidade do estado de direito, mas
sabe tambmque a lei com freqncia feita para defender os pobres
contra os ricos eque aqueles muitas vezes no tm alternativa para se
fazer ouvir senoenfrentar a lei. A democracia o regime da ordem, da
lei e do compro-misso, porm tambm o regime do conflito social e da
argumentao.A esquerda sabe que entre justia e ordem existe uma
contradio que osregimes democrticos devem,em princpio,ajudar a
resolver.Enquantoa direita busca sempre que possvel negar essa
contradio na medidaem que o estado de direito ou o imprio da lei
tem absoluta precednciasobre a justia, para a esquerda a lei muitas
vezes representa o status quo,portanto os interesses dos ricos,e
por isso precisa ser mudada a partir dapresso dos movimentos
sociais, os quais, por falta de alternativa, nemsempre usam de
meios puramente legais para exercer essa presso. Jpara a direita
essa forma de arriscar a ordem ou a lei inaceitvel.
Em toda parte, inclusive no Brasil, a esquerda enfrenta uma
contra-dio bsica:enquanto a direita representa claramente os
interesses dosricos, principais defensores da ordem, a esquerda em
princpio deveriarepresentar os interesses dos pobres ou dos
trabalhadores, mas na pr-tica muitas vezes representa tambm os
interesses das classes mdiasprofissionais ligadas ao Estado. Existe
a um problema srio, porque,por mais que procure identificar-se com
os pobres que pretende infor-malmente representar, essa classe mdia
acaba representando tambmseus prprios interesses. O fato de
esquerda e direita representareminteresses de classe inevitvel e at
desejvel, desde que essa represen-tao no seja meramente corporativa
ou seja, desde que o polticono suponha que seu papel o de apenas
representar os interesses dosque o apiam ou o elegem. Nos pases
mais avanados politicamente,esse corporativismo contrabalanado pelo
esprito republicano doscidados e dos polticos, que logram, at certo
ponto, agir em funo desuas convices sobre o que seja o interesse
pblico,mesmo quando issocolide com seus interesses pessoais.
A definio que acabei de apresentar para direita e esquerda
umadefinio histrica; parte da observao emprica do
comportamentoefetivo dos grupos polticos identificados como
esquerda ou direita.Em uma definio desse tipo, no seria necessrio
acrescentar que aesquerda defende na teoria o socialismo e na
prtica o estatismo,enquanto a direita defende o capitalismo? Sim,
mas com restries. Osocialismo foi por muito tempo uma utopia da
esquerda, pormquando esta se viu no poder, como aconteceu depois da
RevoluoComunista de 1917,o sistema econmico afinal estabelecido foi
o esta-tismo, no o socialismo. Por qu? Porque a sociedade russa
estavalonge de ter a igualdade de conhecimentos necessria para
poderimplantar com xito um regime socialista. Essa a contradio
centralda revoluo socialista: busca a igualdade, mas para alcan-la
precisaque a igualdade, pelo menos de conhecimentos ou capacidades,
j
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[4] Whitaker, Chico. O desafio doFrum Mundial. So Paulo:
EditoraPerseu Abramo, 2005, pp. 15 e 19. Vertambm Aguiton,
Christophe et al.O va le mouvement altermondialisa-tion? Paris: La
Dcouverte, 2003 eFougier, Eddy. Altermondialisme, lenouveau
mouvement demancipation?Paris: Liges de Repres, 2004.
esteja razoavelmente implantada. Mesmo os pases hoje mais
desen-volvidos e com trabalhadores mais educados, teriam
dificuldade emestabelecer um regime socialista, porque as diferenas
de educao ecompetncia tcnica e organizacional entre os cidados
continuammuito grandes. O que dizer de uma sociedade atrasada como
era arussa e todas as demais que realizaram revolues que se
pretendiamsocialistas? Estabeleceu-se ali, portanto, no o
socialismo, mas o esta-tismo. Este teve xito em promover a
industrializao pesada a partirde forte acumulao forada de poupanas,
porm afinal revelou suaincapacidade econmica de competir com o
capitalismo.Dessa forma,o ideal socialista continua a ser um ideal
das esquerdas, mas a centro-esquerda em especial, ou esquerda
moderada, limita-se a pensar nelecomo utopia e trata de promover de
forma reformista a justia e a defesado meio ambiente no
capitalismo.
H muitos tipos de esquerda, mais que de direita,
provavelmenteporque esta, alm dos valores e idias, tem o capital a
uni-la, enquanto aesquerda s tem valores e idias.Podemos distinguir
pelo menos quatrotipos de esquerda: a extrema esquerda, a esquerda
utpica, a esquerdaburocrtico-sindical, e a centro-esquerda.
A extrema esquerda revolucionria,no v na democracia
existenteseno uma forma de dominao:pretende assumir o poder
revoluciona-riamente para,em seguida, implementar o que denomina
socialismo o que seria mais correto chamar de estatismo.
A esquerda utpica prefere no disputar o poder para manter
seusideais socialistas e para poder ser uma fora crtica dentro da
sociedade.Nos dias atuais,esse o caso,em especial,do extraordinrio
movimentooutromundialista, que se formou a partir dos encontros do
FrumSocial Mundial. Seus participantes mais representativos afirmam
queno aspiram ao poder,mas querem ser a conscincia crtica das
socieda-des capitalistas contemporneas,e querem contribuir para que
a socie-dade faa prevalecer, em toda parte, a justia social, a
solidariedade e apaz,ou,em outras palavras,um outro mundo
possvel4.Esse objetivo sem dvida legtimo,e o movimento j tem dado
contribuies positi-vas na direo pretendida, na medida em que a
enorme repercusso desuas aes tem obrigado os governantes
conservadores ou progressistasa mudar algo de suas polticas.
A esquerda burocrtico-sindical joga o jogo democrtico, tem
basesfortes na burocracia do Estado e nos sindicatos, se
autodenominaesquerda simplesmente e,enquanto fora do poder,mantm um
discursoformalmente socialista.
A centro-esquerda reconhece a impossibilidade de transio para
osocialismo dentro de um prazo previsvel e, usando uma frase de
MichelRocard, trata de governar o capitalismo mais competentemente
que oscapitalistas.Ou seja, uma esquerda reformista,que durante o
sculo XXfoi social-democrata, mas est se transformando em
centro-esquerdasocial-liberal, na medida em que os partidos de
esquerda na Europa vm
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[5] Expus mais amplamente o con-ceito de social-liberalismo,
aplicadosobretudo reforma do Estado, emDemocracy and public
managementreform: building the Republican state.Oxford: Oxford
University Press,2004. A Frana e a Alemanha conti-nuam resistindo
reforma da gestopblica, presos que esto ao modeloburocrtico
clssico. Essa uma ex-plicao importante para o mal de-sempenho
econmico desses pasesnos ltimos dez anos.
[6] Sader, Emir. O anjo torto, p. 194.
[7] Sader, Emir. A vingana da hist-ria. So Paulo: Boitempo
Editorial,2003, pp. 175-76.
[8] Embora profundas modifica-es sejam necessrias na
polticaeconmica do governo, no se justi-fica o calote, tanto da
dvida externacomo da interna. Mais importante reduzir drasticamente
a escandalosataxa de juros Selic (o que importariaem reduo do valor
presente da
reformando suas economias e seu Estado no sentido de manter a
garan-tia aos direitos sociais e aprofundar a igualdade, ao mesmo
tempo queaceitam um papel mais ativo de mercados regulados na
coordenao dosistema. O social-liberalismo representa uma superao
positiva dasocial-democracia;entretanto,da mesma forma que a
social-democraciafoi por muito tempo acusada de trair os ideais do
socialismo revolucion-rio, agora se acusa o social-liberalismo de
trair os ideais da social-demo-cracia. Hoje, os pases que
apresentam governos de esquerda mais bem-sucedidos caso dos
escandinavos, da Holanda e da Gr-Bretanha esto deixando de ser
social-democratas para ser social-liberais.A princi-pal mudana a
reforma da gesto pblica,auxiliada por organizaes deservio pblicas
no estatais na realizao, de forma competitiva, de ser-vios sociais
e cientficos.Com isso,o Estado diminui o nmero de
servi-dores,mantendo dentro de seu aparelho apenas servidores de
alto nvel eprestgio. A despesa pblica em relao ao Produto Interno
Bruto (PIB)se mantm elevada, mas, paralelamente, aumenta de modo
substancial aeficincia dos servios prestados pelo Estado,e os
direitos sociais passama ser mais respeitados, devido melhoria da
quantidade e da qualidadedos servios5. Embora prestigie os altos
servidores pblicos, essa pers-pectiva de reforma da gesto pblica no
tem espao para servidores denvel mdio e baixo, ou para quem no
realiza atividades especficas deEstado.No surpreendente,por isso
mesmo,que encontre forte oposi-o da esquerda
burocrtico-sindical.
Entre a extrema esquerda e a centro-esquerda
h,naturalmente,umagradao de posies saindo do discurso da revoluo
para o da reformasocial. Poderamos chamar apenas de esquerda a
posio intermediria,cara aos intelectuais:uma esquerda que no faz
compromissos nem coma burguesia nem com a burocracia. Essa
esquerda, porm, no existe noplano poltico:s idealmente.No Brasil,um
de seus principais intrpre-tes Emir Sader, que, em vez de opor
justia social a ordem, define aesquerda pela oposio entre justia e
neoliberalismo. No Brasil, dizele,ser de esquerda significa a
contraposio ao neoliberalismo. Essa uma definio correta,porque por
meio do neoliberalismo que a ordemse manifesta hoje, embora haja um
nmero razovel de conservadoresque tambm se opem a ele.No entanto,o
problema da revoluo socia-lista evitado com a idia de que ser de
esquerda no mundo de hoje sig-nifica participar de forma concreta
de uma nova sociedade6. Quando,entretanto, se procura saber o
contedo dessa nova sociedade, verifica-mos que esse projeto no
existe,porque seus propugnadores sabem nopoder ser socialistas mas
no querem admitir o capitalismo reformado.Como fica claro em uma
obra posterior de Sader, o mais importanteseriam mudanas na poltica
econmica. Segundo o autor, essa novasociedade teria como pilares a
renegociao da dvida externa, a renego-ciao da dvida pblica e
polticas econmicas que privilegiam a distri-buio de renda7.Em que
pesem minhas ressalvas pessoais em relao aessas polticas8,
importante assinalar aqui que elas no levam a uma
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dvida), e adotar uma nova polticade proteo ao capital e ao
trabalhonacionais, interrompendo a absurdaabertura financeira do
Brasil ao capi-tal externo.
nova sociedade: apenas buscam reformar de maneira muito modestao
capitalismo. No h, portanto, razo prtica para no plano ideolgico
aquele em que nossa discusso est inserida distinguir esquerdade
centro-esquerda, a no ser que quisssemos incluir entre os
critriosde distino competncia ou propriedade das polticas
econmicassugeridas o que no o caso.
INEXISTENTE, MAS FUNDAMENTAL
Na discusso do conceito de esquerda, essencial debater o
problemado centro ou, mais especificamente, do centro que se move.
No meuentender,no quadro das sociedades modernas,no existem
agrupamen-tos polticos de centro. Aqueles que assim se
autodenominam so sem-pre de direita.Na verdade,algum ou algum grupo
ou de esquerda ou dedireita. Podemos e devemos transformar essa
dicotomia em uma escalaideolgica que vai da extrema direita para a
estrema-esquerda, passandopor direita, centro-direita,
centro-esquerda e esquerda. Ficamos, assim,com uma escala de seis
formaes polticas,porm sem um centro.Nessaescala,o centro
inexistente:algum ou algum grupo ou de esquerda oude direita.
inexistente,mas,como ponto virtual, fundamental.Porqueesse centro
se move de modo cclico ora para um lado ora para outro,e por-que
toda a luta ideolgica entre esquerda e direita nas
democraciasmodernas se trava em torno da questo de empurrar esse
centro mais paraa esquerda ou mais para a direita.
O que vimos no mundo,desde meados dos anos 1970,foi o xito
dadireita em mover o centro para a direita, com a ofensiva
ideolgica neo-liberal. Nos anos 1990, diante do fracasso parcial
das reformas e pro-messas da direita, iniciou-se um movimento do
centro para a esquerda,mas a eleio infausta e controvertida de um
presidente conservador nopas dominante, os Estados Unidos,
interrompeu esse processo. NaAmrica Latina, porm, na qual o
fracasso das reformas neoliberais foiradical,continua o movimento
do centro para a esquerda.Isso aconteceuporque algumas dessas
reformas,em especial a abertura financeira,almde serem
concentradoras de renda, revelaram-se contrrias aos interes-ses
nacionais do desenvolvimento econmico. O enorme desenvolvi-mento
dos pases asiticos que, embora comprometidos com odesenvolvimento
capitalista, rejeitaram as reformas propostas ou pres-sionadas a
partir do Norte vem aprofundando esse movimento dospases
latino-americanos para a esquerda, no obstante a hegemoniados
Estados Unidos sobre a regio.
O centro inexistente ou, para ser mais preciso, apenas
existentecomo realidade virtual,como ponto de referncia a dividir a
esquerda dadireita , assim, paradoxalmente todo-poderoso, porque a
luta pol-tico-ideolgica nas democracias modernas diz respeito a
ele. Os movi-mentos do centro so pendulares:ora o centro caminha
para a esquerda,como aconteceu no mundo a partir da Grande Depresso
dos anos 1930,
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ora caminha para a direita, como ocorreu a partir de meados dos
anos1970.Esses movimentos ocorrem na medida em que se esgotam as
pro-postas de governo de um ou outro grupo e os eleitores situados
mais aocentro deslocam-se na direo oposta dominante.
Contudo preciso considerar que o centro varia
geograficamente.Nos Estados Unidos,onde nunca houve um movimento
socialista forte,o centro est muito mais direita que na
Gr-Bretanha, a qual por suavez est mais direita que a Frana,a
Alemanha,ou a Espanha.Essa dife-rena geogrfica de posio do centro
se deve a razes de ordem hist-rica, que no importa discutir aqui. O
importante deixar claro que, seaceitarmos essa variao no centro, o
conceito de esquerda e direitatorna-se relativo. Polticas
consideradas de esquerda nos Estados Uni-dos podero ser
consideradas de direita na Frana.Os polticos progres-sistas ou de
esquerda americanos so em geral associados ao PartidoDemocrata, e
denominados liberais, numa referncia ao sculo XVIII ecomeo do
XIX,quando os liberais eram progressistas lutando em nomeda
burguesia, contra conservadores ainda aliados aristocracia.
Ainda convm assinalar que, ao afirmar que o centro se move
notempo e que varia de pas para pas, reconheo uma limitao na
defi-nio terica que ofereci no incio. Se for estrito em definir
esquerdae direita em relao a ordem e justia, no faria sentido essa
variao.Seria sempre de esquerda arriscar a ordem, admitir a ao de
movi-mentos sociais (como greves), restringir sem violncia aes
ilegaisde outros movimentos sociais (como as invases que, no
Brasil, ossem-terra e os sem-teto com freqncia promovem) e apoiar
suas rei-vindicaes. Em contrapartida, defender a lei a qualquer
preo, usarda autoridade tradicional e religiosa para justificar
posies polticase morais seria sempre de direita. Isso, porm,
verdadeiro at certoponto. Nas questes sociais, o princpio da
razoabilidade deve preva-lecer sempre, e esse princpio rejeita
distines claras e precisas entrebranco e preto. A realidade social
ambgua. A direita tende a pressu-por que o ser humano , por
natureza, egosta ou auto-interessado; aesquerda, a pens-lo como
generoso ou capaz de generosidade. Naverdade, o ser humano
intrinsecamente contraditrio e, portanto,ambguo. Ele nasce com duas
necessidades fundamentais e contradi-trias: de um lado, o instinto
da sobrevivncia o faz individualista eegosta; de outro, o instinto
da convivncia o torna solidrio e coope-rativo. Toda a sociedade
humana est baseada nessa ambigidade,por isso os cientistas sociais
enfrentam tanta dificuldade em preverseu comportamento.
ESQUERDA E NAO
O interesse e a capacidade de promover o desenvolvimento
econ-mico, assim como a liberdade, no distinguem a esquerda da
direita. natural que cada um dos agrupamentos polticos afirme ser
mais capaz
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de uma coisa ou de outra,mas vimos historicamente governos de
direitae de esquerda sendo bem-sucedidos e desastrosos em relao a
essesdois objetivos polticos. Entretanto, nesta seo argumentarei
que,quando se pensa na definio de esquerda em pases em
desenvolvi-mento, seria preciso incluir a idia de desenvolvimento
como objetivobsico e a idia de nao como objetivo para o
desenvolvimento. Histo-ricamente, na Europa do sculo XIX e de Marx,
a burguesia era naciona-lista e a esquerda,internacionalista.O
internacionalismo da Internacio-nal Socialista, porm, nunca
convenceu os trabalhadores, que nohesitaram em de alguma forma
associar-se burguesia e aos tcnicos dogoverno quando se tratava de
competir internacionalmente.Foi isso quepermitiu que todos os pases
capitalistas bem-sucedidos no plano eco-nmico consolidassem ao
mesmo tempo o projeto de construo deseus Estados-Naes.Uma Nao s
ganha coeso e fora,e o Estado sse torna instrumento de ao coletiva
dessa Nao, se as classes sociais,no obstante os conflitos,so
capazes de tornar-se solidrias quando setrata de competir com
outras naes. No momento, porm, em que aconstruo nacional e o
desenvolvimento se consolidaram naqueles pa-ses do Norte,o
nacionalismo deixou de ser uma ideologia expressa paratornar-se
subentendida.O nacionalismo a ideologia da construo doEstado-Nao, o
princpio bsico que alimenta as relaes internacio-nais tanto na fase
da Diplomacia do Equilbrio de Poderes como na faseda Poltica do
Sistema Global,e a afirmao da prioridade dos interes-ses nacionais
em relao aos demais pases vistos como competidores.Na
prtica,implica atribuir aos governos a responsabilidade de
defendero trabalho, o conhecimento e o capital nacionais. Hoje,
nesses pases,como nos pases dinmicos da sia muito diferentemente do
queacontece nos pases dependentes da Amrica Latina quase ningumtem
dvida de que esse o dever de seus governos, de forma que se tor-nou
desnecessrio reafirmar o prprio nacionalismo, transformado emvalor
consensual. Tornou-se, ento, possvel ocultar essa
perspectiva,sempre incmoda nas relaes internacionais, e reservar o
adjetivonacionalista para as perverses do nacionalismo, para suas
expressesextremadas e violentas como o nazismo, ou para formas de
populismode direita e de esquerda em pases em desenvolvimento. Para
os pasesricos, esse ocultamento tem a vantagem no prevista de
neutralizar oeventual nacionalismo dos pases em desenvolvimento,
tornando suaselites mais dceis s diretrizes vindas do
Norte,sobretudo s polticas deseu interesse econmico.
Diante desse quadro, a esquerda nos pases em desenvolvimentono
pode reproduzir dos pases ricos nem o discurso sobre naciona-lismo,
nem o discurso da esquerda. O motivo no apenas o nvel
dedesenvolvimento econmico e poltico, menor que o da Frana,
Alema-nha ou Gr-Bretanha. preciso no esquecer que o Brasil,embora
apre-sente uma sociedade dual e, portanto, uma economia
subdesenvolvida,j uma sociedade capitalista moderna.Porm, preciso
tambm consi-
33
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-
[9] Furtado, Celso. Brasil: a constru-o interrompida. So Paulo:
EditoraPaz e Terra, 1992.
[10] Bresser-Pereira, Luiz Carlos.Do Iseb e da Cepal teoria da
depen-dncia. In Toledo, Caio Navarro de(org.), 50 anos do ISEB. So
Paulo:Editora da Unesp, 2005.
[11] Furtado, Celso. O processo his-trico do desenvolvimento.
Indesen-volvimento e subdesenvolvimento. Rio deJaneiro: Editora
Fundo de Cultura,1961. Republicado em Bresser-Pe-reira, Luiz Carlos
e Rego, Jos Mrcio(orgs.). A grande esperana em CelsoFurtado. So
Paulo:Editora 34,2002.
[12] Em Do Iseb e da Cepal teoria dadependncia chamei essa
dependn-cia no de associada,nem de contra-partida da superexplorao
imperia-lista, mas de nacional-dependenteoximoro que salienta o
carter con-traditrio das elites empresariais eintelectuais em pases
dependentescomo o Brasil.
derar que os pases de desenvolvimento mdio no lograro evitar
adominao vinda do Norte, se no adotarem as polticas e
instituiesnecessrias para seu desenvolvimento. Nos ltimos vinte
anos, en-quanto os pases asiticos dinmicos continuavam a usar do
naciona-lismo para construir seus Estados nacionais e para promover
com xitoseu desenvolvimento, os pases latino-americanos que entre
os anos1930 e 1980 estavam realizando suas revolues nacionais viram
essaconstruo ser interrompida9. Nos ltimos vinte anos, a nao
brasi-leira, a partir da crise da dvida externa transformada em
crise fiscal doEstado e em inflao alta, perdeu autonomia real e
voltou condiosemicolonial, enquanto era submetida onda ideolgica
neoliberal eglobalista vinda do Norte. Isso ocorreu porque o antigo
modelo nacio-nal-desenvolvimentista,bem-sucedido em promover a
industrializaodo pas entre 1930 e 1980, entrou em crise. Ocorreu
tambm porque apresso ideolgica globalista vinda do Norte a qual
afirmava que naera da globalizao o Estado-Nao perdera relevncia e
anunciava agovernana global em um mundo sem fronteiras tornou-se
forts-sima a partir daquela mesma data. E ocorreu, finalmente,
porque as eli-tes brasileiras conservadoras e dependentes,
sobretudo aquelas ligadasao setor financeiro, aderiram rpido s
novas idias.
Nesses termos, seria razovel esperar que, nos pases
latino-ameri-canos, a esquerda fosse nacionalista e tivesse como
prioridade o desen-volvimento econmico. No Brasil, isso aconteceu
quando os grupos deesquerda mais representativos afinal se
associaram aos empresriosindustriais no pacto
nacional-desenvolvimentista de Vargas e Kubits-chek (1930-60). Na
Amrica Latina, porm, a esquerda deixou de sernacionalista desde que
os empresrios apoiaram os golpes militares noCone Sul. A adoo da
teoria da dependncia, seja na verso marxista,seja na verso da
dependncia associada, no foi motivo para que aesquerda se tornasse
mais nacionalista, como se poderia imaginar; pelocontrrio, fez com
que copiasse a clssica perspectiva internacionalistada esquerda
europia do sculo XIX.Partindo do pressuposto de que noseria possvel
haver um empresariado nacional na Amrica Latina,a pri-meira verso
da teoria da dependncia concluiu pela revoluo socia-lista,e a
segunda pela associao com os pases ricos10.Contudo,a prio-ridade
dada ao desenvolvimento econmico foi abandonada pelaesquerda;na
medida em que ela assumiu que no capitalismo o desenvol-vimento
ocorreria de qualquer maneira,de forma a caber-lhe a preocupa-o com
a democracia e a justia social.Entretanto,embora seja verdadeque,
para os pases que completaram sua revoluo industrial, o
desen-volvimento capitalista tenda a ser auto-sustentado11, isso no
verdadepara os demais, submetidos a processos de imperialismo.
Nesse caso,suas elites se tornaram ambguas em relao aos interesses
nacionais,porque ao mesmo tempo que se identificavam com esses
interesses,eram ideologicamente dependentes do centro
desenvolvido12.Esse tipode conscincia, porm, no ocorreu nas
esquerdas latino-americanas e
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Bresser-Pereira
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-
[13] Lozano, Wilfredo. La izquierdalatinoamericana en el poder.
NuevaSociedad, no 197, 2005, p. 145.
[14] Dimoser, Ditmar. Democraciasin democratas: sobre la crisis
de lademocracia en Amrica Latina.Nueva Sociedad, no 197, 2005, p.
40.
brasileiras, cujos intelectuais so tambm dependentes. Fizeram,
por-tanto,o que inerente situao de dependncia no
criticada:copiaramo internacionalismo das esquerdas europias,no se
dando conta de queelas s adotaram o internacionalismo em teoria,
enquanto se associa-vam aos empresrios na construo da nao e na
participao em estra-tgias nacionais de desenvolvimento.
O PARADOXO DA ESQUERDA
Se o centro varia geograficamente,seria interessante perguntar o
queacontece com o centro no Brasil ou na Amrica Latina. Est mais
esquerda ou mais direita do que nos pases desenvolvidos da
Europacontinental? No sei responder com clareza, porque a diviso
entreesquerda e direita enfrenta uma dificuldade fundamental na
regio. Noquero falar por toda a Amrica Latina,onde a esquerda hoje
est presenteno governo da Argentina,do Uruguai,do Chile,da
Venezuela e do Brasil.Conforme observou Wilfredo Lozano, a esquerda
hoje no poder resultaser um complexo produto de sua reacomodao
reformadora, o que aobrigou a girar para o
centro13.Quanto,entretanto,girar para o centro? Eo giro apenas para
o centro ou para a direita? Ditmar Dimoser,em textosobre a
democracia na Amrica Latina, pergunta estar o futuro
latino-americano caracterizado por democracias sem democratas?14.
Tal per-gunta envolve um paradoxo absoluto.No caso do Brasil,no em
relao democracia mas sim esquerda,a questo est dominada por outro
para-doxo, que talvez no esteja ausente do restante da Amrica
Latina: aesquerda ganha as eleies,na medida em que partidos de
esquerda ou decentro-esquerda alcanam a maioria no Parlamento,porm
no governa.Proponho denominar esse fenmeno de paradoxo da
esquerda.Ser eleverdadeiro? Se for,h uma explicao ou um paradoxo
puro?
Tabela 1
Deputados federais eleitos (1986-2002)
Fonte: www.iuperj.br/deb/port/Indice.htm. Autor: Jairo Nicolau
(Iuperj)Nota: Partidos considerados de esquerda: PT, PSDB, PMDB,
PDT, PSB, PCB/PPS, PCdoB e PV; os demaisforam considerados de
direita.
Para responder a essas perguntas, parto do pressuposto de que
aideologia determina o voto no Brasil.Esse pressuposto terico foi
postoem dvida por uma srie de analistas internacionais, a maioria
de filia-
35NOVOS ESTUDOS 74 MARO 2006
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-
[15] Singer, Andr. Esquerda e direitano eleitorado brasileiro.
So Paulo:Edusp, 1999.
[16] No lograram, todavia, maioriano Senado.
o conservadora,que tambm tendem a negar a relevncia da
diferenaentre esquerda edireita. Mas afinal as pesquisas deixaram
claro que oseleitores apesar da falta de estrutura ideolgica
definida, para a qualseriam necessrios conhecimentos que eles no tm
possuem identi-ficao ideolgica suficiente que lhes permite
distinguir as posies deesquerda ou de direita, progressistas ou
conservadoras. Singer testouessa hiptese em relao ao Brasil, e a
viu confirmada15. O Brasil transi-tou para a democracia em 1985.
Desde ento, conforme os dados daTabela 1, os partidos que dominam o
Parlamento brasileiro (por ordemhistrica, PMDB, PSDB e PT) sempre
se autodefiniram como partidosde esquerda os dois primeiros de
centro-esquerda, o ltimo deesquerda e, junto com os pequenos
partidos de esquerda, lograram amaioria na Cmara dos Deputados16.
Entre os trs presidentes eleitosdiretamente pelo povo desde 1985,
dois se autodenominaram deesquerda,Fernando Henrique Cardoso e Luiz
Incio Lula da Silva,e ape-nas um aceitava ser de direita,Fernando
Collor. verdade que nem todosos parlamentares desses partidos podem
ser considerados de centro-esquerda: depois que o PT se tornou
governo, alguns petistas so antesde centro-direita, apesar dos
programas e das mensagens polticas decentro-esquerda.
No Brasil, evidente por que os partidos e os candidatos
presiden-ciais de esquerda tendem a ser eleitos com mais freqncia
do que os dedireita. Est diretamente relacionado com a brutal
desigualdade socialexistente no pas.Essa desigualdade,somada aos
baixos nveis de edu-cao e de formao cvica do povo brasileiro,
fazem-no esperar dospolticos um discurso voltado para melhor
distribuio de renda. Ospolticos de esquerda podem fazer isso de
forma natural, sem necessa-riamente serem populistas;j os
candidatos de direita s so capazes deformular um discurso dessa
natureza sendo populistas.Os candidatosde direita que ganham eleies
executivas no Brasil so quase semprepolticos populistas e
demaggicos, com um discurso que no corres-ponde a suas convices. J
os candidatos de esquerda podem ser maisautnticos, embora no
estejam livres do populismo.
Entretanto,uma vez eleitos,nem o presidente nem os
parlamentaresde esquerda fazem um governo de esquerda, ou seja, que
de fato contri-bua para reduzir a injustia social no pas. Podem
incluir em suas admi-nistraes algumas polticas sociais
redistributivas, atendendo assim presso dos pobres,mas afinal seus
governos promovero sobretudo osinteresses dos ricos,e a renda e a
riqueza se mantero concentradas.Issofoi possvel observar no governo
Sarney (1985-89), imediatamenteaps a transio democrtica. O prprio
presidente no era um polticoda esquerda, e sim um nacionalista
populista que militou no partido dogoverno durante o regime
militar; porm o Parlamento eleito em 1986era dominado por polticos
de centro-esquerda, que haviam se opostoao regime militar. No
obstante, no h nada no governo Sarney que sepossa identificar como
de esquerda. Pelo contrrio, nos ltimos dois
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Bresser-Pereira
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-
[17] Esses funcionrios haviam rece-bido o nome de marajs,e o
candidatocomprometeu-se habilmente a aca-bar com o privilgio.
anos o governo caminhou para a direita:o presidente firmou
acordo comum grande grupo conservador que se formou ento no
Congresso com onome de Centro.
O primeiro presidente eleito pelo voto popular foi Fernando
Collorde Mello, em 1989. Era um poltico conservador. Mas
importantesalientar que,mais que de direita,ele era um poltico
populista.Isso por-que logrou estabelecer contato direto com a
populao em nome damoralizao da burocracia,especificamente dos
salrios abusivos de umcerto nmero de altos
funcionrios,aproveitando-se da alta inflao emvigor desde 1980 e de
falhas legais no sistema de correo monetria dossalrios17. Sua
mensagem moralista, entretanto, no impediu que eleprprio se
envolvesse em corrupo, a ponto de, dois anos depois, serafastado do
governo mediante um processo de impedimento.
O prximo presidente eleito, Fernando Henrique Cardoso, tinhauma
trajetria conhecida: inicialmente, como intelectual de
esquerda;depois, como poltico de centro-esquerda. Provinha do PSDB,
partidoque se pretende socialdemocrata inclusive no nome: Partido
da SocialDemocracia Brasileira. Foi eleito porque, como ministro da
Fazenda nogoverno intermedirio de Itamar Franco,logrou controlar a
alta inflaobrasileira com um plano de estabilizao que neutralizava
com compe-tncia a inrcia inflacionria.Entretanto,seu governo foi
antes e centro-direita que de esquerda.Foi de centro-esquerda na
rea social,na medidaem que aumentou a carga tributria e gastou mais
e com mais competn-cia em educao, sade, reforma agrria e assistncia
social. Mas seugoverno acabou concentrando renda. Adotou uma
poltica cambial queaprofundou a desnacionalizao da economia
brasileira e levou a duascrises de balano de pagamentos. Adotou
igualmente uma polticamonetria de elevadas taxas de juros do Banco
Central (BC),a qual bene-ficiou os rentistas, ou seja, os que vivem
de juros, e o sistema financeiroque recebe comisso dos
rentistas.
Mais surpreendente o governo de direita que vem fazendo o
presi-dente Luiz Incio Lula da Silva. Como o PT se declarava um
partido cla-ramente mais esquerda do que o PSDB,os mercados
financeiros nacio-nais e internacionais pressupunham que sua eleio
representasse umaclara guinada do Brasil para a esquerda. A segunda
crise de balano depagamentos do governo Cardoso, em 2002, deveu-se
em parte a essadesconfiana. Entretanto, o que se viu foi um governo
que, embora con-servasse suas alianas com o sindicalismo e
movimentos sociais como oMovimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST), revelou-selogo claramente de direita.Isso ficou
bastante claro em relao polticamonetria:o nvel da taxa de juros
bsica do BC,que j era a mais alta domundo, aumentou ainda mais para
satisfazer os rentistas. A taxa dejuros real em 2005 foi em mdia de
12%, quando o risco Brasil no jus-tificava mais que 3%.De um gasto
com juros pelo setor pblico estimadoem 160 bilhes de reais em
2005,correspondendo a 8% do PIB,apenas40 bilhes de reais so
justificveis: o restante mera transferncia aos
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-
[18] A imprensa tem feito ampla co-bertura desse escndalo.
Talvez a me-lhor reportagem at agora tenha sidofeita por Norman
Gall (Lula e Mefis-tfoles. Braudel Papers, no 38, 2005,pp. 1-14). O
governo Lula e o PT reco-nheceram as irregularidades,mas ten-taram
identific-las com caixa dois emcampanhas eleitorais, ou seja,
comdoaes de dinheiro no declaradas aofisco e aos tribunais
eleitorais. Dessaforma, o PT estaria fazendo algo usualno processo
de financiamento de cam-panhas eleitorais. Ao longo
desseescndalo,porm,foi ficando claro queo processo envolvia corrupo
strictosensu, seja pela compra de votos dedeputados de outros
partidos, sejapelo fato de os recursos provirem deempresas estatais
cujos contratos depublicidade eram sobrefaturados oude fornecedores
do Estado, que com-pensavam as doaes com sobrefatu-ramento dos
servios.Alm disso,nose tratava de simples financiamento decampanhas
eleitorais, j que o sistemapassou a fazer parte do governo
fede-ral, como antes fizera parte dos gover-nos municipais em que o
PT elegera oprefeito.
[19] Carvalho, Fernando J. Cardim.FHC, Lula e a desconstruo
daesquerda. Rio de Janeiro: Institutode Economia da UFRJ, 2005,
cpia,pp. 10 e 15.
credores do Estado brasileiro, que se tornou refm com a desculpa
deque essa taxa necessria para combater a
inflao.Temos,assim,chan-celada por um governo de esquerda, uma
brutal transferncia de rendados pobres e da classe mdia, que pagam
impostos (principalmenteindiretos, no Brasil) para os ricos, que
recebem juros e, no mercadofinanceiro,comisses.Alm disso,a poltica
social do governo no reve-lou inovaes.O nico gasto social que
aumentou foi o assistencialista,com a substituio do Bolsa Escola,
que exigia dos pais pobres que osfilhos estivessem na escola, para
o Bolsa Famlia. Ou seja, em vez denfase em polticas universalistas,
que so de esquerda, adotou umapoltica conservadora de focalizao. E
afinal, no terceiro anodo man-dato, tornou-se pblico que esse
governo e o prprio PT, que duranteanos insistira em seus padres
ticos,se envolvera em um processo semprecedentes de corrupo
poltica,conhecido com o nome de escndalodo mensalo.O PT pagava com
dinheiro o apoio que recebia de deputa-dos de outros partidos,
financiando-se com recursos oriundos eviden-temente de empresas
beneficiadas pelo governo18.Em sntese,conformeobservou Fernando
Cardim de Carvalho em trabalho recente sobre aesquerda e a poltica
econmica no Brasil, o primeiro governo FHC foiquase a anttese do
que seria esperado da passagem pelo poder de umpartido
autodenominado socialdemocrata 19.Porm poucos discorda-riam da
afirmao que o governo Lula no perseguiu nenhuma das prio-ridades
que caracterizam qualquer governo de esquerda no sculo XX.Em outras
palavras, foram governos eleitos pela esquerda, mas noforam
governos de esquerda.
GOVERNAR O CAPITALISMO
No tivemos,portanto,governos de esquerda no Brasil desde a
tran-sio democrtica de 1985,no obstante a maioria do eleitorado
votasseem candidatos de esquerda. Antes de tentar explicar esse
fato, porm,uma pergunta preliminar essencial:pode a esquerda
governar o capita-lismo? possvel pensar em governos de esquerda
governando um sis-tema econmico que em essncia continua
capitalista, ou seja, coorde-nado pelo mercado, e voltado para o
lucro privado?
A resposta positiva, se examinarmos a experincia de um sem-nmero
de governos de partidos ou coalizes de centro-esquerda naEuropa
desde a Segunda Guerra Mundial. Partidos que agem nos ter-mos da
definio de esquerda apresentada nas primeiras sees destetrabalho tm
se revelado muitas vezes capazes de governar o capitalismode forma
mais competente que os capitalistas. So de esquerda porquebuscam
reformar esse capitalismo, porque procuram distribuir melhora renda
e caminhar na direo de maior igualdade de oportunidades,porque
defendem maior liberdade individual nos quadros de uma socie-dade
mais solidria. So sempre partidos de centro-esquerda. Noexiste a
hiptese de um partido de extrema esquerda governar um pas
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Bresser-Pereira
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-
[20] Przeworski, Adam. Capitalismand social democracy.
Cambridge:Cambridge University Press, 1985.
[21] As pesquisas de Lijphart (Lij-phart, Arend. Patterns of
democracy.New Haven: Yale University Press,1999) e de
Esping-Andersen (Esping-Andersen, Gosta. The three worlds ofwelfare
capitalism.Princeton,NJ:Prin-ceton University Press, 1990)
sobremodelos de democracia e de capita-lismo so significativas
nesse ponto.
capitalista.No conheo sequer uma experincia de tentativa desse
tipo.O governo Allende, por exemplo, assim como muitos outros
governosde esquerda derrubados por foras de direita nacionais e
externas, noera um governo de extrema esquerda. Foi apenas um
governo deesquerda que, no sabendo governar o capitalismo melhor
que os capi-talistas, cometeu erros que facilitaram a reao da
direita e do imperia-lismo, e por fim o golpe sangrento.
Para governar o capitalismo melhor e com mais justia que
umacoalizo de direita, uma coalizo de esquerda precisa reconhecer a
leibsica do capitalismo: a taxa de lucro dos empresrios e dos
capitalis-tas ativos deve ser mantida em nvel satisfatrio para que
eles conti-nuem a investir. Conforme observou Przeworski, os
empresrios tmo poder de veto sobre o sistema.20 Se deixam de
investir, o cresci-mento econmico estanca e o pas entra em crise.
Por isso, essencialalgum tipo de associao com os empresrios
produtivos.J os capita-listas rentistas, que no passado viviam de
aluguis e hoje vivem prin-cipalmente de juros pagos pelo governo,
no podem ser aliados de umgoverno de esquerda. Tambm no pode ser
aliada de uma coalizo deesquerda uma parte dos empresrios
produtivos que se recusam afazer compromissos com os trabalhadores
e as classes mdias profis-sionais. Da mesma forma, no pode fazer
parte do sistema de apoio auma coalizo de esquerda o grupo de
profissionais que, sabendo ser ocapitalismo hoje o capitalismo do
conhecimento ou dos tcnicos,aproveita-se desse fato para obter
ganhos extraordinrios apoiadosem seu conhecimento tcnico. No pode
porque um governo s serde esquerda se,alm de ser formado por
polticos que se definem comode esquerda, lograr, ainda que
marginalmente, desconcentrar a rendae a riqueza; transformar em
realidade mais concreta a igualdade dedireitos entre pobres e
ricos, entre mulheres e homens, entre as diver-sas raas; avanar na
implantao de maior igualdade de oportunida-des de renda, poder e
prestgio social; dar democracia um cartermais representativo e mais
participativo. No ser possvel ou realistaesperar grandes ganhos
nessa matria, mas a experincia mostra quepases governados mais
longamente por coalizes de esquerda, assimcomo pases nos quais o
centro esteja mais esquerda, alcanamnveis mais elevados de
democracia e de justia social. No por outrarazo que o modelo
capitalista existente nos pases escandinavos superior em termos de
justia e democracia, comparado aos pases domodelo renano, o qual,
por sua vez, superior ao nvel de justia sociale de democracia
existente nos Estados Unidos. No fcil comprovaruma afirmao geral
como essa, porm no difcil chegar a essa con-cluso quando se
comparam, entre outros indicadores, os ndices deviolncia e
distribuio de renda, assim como as formas de financia-mento de
campanhas polticas21.
Sob essa perspectiva, merece citao especial a experincia
recentede oito anos de governo trabalhista na Gr-Bretanha.Esse
governo teve
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-
[22] Terceira via foi uma expressoutilizada durante muito tempo,
emespecial por autores catlicos, parasugerir que haveria uma
terceira pos-sibilidade em relao ao conflitoentre capitalismo e
socialismo. A ter-ceira via britnica no tinha essa pre-tenso,
pretendia ser apenas umaforma de manifestao da socialde-mocracia
ou, mais precisamente, dosocial-liberalismo: a socialdemocra-cia,
que, embora garantindo os direi-tos sociais, usa mais os
mecanismosde mercado, inclusive no oferecimen-to de servios sociais
e cientficos,tornando assim mais eficiente o apa-relho do
Estado.
[23] Giddens, Anthony. Beyond leftand right. Cambridge: Polity
Press,1994;The third way and its critics. Cam-bridge:Polity
Press,2000;e Giddens,Anthony (org). The global third waydebate.
Cambridge:Polity Press,2001.
[24] Thomas Friedman (The lexus andthe olive tree.2 ed.Nova
York:RandomHouse, 2000) no tem dvida emusar a expresso
straight-jacket paraargumentar que s existe uma formapossvel de
capitalismo eficiente: aamericana.
[25] Frana, Alemanha e Itlia apre-sentaram desempenho pior por
moti-vos diversos. A meu ver, no foi porterem deixado de reduzir a
proteoao trabalho, como insiste a direita,mas por no terem feito a
reforma dagesto pblica ou reforma gerencialdo Estado,no qual a
Gr-Bretanha foipioneira.
[26] Pearce, Nick e Dickson, Mike.New model welfare.Prospect,no
10,maio 2005, pp. 20-21.
incio com uma proposta de terceira via22 nome inadequado paraum
conjunto de idias concretas sobre como um governo de
esquerdamoderna pode governar o capitalismo de forma mais
competente queos capitalistas. Embora essas idias estivessem
apoiadas em um soci-logo de esquerda de alto prestgio como Anthony
Giddens, foramamplamente criticadas pelas esquerdas de outros pases
e mesmo daGr-Bretanha23. Na Europa continental, sobretudo,
duvidou-se de quefossem de fato idias de esquerda, ignorando que na
Gr-Bretanha ocentro est mais direita que no modelo renano da Frana
e da Alema-nha. Entretanto, a prova de qualquer coisa s pode ser
emprica. Cabe,portanto, perguntar o que aconteceu naquele pas
depois de oito anosde governo trabalhista. Nesse perodo, que
terminou com nova reelei-o, os trabalhistas, apesar do apoio
inconsiderado trgica invasoamericana do Iraque, foram bem-sucedidos
em realizar um governo deesquerda.Em tempo de globalismo,no qual
seus idelogos no se can-sam em afirmar que todos os pases esto
submetidos a uma camisa deforas, no tendo alternativa seno seguir o
modelo neoliberal ameri-cano24, os trabalhistas britnicos fizeram o
caminho inverso: estabele-ceram o salrio mnimo, tornaram os
impostos mais progressivos eaumentaram em cinco pontos percentuais
o gasto em educao esade, enquanto apresentavam excelente desempenho
econmico25.Com isso, melhorou a distribuio de renda. E o
capitalismo britnico,desde Thatcher identificado com o sistema
americano, se aproximoudo modelo renano ao invs de afastar-se dele,
como prediz a tese docaminho nico26.
POVO E SOCIEDADE CIVIL
O governo de esquerda em pases capitalistas , portanto, vivel.
Asexperincias europias no deixam dvida a esse respeito. Por
qu,ento,no Brasil no tem sido vivel,ainda que os eleitores elejam
candi-datos de esquerda ou,pelo menos,com discurso de esquerda? A
respostamais geral a essa questo est no fato de que como nos demais
pases emdesenvolvimento,h aqui grande descompasso entre o povo e a
socie-dade civil, e nesta ltima que sempre est o verdadeiro poder
polticonas democracias.Coloquei as duas expresses entre
aspas,porque estouusando-as em sentido muito preciso: povo, aqui, o
conjunto de cida-dos iguais perante a lei,dotados do direito de
voto;sociedade civil essepovo no qual, porm, o poder de cada cidado
ponderado pelodinheiro, pelo conhecimento e pela capacidade de
organizao. Noestou, portanto, confundindo sociedade civil, conceito
clssico, comorganizaes da sociedade civil, principalmente
organizaes pbli-cas no estatais de advocacia polticas as chamadas
organizaes nogovernamentais stricto senso ,base da lenta transio
das atuais demo-cracias de opinio pblica para as democracias
participativas.Enquantoo conceito de organizaes da sociedade civil
permite o desenvolvi-
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Bresser-Pereira
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[27] Esse conceito de sociedade civil,porm, foi muito til para a
anliseque fiz, na segunda metade dos anos1970, da transio
democrtica queento comeava.
[28] Ver excelente resenha do debatesobre as organizaes da
sociedadecivil que surgiram como alternativaemancipadora nos anos
1990: Lava-lle,Adrin Gurza.Sem pena nem gl-ria: o debate sobre a
sociedade civilnos anos 1990.Novos Estudos,n-o 66,pp.91-109, julho
2003.
mento de uma teoria de emancipao social por meio da emergncia
dademocracia participativa ou da democracia deliberativa, o
conceito desociedade civil no tem carter normativo27. Sugere apenas
que a socie-dade politicamente organizada ou seja,a sociedade civil
tende a sermais conservadora. E talvez menos democrtica que o povo,
porqueaqueles indivduos que possuem mais capital, mais conhecimento
tc-nico, organizacional e comunicativo e esto inseridos em
organiza-es, sejam elas corporativas ou pblicas no-estatais tero
indivi-dualmente mais poder que os cidados comuns.
Quanto mais avanada uma democracia, mais democratizada
suasociedade civil; por isso mesmo, menor ser a diferena entre ela
e opovo28. Enquanto, em uma sociedade civil autoritria, ela prpria
nose distingue com clareza do conceito de elites, a distino clara
nocaso de sociedades civis democrticas. Entende-se aqui por
sociedadecivil mais democrtica exatamente aquela na qual menor a
diferenade poder de seus participantes em relao ao poder de cada
cidado nopovo. Ora, isso acontecer na medida em que, em cada
sociedade,aumentar o grau de igualdade de renda, conhecimento,
capacidade deorganizao e, portanto, de poder poltico real. Ou seja,
quandoaumentar o grau de justia social existente nessa sociedade.
Dessaforma, embora liberdade, garantida pela democracia, e justia,
trazidapelo crescente respeito aos direitos sociais, sejam
objetivos polticosindependentes, a teoria poltica indica que afinal
eles so tambminterdependentes quando pensamos em termos de graus de
liberdadee em graus de justia. Em sociedades como a sueca, ou a
sua, nasquais as desigualdades so relativamente pequenas,a
sociedade civil fortemente democrtica, diferenciando-se pouco do
povo. Assim,nessas sociedades, uma vez eleito pelo povo, um governo
de esquerda que afinal reflete o poder da sociedade civil far uma
administra-o de esquerda.
Enquanto isso, em sociedades menos democrticas e menos
justas,como as latino-americanas, o descompasso entre povo e
sociedade civil enorme. O povo no tende necessariamente a ser mais
democrticoque a sociedade civil,como bem mostram as pesquisas sobre
o tema rea-lizadas por entidades como o Latinobarmetro,mas tende a
ser mais deesquerda, na medida em que demanda do Estado polticas
ativas maisdistributivas. Dado esse descompasso, uma vez eleito um
governo deesquerda, a tendncia dos novos governantes para alcanar
le-gitimidade poltica na sociedade civil ser identificar-se
rapidamentecom as percepes e os valores centrais dessa
sociedade,que a fonte realde legitimidade. A fonte da legalidade
poltica, nas democracias, sem-pre o povo,porm a da legitimidade
dada antes pelo apoio da sociedadecivil.Observe-se que essa
afirmao,como quase todas as demais que fizneste texto, obedece a um
critrio antes histrico que normativo. Doponto de vista normativo,
seria melhor que legitimidade e legalidade seconfundissem,mas nesse
caso bastaria apenas um conceito.Por isso,e a
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partir de Weber, uso o conceito de legitimidade para indicar o
fato de queum governo conta com o apoio da sociedade civil,
enquanto emprego oconceito de legalidade para dizer que foi eleito
regularmente pelo povo.Oprimeiro um conceito real sociolgico e
histrico ,o segundo umconceito formal jurdico,no sentido estrito
dessa palavra.No governorecm-eleito,h tendncia de a legalidade e a
legitimidade poltica coin-cidirem, mesmo que o governo eleito seja
de esquerda e no tenha con-tado com o apoio da sociedade civil na
eleio.Isso porque,eleito o novogoverno, a sociedade civil tender a
dar um voto de confiana aos novosgovernantes.Entretanto,a sociedade
civil,e sobretudo seus componen-tes mais direita, esperam que o
novo governo, ainda que conservandouma retrica de esquerda, revele
rapidamente seu respeito pela proprie-dade e pelos contratos pela
ordem estabelecida,portanto ,e que noadote polticas redistributivas
fortes. Caso contrrio, o governo correro risco de perder seu
apoio.
Foi o que aconteceu no Brasil,logo aps a eleio de Luiz Incio
Lulada Silva no final de 2002.O governo contou com essa boa vontade
ini-cial das elites,e para conserv-la tratou de conformar-se quase
integral-mente a essa vontade. No plano da poltica econmica, em
especial, noqual os interesses da direita rentista e financeira
eram muito grandes,aconformidade foi total e permanente. Com isso,
o governo deixou deser de esquerda. Atendeu a interesses da classe
mdia profissional maioria dos integrantes do PT realizando uma
ocupao de cargospblicos antes reservados burocracia profissional do
Estado. Esseaparelhamento do Estado, porm, no uma poltica de
esquerda, esim apenas uma forma de corporativismo ou clientelismo.
Contudo,com a estratgia de conformidade, nos primeiros dois anos o
governologrou no apenas acalmar os mercados financeiros, que
estavam emcrise no momento da eleio,mas manter durante esse perodo
o apoioda sociedade civil. Perdeu-o apenas no terceiro ano, em funo
dasdenncias de corrupo ento surgirdas.Foi s a partir desse
momentoque o governo Lula perdeu legitimidade, embora conservasse a
legali-dade, e por isso paralisou-se.
O descompasso entre uma sociedade civil mais conservadora e
umpovo que no obstante o autoritarismo de que vtima vota
emcandidatos de esquerda, explica, portanto, por que no Brasil a
es-querda tende a ganhar as eleies mas afinal no governa. O
sistemade incentivos existente em uma sociedade como essa leva
infideli-dade dos polticos a seus comprometimentos. H outras razes
queexplicam por que a esquerda tem dificuldade de governar em um
pascomo o Brasil. J me referi ao caso da extrema esquerda, cuja
incapaci-dade de governar o capitalismo auto-explicativa. Em todos
os pasestemos tambm uma esquerda utpica, cuja opo por no ser
governo explcita, prefere, ao contrrio, conservar o papel de crtica
dogoverno. Em um caso como esse, porm, a pergunta central deste
tra-balho no se aplica.
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Bresser-Pereira
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REPUBLICANISMO E CORPORATIVISMO
Ficando, porm, apenas com os partidos polticos de esquerda
quequerem governar na democracia,a pergunta seguinte ao que foi
expostoat aqui saber se, dado o descompasso existente no Brasil
entre povo esociedade civil, inevitvel que os partidos ou coalizes
de esquerda,uma vez eleitos,no faam governos de esquerda.No
creio.Certamenteos partidos de esquerda vitoriosos tero que fazer
compromissos afi-nal, a poltica a arte do compromisso. Certamente
no realizaro tudoo que seu programa prev,ou mesmo o que foi
prometido nas eleies isso sempre acontece nas democracias,com
partidos de qualquer orien-tao. Mas eu acredito que, em um pas
capitalista de desenvolvimentomdio como Brasil, possvel haver
governos de esquerda.
O que preciso para isso? A meu ver, duas coisas: esprito
republi-cano e habilidade poltica. essencial ou esprito ou a
virtude republi-cana. No vou discutir aqui se vivel ou no. No
contexto desse tra-balho,suponho que sim,com base na referida
existncia de dois (e noum s) instintos humanos bsicos: o da
sobrevivncia e o da convi-vncia. Considerando essa possibilidade
como pressuposta, entendopor republicano o poltico ou o partido
poltico que, em algunsmomentos, arrisca perder o apoio de seus
eleitores para agir de acordocom suas convices do que seja o
interesse pblico. Seus apoiadorespolticos querem algo contrrio ao
que o poltico julga ser o interessenacional. No importam as razes
de uns ou do outro. O importante haver divergncia. Se o poltico tem
a coragem necessria para arriscarsua reeleio, agindo de acordo com
suas convices, ser republi-cano, e seu republicanismo poder ser uma
sada para o paradoxo daesquerda no Brasil.
No basta, porm, esprito republicano. preciso tambm compe-tncia
poltica.A poltica uma arte na qual no valem apenas princpiosticos e
boas intenes. Vale tambm a habilidade de fazer compromis-sos e
argumentar para alcanar maioria. Porque, afinal, a poltica no outra
coisa seno a arte do compromisso e da argumentao. o exerc-cio da
prudncia,na perspectiva de Aristteles; a busca do bem comum,na
perspectiva tomista e lockiana; a virt do governante na busca
dosobjetivos republicanos, na viso de Maquiavel; o exerccio da tica
daresponsabilidade, na forma de ver a poltica de Max Weber. No ,
por-tanto, tarefa fcil. No entanto, essas qualidades e
responsabilidades dapoltica,que a fazem a mais nobre das
profisses,no esto limitadas aospolticos de esquerda.Com freqncia
tambm so observadas em pol-ticos conservadores, os quais, porm, no
enfrentam as contradiesenfrentadas por polticos de esquerda.Por
isso,para estes a tarefa maisdifcil, por isso seu esprito
republicano tem que ser mais forte, por issosua habilidade poltica
mais necessria.
Quando vemos a esquerda no Brasil curvar-se a uma sociedade
civilque principalmente de direita e que se apia em um sistema
internacio-
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[29] AbSber, Tales. Declaraes emdebate sobre o PT promovido
pelaFolha de S.Paulo em 13/10/05.Resumopublicado na edio de
18/10/05.
[30] Nobre, Marcos. Declaraes emdebate sobre o PT promovido
pelaFolha de S.Paulo em 23/10/05.Resumopublicado na edio de
18/10/05.
[31] Sader, Emir. PT, direita e es-querda. Folha de S.Paulo,
13/10/05,p. 3.
[32] Santos, Fabiano. Declaraesem debate sobre o PT promovido
pelaFolha de S.Paulo. Resumo publicadona edio de 18/10/05.
nal cujos interesses so contrrios aos do pas, s podemos explicar
ofato pela fora dessas elites conservadoras. preciso, entretanto,
nolimitar a anlise e reconhecer que h tambm falta gritante de
espritorepublicano e de competncia poltica.Ambos faltaram ao PSDB,e
falta-ram em maior grau ao PT. Segundo palavras de Tales AbSber, em
umdebate pblico, no caso do PT houve descolamento da poltica
doespao social ainda mais radical do que j ; a poltica se
autonomiza, setransforma em um grande balco de negcios29.Esse
descolamento oudescompasso, nesse caso, se aprofundou porque o PT,
embora tivesseexpectativa de ocupao a longo prazo do poder poltico
(como o PSDBtivera antes), no foi capaz de fazer a crtica do
corporativismo que estem suas origens sindicais. Um lder sindical
legitimamente corporati-vista:seu papel defender os interesses dos
associados,do grupo econ-mico que representa. Um poltico, porm, no
pode ser corporativista.De acordo com a tica da poltica que hoje
prevalece nas sociedadesdemocrticas, ele deve, em princpio, ser
republicano, distinguindo osinteresses prprios, e tambm os
interesses daqueles que representadiretamente, dos interesses
nacionais. O PT, como partido de origemsindical, nunca foi capaz de
fazer essa distino, e tambm por essemotivo no foi capaz de
enfrentar o poder das elites no seio da sociedadecivil brasileira.
Nas palavras de Marcos Nobre, presente no mesmodebate citado acima,
o PT geriu o governo como se fosse um partido, egeriu um partido
como se fosse um sindicato. Alm disso, salientouNobre, faltou ao
governo do PT capacidade para oferecer ao pas umaalternativa de
poltica no apenas econmica,mas tambm social:a criseacontece porque
no se consegue de fato mobilizar um discurso pol-tico e estabelecer
um modelo poltico para o Brasil30.Ao fazer essas afir-maes, ele
volta ao problema do descompasso entre o povo e a socie-dade civil
brasileira.
Apesar da gravidade da crise por que vem passando o PT e o
governoLula, que por certo desgastou-o profundamente, tem razo
Saderquando critica a tentativa de desqualificar o arcabouo
histrico daesquerda, responsvel pelos melhores momentos da histria
da huma-nidade, em nome de comportamentos que significaram o
abandonodesses valores e a adoo de mtodos e polticas de direita31.
FabianoSantos, no mesmo debate, defendeu a tese de que, apesar da
crise, o PTcontinua a ser o representante da socialdemocracia no
Brasil32. Tenhofeito muitas vezes afirmao semelhante.Embora no seja
impossvel,ahiptese de o PSDB preencher esse papel continua remota,
dados osapoios com que o partido conta. Como continua incerta a
possibilidadede o PSDB dar um passo adiante e tornar-se um partido
social-liberal.Apossibilidade de surgir um novo partido de esquerda
mais capaz degovernar tampouco parece provvel. O efeito maior da
crise poltica foienfraquecer o PT, mas no o levou ao esfacelamento.
Os resultados daseleies presidenciais de 2006 so agora
incertos,porm provvel queo Parlamento tenha novamente uma maioria
de esquerda. Em qualquer
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Bresser-Pereira
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hiptese, nada sugere que a curto prazo o paradoxo da esquerda no
Bra-sil encontre soluo: o povo continuar votando na esquerda, mas
elano governar.
Luiz Carlos Bresser-Pereira professor da Fundao Getlio Vargas de
So Paulo.
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Recebido para publicao em 15 de janeiro de 2006.
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