O nascimento da Repblica e os jabutis em cima das rvores
(3)Continuao da edio anterior
Patrocnio percebeu que a poltica que at ento empreendera que
tirava o centro da Repblica para se concentrar na resistncia aos
ex-senhores de escravos no era vivel. Ou, possvel que tenha
pensado: no era mais vivel. Se foi isso, ele estava errado em
pensar que alguma vez fosse vivel tal poltica. Simplesmente ela no
correspondia ao conjunto de necessidades do pas naquele momento.
Mas, seja l qual tenha sido o pensamento de Patrocnio, o resultado
prtico foi o mesmo: sua reintegrao ao movimento republicano em
junho de 1889CARLOS LOPESNos parece que um contemporneo de
Patrocnio e Silva Jardim - Rui Barbosa, na poca redator-chefe do
"Dirio de Notcias", jornal publicado no Rio de Janeiro disse o mais
importante sobre a Guarda Negra:
"Esta inveno teve o seu bero na polcia, recebeu o enxoval do
Tesouro, a beno do presidente do conselho e a santificao batismal
da regncia[isto , da Princesa Isabel, que era a regente]. Nasceu
adulta no mal e sequiosa de sangue, em que banhou as suas primeiras
armas, na capital do imprio, aos 30 de dezembro de 1888. Da em
diante cada um dos seus movimentos, no interior, tem sido um crime,
e todos eles perpetrados sob o nome da serenssima princesa, como
tributo de gratido s suas virtudes, como aviso aos adversrios do
princpio que sua alteza representa"(Rui Barbosa, "Trono e Mazorca",
Dirio de Notcias, 20/04/1889, primeira pgina; o texto desse artigo
que consta das Obras Completas de Rui, Vol. 16, tomo 2, p. 75, foi
ligeiramente modificado, em questes de linguagem e estilo;
preferimos aqui manter o original, tal como os leitores da poca
puderam ter acesso - exceto, claro, pela ortografia).
Rui, nesse artigo, descreve a ao da Guarda Negra para impedir o
republicano Nilo Peanha de falar em Laje do Muria, no Estado do
Rio:
"A cumplicidade policial assegura-lhe, por toda a parte, a mais
absoluta impunidade. Os telegramas de ontem, acerca das ocorrncias
do dia 17 na Laje do Muria, revelam novas circunstncias, de
significao cada vez mais odiosa. O cidado Antonio Pereira, ferido
por um tiro, foi, ainda em cima, submetido priso, subjugado a um
tronco, torturado no decurso da noite, durante a qual se ouviram
partir da cadeia gritos lancinantes. O tribuno popular, ferido ele
mesmo, evitou o assassnio, com que o ameaavam a fora e os libertos,
sob a direo do comandante do destacamento, deixando o arraial,
cujos pontos de sada estavam guarnecidos pelos malfeitores e pela
polcia. () Que diremos ns de um regmen, que organiza guardas
pretorianas contra as instituies liberais, e entrega os direitos
populares escopeta dos bandidos? No ser afugentar da monarquia para
a repblica todos os espritos liberais e todos os conservadores
esclarecidos, aliando o trono mazorca?" (Rui, loc. cit.).
Patrocnio no foi "organizador" desse bando de arruaceiros
anti-republicanos. Mas que teve a iluso de que a Guarda Negra,
debaixo da sombra da monarquia, pudesse se transformar no primeiro
partido negro do pas, no existe dvida alguma. As provas so os
artigos de seu jornal, "Cidade do Rio", alguns, no poucos, de sua
prpria lavra, se assim podemos nos expressar.
A nota sobre a fundao da Guarda foi um desses artigos redigidos
pelo prprio Jos do Patrocnio, publicado na edio de 10 de julho de
1888 de "Cidade do Rio":
"Ontem noite (...) os pretos libertos Hygino, Manoel Antonio,
Jason, Aprgio, Gaspar e Thecrito reuniram-se em casa de Emlio
Roude, o infatigvel abolicionista de todas as tiranias, de todos os
preconceitos, de todas as ingratides, e acordaram fundar uma
associao que, com o ttulo de Guarda Negra da Redentora, se
dedicasse em corpo e alma e em todos os terrenos defesa do reinado
da excelsa senhora que os fez cidados.
"Esses homens agradecidos tomaram as seguintes deliberaes, que o
meu amigo Roude me facilita, pedindo ao mesmo tempo as publique e
coadjuve a realizao de to belo pensamento. Como nunca neguei nada a
esse bom amigo, acedo gostosamente ao seu pedido.
"Ficou assentado:
"1 Criar uma associao, com o fim de opor resistncia material
qualquer movimento revolucionrio que hostilize a instituio que
acabou de libertar o pas".
Depois de transcrever outras deliberaes, de carter organizativo,
Patrocnio comenta:
" com verdadeira satisfao que escrevo estas linhas. Sinto neste
momento uma alegria indescritvel, porque vejo que no nosso pas h
gratido; que por baixo da pele bronzeada dos libertos corre um
sangue saturado de agradecimento, e enfim que, se os fazendeiros
despeitados compram almas para apont-las contra a Redentora, os
escravos que Ela transformou em cidados rodearo o seu trono e
sabero morrer em sua defesa" (cf. "Chronica de hontem", in Cidade
do Rio, 10/07/1888).
JORNALISMO
Pior ainda foi como o jornal de Patrocnio noticiou a batalha do
dia 30 de dezembro de 1888:
"O modo como os republicanos de 14 de maio [isto , os senhores
de escravos contrariados pela Abolio] esto dirigindo a propaganda
contra as instituies vigentes tem provocado em toda a parte do pas
a maior indignao. Desnaturado o sagrado ideal da Repblica,
servem-se dele como a arma de vingana contra a monarquia, os que no
queriam e no querem ainda agora conformar-se com a igualdade de
todos os brasileiros" (cf. "O Dia de Hontem", in "Cidade do Rio",
31/12/1888).
Silva Jardim no era, evidentemente, um "republicano de 14 de
maio" - pelo contrrio, como Jlio de Castilhos e Raul Pompeia, era
um dos muitos jovens que despertara politicamente sob a influncia
de Luiz Gama. Ao filiar-se no Clube Republicano de Santos,
declarara que os republicanos tinham que ter "uma cor
acentuadamente abolicionista" (apesar de fluminense, Silva Jardim
morava em Santos com a esposa, sobrinha-neta de Jos Bonifcio).
Patrocnio sabia disso, mas o texto escracha os "oradores da
repblica escravista". Segue-se uma bajulao da princesa Isabel ("Me
dos Cativos", etc.) e uma defesa da "Guarda Negra da Redentora",
que, segundo o jornal, " um verdadeiro partido poltico, to
respeitvel como qualquer outro".
Depois de transcrever uma nota do "chefe-geral" da Guarda Negra,
Clarindo de Almeida, negando a participao de seus chefiados na
invaso do prdio da Sociedade Francesa, diz o texto:
"Apesar da absteno da Guarda Negra, foi impossvel conter, ontem,
a exploso de clera popular que desde muito fumega do carter e do
brio nacional, contra essa propaganda que insulta duas vezes a
ptria, rebaixando-lhe o ideal americano e uma raa que pelos seus
sentimentos generosos conseguiu fazer-se amar ao ponto de sermos ns
um povo quase sem preconceitos de cor".
RETOMADA
Convenhamos que difcil condenar o jovem Silva Jardim (que, alis,
jamais seria velho: tinha 30 anos quando desapareceu, na cratera do
Vesvio, em Npoles) por denunciar Jos do Patrocnio...
Tanto isso verdade que Patrocnio mudou a sua posio, antes da
Proclamao da Repblica, reconciliando-se com seus companheiros
republicanos. A partir de maio de 1889, com a queda do gabinete Joo
Alfredo e a sua substituio pelo visconde de Ouro Preto, Jos do
Patrocnio retoma a campanha republicana.
Quando, em 14 julho de 1889, a Guarda Negra foi usada para outro
ataque violento aos republicanos - que comemoravam o dia da queda
da Bastilha - no centro do Rio, naquela que era ento a principal
via da capital, a rua do Ouvidor, Patrocnio escreve "Aos homens de
cor", classificando o acontecido como "cena de barbrie". Diz
ele:
"Os acontecimentos de ontem demonstram que os nossos irmos esto
sendo criminosamente explorados. S a mais infame especulao podia
conseguir que partisse de homens de cor a perturbao de uma festa
que tinha por fim honrar a memria da Revoluo, que teve como um dos
seus dogmas a libertao dos cativos e a igualdade poltica da raa
negra.
"Como se pode explicar a revolta da Guarda Negra contra
homenagens aos que primeiro levantaram a questo da liberdade dos
cativos negros, quando ela est pronta a morrer pela princesa s
porque esta assinou a lei de 13 de maio?"No salta aos olhos que uma
perigosa influncia est desnaturando criminosamente os fins da
instituio, e convertendo-a no mais perigoso dos instrumentos,
porque ser destinado a servir indistintamente aos dois partidos e a
sustentar todos os atentados do governo, pelo mais condenvel dos
meios - a supresso da liberdade de tribuna, de imprensa e de
reunio?"
E acrescenta:
"Ao signatrio destas linhas deram a responsabilidade dos
primeiros abusos de liberdade por parte da Guarda Negra. (...) Eu
nunca aconselhei a violncia..." (cf. Cidade do Rio, 15/07/1889,
primeira pgina).
DISPUTA
Sobre seu apoio ao gabinete do Partido Conservador chefiado pelo
conselheiro Joo Alfredo, Patrocnio dir, quando da sua queda: "no se
tratava da sorte de um gabinete, mas da dignidade de um reinado"
(cf. Cidade do Rio, 01/06/1889).
Essa uma questo importante: entre o 13 de Maio e a queda de Joo
Alfredo (o gabinete ficou inviabilizado a 4 de maio de 1889 e o
poltico pernambucano saiu do governo no dia 7 de junho), toda a
formulao de Patrocnio que o objetivo central da luta barrar a reao
dos fazendeiros, ex-senhores de escravos, contra a Abolio,
inclusive barrar as propostas de indenizao pelos escravos
"perdidos".
Da a sua ideia de uma aliana com a monarquia, atravs da princesa
Isabel e seu futuro terceiro reinado. Obviamente, isso implicava em
adiar a Repblica.
Para Silva Jardim, Lopes Trovo e a maioria dos republicanos,
pelo contrrio, a Repblica que poderia ser a garantia contra
qualquer reao ou compensao escravista.
Porm, Patrocnio criticava nos republicanos e especificamente em
Silva Jardim - exatamente a sua aproximao com os fazendeiros, a
antiga base da monarquia. Para Silva Jardim, pelo contrrio, passar
Repblica era o principal. Ele via os fazendeiros como uma espcie de
reserva dos republicanos.
A questo histrica que o Imprio, acuado pelo movimento
abolicionista, se chocara com sua prpria base e a destrura, com a
Abolio.
Do ponto de vista poltico, isso se manifestou atravs da queda de
Joo Alfredo e das dificuldades para conseguir quem chefiasse um
novo gabinete sucessivamente, o imperador, que voltara da Europa,
fracassou ao convidar o conselheiro Manuel Correia, depois o
visconde de Cruzeiro, e, depois, o visconde de Vieira da Silva,
todos do Partido Conservador.
Convidou, ento, um membro do Partido Liberal, o famoso
Conselheiro Saraiva mas este, um monarquista histrico, disse ao
imperador que preparasse o pas para a Repblica. Segundo o relato de
Saraiva, o imperador perguntou: "e minha filha?", ao que ele
respondeu: "O reinado de vossa filha no deste mundo" (cf. Heitor
Lyra, "Histria da Queda do Imprio", Tomo I, Companhia Editora
Nacional, So Paulo, 1964, p. 343).
Assim, quase por eliminao, o gabinete ficou para o liberal
Afonso Celso o visconde de Ouro Preto - que ficou na Histria como o
poltico mais obtuso que o Imprio teve frente de um gabinete,
incapaz de perceber o que estava acontecendo ou mesmo o que j tinha
acontecido, como mostram as suas memrias.
Entretanto, quando o gabinete Joo Alfredo caiu, Patrocnio
percebeu que a poltica que at ento empreendera que tirava o centro
da Repblica para se concentrar na resistncia aos ex-senhores de
escravos no era vivel. Ou, possvel que tenha pensado: no
eramaisvivel. Se foi isso, ele estava errado em pensar que alguma
vez fosse vivel tal poltica. Simplesmente ela no correspondia ao
conjunto de necessidades do pas naquele momento. Mas, seja l qual
tenha sido o pensamento de Patrocnio no entraremos aqui, por
desnecessrio e por falta de espao, em seus escritos e
pronunciamentos posteriores o resultado prtico foi o mesmo: sua
reintegrao ao movimento republicano em junho de 1889.
Assim, no dia 11 de junho de 1889, ele escreveu:
"Mas, entre Isabel, a Redentora, e o nosso corao, est a nossa
Ptria, que maior que ela e que ns outro. Entre os interesses
pessoais da princesa e a nossa dedicao, esto os interesses sagrados
da liberdade nacional. Nunca prometemos sacrificar esta por amor
daquela. (...) No prometemos nunca apoio cego e obstinado; no
prometemos o futuro da nao brasileira, que no nosso, em holocausto
ao dia 13 de maio" (Cidade do Rio, "Notcias de Isabel, a
Redemptora", 11/06/1889, primeira pgina).
Assim terminava a disputa entre duas polticas, dentro dos
republicanos. Ainda haveria outra: aquela entre os
"evolucionistas", liderados por Quintino Bocaiva, e os
"revolucionaristas", liderados por Silva Jardim, que atravessa
1889, at 15 de novembro, apesar da vitria de Bocaiva no Congresso
Republicano de maio daquele ano.
Mas Patrocnio no seria e no foi - um "republicano de ltima
hora". E no guardaria ressentimentos em relao Silva Jardim os dois
estariam juntos na Proclamao da Repblica. Depois, seria de
Patrocnio o obiturio mais famoso de Silva Jardim:
"Bela sepultura o vulco, extraordinrio destino o do grande
brasileiro; at para morrer converteu-se em lava".
Continua na prxima edioO nascimento da Repblica e os jabutis em
cima das rvores (4)Continuao da edio anterior
H certas questes historiogrficas, no Brasil, que parecem beirar
a maluquice o que uma consequncia da intensa luta ideolgica, que
sempre houve, cada vez mais intensa, sobre a Histria do
BrasilCARLOS LOPESPassemos a outra descoberta do sr. Laurentino
Gomes:
"O padre Diogo Antnio Feij, ministro da Justia e depois regente
do Imprio, promoveu uma profunda reforma nas Foras Armadas. O
Exrcito foi praticamente dissolvido. Em seu lugar organizou-se a
Guarda Nacional, sob controle civil, inspirada nas milcias de
cidados da Revoluo Francesa. A ptria em armas zelaria pela prpria
segurana"(cf. Laurentino Gomes, "1889", Ed. Globo, 2013 p. 84).
A ideia do Padre Feij influenciado pelas milcias da Revoluo
Francesa to fantstica que talvez seja uma tentativa de homicdio por
matar as pessoas de rir.
No que Feij fosse um tolo ou ignorasse as revolues do seu tempo
(nasceu em 1784), como mostram as edies do jornal que publicou em
So Paulo, "O Justiceiro" (h uma coleo na Hemeroteca Digital
Brasileira).
Mas a sua grande preocupao, como ministro da Justia e como
regente, no era democratizar a defesa nacional e muito menos atravs
da Guarda Nacional.
J em 1835, logo depois de assumir a Regncia, Feij estava to
dedicado a reprimir as revoltas que se alastravam pelo pas talvez
seja mais preciso dizer, desesperado que resolveu pedir a interveno
inglesa e francesa,e mesmo portuguesa(ou seja, da antiga metrpole
da qual o Brasil se separara havia pouco), contra a "cabanagem", no
Par.
Esse pedido era inteiramente ilegal, como o prprio Feij disse
aos embaixadores estrangeiros.
O documento que transcrevemos abaixo o relatrio do embaixador
ingls no Brasil ao seu chefe, o ministro do Foreign Office em
Londres o notrio Henry Temple, visconde Palmerston - sobre a
audincia com Feij:
"De: Henry Stephen Fox, Ministro de Sua Majestade Britnica no
Rio de Janeiro
"Para: Lorde Palmerston
"Data: 17 de dezembro de 1835
"Local: Rio de Janeiro
"Despacho n 61
"Secreto e Confidencial
"Excelncia
"H alguns dias, eu e Monsieur Pontois, ministro francs na Corte
do Brasil, fomos convidados pelo Regente Feij para uma conferncia
particular, quando Sua Excelncia nos fez a seguinte comunicao
confidencial:
"Ele disse que o Governo brasileiro estima que possa reunir no
Par, por volta do ms de abril prximo, uma fora de 3.000 homens,
compreendendo 2.000 soldados regulares; que ele calcula que essa
fora seja suficiente para retomar a cidade do Par e vizinhanas; mas
que, no obstante, para tornar o xito mais seguro e para privar os
rebeldes de qualquer esperana de resistncia, ele desejaque a
Inglaterra, a Frana e Portugal faam reunir no Par, aproximadamente
no mesmo perodo, e como se fosse por acaso, uma esquadra de navios
de guerra, transportando uma tropa de cerca de 1.000 soldados
regulares, aptos para servio em terra, quer dizer, cerca de 300 a
400 de cada nao. Ele prope que esta fora deveria ficar de prontido
para cooperar com as tropas brasileiras, a pedido e discrio das
autoridades civis e militares brasileiras no comando e que seriam
mais particularmente empregadas na ocupao temporria dos postos do
Maraj, Camet e outros lugares nos arredores da cidade do Par; tal
cooperao, ele julga, seria suficientemente justificada, ao que
parece, pelo interesse geral da humanidade e civilizao, como tambm
pelos motivos particulares de proteger nossos respectivos
conterrneos e de coloc-los novamente de posse de suas residncias e
propriedades sem que fosse de conhecimento pblico que as medidas
foram usadas a pedido do Governo brasileiro."Monsieur Pontois e eu
concordamos imediatamente e declaramos ao Regente que estvamos
prontos para transmitir seu comunicado a nossos respectivos
governos, mas que no espervamos que qualquer resultado sucedesse a
no ser que o comunicado fosse feito por escrito (o que poderia ser
feito de maneira igualmente confidencial) para que pudssemos
informar nossos Governos exatamente sobre a extenso da cooperao que
Sua Excelncia desejava obter, seus limites e objetivos expressos; e
ainda, para justificar essa cooperao, caso se concretizasse e fosse
contestada por qualquer parte no Brasil. O Regente nos respondeu
que, como a Constituio do Imprio proibia taxativamente a admisso de
tropas estrangeiras no territrio brasileiro sem o consentimento da
Assembleia Geral (o que no poderia ser alcanado agora em tempo
hbil), ele estava impossibilitado de colocar sua proposta por
escrito e que, alm disso, seria desonroso para o Governo tornar
oficialmente conhecido que eram incapazes, sem ajuda estrangeira,
de dominar um punhado de rebeldes desgraados e que, portanto, ele
somente poderia solicitar que comunicssemos aos nossos Governos o
que ocorreu nessa entrevista, como o assunto de uma conversa
confidencial com o Regente, deixando ao encargo dos nossos Governos
enviar aos comandantes de suas respectivas foras navais aquelas
instrues que achassem convenientes sobre o posto em questo.
"Monsieur Pontois e eu prometemos ao Regente, portanto, que
faramos o comunicado aos nossos Governos na forma confidencial que
ele desejava, mas no lhe oferecemos qualquer certeza, at onde
valesse nossas opinies, de ser atendido seu pedido de cooperao. O
Regente declarou, em resposta a uma pergunta minha, que nem os
ministros brasileiros residentes na Inglaterra e na Frana, nem o
Marqus de Barbacena, agora encarregado de uma misso especial na
Inglaterra, seriam informados do comunicado que ele acabava de nos
dar em confidncia.
"O acima exposto o contedo da conversa com o Regente, do qual eu
e M. Pontois concordamos em fazer um sumrio depois que se conclusse
a entrevista. O mnimo que posso fazer, claro, transmitir o
comunicado a Vossa Excelncia, mas no creio que haja a menor
probabilidade de o Governo de Sua Majestade ou de o Governo Francs
aquiescerem aos desejos do Regente, ou consentirem em comandar uma
operao militar com base em um pedido to informal e vagamente feito.
A proposta do Regente , como ele mesmo admitiu, uma violao direta
das leis e da Constituio do pas e seria, claro, imediatamente
rejeitada, e a culpa da interveno no autorizada atribuda aos
poderes estrangeiros se achasse conveniente faz-lo.
"Devo observar, tambm, que no creio que haja a menor
probabilidade de que o Governo brasileiro consiga, agora ou no
futuro, reunir diante do Par uma fora regular to grande como a que
o Regente propunha contar.
"O ministro portugus no foi convidado pelo Regente para a mesma
conferncia comigo e com o ministro francs, porm, quero crer que uma
comunicao semelhante j lhe tenha sido feita, ou est prestes a s-lo,
em separado. Empregar no Par os ingleses ou franceses, junto com
uma fora portuguesa, tornaria ainda mais questionvel esse
procedimento, considerando na peculiar ciumeira da influncia e dos
propsitos que Portugal ainda nutre por este pas.
"Arrisco-me a sugerir, sem prejudicar o Regente Feij, cuja
conversa comigo e com M. Pontois foi particular e confidencial, que
seria prudente no mencionar esse assunto ao Marqus de Barbacena,
que provavelmente estar em contato com Vossa Excelncia sobre outras
questes."(cf. David Cleary (org.),"Cabanagem - Documentos
Ingleses", trad. Cristine Moore Serro, SECULT/IOE, 2002, p.
188).
ORSAY - PARIS
No reproduzimos esse relatrio para mostrar que o padre Feij era
entreguista mas para mostrar a que ponto chegava o desespero em
1835.
O regente, alis, no tinha o apoio da principal figura do Exrcito
- e principal regente do triunvirato que antecedera Feij - general
Francisco de Lima e Silva, ou de seus irmos, generais Jos Joaquim e
Manuel da Fonseca de Lima e Silva, embora tenha contado com a
colaborao do filho do primeiro, major Lus Alves de Lima (o futuro
Duque de Caxias), na organizao da Guarda Nacional.
O outro motivo porque reproduzimos o relatrio do embaixador
ingls que h certas questes historiogrficas, no Brasil, que parecem
beirar a maluquice o que uma consequncia da intensa luta ideolgica,
que sempre houve, cada vez mais intensa, sobre a Histria do
Brasil.
Quando o ingls David Cleary, diretor no Brasil da ONG
"ambientalista" norte-americanaThe Nature Conservancy (TNC)
sustentada pelo Goldman Sachs, BP, ExxonMobil, Morgan Stanley,
Phillips Alaska, Capital Research and Management Company, Duke
Energy e outras entidades filantrpicas - publicou o relatrio do
embaixador ingls, a mdia por aqui fez um escndalo. Segundo vrios
elementos, Cleary havia revolucionado, com uma descoberta indita,
os estudos sobre a Regncia, e, especialmente, sobre a Cabanagem,
descobrindo algo completamente indito. Pretensamente, queriam
mostrar como Feij era submisso e como era "ordinria" a nossa
histria. O livro de Cleary foi, em seguida, traduzido e publicado
pela Secretria de Cultura do Estado do Par.
No procure o leitor alguma coerncia nesse magote de entreguistas
acusando Feij de... entreguista. A coerncia no nem pode ser a
especialidade de quem se coloca, a rigor, contra a Histria. O ideal
dessa malta que a Histria no existisse ou chegasse ao fim, desde
que com os seus amos por cima do pas e da Humanidade.
A coletnea de Cleary tem coisas interessantes como a ntegra do
relatrio que transcrevemos.
Porm, no existe novidade na reunio de Feij com esses
embaixadores. Em 1937, Alberto Rangel revelara esse encontro, a
partir de arquivos diplomticos franceses. O livro de Rangel foi
publicado, portanto, 65 anos antes da publicao do livro de Leary
(cf. Alberto Rangel,"No rolar do tempo opinies e testemunhos
respigados no Arquivo do Orsay Paris", ed. Jos Olympio, Coleo
Documentos Brasileiros, 1937).
Em 1942, Octvio Tarqunio de Sousa, baseado em Rangel, descreveu
outra vez a audincia de Feij com os dois embaixadores. O trecho
abaixo foi extrado da segunda edio de seu livro sobre Feij, stimo
volume da"Histria dos Fundadores do Imprio do Brasil":
"Na mesma carta de 10 de dezembro de 1835 ao marqus de
Barbacena, [Feij] dava notcia do que fizera, esperando ter no Par,
em abril de 1836, 2.000 homens de terra e 1.000 de mar, com uma
esquadrilha de 12 vasos pequenos, uma corveta e um barco de vapor,
ao mesmo tempo que pedia o engajamento de 500 homens na Europa,
para o mesmo fim.E to preocupado estava com as desordens no extremo
Norte, que no trepidou em entabular com os ministros da Frana, da
Inglaterra e de Portugal acreditados junto ao seu governo negociaes
no sentido de obter a cooperao de foras navais desses pases,
visando sobretudo a impressionar os rebeldes."Pontois,
representante diplomtico da Frana, narrando esse episdio, em nota
ao Quai dOrsay, informou que, juntamente com o ministro ingls, se
dispusera a aceitar a proposta, mas com a condio do governo
brasileiro fazer o pedido por escrito,ao que se negara Feij,
invocando a Constituio que no permitia a admisso de tropas
estrangeiras no territrio nacional sem autorizao da Assemblia
Geral." (cf. op. cit., p. 259/260, grifos nossos).
O relato do embaixador francs , portanto, idntico ao do
embaixador ingls. A revelao do relatrio deste ltimo, em 2002, no
acrescentou novidade. O desastre somente no se consumou porque
Feij, ao contrrio de outros governantes, respeitou algum limite,
quando os embaixadores pediram um documento assinado, ainda que
secreto (se h algo que Feij conseguia perceber era o cheiro da
chantagem).
Interessante o comentrio de Octvio Tarqunio de Sousa:
"Eis at onde o arrastavam alguns dos defeitos mais constantes do
seu carter e temperamento: pessimismo catastrfico, falta de
confiana nos outros, impacincia que se transformava por vezes em
precipitao. Sem o auxlio das foras navais estrangeiras o Par voltou
pouco tempo depois tranquilidade. Por que, pois, esse apelo
infeliz?"(cf. Octvio Tarqunio de Sousa,Histria dos Fundadores do
Imprio do Brasil Vol. VII, Ed. Jos Olympio, Rio, 2 edio, 1957, p.
260).
MODELO
Foi em meio a esse desespero que Feij apresentou o projeto da
Guarda Nacional.
Na sua bibliografia, o sr. Gomes omite Jos Honrio Rodrigues.
Talvez porque seja um historiador "muito nacionalista" - ou talvez
porque Jos Honrio fosse um torcedor muito fantico do Flamengo.
Mas ele omite, tambm, os historiadores monarquistas, por
exemplo, Octvio Tarqunio de Sousa e sua monumental"Histria dos
Fundadores do Imprio do Brasil".
Eis como Octvio Tarqunio relata a criao da Guarda Nacional:
"Impunha-se processar e castigar os que atentaram contra a ordem
pblica, e para isso Feij expedia os atos necessrios. Mas era mister
organizar a defesa da sociedade com a distribuio de armas aos
elementos de confiana,a trs mil cidados com a qualidade de
eleitor.Antecipava-se o ministro da Justia providncia julgada
salvadora e que estava em discusso nas Cmaras. Essa grande
providncia em breve se concretizaria na lei de 18 de agosto, que
estabeleceu no Brasil a Guarda Nacional, e cujo artigo 1 dizia: As
guardas nacionais so criadas para defender a Constituio, a
Liberdade, Independncia e Integridade do Imprio; para manter a
obedincia s leis. conservar ou restabelecer a ordem e a
tranquilidade pblica; e auxiliar o Exrcito de Linha na defesa das
fronteiras e costas."(Octvio Tarqunio de Sousa,Histria dos
Fundadores do Imprio do Brasil Vol. VII, Ed. Jos Olympio, Rio, 2
edio, 1957, p. 166, grifo nosso).
Tarqunio observa que Evaristo da Veiga (nessa poca, prcer do
"partido moderado" e principal apoiador da candidatura Feij ao
cargo de regente - mas, acrescentamos ns, sempre um romntico) era
entusiasmado pela ideia de uma "milcia cidad" que seria "a nao toda
em armas" e - ainda nas palavras de Evaristo - "um fruto da revoluo
liberal da Frana e dos Estados Unidos".
Mas no uma surpresa que Evaristo - um dos trs deputados que
elaboraram a verso final do caudaloso projeto que criou a Guarda
Nacional, alis, "as guardas nacionais" - tivesse esse tipo de
iluso. Evaristo tambm acreditava que a monarquia no Brasil era "a
repblica sem o nome de republicano". Alis, no sexto volume
deHistria dos Fundadores do Imprio do Brasil, Octvio Tarqunio faz
uma observao pertinente sobre Evaristo da Veiga, em relao a Feij,
nessa poca:
" curioso como Evaristo, homem de tato, com altas qualidades de
condutor poltico, no via os defeitos do padre paulista, a sua falta
de ductilidade, a sua incapacidade para um posto em que a atitude
habitual deveria ser a de rbitro das correntes de opinio, fiel de
balana no jogo dos interesses opostos"(op. cit., Vol. VI, p.
164).
O problema que todas as alternativas possveis eram piores do que
Feij. Portanto, compreensvel a atitude de Evaristo.
Prossegue o grande historiador, sobre a fundao da Guarda
Nacional:
"O modelo mais direto dos nossos legisladores regenciais foi o
francs,da poca de Lus Filipe(...). Pelos termos da lei que a
instituiu, a Guarda Nacional vinha substituir as foras policiais,
extintos todos os corpos de milcias, guardas municipais e
ordenanas, e, ao mesmo tempo, fazer as vezes das foras regulares do
exrcito e at da marinha, reduzidas ao mnimo possvel e pouco
merecedoras da confiana do governo, vista dos acontecimentos
recentes. Dado o processo do desenvolvimento histrico brasileiro, a
Guarda Nacional no teria o carter de burguesia armada como na Frana
e com o correr dos tempos seria instrumento do mandonismo da grande
propriedade territorial"(op. cit., Vol. VII, p. 166, grifo
nosso).
Talvez o sr. Gomes pense que Lus Filipe de Orleans o monarca da
oligarquia financeira da Frana e a Revoluo Francesa so a mesma
coisa, pelo fato de que ele, e seu pai, tentaram dar um golpe nos
primos Bourbons (Lus XVI e o futuro Lus XVIII), apoiando
formalmente a Revoluo.
Mas isso no chega a ser um pensamento. At porque o golpe no deu
certo.
Continua na prxima edio