Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO: um passeio margino-central pelo Rio e pela Bahia 1 Pedro Dorneles da Silva Filho 2 RESUMO Este artigo discute as questões sociais, culturais, econômicas e representacionais presentes em duas obras da produção artística brasileira: o romance do século XIX, O cortiço, de Aluísio Azevedo, e o filme de ficção do século XXI (2007), Ó paí, ó. Constitui, assim, um espaço de incursões no campo da Literatura Comparada e dos Estudos Culturais, a fim de politizar as manifestações artísticas, mostrando seu potencial de significação e representação de diversas questões que traduzem, de alguma maneira, nossa noção de realidade. Identidade, representação, arte e interdiscursividade são algumas das chaves de leitura nas quais se ampara essa pesquisa, estabelecendo um encontro entre literatura e cinema na tentativa de compreender melhor os sintomas de marginalidade, pobreza e desigualdade vigentes no Brasil em dois contextos distintos e como que a engenharia dos recursos estéticos dará conta de refletir tais problemáticas. PALAVRAS-CHAVE: Discurso - Estudos Culturais - Literatura comparada - marginalização ABSTRACT This article discusses the social, cultural, economic and representational present in two works of Brazilian artistic production: The literary nineteenth century work, The tenement in Aluísio Azevedo and film production of the XXI century (2007), Father,. A incursions space in the field of literature and comparative cultural studies in order to politicize art forms, showing their potential significance and representation of various issues that translate in some way, our notion of reality. Identity, representation, art and interdiscursivity are some of the keys of interpretation in which it sustains this writing. A meeting between literature and film in an attempt to better understand the symptoms of marginalization, prevailing poverty and inequality in Brazil in two different contexts and how that engineer the aesthetic resources will report to reflect such problems. KEYWORDS: Comparative literature - marginalization - Cultural Studies - Speech – neorealism 1 Artigo científico apresentado ao Programa de Pós-Graduação do Instituto Federal Fluminense (IFF) – campus Campos-Centro, Campos dos Goytacazes- RJ, em 2015, como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) do Curso de Pós-Graduação lato-sensu em “Literatura, Memória cultural e Sociedade”. 2 Autor do artigo e pós-graduando em “Literatura, Memória cultural e Sociedade” pelo IFF campus Campos- Centro, Campos dos Goytacazes-RJ.
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Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO:
um passeio margino-central pelo Rio e pela Bahia1
Pedro Dorneles da Silva Filho2
RESUMO
Este artigo discute as questões sociais, culturais, econômicas e representacionais presentes em
duas obras da produção artística brasileira: o romance do século XIX, O cortiço, de Aluísio
Azevedo, e o filme de ficção do século XXI (2007), Ó paí, ó. Constitui, assim, um espaço de
incursões no campo da Literatura Comparada e dos Estudos Culturais, a fim de politizar as
manifestações artísticas, mostrando seu potencial de significação e representação de diversas
questões que traduzem, de alguma maneira, nossa noção de realidade. Identidade,
representação, arte e interdiscursividade são algumas das chaves de leitura nas quais se
ampara essa pesquisa, estabelecendo um encontro entre literatura e cinema na tentativa de
compreender melhor os sintomas de marginalidade, pobreza e desigualdade vigentes no Brasil
em dois contextos distintos e como que a engenharia dos recursos estéticos dará conta de
refletir tais problemáticas.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso - Estudos Culturais - Literatura comparada -
marginalização
ABSTRACT
This article discusses the social, cultural, economic and representational present in two works
of Brazilian artistic production: The literary nineteenth century work, The tenement in Aluísio
Azevedo and film production of the XXI century (2007), Father,. A incursions space in the
field of literature and comparative cultural studies in order to politicize art forms, showing
their potential significance and representation of various issues that translate in some way, our
notion of reality. Identity, representation, art and interdiscursivity are some of the keys of
interpretation in which it sustains this writing.
A meeting between literature and film in an attempt to better understand the symptoms of
marginalization, prevailing poverty and inequality in Brazil in two different contexts and how
that engineer the aesthetic resources will report to reflect such problems.
KEYWORDS: Comparative literature - marginalization - Cultural Studies - Speech –
neorealism
1 Artigo científico apresentado ao Programa de Pós-Graduação do Instituto Federal Fluminense (IFF) – campus
Campos-Centro, Campos dos Goytacazes- RJ, em 2015, como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) do Curso
de Pós-Graduação lato-sensu em “Literatura, Memória cultural e Sociedade”.
2 Autor do artigo e pós-graduando em “Literatura, Memória cultural e Sociedade” pelo IFF campus Campos-
Centro, Campos dos Goytacazes-RJ.
LITERATURA, COMPARATISMO E OS ESTUDOS CULTURAIS:
HORIZONTES DE SIGNIFICAÇÃO EXPANDIDOS
Esta seção de abertura dará abrigo às diretrizes teóricas que sustentarão as problemáticas
levantadas na pesquisa. O conceito e a importância da Literatura Comparada, o cotejo
possível entre diferentes sistemas semióticos (no nosso caso, Literatura e Cinema) e a
diminuição das fronteiras departamentais que foi feita pelos Estudos Culturais são os
enfoques aqui propostos.
A Literatura Comparada trata de um campo de estudo que possibilita o encontro entre
obras literárias diferentes, na tentativa de amplificar o conhecimento e as temáticas discutidas
por elas. O comparatismo, segundo Carvalhal e Coutinho (1994, p.15) é “tão antigo quanto o
pensamento humano.” Sempre tivemos a necessidade de estabelecer comparações,
demarcando similaridades ou disparidades entre dois ou mais elementos, na árdua missão de
distinguir o que é do que não é.
Sendo a literatura uma forma de expressão do humano, ou seja, inserida em um tempo,
em um contexto, carregada de tensões e problemáticas, acaba por se tornar uma espécie de
espelho que refletirá nossa própria imagem claudicante. E, assim, tal expressão do humano,
materializada em discurso, pertencente a uma dada época, pode ser analisada pelo viés da
comparação com outra produção de época e contexto diferentes, despertando, dessa maneira,
a possibilidade de enxergarmos melhor suas limitações e avanços.
Estudar a literatura sob uma perspectiva comparada só tem, então, a enriquecer as leituras
e os olhares sobre um dado aspecto, seja ele social, afetivo, cultural etc. Ao comparar, por
exemplo, o clássico da litertura shakesperiana Romeu e Julieta do final do século XVI com o
filme brasileiro Era uma vez (2008), dirigido por Breno Silveira, encontraremos elementos
bastante similares. A impossibilidade amorosa por conta das diferenças familiares, o final
trágico, a disputa de poder, tudo isso aparece em ambas as obras, reservados os contextos e
ambientações. Isso acaba trazendo à tona as mesmas questões e, assim sendo, torna a leitura
do texto-matriz mais ampla, permite a (re)contextualização da obra, a produção de novos
significados e, por conseguinte, de novas leituras.
O estudo comparado teve sua grande legitimação na efervescência das Ciências Naturais
do século XIX, e, na França, em pouco tempo, essa perspectiva cosmopolita e comparatista
chegou também à área dos Estudos Literários, originando, pois, a hoje conhecida Literatura
Comparada. Desde então, aproximar obras nacionais ou de diferentes nacionalidades começou
a ser enfoque não só nas academias francesas, mas em outros países como, Estados Unidos,
Rússia e Alemanha.
Atualmente, muitos pesquisadores desenvolvem suas análises usando a perspectiva
comparatista, na interface de duas obras literárias. Porém outros optam por uma leitura
intertextual servindo-se de duas ou mais produções artísticas de diferentes códigos estéticos,
como será o nosso caso. A literatura e o cinema, a literatura e as artes plásticas, a literatura e a
música, entre outros cotejos, são as relações às quais nos referimos quando falamos de uma
atividade crítica da Literatura Comparada mais contemporaneamente.
Há pesquisadores que condenam esses tipos de encontro, mantendo-se numa posição
mais ortodoxa em relação ao que pode ser comparado com a literatura ou não. Geralmente,
quem toma tal postura parte de critérios da Teoria Literária para avaliar a força significativa
da outra arte na sustentação de um encontro ou de uma discussão que se procure levantar. Em
um mundo em que predomina a “Cultura da imagem”, ou seja, a força da visualidade, o
literário influencia e é influenciado por tendências estéticas que não contemplarão somente o
código verbal no processo de significação.
Sendo assim, em contextos em que a proliferação de manifestações estéticas é cada vez
mais acentuada, deve-se considerar pertinente sim o encontro da literatura com os outros
campos da arte. Ao diferenciar o grupo de pesquisadores que defendem a Literatura
Comparada limitada ao cotejo literatura – literatura dos que se abrem para o encontro da
literatura com outra forma artística (cinema, música, artes plásticas etc), fala-se que o
primeiro grupo segue uma tendência mais voltada para a escola francesa e, já o segundo, para
a escola americana. Como nos aponta Tânia Carvalhal em Literatura Comparada. Segundo
Carvalhal (2006, p.16), “(...) ao lado da orientação francesa, também se costuma designar
como “escolas" a norte-americana e a soviética. A primeira, despojada de inflexões
nacionalistas, distingue-se da francesa por seu maior ecletismo”.3
A literatura e o cinema são dois campos da arte que podem ser aproximados pela
similaridade que possuem: a de narrar. Atualmente já se percebe que não só o cinema se
beneficia da força operacional do texto escrito, mas também a Literatura, principalmente a
contemporânea, tem incorporado técnicas da visualidade do cinema e até mesmo das artes
plásticas (plasticidade) para nos contar suas histórias. Como nos aponta Aguiar e Silva (1990,
p.178):
O texto fílmico narra frequentemente uma história, uma sequência de eventos
ocorridos a determinadas personagens num determinado espaço e num determinado
tempo, e por isso mesmo é tão frequente e congenial a sua relação intersemiótica
com textos literários nos quais também se narra ou se representa uma história.
Segundo Cardoso (2011), se a palavra acaba por nos levar a uma imagem, a imagem
também, para ser apreendida, instala um discurso, traduzindo-se através da palavra. Sendo
assim, palavra e imagem sempre se entrecruzam no processo de significação. O código escrito
e os códigos do cinematográfico acabam por remeter-se mutuamente, redimensionando e
expandindo o processo de leitura.
Contudo fazer uma análise comparatista entre um material literário e um
cinematográfico ainda tem sido desafio para alguns pesquisadores, haja vista que existe uma
avaliação severa cunhada por alguns expoentes da crítica artística. Esses acabam por fazer o
uso de critérios e valores estéticos da crítica literária para avaliar o cinema, que, muitas vezes,
é visto como cópia “infiel” do literário ou cruel demolidor da engenhosidade criativa que a
tessitura do texto escrito é capaz de criar no processo de leitura.
Thais Maria Gonçalves da Silva traz em seu artigo Reflexões sobre adaptação
cinematográfica de uma obra literária uma aproximação de alguns apontamentos feitos por
críticos artísticos em que podemos notar certa resistência para a abertura do encontro entre
literatura e cinema:
Em 1967, Assis Brasil, diferente de Epstein que se propunha a comparar literatura e
cinema no seu campo de significação e no seu meio de comunicação, fala
claramente sobre a adaptação da obra literária para o meio cinematográfico em seu
livro Literatura e Cinema: choques de linguagem.
Nessa obra, o autor defende a tese de que o cinema prejudica-se ao fazer uso da
literatura, porque vai contra sua linguagem particular. Como o cinema é uma arte
que se aproxima da literatura pela narratividade, Assis Brasil diz que algumas vezes
o processo literário serviu ao processo cinematográfico. Mas o filme e o livro são
obras de artes diferentes, que não se manifestam pelo mesmo meio ou para o mesmo
fim. (SILVA, 2012, p.185)
3 Grifo meu no intuito de destacar a palavra “ecletismo”, uma das chaves de leitura para melhor compreender a
perspectiva de Literatura Comparada, cunhada pelos norte-amercianos.
São várias as questões que tornam conflituoso o namoro entre cinema e literatura.
Quando o filme é uma adaptação de uma obra literária, por exemplo, há uma expectativa de
que se mantenha a fidelidade em relação ao que o discurso literário diz (ou procura dizer).
Espera-se que o escrito ganhe a materialização no audiovisual sem sofrer uma alteração
sequer. Neste caso, o da adaptação, partir do critério “fidelidade” é um equívoco. Sobre esta
questão, Cardoso (2011, p.110) diz ainda que:
Não há como transcodificar uma informação dada em um sistema de signos
específico e (re)codificá-la através de outro sistema semiótico sem que essa
informação, esse discurso sofra interferências, mutações, ainda que mínimas. É
necessário, para que o processo se viabilize convincentemente, que mudemos, por
vezes, o próprio teor da informação, adaptando-a, conformando-a ao novo veículo.
A arte do audiovisual não deve ser avaliada como uma devedora, aquela que possui
contratos incisivos, determinantes, pré-definidos e estanques com o literário. Mas sim, como
um sistema de signos próprios. Afinal, como Cardoso (2011, p.108) diz, o Cinema permuta o
discurso em som, luz, imagem e movimento, desvinculando-se do texto de origem, mas sem
perdê-lo de vista.
Sendo dessa maneira, podemos apreender que a literatura e o cinema são duas formas
de representação estética que dialogam, remetendo-se mutuamente e criando coligações
alusivas. Porém o que deve ser discutido não é o que o texto literário e o audiovisual dizem,
mas sim a forma de recepção dessas duas manifestações. Sobretudo, a recepção do cinema,
que não pode ser visto sob a ótica avaliativa dos critérios da teoria literária.
A linguagem do cinema pode apresentar aspectos similares aos do texto literário,
como por exemplo, as antíteses (oposições ideológicas), metonímias (aspecto contingencial),
ironias (crítica social), caráter metalinguístico (quando o código se autoexplica) etc. Contudo,
é preciso entender que a estruturação desses aspectos se dá pela organização e pelo uso dos
códigos de linguagem específicos de cada sistema semiótico, conforme nos aponta
Napolitano (2003, p. 57):
O conhecimento de alguns elementos de linguagem cinematográfica vai acrescentar
qualidade ao trabalho de análise. Boa parte dos valores e das mensagens
transmitidas pelos filmes a que assistimos se efetiva não tanto pela história contada
em si, e sim pela forma de contá-la. Existem elementos sutis e subliminares que
transmitem ideologias e valores tanto quanto a trama e os diálogos explícitos. [...]
As questões relativas à linguagem e à realização de um filme podem ser dividias em
três momentos: Do argumento ao roteiro, do roteiro à produção, da edição à
exibição.
Ratifica-se, pois, que a linguagem é o elemento crucial que distingue os dois sistemas
intersemióticos: a literatura e o cinema. É na elaboração e uso dos recursos específicos de
cada linguagem que poderemos avaliar a força expressiva dos enredos por eles narrados. Sem
compreender as configurações das linguagens e usando os mesmos critérios de avaliação para
dois sistemas de códigos estéticos distintos, tende-se a uma análise improdutiva. Portanto, é
necessário especular quais, como e por que usar determinados recursos/instrumentos de
linguagem? Que efeitos de sentido pretendem provocar?
As duas discussões apresentadas até aqui versaram sobre a Literatura Comparada e a
relação entre o Cinema e a Literatura e já prenunciaram, de alguma forma, que a proposta a
ser desenvolvida no percurso deste trabalho está pautada em um olhar híbrido, associativo,
capaz de contemplar diferentes instâncias de significação.
Neste momento, para encerrar esta primeira seção, onde o arcabouço teórico é em sua
maior parte abrigado, será trazido à tona o encontro entre a Literatura e os Estudos Culturais,
sendo esta última área de pesquisa a grande responsável pela averiguação de diversos
fenômenos/manifestações culturais presentes no mundo contemporâneo.
A ideia de que o termo cultura não se veicula somente à produção material, mas sim
compreende um conjunto de sistemas simbólicos e de significação, é o grande desafio dos
Estudos Culturais, não significando dizer, porém, que a materialidade produzida pelas
sociedades não deva ser analisada e levada em conta. A Antropologia Cultural, por exemplo,
trabalha com essa perspectiva do concreto e, por meio dele, consegue desenvolver suas
análises e tentativas de entender a cultura.
Todavia é de interesse entender a cultura sob o enfoque dos estudos culturais, ou seja,
“como conjunto de sistemas simbólicos e de significação” (WILLIAMS apud RESENDE,
2002, p.31), uma vez que trabalharemos com as questões de representação social, construção
de identidade, e, em alguma proporção, com as negociatas sócio-culturais na perspectiva das
trocas simbólicas.
Os Estudos Culturais não são altamente recentes, pois já vêm se configurando desde a
década de 50 do século passado, XX. Iniciados por estudiosos britânicos e esquerdistas e,
posteriormente, abraçados por estudiosos de outras origens étnicas, essa esfera do
conhecimento tinha como intuito rasurar as fronteiras estabelecidas pela academia.
Antropologia, Sociologia, História, Filosofia e Literatura, por exemplo, em vez de
analisadas como departamentos estanques, poderiam dialogar seus enfoques para dar conta
dos aspectos do principal filtro capaz de revelar o indivíduo em sua inscrição no mundo: a
cultura.
Segundo Resende (2002), os Estudos Literários podem se tornar efetivamente mais
politizados quando neles se procura abarcar questões como gênero, etnicidade, identidades
culturais, marginalidade etc, por serem essas temáticas contempladas pelos Estudos Culturais.
A literatura, sendo assim, se redimensiona e é vista como espaço discursivo capaz de revelar,
efetivamente, as diversas facetas representacionais da sociedade. A literatura passa a ser
entendida como veículo que impulsiona discussões de questões pertinentes à realidade que
nos cerca.
Dessa maneira, vejamos como Resende (2002, p.49) finaliza seus apontamentos sobre
os Estudos Culturais no artigo “A indisciplina dos estudos culturais”:
Finalmente, gostaria de terminar dizendo que, sobretudo, o que me interessa nos
Estudos Culturais é a politização – no sentido grandioso que a palavra deve ter – da
investigação intelectual proposta. É na pluralidade cultural, no reconhecimento das
diversas subjetividades, nas múltiplas identidades e na certeza de que, por exemplo,
existem na literatura brasileira, muitas literaturas brasileiras, que está a possibilidade
de se reconhecer o complexo, o diferente, o outro.
Vimos que os Estudos Culturais realmente politizam os sentidos da Literatura e a
redimensionam, por usá-la como veículo de entendimento acerca de diversas questões.
Entretanto, conforme já nos alertara Bhabha (1998), a diversidade cultural não deve ser
apenas celebrada inocentemente, uma vez que não podemos nem devemos desconsiderar os
acirramentos existentes no interior dos trâmites de negociação das identidades, mas sim
analisar, discutir, desenvolver senso crítico e procurar entender essa multiplicidade de
culturas.
A importância de estabelecer, portanto, o encontro entre a Literatura e os Estudos
Culturais é o caráter cosmopolita desta última esfera – lógica cosmopolita esta em que nos
inserimos na atualidade, conforme nos esclarece Canclini (2005, p. 154): “o que lhes dá maior
abertura e densidade intelectual é atrever-se a manejar materiais conexos, que não eram
considerados conjuntamente para falar de um tema.”
LINGUAGENS E CENAS: OS CORTIÇOS FALAM
Neste momento da pesquisa, será feita uma abordagem conceitual de forma sucinta
acerca de algumas linhas de pensamento e das estéticas artísticas em que se inserem as obras
analisadas: o Determinismo do século XIX e suas influências nas produções estéticas desta e
de posteriores épocas.
O século XIX foi um momento de intensa produção intelectual na Europa, em que
surgem e são desenvolvidas diversas linhas de pensamento tanto na esfera das Ciências
Humanas quanto das Ciências Biológicas. As artes, neste momento, assim como em todo o
percurso histórico-cultural da humanidade, refletirão essas efervescentes formas de ver e
pensar a realidade. A coleta de dados, a análise, o método, o cunho investigativo e a
formulação de hipóteses são os componentes elementares na observação dos fatos do pensar
cientificista. E é nesse ínterim que se insere a obra literária a ser analisada.
Conceito desenvolvido por Hippolyte Taine (1828-1893), o Determinismo foi uma das
linhas de pensamento bastante influente nesta época e que se fragmentou em subdivisões na
tentativa de justificar os comportamentos individuais e socais das configurações das
sociedades daquele tempo. São algumas dessas subdivisões o determinismo social, o
determinismo geográfico e o determinismo biológico. Apesar de ser considerado atualmente
um pensamento ultrapassado e restrito, teve reverberações significativas na maneira de se
avaliar os fenômenos sócio-culturais de diferentes grupos em todo o mundo.
Nascendo em um determinado grupo e sob condições sociais específicas, o indivíduo é
fadado a um percurso existencial limitado. Isto é, o Determinismo acredita ser o indivíduo o
produto de seu meio. De acordo com esse pensamento, desconsidera-se qualquer
possibilidade de existência que não esteja no planejamento das condições sociais
determinantes. Por exemplo: se o indivíduo nasce em um ambiente hostil, desfavorecido
financeiramente, sem uma formação afetiva saudável, ele estará fadado à brutalidade e à
ignorância, sem nenhuma perspectiva de superação.
Evidentemente sabemos que as trocas simbólicas, a cultura, os núcleos sociais em que
o indivíduo atua em todo seu processo de formação, assim como outros fatores afins, acabam
por influenciar os seus comportamentos. Contudo não serão determinantes a ponto de fechá-lo
na asfixia da não-possibilidade, da não-ocorrência, sendo, pois, o Determinismo pautado em
uma lógica restritiva e, consequentemente, contestável.
A literatura, como forte veículo de expressividade da lógica de vida vigente e na
contextualização de uma sociedade que vive em dada época, acaba assumindo, neste
momento, um caráter cientificista. Personagens, ambientes, fatos, influências, (des) pudores,
tudo confabula para uma narrativa preocupada em desnudar o que até então era ocultado e/ou
idealizado na perspectiva romântica.
Bosi (1999, p.173) diz: “(...) Do Romantismo ao Realismo houve uma passagem do
vago ao típico, do idealizante ao factual (...) A prosa de ficção ganhou em sobriedade e em
rigor analítico com o advento da nova disciplina”. Tais palavras do crítico Alfredo Bosi
entram, neste momento do discurso, com intuito de reiterar a passagem da literatura romântica
para a realista e as mudanças cruciais que essa passagem provocara.
Se antes a narração era quase um êxtase, as paisagens idealizadas e a superação das
mazelas era algo certo ao final das obras, o realismo vem esvaziar, com sua práxis descritiva,
objetividade e cientificismo, toda e qualquer tentativa de ocultar os acirramentos e
problemáticas da vida no plano individual e, sobretudo, na coletividade do social.
Além do clássico Realismo apresentado acima, é fundamental falarmos da linha de
produção literária extensiva a ele: o Naturalismo. Esta linha de produção, certamente, por ser
uma expansão do Realismo, contará com a presença de elementos como: descritivismo,
análise de fatos, experimentação, influência científica. Entretanto o que a torna algo mais
específica e profunda é sua preocupação em demonstrar, por meio da obra literária, teses
científicas, principalmente as de psicopatologia. Assim nos aponta Cunha (1984, p.154):
O Naturalismo assume uma posição combativa na análise de problemas que a
decadência social evidenciava e faz do romance uma verdadeira tese, com intenção
científica. (...) Os naturalistas vão mais longe que os realistas nas descrições
repugnantes e repelentes, movidos pela certeza de seu papel cientifico mais efetivo.
Ao se propor uma análise de qualquer aspecto da obra O cortiço, por exemplo, como é
o nosso caso, é imprescindível apontar para as características do Realismo-Naturalismo. A
citação acima sintetiza de forma clara que, além de todos os aspectos do Realismo já
apresentados aqui, a proposta do Naturalismo vai mais além, no sentido de usar a obra como
uma espécie de laboratório, em que as personagens, nas suas condições irrisórias de
existência, tentam dar conta de sobreviver. As metáforas, símiles, zoomorfismo, descrição
espacial e dos indivíduos, tudo isso assume um caráter biológico; ferida exposta, descrita e
remexida, apresentada na tessitura de uma análise das patologias sócio-culturais da época.
A literatura enquanto linguagem artística elabora enredos, personagens, tipos e tensões
que partem de uma realidade que se faz ressonante na tessitura das tramas, mas que não
necessariamente se revela tal como a vida é. Afinal, segundo Martins (2007, p.1): “Ao recriar
as experiências subjetivas ou coletivas, a literatura fissura o sentido único com o qual se
fundam determinadas verdades históricas (...). A linguagem literária, em vez de subtrair