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Debaixo da obedincia das trs pessoas da Santssima Trindade eu
peo
licena para comunicar-me com os espritos dos sete Caboclos e das
sete
Caboclas, curadores e curadoras. almas benditas dos caboclos e
das cabo-
clas, vs fstes como eu e eu serei como vs. (Orao dos Sete
Caboclos
apud Cmara Cascudo 1951).
Na hora da possesso, mas tambm nas discusses informais
entreintegrantes dos cultos de possesso brasileiros urbanos, no
rara areferncia a um personagem familiar: o caboclo. Durante as
chama-das sesses de terreiro, cada mdium representando um caboclo
dife-rente escuta os pedidos dos consulentes relativos sade
deficiente,situao familiar instvel ou emprego precrio. Em retorno,
todos rece-bem conselhos de firmeza e perseverana, s vezes
formulados emtom irnico, outras vezes enunciados com compaixo.
Aqueles que,segundo um possudo, no comparecem com assiduidade ao
terreiro,podem ser alvo de uma apstrofe nem sempre agradvel, assim
comotambm poderiam s-lo os novos clientes que, estranhando por
noreconhecerem naquele mdium o caboclo que costumam consul-tar,
viessem a compartilhar esses pensamentos com os demais
pre-sentes.
De qualquer forma, a crtica s poderia ser velada. Um mdium
ela-bora, como faria um ator no palco, a sua prpria interpretao do
papeldo caboclo, interpretao que no se confunde com nenhuma outra.
Maspara convencer o pblico da presena do ser invisvel, a composio
deveincluir traos diferentes dos da prpria personalidade do
filho-de-santoquando consciente. A dimenso de criatividade pessoal,
associandoestreitamente o ser humano e o esprito1 aos olhos dos
conhecidos, per-mite instituir o caboclo na posio de companheiro do
mdium, o qualpassa ento a dirigir sua vida como se esse outro
mandasse nele. A efic-
O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE*
Vronique Boyer
MANA 5(1):29-56, 1999
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cia do caboclo, prova da competncia do mdium, assim funo de
umaidentidade afirmada na diferena.
Durante a primeira parte deste sculo, a elaborao cultural do
cabo-clo enquanto categoria do mundo invisvel parece ter-se apoiado
em umadinmica anloga, incluindo-o simultaneamente nos registros da
intimi-dade e da estranheza. Gostaria aqui de examinar o surgimento
dessecaboclo invisvel, levantando a hiptese de que este se deu
mediante umtrabalho simblico rduo sobre a multiplicidade de
sentidos da palavracaboclo (dentre os quais alguns so hoje
obsoletos).
O caso de Belm, onde fiz pesquisa de campo,
particularmenteinteressante, pois l os espritos caboclos fundem
diversas categorias deentidades que permanecem separadas em outras
regies. Nesta cidade,os pretos-velhos, as crianas e, de maneira
mais complexa, os exus2
encarnam, cada um a seu modo, aspectos diferentes dos caboclos:
quan-do jovem, adulto, idoso..., abrindo o leque de personagens
singulares dosquais um mdium pode apoderar-se para conquistar fama
e prestgio. Ocaboclo assim a figura central dos cultos de possesso
da regio.
Para entender a importncia da extenso do termo caboclo a
qual-quer ser invisvel3, deve-se considerar o contexto amaznico em
que sesitua a capital paraense. Em uma regio que concentra a mais
alta por-centagem de populaes indgenas, mas sobretudo onde os
vestgios deprticas e crenas autctones se encontram ainda vivos no
meio rural, apalavra caboclo associada, mais do que em outro lugar
qualquer, areferncias culturais intimamente ligadas histria das
suas origens.Abandonando o sentido de ndio ou de mestio de ndio e
branco, cabo-clo, para a populao atual da cidade, designa
geralmente o habitantedo meio rural qualquer que seja a sua origem,
muitas vezes apresentan-do-o como crdulo e idiota. De fato, o uso
do termo tem uma forte carganegativa. Denota a pouca considerao que
se tem para com aquele quese qualifica dessa forma, quando no torna
explcito o desejo de ofend-lo. A definio do caboclo enquanto ser
invisvel vem, ento, na socieda-de amaznica, junto com outra: o
caboclo como interiorano.
A pergunta , portanto, a seguinte: qual a relao existente entre
orepresentante do interior, visto como grosseiro e atrasado, e o
persona-gem poderoso e sbio que os mdiuns incorporam? Como veio a
consti-tuir-se o caboclo invisvel a partir desses traos de
comportamento atri-budos ao interiorano e o que subsiste nele da
idia do caboclo-homem?Uma resposta radicalmente negativa tentadora,
mas seria a meu vererrnea por duas razes. A primeira remete ao
plano simblico. A cons-truo do personagem do caboclo pelos mdiuns
integra quase sempre
O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE30
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gestos e comportamentos associados pelas classes mdias falta de
edu-cao do povo: os caboclos xingam e bebem demais, todos
recusam-sea ler e a aprender a contar as horas, alguns se
vangloriam das travessu-ras que fizeram, enquanto outros, por
princpio e para o prazer do pbli-co, estranham as coisas ligadas
modernidade. A potncia de que dis-poria a entidade vai junto aqui
com uma rudeza e uma ignorncia queparecem ser herdadas, entre
outros, do esteretipo do homem caboclo. Amarginalidade do
caboclo-ser humano de certa maneira reconduzidanessa vulgaridade
que parte integrante da composio do espritopelos mdiuns.
O segundo argumento sociolgico. Boa parte da populao urbana, sem
dvida nenhuma, originria do interior, e outra parte ainda
temparentes l. Nessa medida, a condio atual de citadino pode ser
enun-ciada em relao ao deslocamento do meio rural. Certas pessoas
afirmamque foram caboclos antes da chegada e adaptao ao meio
urbano,enquanto outras mencionam que membros da sua famlia ainda o
so. Arelao com o interior, onde vivem por definio os caboclos,
tanto maisintensa quanto o fluxo das migraes, atravs dos laos
familiares, lhe dconsistncia e a reativa com regularidade: o
caboclo, diferente do habi-tante da cidade, no chega a ser
radicalmente estranho.
As primeiras menes dos cultos de caboclos
As primeiras menes dos cultos de caboclos datam do incio do
sculo.Para Salvador, no livro do mdico Nina Rodrigues (1862-1906),
Os Afri-canos no Brasil, consta a expresso candombl de caboclo
(1977:221),sem que infelizmente essa modalidade de culto seja
descrita com maisdetalhes.
Quase na mesma poca, ainda nessa cidade, Manuel Querino
(1851-1923), com o objetivo de estabelecer uma lista das
contribuies do afri-cano cultura brasileira, publica em 1919 um
pequeno artigo sobre oCandombl de Caboclo. O autor nota, neste
culto bastante arraigadoentre as classes inferiores desta capital
(1955:117), a designao deJesus Cristo como nome de caboclo bom. Alm
disso, faz uma descri-o muito interessante do comportamento dos
mdiuns possudos peloscaboclos, chamados tambm santos, que lembra as
possesses atuais:Quem est com o santo corteja as pessoas presentes
segurando-lhes asmos, d dois saltos perpendiculares, abraa-as de um
lado e do outro,faz-lhes algumas determinaes, d-lhes conselhos e
retira-se (Querino
O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE 31
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1955:118). De fato, o carter de sociabilidade em torno da
possesso, aoqual o autor do texto foi sensvel, persiste ainda hoje
nas sesses dos ter-reiros.
Por sua parte, em um livro editado pela primeira vez em 1934,
ArthurRamos transcreve um trecho de um jornal de Salvador, O Dirio
da Bahia,de 1929, ironizando sobre os mdiuns possudos por esprito
de cabocloendiabrado (1951:123), antes de insistir sobre a novidade
desses cultos:H uma modalidade de sincretismo religioso que s agora
vem toman-do grande incremento, o que prova que a sua apario
relativamenterecente. o chamado candombl de caboclo, na Bahia, ou
linha decaboclo, no Rio de Janeiro (1951:138).
Enfim, Edison Carneiro ser um dos poucos pesquisadores a
forne-cer uma descrio detalhada desses cultos, apontando para as
principaisdiferenas entre o candombl dito tradicional e o candombl
de cabo-clo. Segundo ele (1961:101-104), no candombl de caboclo,
alm daintroduo desses novos personagens ao lado dos orixs, o tempo
da ini-ciao foi drasticamente reduzido, os tambores so batidos com
a palmada mo, os filhos-de-santo so possudos por vrios encantados4
e nose recolhem para mudar de roupa quando incorporados. diferena
docandombl tradicional, a representao dos personagens
invisveisaceitaria comportamentos associados natureza humana, pois
os encan-tados falam, bebem, fumam e apresentam-se ao pblico com a
ajuda deum canto. Alis, o transe, segundo o autor, no se restringe
aos iniciados,atingindo qualquer pessoa da assistncia. Por fim,
procurando enfatizar oestilo diferente da dana nos candombls de
caboclos em relao coreo-grafia nos terreiros tradicionais, Carneiro
levado a descrever a pri-meira como animada, vivaz e decorativa,
permitindo muito de iniciativapessoal, e a segunda como pesada,
desgraciosa e montona (1961:101)5.
No entanto, essas diferenas, que se organizam em torno da
simpli-ficao do aparelho ritual e iniciatrio, no constituem
critrios absolutosque permitam uma classificao rgida dos terreiros.
Com efeito, o autorpde ver cantar e danar para os encantados
caboclos nos candomblsdo Engenho Velho e do Gantois, duas casas
onde a tradio kto [yoru-b, isto , africana] exerce uma verdadeira
tirania (Carneiro 1961:62). Ainovao, assim, parece ter ocorrido
tambm nos mais antigos terreirosde Salvador.
Para Recife, que eu saiba, s temos como fonte de conhecimento
otrabalho de Ren Ribeiro, publicado pela primeira vez em 1952. O
autor,observando que nos centros mais ortodoxos os fiis acreditam
na coexis-
O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE32
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tncia dos orixs e dos espritos de caboclos, comprova a assero de
Car-neiro para Salvador. Ribeiro acrescenta que os membros dos
terreiros nos crem que os caboclos so mais suscetveis s manipulaes
mgicasque os deuses africanos, como atribuem algumas das suas
complica-es de vida [...], doenas e outros infortnios, no punio dos
orixs,mas interferncia indbita desses seres menores (1978:131).
Dessaforma, escreve ele, os mdiuns pensam que partilham a sua
existnciaparte com orisha e parte com caboclo (1978:131).
As informaes so ainda mais tnues para Porto Alegre.
MelvilleHerskovits (1966:201) assegura que l no existem espritos
caboclos.Mas, como diz Carneiro, os cultos da cidade, que os
pesquisadores cha-mam de batuque, so designados pelos fiis pelo
termo par. Deve-seento notar, com Carneiro (1964:128), que par
parece [um termo de ori-gem] tupi e no africana; e que se trata
tambm do nome de um estadoamaznico da Unio.
Para o Rio de Janeiro, informaes so fornecidas por Yvonne
Mag-gie, em uma tese defendida em 1988, onde, a partir de um
levantamentocuidadoso dos autos de processos de 1890 e 1940, a
autora analisa a con-tribuio da instituio jurdica tanto constituio
do campo religiosodos cultos de possesso quanto definio das relaes
de poder entreeles. Dentre os elementos simblicos introduzidos no
sistema religioso,encontra-se o termo caboclo, muitas vezes
associado ao de protetor,para designar os seres invisveis
representados pelos mdiuns, termo quevem no Rio a ter maior
recorrncia a partir dos anos 30. Arthur Ramosdescreveu para o Rio
uma possesso por um santo protetor, velho ante-passado da Costa da
frica, que lembra bastante aquela feita por ManuelQuerino para
Salvador: Pai Joaquim aproxima-se. sua passagem,todos se curvam e
lhe pedem a bno. le vai abraando velhos conhe-cidos, como se
tivesse chegado de longa viajem. Interroga pelo estado desade de
cada um, d conselhos, resolve dificuldades (1956:129).
Paradoxalmente, pois o termo comum ao falar dos homens da
Ama-znia, no h registro algum, antes do estudo de Seth e Ruth
Leacock(1972), de espritos caboclos para os cultos de possesso da
regio Norte.Quando os estudiosos evocam seres invisveis, referem-se
unicamenteaos encantados que descem sobre os pajs (os especialistas
religiososlocais) e s vezes a esses deuses que nos vieram da frica
(Andrade,1963:29), isto , aos orixs. No entanto a ausncia de meno a
espritosprotetores caboclos na literatura amaznica no significa,
como veremos,que o caboclo no tenha ocupado um grande espao nas
preocupaeslocais.
O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE 33
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Santos, orixs, caboclos negros, caboclos ndios
A apario da figura dos caboclos leva a uma inflao de termos
paradesign-los. So chamados, escreve Carneiro (1964:129), orixs
ouvduns, vocbulos nag e jje, respectivamente, encantados,
caboclos,santos, guias ou anjos-da-guarda. Seu estatuto de
intercessor lhes vale,muitas vezes, serem estreitamente associados
aos santos catlicos. Dostestemunhos que Maggie analisou, h o
depoimento de uma senhora ido-sa, afirmando em 1929 que um
conhecido seu recebe espritos de cabo-clos e que um deles se chama
Santo Antnio, popular santo de devoo.Um processo anlogo parece ter
acontecido no que diz respeito relaoentre caboclos e orixs.
Carneiro (1961:65-67) menciona, por exemplo,que, nos anos 30, tanto
Ogum (divindade da guerra) ou Oxal (o maiordos santos, diz dele
Arthur Ramos) quanto Xang (orix da mata) ouOxssi (orix da caa) eram
qualificados de caboclos, o que provocava,segundo o autor, bastante
confuso com as divindades instaladas antesdeles nos cultos de
possesso. Ainda hoje subsistem certas ambigida-des. Assim, apesar
do uso de palavras diferentes para os santos e os ori-xs, por um
lado, e para os caboclos, por outro (os mdiuns usam geral-mente o
termo entidade para os primeiros, enquanto reservam o ter-mo
esprito aos segundos), a diviso das guas nem sempre respei-tada e s
o contexto da enunciao permite decidir sobre o sentido
daspalavras.
Porm, esse primeiro movimento, em que os caboclos parecem
puxa-dos para cima junto com os orixs e os santos, se faz
acompanhar deoutro, atravs do qual os primeiros vo progressivamente
dissociar-se dosoutros dois, para assumir uma posio mais prxima dos
seres humanos,permitindo aos filhos-de-santo que os encarnam
interpretar a relao ins-tituda como companheirismo6. O retrato do
caboclo desenhado pelosdiversos estudos mostra a especificidade
dessa figura, tanto nas atitudesque os possudos devem adotar para
ter credibilidade, quanto na posioque este ocupa no sistema
religioso. Ao contrrio dos orixs, esse perso-nagem assume
comportamentos humanos (bebe e fuma), no precisa damediao da
hierarquia sacerdotal (apresenta-se sozinho ao pblico epossui os
no-iniciados) e estabelece uma relao ntima com os sereshumanos
(corteja e d conselhos). Seres menores ou espritos, oscaboclos so
considerados como mais maleveis que os orixs e, por issomesmo,
seriam melhores protetores para os homens. Esses novos
inter-cessores, emergindo ao lado dos santos catlicos e das
potentes divinda-des africanas, no gozam de estatuto to prestigioso
e se introduzem nas
O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE34
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zonas sombrias onde os outros no penetram, no entrando portanto
emconcorrncia direta com eles.
De certa forma, os santos catlicos, na maioria brancos, e os
ori-xs, por sua vez negros, vo encontrar-se reunidos em uma nica
eampla categoria, a de caboclo, que integra, ainda, representaes
dondio e dos seus deuses. Mrio de Andrade encontrou, na cidade
deNatal, cantos dedicados chamada dos caboclos Tup, Manicor
eXaramund7. Enquanto categoria do sistema religioso, o caboclo dos
cul-tos parece ter conseguido incorporar representaes relativas a
vriosgrupos da populao.
Edison Carneiro foi o nico da sua gerao de pesquisadores a
apon-tar para esse fenmeno. Em artigo publicado pela primeira vez
em 1953,o autor mostra grande perspiccia quando sugere que, nos
cultos, a cate-goria caboclo pode ser dividida em dois subgrupos.
Encontrando um cn-tico em que a diviso parece implicitamente
aceita, Carneiro dissocia oscaboclos que tm mirongas, ou segredos,
os quais seriam uma repre-sentao do ndio de romance, dos caboclos
que tm dend, os quaisseriam negros por baixo da roupagem do ndio
convencional (1964:145). Pode-se objetar que a diviso operada tem
pouco valor heurstico,j que tanto mironga quanto dend provm de um
fundo lingsticoafricano. Mas esta crtica refora, na verdade, a
associao inelutvelentre ndios e negros na categoria caboclo.
Em texto escrito em 1960, o mesmo autor precisa o seu
pensamentono que tange aos caboclos de dend, conhecidos tambm como
caboclosde Aruanda (nome de um porto africano que se tornou nos
cultos umacidade mtica):
Os caboclos de Aruanda devem muitos dos seus nomes e das suas
virtudes
ao indianismo, contraparte, nas letras, da revoluo da
Independncia, mas
a sua concepo data de muito antes de Alencar, como parte de uma
ten-
dncia mais geral que, orientando-se para a valorizao de padres
cultu-
rais africanos, resultou em novos modos e maneiras de integrao
do negro
nacionalidade brasileira (1964:151).
Carneiro interpreta, portanto, a apario desses caboclos negros
emrelao ao processo de integrao do negro, este antigo africano que
setornou um velho cidado brasileiro (1964:115). Desta perspectiva,
apresena de caboclos negros nos cultos no traduz a simples
desintegra-o dos costumes africanos; ela revela, sobretudo, a
tentativa de atribuirao negro quando no dar a si mesmo enquanto
sujeito negro um
O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE 35
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espao no universo simblico em formao, anlogo quele que
ocupamoutros componentes da populao.
verdade que na umbanda do sul do pas, as entidades
representa-das com pele negra foram reunidas em uma outra
categoria, a de pre-tos-velhos, reservando aos espritos de ndios a
categoria de caboclo.No entanto, pode-se pensar que tal classificao
expressa antes de tudouma certa concepo da histria, em que, entre
outras coisas, o preto-velho lembra a ndoa da escravido enquanto o
caboclo encarna a con-dio de homem livre. O exemplo dos cultos de
Belm vai ao encontrodas observaes de Carneiro quando este afirma
que os mdiuns nofazem muita diferena entre os caboclos indgenas e
os caboclos negros,pois os caboclos, que recebem suas
caractersticas de fontes mltiplas,entrelaando-as at torn-las
inextricveis, formam uma totalidade queno se divide em funo de
fentipos ou de claras origens tnicas. Osmdiuns dos cultos preferem
classific-los em funo do seu pertenci-mento aos domnios da mata ou
do mar e, dentro de cada um, em funode suas afinidades com
subgrupos como boiadeiros, flecheiros,marinheiros, turcos... Alm
disso, para os filhos-de-santo, caboclonenhum ficaria preso a esse
sistema de classificao. Na hora da posses-so, qualquer mdium
competente cuja reputao o autoriza a susten-tar que sabe da vontade
do seu caboclo pode represent-lo quandoum grupo diferente do dele
est sendo chamado.
Deixando, por enquanto, a descrio do significado do caboclo
invi-svel nos cultos de possesso e dos diversos aspectos que o
personagemassume, devemos analisar a outra vertente semntica do
termo, isto , ocaboclo enquanto designao de um tipo de populao
humana.
A construo do significado de caboclo
A etimologia habitualmente aceita para caboclo aquela dada por
Lusda Cmara Cascudo no seu Dicionrio: Caboco vem [do tupi] ca,
mato,monte, selva, e boc, retirado, sado, provindo, oriundo
(1972:193). Fran-oise e Pierre Grenand (1990:27), com base nos
escritos da segunda par-te do sculo XVII, acrescentam que o termo
foi primeiramente usadopelos ndios Tupi da costa para designar os
seus inimigos morando nointerior, isto , no mato.
Aps uma definio inicialmente restrita ao ndio, selvagem oumanso,
o termo caboclo passa tambm a qualificar o mestio de ndiocom
branco. Nesse sentido, caboclo remete ao termo tapuio, cuja
defini-
O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE36
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o foi to flutuante quanto a dele no que tange aos grupos que
deviamser assim chamados, bem como no que diz respeito ao seu
suposto graude civilizao. Jos Verssimo concebia o Tapuio como o
filho legtimoda raa americana (1970:13), enquanto Armando Mendes o
considera-va como o indgena, o cabclo semi-civilizado, que vive
entre a popula-o sertaneja (s/d:90) e Alfredo A. da Mata, como o
caboclo civilisado(1939:304)8.
O processo, cada vez mais abrangente, levando incluso de
novaspopulaes nas definies de tapuio e de caboclo, aparece j na
obra doVisconde de Beaurepaire. Tapuio certamente o nome genrico
aplica-do aos selvagens bravios no Brazil, mas, escreve o autor,
conservaram[tambm] essa denominao os aborigenes j mansos. Alm
disso, o usodo termo estendeu-se generalidade dos mestios, e neste
caso corres-ponde ao termo Cabclo (1889:136). O significado atual
de caboclo,constitudo por volta de 1895 (Grenand e Grenand
1990:28), assim o dehabitante do interior, independentemente de sua
origem: hoje, escreveCmara Cascudo nos anos 50, indica o mestio e
mesmo o popular, umcaboclo da terra (1972:192).
Atravs dos sculos, o sentido do termo caboclo carregou uma
fortecarga negativa para as populaes que assim eram designadas.
CmaraCascudo lembra que, quando sinnimo oficial de ndio, foi
vocbuloinjurioso e El-Rei D. Jos de Portugal, pelo alvar de 4 de
Abril de 1755,mandava expulsar das vilas os que chamassem aos
filhos indgenas decaboclos (1972:192).
No incio do sculo XX, Vicente Chermont de Miranda mostra
aindaclara desconfiana em relao ao caboclo:
Caboclo, s.m. Tapuio ou seu mestio que j no se exprime no,
comple-
tamente esquecido, nheengatu materno: ombreia com a degenerada e
entor-
pecida raa conquistadora, cala lustrosas botinas, ostenta
rutilantes grava-
tas, dana polcas e valsas, chega a ser coronel ou doutor,
adquire maneiras
cortess, mas sob a apatia atvica muito esconso, sopita o dio de
raa. Orgu-
lhando-se de pertencer estirpe tupi despreza soberanamente o
africano e
seus mestios (1988:12-13)9.
Mas esta definio, na qual brota uma notvel averso aos
coloniza-dores portugueses, aplica-se melhor s elites do interior
empenhadasem seguir as modas das capitais longnquas e em encontrar
elementosideolgicos lhes assegurassem sua dominao do que a seus
modestosdependentes, pequenos agricultores e pescadores. A estes,
que revela-
O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE 37
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O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE38
riam de modo abrupto a natureza verdadeira dos nativos da regio,
isto, sem o verniz de civilizao apresentado pelas elites, conviria
melhor adefinio dada por Miranda (1988:86) do termo tapuio enquanto
cabo-clo rude e ignorante.
J nos dicionrios publicados a partir dos anos 30, no raro
constaruma definio de certa forma positiva de caboclo (mas no de
Tapuio).Por exemplo, Raymundo Moraes, cujo objetivo declarado era
estabelecera verdade da Amaznia, assinala que o termo affectuoso,
emprega-do com ternura. Meu Caboclo, Cabocla da gente (1931:96).
Alguns anosdepois, Alfredo A. da Mata nota um outro significado
popular da pala-vra, o caboclo como homem distinguido (1939:95).
Essa mudana detom para tratar do caboclo parece ter ocorrido tambm
no Nordeste. F. A.Pereira da Costa, por exemplo, indica, em 1937,
que se o vocbulooutora tinha uma expresso depreciativa, injuriosa
mesmo ao infeliz abo-rigene [...] constitue hoje, e vindo
naturalmente j de longe, uma dicofamiliar de affeto, intima,
carinhosa mesmo: Meu caboclo; Caboclo velho(1937:135). Acrescenta o
autor que aplicado a mulheres, trata-se de umtratamento intimo,
affectivo [...], e em tom interjectivo, [serve] comoexpresso de
admirao a de um porte elegante e de bello typo feicional:que
cabocla bonita! (1937:133; nfases no original).
Esse novo registro de expresso no significa que tenham
desapare-cido as conotaes pejorativas associadas ao termo. Em boa
parte da lite-ratura, caboclo permanece uma palavra injuriosa e
negativamente defi-nida. Alm do que, na realidade das relaes
sociais, o forte estigma asso-ciado ao termo caboclo faz com que as
populaes, ainda hoje, no acei-tem ser caracterizadas dessa forma10.
A multiplicao de significadosrefletiu, na verdade, a preocupao
crescente dos intelectuais da Amaz-nia a respeito das
potencialidades do caboclo homem.
O caboclo bom da Amaznia
Na poca em que se diversifica a representao do caboclo, a
Amazniaacorda de um sonho de prosperidade. No sculo anterior, a
partir de 1840,a regio experimentou um crescimento econmico
impressionante basea-do na extrao da borracha11. Cidades como Belm
e Manaus se benefi-ciaram da acumulao de riquezas: realizaes
arquiteturais grandiosas,sales literrios e visitas de artistas
europeus traduziam o desejo das eli-tes de que a regio pudesse
rivalizar com o Rio de Janeiro ou Salvador.Mas a euforia foi de
curta durao. A maioria dos investimentos favore-
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O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE 39
ceu a produo extrativista em detrimento da agricultura e da
indstria,deixando a economia regional totalmente dependente das
importaes esem condies de resistir, na dcada de 10, queda dos preos
resultan-te da concorrncia inglesa na sia (Santos 1980). Portanto,
nos primeirosdecnios do sculo XX, a Amaznia j no podia mais
pretender encar-nar a modernidade e a civilizao, estas voltando a
ser novamenteassociadas ao sul do pas. Na verdade, a regio voltou a
apresentar
[...] o mesmo panorama que um sculo mais cedo: multido annima,
sem
identidade aparente e a quem ningum presta ateno; ndios bravos,
obs-
tculo ao progresso, imagem que alimenta toda sorte de sonho;
economia
artificial de predao; natureza selvagem, ela tambm, magoada,
espoliada,
em nome da conquista da fronteira, este mito incessantemente
recomeado
como um pesadelo paludfero (Grenand e Grenand 1990:19).
Essa multido annima conta, no entanto, com novos acrscimosde
populao. Aos ndios, descendentes de portugueses, escravos
africa-nos12 e seus mestios, juntaram-se a partir de 1860
imigrantes estrangei-ros atrados pela fama da Amaznia, dentre
outros, europeus, srio-liba-neses e norte-americanos (Salles
1990:16). Mas as grandes migraes,algumas induzidas pelo governo,
outras espontneas (Santos 1980:87),foram sobretudo inter-regionais.
A seca de 1877 no Nordeste deu umnovo impulso aos fluxos migratrios
que vinham crescendo desde a dca-da de 1810 e que contriburam para
a colonizao de vrias regies daAmaznia, em particular no Estado do
Acre (Santos 1980:98). Se uma par-te dos nordestinos refluiu para
outras regies do pas na dcada de 1910(Santos 1980:263), outra parte
ficou e teceu alianas, atravs do casamen-to e do compadrio, com os
seus vizinhos instalados h mais tempo. Essescolonos13, o termo
sendo usado para diferenci-los dos grupos com ocu-pao mais remota,
integraram-se progressivamente populao local, ereceberam o rtulo de
caboclos14.
Devemos situar nesse contexto de relativa falncia o debate,
sur-gido na dcada de 20 entre as elitas nortistas, a respeito do
caboclo. Comefeito, por trs das disputas afiadas, escondiam-se
esperanas de umdia a Amaznia voltar a conhecer o esplendor perdido.
Ora, as possibili-dades de realizao de tal projeto estavam
intimamente ligadas, na men-te desses intelectuais, s aptides das
populaes que ocupavam o espa-o regional. Era, portanto, urgente
avaliar as caractersticas morais des-tas ltimas, tal como a
qualidade das suas produes materiais e sim-blicas.
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O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE40
Um tema recorrente nos trabalhos literrios a comparao entre
osmritos dos nativos15 da regio os caboclos e aqueles dos
migran-tes do Nordeste os cearenses. O estudo de Jos Carvalho,
jornalista efolclorista nascido no Cear, representativo dessa
tendncia16. O autor,em um livro intitulado O Matuto Cearense e o
Caboclo do Par, conside-ra que o primeiro , pela alma, ou pelas
qualidades psychologicas, umsr mais complexo, mais variado, mais
multiforme do que o segundo,descrito como mais simples, mais
primitivo, menos complicado (1930:1).Desta perspectiva
evolucionista, encontrando o seu ponto de partida nondio17, o
paraense leva certa desvantagem em matria de produo fol-clrica (as
lendas, por exemplo). No entanto, logo a compensa por suandole e
seu pendor naturais, que no foram atingidos pela civiliza-o, [que]
est [...] destruindo o Cear, barbaro, mas poetico de outrora(:122).
O caboclo, natural de uma terra de pouca aflio e de
grandeabundncia, mostraria uma aptido admirvel para as artes e para
amecanica (:6), e falaria o portugus muito mais corretamente que o
cea-rense (:54). Deste novo bom selvagem, descrito como manso,
calmo,de poucas ambies e necessidades, frio, suspicaz, discreto
ereligioso, J. Carvalho afirma: uma raa, pois, que poder
produzirgrandes diplomatas [...] se a diplomacia fr ainda uma coisa
necessariano futuro (:3).
Um outro escritor, Jorge Hurley (1934), formado em direito, que
foiprocurador-geral do estado e presidente do Instituto Histrico e
Geogr-fico do Par, discorda nitidamente desse retrato do homem
amaznico,que acaba por enfatizar a falta de combatividade de um
caboclo repre-sentado como acomodado e conformado com seu destino.
No seu livroItarna, publicado em 1934, esse intelectual rejeita o
que consideraphantasias prejudiciaes aos creditos da civilizao do
valle do Amazo-nas (:5) e cita numerosos exemplos de notabilidades
paraenses que con-triburam, ao longo do sculo XIX, para a grandeza
nacional. Evoca oescritor e crtico literrio Jos Verssimo, caboclo
do Par e saudosomestre (:19) nascido em bidos, e Enas Martins,
caboclo cametaura[...] maneiroso, culto, erudito e intelligente
(:22) que assumiu as altasfunes de diplomata e governador. Lembra
tambm a vocao militardos caboclos amazonienses atravs do vulto do
general Gurjo, mor-rendo heroicamente no Paraguay, na defesa da
Patria e o paizano VeigaCabral, o Cabralzinho, mais tarde general
do Amap, repellindo brava-mente frente de um grupo de paraenses, a
invaso franceza do Ama-p (:23). Com meno do conservatrio Carlos
Gomes, de Belm, queha produzido musicos de incontestavel valor,
termina ele insistindo na
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O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE 41
vocao musical do nativo, j que no interior da Amazonia, quasi
todo ocaboclo um musico espontaneo, improvisado (:24). A explicao
dosucesso de homens ilustres em domnios to diversos quanto a
poltica, oexrcito e a arte, encontra-se, para o paraense Jorge
Hurley, no tempera-mento amaznico. Habilidosos na arte de pintar,
como na mecnica ouna vida do mar, os amazonenses teriam igualmente
disposio para amedicina e para todas as conquistas do espirito
(:23).
Nessa construo, exaltando as virtudes do carter regional,
aassociao do caboclo com o mato ou o interior que povoa, e at com
umaascendncia indgena, deixa de ser um obstculo sua glorificao.
Aproximidade com a natureza , doravante, a fonte do seu gnio e
dassuas competncias. graas s qualidades intrnsecas sua raa18 queos
homens da Amaznia podem ingressar na civilizao, dando o melhorde si
mesmos e levando-a frente. Ao naturalismo do sculo XIX e
aopessimismo do incio do sculo XX, sucede nas dcadas de 20 e 30
umaviso otimista com autores preferindo encontrar o paraso que o
infernona Amaznia (Preto-Rodas 1974:183)19.
O intuito, na elaborao de um caboclo bom e respeitvel,
clara-mente de cunho ideolgico: trata-se de fornecer s elites
locais umaimagem gratificadora, suscetvel de realar o orgulho
regional vis--visa sociedade do sul do pas, onde esto estabelecidos
os centros depoder. Levando em conta os fins emancipadores dessa
construo iden-titria, os esforos em volta da figura do caboclo
apresentam uma certaanalogia com a tentativa, no sculo passado, de
fazer do ndio o smbo-lo da coeso nacional e da independncia
brasileira perante o Imprioportugus.
Um ponto problemtico: a pajelana do caboclo
Como em outras construes baseadas na oposio
civilizao/selvage-ria, as crenas e prticas religiosas do caboclo
constituem um assuntoproblemtico, e os estudiosos acabaram por
desqualific-las enquantoelementos resgatveis. O cearense Jos
Carvalho o nico a mostrar-secomplacente em relao ao sistema
religioso associado ao caboclo designado como pajelana e ao seu
especialista, o paj20. Noentanto, a sua tolerncia s vem tona
porque, para alm da heranarecebida do ndio selvagem, o autor
acredita poder apontar, nas prti-cas da pajelana amaznica, para
esse contato to flagrante com as pra-ticas da antiguidade greca e
romana (1930:36).
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O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE42
Como escreve Aldrin de Figueiredo em um trabalho recente,
naque-la poca a estratgia dos homens de letras foi decretar a morte
da paje-lana, por no reconhecer nas novas prticas dos pajs de Belm,
aque-la religio primitiva dos ndios da Amaznia (1996:216). Para
eles, aarte dos pajs indgenas, que se considerava como uma espcie
de medi-cina primitiva, transformou-se, com a sua passagem para o
meio urbano,em pura feitiaria (1996:237).
A definio de paj dada por um desses estudiosos mostra,
clara-mente, as bases espaciais e temporais que passam a sustentar
o contrasteentre a sabedoria atribuda ao especialista religioso
indgena e o charla-tanismo daquele que, na cidade, tem a pretenso
de exercer o seu ofcio.Pag- (Pai). Curandeiro, sacerdote, santo,
mago da tribu; e, hoje, entreos crentes da magia negra, simples
impostor da arte de curar e adivinhar(Mendes s/d:70)21.
Prticas que eram tolerveis antigamente e em lugares recuados
per-dem, assim, a sua legitimidade no mundo moderno. Raymundo
Moraes,defensor obstinado da imagem de um paraso amaznico, foi um
dosescritores mais prolixos sobre as feies passadas e presentes do
paj.
De gesto enigmatico, olhar ameaador, palavra sibilyna,
contraditrio,
miseravel, sordido, o pag odiado e respeitado [na malocas
indgenas].
Ridiculizam-no, desprezam-no e escutam-no (1930: 225).
O pag solene. Magro, vermelho, oleoso, n, o seu trabalho de
feiticeiro
que consultado como o eram os Grandes iniciados, desdobra-se com
a gra-
vidade sacerdotal, serena, confiante no proprio cordo de augure
[...]. Mas o
puro pag aborigene, adstricto ao ritual vindo de longe, atravs
de remotas
geraes, projecta-se cruzado no pag mameluco, no pag mulato, no
pag
curiboco, imaginoso, solerte, que se encontra nos povoados, nos
villorios,
nas cidades (:229). Este, muito desmoralizado j, bebao,
caloteiro, de fra-
que surrado, botas cambaias, chapeu sem abas, calas cerzidas,
collete ras-
gado, camisa enxovalhada, corrente de relogio de cabellos
tranados e cheia
de figas, de favas, de dentes, de camafeus ainda assim procurado
e con-
sultado, no tanto talvez pelas doenas do corpo, sim pelas doenas
da alma
(:230)22.
O retrato feito do paj indgena o de um personagem ridculo e
afi-nal bastante pattico. No entanto, pela sua fidelidade aos seus
ancestrais,ainda conserva imponncia e dignidade, gozando de
prestgio entre osseus, como certas figuras primordiais, grotescas e
poderosas das mitolo-gias que assombram a literatura do sculo
XIX23. Nada igual ao paj da
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O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE 43
cidade. Sujo e bbado, apresentado como malandro, marginal, pobre
efetichista. A pajelana degenerada ento condenada a desaparecercom
o progresso da civilizao, e com ela o paj urbano.
A imprensa, como documenta Aldrin de Figueiredo (1996, 2a
parte),registra abundantemente os casos de pajelana, contribuindo
para a cisodo paj em duas imagens distintas: uma benfica e incua, a
do benze-dor, e outra maligna, a do feiticeiro. Esta diviso acabar
nos anos 30por levar definitivamente a pajelana para o lado da
magia negra. A ins-tituio judiciria, representante do moderno
aparelho de Estado, tam-bm contribui para o processo de
marginalizao da pajelana quando,deparando-se com ela atravs das
denncias de feitiaria, a rejeitacomo obscurantismo do universo
popular24. Ao que parece, os termospaj e pajelana constituram-se
como categorias de acusao con-tra vizinhos ou parentes em momentos
de atrito25, em um dispositivo efi-caz j nos anos 20.
Ao compararmos a representao do caboclo com aquela do paj,tais
como as encontramos na literatura do incio do sculo, fica claro
queo resultado do trabalho simblico foi bem diferente nos dois
casos. Ocaboclo foi visto por uma parte dos estudiosos como o
produto valorizadoda mestiagem, um tipo de populao que conseguiria
facilmente acres-centar s qualidades do seu ancestral ndio o
conhecimento vindo damoderna civilizao. Nessa construo, a
responsabilidade pelo bomaproveitamento das capacidades da raa
amaznica cabia aos homenspolticos. Contrastando com isto, o
personagem do paj s adquire fei-es aceitveis quando projetado longe
do presente e da miscigenao,na maloca indgena. Quando situado o seu
desempenho no mundo con-temporneo, aproveitar-se-ia do pior das
crenas e supersties popula-res, favorecendo a permanncia da
ignorncia (caracterstica fundamen-tal do povo segundo as elites),
incompatvel com o estado de civilizaodesejado. O caboclo bom tem
futuro, o bom paj j se foi. Tal formula-o, subjacente ao pensamento
dos defensores do caboclo, institua, atra-vs da ltima assero, um
ponto de concrdia com seus mais ferozesadversrios.
O projeto de constituio de uma identidade amaznica baseada
nafigura do caboclo ao qual as elites regionais pudessem aderir
obviamen-te fracassou. Constituindo a maior parte da populao atual
da Amaz-nia, os caboclos so uma categoria dominante do ponto de
vista demo-grfico, [mas] sociologicamente subalterna (Grenand e
Grenand1990:18) e ideologicamente negativa. No Brasil inteiro,
quando se falaem caboclos, pensa-se em mestios de ndios, instalados
na beira dos rios,
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O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE44
vivendo da pesca e da colheita, de temperamento preguioso e
descon-fiado. Em outros termos, o caboclo, figura primitiva e
extica fora da Ama-znia, representa dentro o atraso da regio e das
pessoas assim desig-nadas, revelando s escondidas a excluso do
mercado de grande parteda populao. O estigma carregado pelo
esteretipo to forte que nin-gum aceita reconhecer-se como caboclo.
O termo vem ento a ser usa-do para designar um outro, cuja posio na
estrutura social suposta-mente inferior do locutor. Deborah Lima,
seguindo Charles Wagley, tra-ta o caboclo como categoria relacional
(1992:24). Os moradores da capi-tal qualificam dessa forma os
habitantes das cidades do interior, enquan-to estes reservam o
termo s pessoas do meio rural, e estas ltimas aosndios.
Voltando ao caboclo invisvel
As migraes de importantes contingentes populacionais entre o
Norte eo Nordeste, prosseguindo s vezes para o sul do pas, foram
provavel-mente essenciais para a consolidao, nas diversas regies,
da sinonmiaentre caboclo e nortista. Com efeito, considerando que o
termo caboclopermite construir, ou melhor, expressar na linguagem
cotidiana a dife-renciao das posies sociais, e sabendo tambm que no
Nordeste apalavra nunca foi um termo de autodenominao (Sigaud
1978:8), pode-se supor que nesta ltima regio os migrantes vindos do
Norte e apre-sentando no fentipo traos de uma ascendncia indgena,
sejam rejeita-dos ao extremo, tornando-se os caboclos dos outros.
Nesse contexto, otermo caboclo constitui-se progressivamente em uma
palavra operacio-nal para enunciar qualquer diferena, podendo ser
associada a uma ori-gem geogrfica nortista e, sobretudo, a uma
diferena religiosa.
De fato, no Brasil, a originalidade das prticas religiosas
vindas doNorte e o saber peculiar dos seus peritos eram referidos
como caboclos.J no incio do sculo, era sem dvida no domnio
religioso que a reputa-o do caboclo se tinha firmado. Poder-se-iam
dar exemplos de trabalhosliterrios, como o romance Esa e Jac, de
Machado de Assis, escrito em190426, testemunhando a representao do
caboclo primeiramente comoespecialista religioso. O amplo campo
semntico coberto pelo termo per-mite evocar certas prticas
cultuais, de modo implcito mas sem equvocopossvel.
Convm aqui observar que os termos paj e pajelana nunca foramde
uso comum nos centros urbanos do pas27, a no ser, como foi
mencio-
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O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE 45
nado acima, enquanto categoria de acusao, e assim mesmo na
Amaz-nia, onde foram consagrados pela literatura clssica ao falar
das prticasreligiosas locais. Para a Amaznia, o antroplogo Heraldo
Maus consta-ta que hoje em dia em Vigia, na regio do Salgado, a
pajelana no exis-te, para seus praticantes, como uma categoria
explcita, no sentido deque [...] no existe um rtulo para ela
(1995:483). E para as primeirasdcadas do sculo, o folclorista Jos
Carvalho (1930:31) afirma que nemmesmo a palavra paj era habitual,
os consulentes falando com mais gos-to de curador.
Mas caboclo no era qualquer curandeiro ou feiticeiro. Atribua-se
aeste especialista religioso a sabedoria de feitios potentes e
desconheci-dos, porque oriundos de longe. Os homens a quem se
chamava caboclos(isto , os pajs oriundos das cidades da regio
amaznica e tidos pordegenerados na literatura regionalista) gozavam
de considervel fama eprestgio, que atraam clientes e discpulos, o
que fazia da sua regio deprocedncia uma referncia imprescindvel. O
folclorista Cmara Cascu-do atesta essa reputao junto aos mestres do
Catimb no Estado do RioGrande do Norte:
H no Catimb muito Par-Amazonas. So as universidades do curso
secre-
to. A ordem, na citao respeitosa que a credencial na ordem dos
valores,
comea por Belm do Par, Manaus depois. No se fala bastante na
Bahia.
O terceiro lugar Pernambuco [...]. Posso informar, em segrdo
para a Pol-
cia no saber, que os mestres da Pajelana paraense, alguns de
mais fama,
so convidados a visitar capitais nordestinas para trabalhos de
importncia
[...]. Os Pajs vm, trabalham e deixam alguma tcnica nas mos dos
mes-
tres catimbzeiros locais [...]. Alguns mestres nordestinos
juntam dinheiro e
vo passar uns meses em Belm do Par estudando, acompanhando um
short
course (1951:79).
A Amaznia foi, dessa forma, um importante foco de circulao
dehomens e de saberes, os mestres do Catimb deslocando-se para as
cida-des de Belm ou Manaus a fim de aprender novos mistrios dos
nortis-tas caboclos e estes ltimos respondendo a convites
solicitando os seustalentos.
Em diversas regies, ao uso pejorativo do termo na vida diria
con-trapunha-se um uso prestigioso na esfera religiosa, fazendo com
que, aoser conhecido como caboclo, um especialista religioso se
beneficiasse apriori de uma reputao vantajosa. Reivindicar-se
caboclo fazia parte doprocesso de consolidao de posies individuais
no campo religioso
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O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE46
local. Havia vrias formas de ligar-se ao prestigioso universo
caboclo:pelo lugar de nascimento, pela trajetria de migrao e tambm
pelosseres invisveis representados durante as chamadas, a quem
procuravamos consulentes.
Nesse sentido, a lgica religiosa admitindo que com a morte
oshomens possam metamorfosear-se em espritos veio ao encontro
dasnecessidades tticas determinadas pela demanda do mercado
religioso.Com efeito, por analogia com o que acontecia aos seres
humanos, cabo-clo era um atributo de alguns espritos que nele se
encarnavam. O exem-plo do Catimb estudado por Cmara Cascudo ainda
nos precioso nes-se ponto, ao informar que, desde a expulso dos
jesutas no sculo XVIII,o termo era associado no Nordeste ao nome de
alguns dos mestres fale-cidos quando se atribua a eles uma
ascendncia indgena, da mesma for-ma que outros eram lembrados como
negro velho quando tidos por des-cendentes de africanos. Ora,
medida que crescia o nmero de seresinvisveis caboclos junto com seu
sucesso, aquilo que era qualidade pes-soal de certos espritos ou
dos homens que os representavam, virou carac-terstica comum a
todos.
A multiplicao dos espritos de caboclos ameaava diluir, dada asua
generalizao, o significado da palavra, e, como conseqncia
retro-cessiva, limitava os efeitos de um uso diacrtico do termo
entre os espe-cialistas religiosos. Os esteretipos do ndio brabo e
selvagem, exticoe distante, vieram ento nutrir o imaginrio
religioso, proporcionandouma caracterizao mais estreita do que
seria o caboclo autntico. Osespritos caboclos foram revestidos do
que era considerado genuinamen-te indgena: arco e flecha,
saiote..., distanciando-se assim daqueles san-tos e orixs, tambm
chamados caboclos, mas que no podiam receberigual tratamento. Uma
definio cada vez mais restrita do indgena doindgena sem existncia
real, necessrio insistir contrabalanou, por-tanto, a tendncia
incluso de todo e qualquer ser invisvel na catego-ria caboclo.
Com a Segunda Guerra Mundial, e a perda das fontes asiticas
daborracha, a Amaznia recebeu, durante um curto mas decisivo
perodo,novos contingentes nordestinos, que trouxeram para a regio
Norte suasidias religiosas (Gabriel 1980:151), inclusive essa
imagem particulardo caboclo invisvel. Mas a representao do caboclo
como ndio malcombinava com o uso local do termo e a sua dimenso
relacional. Deve-se tambm considerar o impacto das declaraes dos
intelectuais amaz-nicos a respeito da identidade regional, pois nos
seus escritos, o cabocloera mais do que o ndio. No era somente uma
figura associada margi-
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O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE 47
nalidade e selvageria; podia pretender pertencer s classes
dominan-tes, entrar e contribuir com seu ideal de modernidade. Dito
de outraforma, o caboclo podia ser um senhor. Essa definio do ser
caboclo pelaessncia, pela nfase nas suas potencialidades e no pela
aparncia,abriu possibilidades infinitas de recomposio de uma figura
bastantemonoltica no Nordeste.
Encontramos evidncias das repercusses, no mbito religioso,
dodiscurso dos intelectuais amaznicos e das lutas travadas para a
afirma-o de uma identidade regional. Nos anos 60, em Belm do Par, o
termocaboclo intervinha em dois sistemas de classificao dos seres
invisveis:s vezes era um indicador da famlia do grupo qual um
espritopertencia; outras vezes revelava o estatuto menor atribudo a
ele, poroposio quele dos senhores (Leacock e Leacock 1972:146)28.
Esse des-lize favoreceu a abertura do grupo dos caboclos a
representaes outrasque a do ndio ou do ribeirinho. Integraram-se a
ele subgrupos evocandooutros horizontes geogrficos (tais como os
turcos e os boiadeiros), quedificilmente representariam as populaes
locais nativas. diferena deoutras regies do Brasil, na Amaznia,
caboclo tornou-se uma categoriaemblemtica, reunindo todas as
entidades poderosas.
Os caboclos invisveis acabaram por ter representaes
antropomr-ficas, lembrando o seu passado de seres humanos. Em 1939,
Cmara Cas-cudo (1951:45) fotografou as primeiras imagens de gesso
pintado encon-tradas na cidade de Natal. A sua origem amaznica as
trs foram com-pradas em Belm do Par e a diversidade dos fentipos
que inspira-ram o arteso uma das esttuas tem as feies de uma loura
de pelebranca mostram que nessa regio, como foi dito antes, o termo
cabo-clo j tinha deixado de indicar somente uma ascendncia
indgena.
Assim, temos de voltar verso do caboclo trabalhada e
aperfeioa-da pela literatura regionalista dos anos 30, para
encontrarmos o elo entreesse representante do homem amaznico e o
ser invisvel dos cultos depossesso. Nos dois casos, houve uma
tentativa anloga de apoderar-sede elementos simbolicamente
associados margem, ao atraso e aoincivilizado para elaborar o bom,
o forte, o futuro. No entanto, alegitimao do caboclo pelas elites
intelectuais passou pela rejeio decertos traos vistos como
decididamente incompatveis com a imagemque queriam dar (e dar-se)
de si mesmos, isto , a pajelana supersticio-sa. diferena disso, a
constituio da categoria emblemtica dos cabo-clos foi levada a seu
termo com mais sucesso nos cultos de possesso, emparte porque
integrou todos os estigmas e esteretipos (inclusive adimenso mgica
do paj) para reverter de uma forma ou de outra os seus
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O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE48
significados29. Afinal, o caboclo foi separado da esfera
religiosa pelosintelectuais para melhor incluir-se nela, agora
enquanto categoria cen-tral do mundo invisvel. Formou-se um
conjunto nico, cuja coeso no necessariamente harmnica, onde podem
expressar-se as diferenassociais, culturais e geogrficas. Desse
ponto de vista, as inmeras possi-bilidades de especulao oferecidas
pela organizao do mundo doscaboclos refletem as origens, os
itinerrios, as trajetrias e as condiesdiversas de uma populao cuja
maior caracterstica a mobilidade (Gre-nand e Grenand 1990:25) dos
processos de sucessivas migraes.
Difcil pronunciar-se sobre as mudanas induzidas no
imaginrioamaznico por essa distoro do sentido inicial da palavra
caboclo. Igual-mente rduo avaliar as conseqncias para as populaes
qualificadasde caboclas em um contexto de forte entrosamento entre
o campo e acidade. Com certeza, a elaborao do caboclo enquanto tipo
de popula-o deu-se de forma complexa, atravs do olhar dos
citadinos, buscandonos rurais elementos para a construo da sua
prpria identidade. Ape-sar de representar uma figura do campo, a
representao do homemcaboclo um produto urbano, como o por sua vez a
construo do cabo-clo invisvel. As populaes amaznicas, a partir das
quais se exercia essetrabalho simblico, no tinham participao ativa
nesses processos: rece-biam o rtulo caboclo sem jamais ter condies
de infletir o rumo do dis-curso do qual eram objeto, sem ter
possibilidades de aceit-lo ou contes-t-lo. Para o meio urbano,
pode-se pensar que a inveno do caboclo cor-responde a uma tentativa
de se livrar do caboclismo, projetando emuma figura do mundo
invisvel qualidades que so defeitos, e at defi-cincias, na cidade.
Resta analisar ulteriormente o seu significado no casodas populaes
rurais.
Para concluir, convm observar que a valorizao do negro psfim
possibilidade de identificao das elites nortistas com uma figuraque
nem mesmo conseguiu impor sua legitimidade na esfera do folclore.A
influncia da busca minuciosa de traos africanos fez-se sentir na
Ama-znia a partir da viagem a Belm de Mrio de Andrade em 1927, e
sobre-tudo aps a chegada da Misso de Pesquisa Folclrica em 1938,
encarre-gada de fazer o levantamento da contribuio do negro cultura
regio-nal (Figueiredo 1996:251-261). A publicao do livro de Oneyda
Alva-renga em 1950, cujo ttulo Babassu forneceu um nome doravante
referi-do para as prticas religiosas que se supe de origem
africana, marca ummomento importante na inflexo dos assuntos
tratados pelos intelectuaisda regio. O momento de glria do caboclo
declinou, assim, medidaque se firmava o discurso sobre a fidelidade
frica. Nessa meta de
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O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE 49
resgatar a pureza africana melhor conservada com o candombl e
osseus orixs, o destino do caboclo invisvel, inclusive na Amaznia,
foi depermitir firmar cortes no campo religioso, legitimando certas
prticas reli-giosas e condenando outras.
Recebido em 13 de abril de 1998
Aprovado em 29 de junho de 1998
Vronique Boyer doutora pela cole des Hautes tudes en
SciencesSociales em Antropologia Social e pesquisadora do CNRS
(Centre Nationalde la Recherche Scientifique, Frana). Desde 1996,
participa de um projetode cooperao entre o CNPq e o ORSTOM no Museu
Goeldi de Belm. Pu-blicou, alm de artigos em revistas
especializadas, o livro Femmes et Cultesde Possession au Brsil: les
Compagnons Invisibles (1993).
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Notas
* Este tema j foi objeto de um artigo publicado nos Cahiers
dtudes Afri-caines (Boyer 1992). Retomo aqui parte dele, e prossigo
na anlise a partir denovas leituras que me permitem tratar melhor
da representao do caboclo, e desuas produes religiosas, nos
trabalhos dos folcloristas nas trs primeiras dca-das do sculo.
Agradeo a Deborah Lima suas observaes a uma primeira versodeste
texto, e a Jorge Pozzobon e Ciro Campos pela pacincia em corrigir
meuserros de portugus.
1 o termo usado pelos mdiuns para designar os seres invisveis
que ospossuem.
2 Com efeito, apesar de formarem categorias distintas, exus e
caboclos so,em Belm, vinculados por uma relao de transformao.
Assim, um caboclopoderia apresentar-se em um terreiro sob a forma
de exu, quando deixa de encar-nar um personagem familiar, inserido
em um dispositivo de deveres e direitos,para representar uma fora
bruta capaz de realizar sem distino os desejos decada um. Para mais
detalhes, ver Boyer (1993).
3 Os nicos a no ter correspondncias com os caboclos so os
orixs.
4 Os encantados so conhecidos em um culto do Norte do qual
falarei aseguir: a pajelana amaznica. Apesar de apresentar-se sob
uma forma animal, osencantados participariam de uma natureza humana
(para o meio rural atual, verMaus 1995). Escolhidos por outros
encantados, esses seres humanos teriam sidotransformados atravs do
encantamento, sem sofrerem decomposio da mat-ria corporal.
5 A apreciao da beleza das danas evidentemente um fato
subjetivo, eoutros autores tm com certeza opinies opostas quela de
Edison Carneiro. Noentanto, o uso que este faz de termos diferentes
para descrever as danas mostraa necessidade que ele sentiu de
apontar claramente o estilo bem particular decada uma.
6 Esta construo da relao do mdium com o caboclo se baseia nas
repre-sentaes a respeito da complementaridade dos papis
socioeconmicos dohomem e da mulher (produo e autoridade masculina,
gesto e obedincia femi-nina) no grupo domstico. Quanto s mulheres,
elas conseguem desapossar dassuas atribuies o seu companheiro real
ao impor as suas decises em nome docaboclo que encarnam nas sesses
dos terreiros, caboclo que aqui claramentemarcado por um signo
masculino. Assim, elas encontram nas prticas rituais e nasimblica
religiosa instrumentos para conquistar a sua autonomia em relao
aoshomens, sem romper com as normas e os valores da sociedade
brasileira (verBoyer 1993).
O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE50
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O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE 51
7 Por exemplo, o autor anotou este canto consagrado ao caboclo
Manicor(Andrade 1963:81):
Eu sou aquele cabco,Sou o Mestre dos Mestres,Sou eu grande
pag!Triunfei, Agic!
O meu nome na aldeia do grande Mestre,Do grande
Manicor!Triunfei, Agic!
8 Sobre o tapuio, vale ler o interessante ensaio de Carlos Arajo
de MoreiraNeto (1988). O autor analisa o processo de destribalizao,
atravs da formaodos redutos missionrios, sofrido pelos grupos
indgenas durante a histria colo-nial, que transformou os ndios
especficos, com as suas instituies sociais ecultura particulares,
em ndios genricos (para usar da expresso de DarcyRibeiro), a ponto
de no ser mais possvel determinar com base na lngua enas maneiras
de viver de que participam a matriz cultural de origem (:81), isto,
a sua transformao em tapuios. Para Moreira Neto, as diferenas entre
ostapuios e aqueles que chama sertanejos amaznicos (isto , os
caboclos quepovoam o interior da regio) so mais de natureza
socioeconmica que cultural(:90). Com efeito, mesmo se o sertanejo
pode chegar a ter, em uma subculturaparticular, uma porcentagem de
elementos indgenas to ou mais elevada que afreqncia de traos de
forma particular (sempre compsita) de vida cultural dotapuio (:82),
ele um membro da sociedade nacional, que encontra formas
deajustamento s novas condies de vida e integra-se individualmente
ao mercadode trabalho, enquanto o outro no consegue viver fora do
seu grupo de origem etem o seu destino ligado ao futuro deste. Com
a marginalizao desse ndio gen-rico, na segunda metade do sculo XIX,
e o seu desaparecimento enquanto cate-goria social pertinente e
economicamente identificvel, o sertanejo amaznico oucaboclo
torna-se portador de uma cultura genrica (:84).
9 Respeitei a grafia original das citaes.
10 Ver, por exemplo, Faulhaber (1996:7) e Lima (1992:24).
11 Para uma anlise detalhada dessa fase de expanso e do seu
declnio,deve-se consultar o livro de Santos (1980).
12 O ltimo carregamento de escravos provenientes da frica
ocorreu em1834, havendo depois importao de outras provncias
brasileiras at a vspera
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O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE52
da lei urea. De modo geral, a presena negra na regio amaznica
parece tersido bastante fraca, em torno de 7% em 1890 (Salles
1971:51-52).
13 Os colonos, cuja maioria era oriunda do Cear, eram tambm
chamadoscearenses, esse termo tornando-se o nome genrico de todos
os nordestinos (San-tos 1980:98).
14 Encontramos, por exemplo, no livro de Jos Carvalho a expresso
cabo-clo cearense (1930:102).
15 Lima insiste com razo na dimenso histrica da construo de quem
-nativo: o amazonense tpico da poca sempre definido em contraste
com aque-les que so migrantes recentes e os grupos amerndios, por
um lado, e o gruposocial identificado como branco, urbano e rico,
por outro lado. O termo constituiuma categoria intermediria no
sistema de classificao social, situada entrecategorias sociais
opostas (1992:37-38).
16 Outro exemplo analisado por Lima (1992:33-34) o livro Os
Mongo-Malaios e os Sertanejos, de Alfredo Ladislau publicado em
1923.
17 No Cear, o matuto ou sertanejo est, no tempo e na evoluo da
raa,mais longe da malca ancestral do que o caboclo do Par, ou da
Amaznia (Car-valho 1930:1).
18 O uso do termo raa no aqui um epifenmeno, um simples legado
dosculo XIX, condenado a desaparecer. Ainda hoje, podemos observar
no discur-so trivial, e s vezes tambm na produo erudita, processos
anlogos de subs-tancializao e de reificao do social, por exemplo,
quando a identificao deum grupo sociolgico se faz a partir de
caractersticas fenotpicas, no caso daraa negra, ou quando so
exaltadas as virtudes nacionais pela expressoraa brasileira,
escondendo as desigualdades sociais e as formas histricas
dedominao.
19 No seu artigo, Preto-Rodas (1974) cita exemplos de outros
autores amaz-nicos: Eneida de Moraes (Banho de Cheiro, republicado
em 1989, pela FundaoCultural Tancredo Neves, Coleo Lendo o Par, no
2), Raymundo Moraes (OsIgaranas, 1938), Abguar Bastos (A Amaznia
que Ningum Conhece, 1932).Para uma anlise do pensamento dos
intelectuais amaznicos, das tendncias eda evoluo dos discursos, ver
tambm o trabalho de Aldrin Moura de Figueire-do (1996).
20 Ver, por exemplo, a descrio seguinte do mais celebre pag do
baixoAmazonas, uma mulher de nome Maria Brasilina: Era uma mulher
ignorante,analphabeta, mas que impressionava bem pelo seu porte e
suas attitudes discre-tas, ponderadas, intelligentes. Tinha o porte
de uma verdadeira matrona. No segabava de sua sciencia; no se
envaidecia com sua popularidade. Era modesta,discreta e caridosa.
Era casada e tinha filhas moas (Carvalho 1930:33-34).
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O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE 53
21 Ver, tambm, Osvaldo Orico: Encontram-se, ainda hoje, em Belm
eManaus, tipos curiosos, que se propem a exercer entre gente
civilizada o mesmopapel reservado nas malocas ao pai dos indigenas
(1975:232).
22 Hurley (1934:138), em uma descrio de uma festa junina em
Curu,menciona como personagem do enredo a figura de um paj,
igualmente repre-sentado como bbado, grosseiro e sujo.
23 Um bom exemplo desse pano de fundo fantasmagrico para o fim
do scu-lo XIX fornecido por Figueiredo (1996) na sua anlise dos
escritos do jornalistaPdua Carvalho. O historiador identifica uma
produo esttica e literria queexalta a figura do paj primitivo, ao
lado da sua contribuio propriamente jor-nalstica, em que as
ocorrncias policiais servem de base para uma estigmatiza-o da
pajelana urbana.
24 Para o Rio de Janeiro, Maggie (1988) analisa com fineza como
os meca-nismos reguladores criados pelo Estado a partir da Repblica
[...] foram funda-mentais para a constituio da crena na feitiaria
(:5). Pronunciando-se sobreos casos que lhe eram submetidos, a
Justia chegou a uma classificao e a umahierarquizao das diversas
posies estticas e filosficas (:273) no campo reli-gioso da
possesso.
25 Encontram-se assim, no Arquivo Pblico de Belm, os autos de um
pro-cesso, datado de 1921, que foi aberto para tratar de uma
denncia de aborto. Ape-sar do amante da acusada ser qualificado de
celebre Paj Albertino na cartamandada pela sua irm s autoridades, a
fama no significa neste caso compe-tncia, pois a denunciante afirma
que foi preciso recorrer a uma parteira italianapara conseguir
expulsar o feto. A acusada negou conhecer Albertino e os mdicosno
puderam determinar se houve provocao do aborto...
26 Por exemplo, na primeira cena do livro, quando uma socialite
vai casade uma cabocla, em um morro do Rio de Janeiro, no se espera
desta ltima outracoisa que revelaes sobre o destino, o que ela
precisamente faz vendo o futurodos filhos da senhora.
27 Ver, por exemplo, sobre Manaus, Gabriel (1980:89).
28 O exemplo dado por Gabriel (1980:195), de um esprito caboclo
do qual osmdiuns dizem que se formou e hoje educado, atesta essa
nova avaliao dascapacidades do caboclo.
29 Dessa perspectiva, analisei, em um artigo publicado nos
Archives deSciences Sociales des Religions em 1992, como atualmente
os mdiuns constroemo personagem do caboclo a partir dos traos de
comportamentos desvalorizadospelas classes mdias, e associados por
elas ao povo freqentador dos terreiros(Boyer Araujo 1992).
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O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE54
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Resumo
O personagem do caboclo, representa-do pelos mdiuns durante a
possesso, uma figura central dos cultos de pos-sesso da Amaznia
urbana. O termodesigna tambm, de modo pejorativo,as populaes
ribeirinhas da regio.Neste artigo, procuramos entender a re-lao
entre o caboclo invisvel e pode-roso dos cultos e o caboclo-homem
vis-to como atrasado. Aps situar o proces-so de formao dessa
categoria do mun-do invisvel, e sua especificidade, volta-mo-nos,
com base na literatura folclri-ca, para a construo de seu
significadoenquanto designao de um tipo de po-pulao regional.
Observamos que osintelectuais amaznicos, suavizando asconotaes
negativas do termo, tenta-ram fundamentar nele uma
construoidentitria original. Esta valorizao docaboclo-homem veio ao
encontro doprestgio do migrante nortista no dom-nio religioso. Tal
fenmeno favoreceu amultiplicao de referncias a entida-des invisveis
designadas como caboclo.No entanto, ao contrrio do que ocorreuno
resto do Brasil onde essa categoriase restringiu a um esteretipo do
ndio,na Amaznia ela se abriu aos mais di-versos tipos de populao,
permitindo asua identificao com ela.
Abstract
The persona of the caboclo or mestizo,represented by mediums
during pos-session, is a central figure in the posses-sion cults of
urban Amazonia. Yet theterm is also used pejoratively to desig-nate
the regions riverine populations.This article aims at understanding
therelationship between the invisible andpowerful caboclo found in
the cults, andthe human caboclo perceived as back-ward. After
establishing the specificway in which this category of the
invisi-ble world takes shape, the paper turnsto folkloric
literature and examines theevolution of caboclos meaning as a
des-ignation for a type of regional popula-tion. We find that
Amazonian intellec-tuals, softening the terms negative
con-notations, attempted to use it as the ba-sis for an authentic
regional identity.This valorization of the human caboclocombined
with the religious prestige ofthe Northern migrant, a
phenomenonwhich in effect stimulated an increasein the number of
allusions to invisibleentities designated by the term. How-ever, in
contrast to the rest of Brazilwhere the category caboclo was
re-stricted to a stereotype of the Indian, inAmazonia the category
opened itself toa wide range of populations, allowingtheir
identification with it.
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