6 EXP JULHO 2015 JULHO 2015 EXP 7 TEXTO E FOTOS: CASSIANA MARTINS Levantamento realizado pela reportagem da EXP examinou cada um dos 316 boletins de ocorrência de estupro de mulheres, registrados em 2014, para apresentar um panorama que interprete a estatística da violência em Porto Alegre. Qual a recorrência, a localização e como as diferenças socioeconômicas afetam um crime em que, na maioria dos casos, o agressor conhece a vítima. Este tipo de agressão não é sazonal e, ao contrário do que se imagina, ocorre muito pouco em uma rua escura e vazia durante a noite Nomes de algumas das mulheres abusadas O MAPA DO ESTUPRO O Centro é o lugar onde mais se estupram mulheres em Porto Alegre A na (nome fictício) procurou a polícia no fi- nal de janeiro de 2014 querendo denunciar a violência que enfrentou por tantos anos. Ela teve um relacionamento abusivo por 20 anos que acabou gerando cinco filhos e um vício em crack e álcool que, por fim, a fez perder o movimento das pernas. Paraplé- gica, ela lembra de vezes em que estava tão entorpecida que, somente depois de recobrar a sobriedade, percebia no corpo as marcas de uma relação sexual forçada. Ana conseguiu se separar do companheiro, abandonar as drogas e ir morar em outra cidade com o pai, mas, depressiva, tentou se matar ate- ando fogo ao próprio corpo. Naquele janeiro, ela denunciava os estupros que havia sofrido durante os anos de união e pedia ajuda para recuperar seus documentos de identificação, que o ex-companheiro não queria devolver. Mais de um ano depois, o relato de Ana foi lido pela reportagem da revista EXP, juntamente com a história de ou- tras 315 mulheres que, em 2014, foram estupradas em Porto Alegre e denunciaram o que lhes ocorreu. A análise incidiu sobre casos registrados em boletim de ocorrência pela Polícia Civil e pela Brigada Militar, até 20 de abril de 2015 por meio do sistema integrado da Secretaria de Segurança do Rio Grande do Sul. Desse total de 316 mulheres, 142 foram mulheres maiores de 18 anos, 167 eram menores e em sete casos não foi pos- sível saber a idade da vítima. Muitas ou- tras não denunciaram por falta de apoio, de condições psicológicas, dependência financeira do abusador, medo e vergonha do crime em que elas são as vítimas. Por isso, um número absoluto dificilmente pode ser alcançado nesse tipo de estatística. Ainda assim, 316 representam quase um estupro por dia no período de um ano. Quando se analisa o caso das 142 mulheres maiores de 18, é perceptível a incidência elevada dos crimes em um grupo de bairros que representam quase 40% dos estupros contra mulheres a partir desta idade: Centro, com 15 casos; Lomba do Pinheiro, 11; Rubem Berta, sete; Restinga, sete; e Praia de Belas, sete ocorrências. Desses cinco bairros, apenas Centro e Praia de Belas não fazem parte dos Territórios de Paz, nome que se dá para zonas extremamente violentas e governadas por poderes paralelos, em que se tenta, por meio de medidas do Estado, reverter a situação. O Centro, que é o maior polo comercial e bancário do Rio Grande do Sul, terceiro bairro mais denso da Capital, onde circulam cerca de 400 mil pessoas por dia, é o lugar em que mais se estupram mulheres em Porto Alegre. A possível expli- cação para tantas vítimas pode estar na grande movimentação que há na região. A delegada adjunta da Delegacia da Mulher, Tatiana Bastos, diz que o perfil do estuprador é muito pareci- do com o de um estelionatário: um criminoso sempre em bus- ca de novas vítimas e que faz de determinadas situações uma oportunidade. “As mulheres acham que estão mais seguras por estarem em um local cheio, mas, na verdade, é o contrário”, salienta. No Centro, são tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo, gente circulando, que ninguém estranha, por exemplo, se uma mulher entra em um carro com três homens dentro. “O estuprador procura as vítimas no Centro porque sabe que nin- guém liga, diferente dos bairros mais residenciais, que sempre vai ter alguém olhando por uma janela ou que conhecem quem frequenta a rua e percebe aquela movimentação estranha”, ex- plica a delegada. A diversidade dos casos também é condizente com a diversidade do bairro: não há uma rua em específico, o local pode ser aberto ou fechado, o agressor pode ser tanto co- nhecido como desconhecido e os horários variam, assim como a idade das vítimas. Um dado pouco divulgado diz respeito ao Parque Far- roupilha, a Redenção, e a orla do Guaíba. Tido como um local de estupros frequentes e com ocorrência de outros crimes, o parque é tema de discussão sobre um possível cercamento, muito embora a orla apresente semelhante incidência de cri- me. Inclusive, a orla é o local em que quase todos os estupros do bairro Praia de Belas ocorreram. Outra constante são estupros envolvendo taxistas. A delegada Tatiana Bastos diz que é difícil se comunicar com o grupo, “Não há nenhum tipo de cooperação, e o próprio muni- cípio tem dificuldade de contato com eles”, aponta. Para aque- las que buscam um meio de proteção, ao pegar táxi é sugerido anotar ou fotografar a placa do veículo ou fazer o chamar o car- ro meio de aplicativos de celular, rádio-taxi e outros meios em que o nome do motorista é fornecido. Na Lomba do Pinheiro, no Rubem Berta e na Restinga, as dificuldades so- cioeconômicas são visíveis. Nesses lu- gares, não é possível separar o estupro da violência doméstica, e quase todas as mulheres ali conhecem o agressor. Por esse motivo, há uma tendência a naturalizar a situação. A presidente da Associação de Promotoras Legais Populares, Mara Verlaine do Canto, salienta que é necessário realizar um trabalho de prevenção para mudar esse pensamento. “Temos muita dificuldade de romper com isso, a vida intrafamiliar ainda está dentro de quatro paredes, e se tem a ideia que o homem é dono de tudo e a culpa sempre é da mu- lher”, afirma. Outro aspecto destes bairros é a densa população e o diversificado número de comunidades que se encontram dentro de cada território. De acordo com o Censo 2010, havia 51.415 moradores na Lomba do Pinheiro, 87.367 no Rubem Berta e 51.569 na Restinga. Há bairros em que o número de registros é menor, o que não significa a inexistência do crime. Lugares em que a situação socioeconômica é de nível A e B, como Moinhos de Ventos, Mon’t Serrat, Auxiladora e Bela Vista, têm um esquema social em que a vítima raramente procura ajuda da polícia. “Mulheres de classes mais altas da sociedade não denunciam, mas buscam a ajuda de psicólogos”, revela a delegada Tatiana Bastos. A coordenadora do Centro Estadual de Referência da Mulher Vânia Araújo, Maria Sa- lete Arpini, tem uma percepção semelhante e lembra que muitos casos são abafados em prol de manter o sobrenome, mesmo que para isso seja necessário aborto ou casamento. O levantamento feito pela reportagem também con- traria o senso comum de que estupros ocorrem de forma majoritária na rua. Dos 142 estupros de maiores de 18 anos, 135 foram possíveis de saber onde ocorreram: a maior parte foi dentro da casa da própria vítima, 32,6%; 25,2% em local público (rua, parque, beco); 18,6% em local privado (casa de um terceiro, festa, motel); 17% em um local que pertence ao estuprador (casa, carro); 5,2% no trabalho da vítima; em dois casos (1,4%), o estupro aconteceu durante uma visita ao com- panheiro em cárcere no Presídio Central.