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1. JEAN-LOUIS PANN, ANDRZEJ PACZKOWSKI, KAREL BARTOSEK,
JEAN-LOUIS MARGOLIN O LIVRO NEGRO DO COMUNISMO Crimes, terror e
represso coma colaborao de Remi Kauffer, Pierre Rigoulot, Pascal
Fontaine, Yves Santamaria e Sylvain Boulouque Traduo CAIO MEIRA
BERTRAND BRASIL Ttulo original: L livre noirdu communisme Obra
publicada sob a direo de Charles Ronsac Capa: Raul Fernandes
Editorao: Art Line 1999 Impresso no Brasil Printed in Braztl
CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de
Livros, RJ L762 O livro negro do comunismo: crimes, terror e
represso / Stphane
2. Courtois... [et ai.]; coma colaborao de Remi Kauffr... [et
ai.]; traduo Caio Meira. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
924p., [32] p. de estampas: il. Traduo de: L livre noir du
communisme ISBN 85-286- 0732-1 1. Comunismo Histria Sculo XX. 2.
Perseguio poltica. 3. Terrorismo. I. Courtois, Stphane, 1947-. CDD
- 320.532 99-1236 CDU-321.74 Todos os direitos reservados pela: BCD
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3. Orelhas da capa: Outubro de 1917: o golpe de estado
bolchevique significou bemmais do que a queda do czarismo e a
subida ao poder de umgrupo de polticos idealistas. A revoluo
liderada por Lenin tornou-se o cone que representaria o comeo de
uma nova era para a humanidade, anunciando uma sociedade mais justa
e umhomemmais consciente de sua relao com seu semelhante. Novembro
de 1989: a queda do Muro de Berlime a consequente abertura dos
arquivos dos pases comunistas aparecerampara o mundo como a
derrocada final do sonho comunista. O livro negro do comunismo traz
a pblico o saldo estarrecedor de mais de sete dcadas de histria de
regimes comunistas: massacres emlarga escala, deportaes de populaes
inteiras para regies sema mnima condio de sobrevivncia, expurgos
assassinos liquidando o menor esboo de oposio, fome e misria
provocadas que dizimaramindistintamente milhes de pessoas, enfim, a
aniquilao de homens, mulheres, crianas, soldados, camponeses,
religiosos, presos polticos e todos aqueles que, pelas mais
diversas razes, se encontraramno caminho de implantao do que,
paradoxalmente, nascera como promessa de redeno e esperana. Os
autores, historiadores que permanecemou estiveramligados esquerda,
no hesitamemusar a palavra genocdio, pois
4. foramcerca de 100 milhes de mortos! Esse nmero assustador
ultrapassa amplamente, por exemplo, o nmero de vtimas do nazismo e
at mesmo o das duas guerras mundiais somadas. Genocdio, holocausto,
portanto, confirmado pelos vrios relatos de sobreviventes e,
principalmente, pelas revelaes dos arquivos hoje acessveis. O
terror - o Terror Vermelho - foi o principal instrumento utilizado
por comunistas tanto para a tomada do poder quanto para a sua
manuteno, e tambmpor grupos de oposio que jamais chegaramao
governo. Os fatos demonstram: o terrorismo de oposio e o terrorismo
de Estado, comfrequncia praticados contra o seu prprio povo, so as
grandes caractersticas do comunismo no sculo XX. Obstinados,
pragmticos, carismticos, os lderes comunistas, que guiariamo mundo
a seu destino inelutvel, tmrevelada a sua face sombria: Lenin,
Stalin, Mo Zedong, Pol Pot, Ho Chi Minh, Fidel Castro e muitos
outros tornam-se os responsveis diretos pelas atrocidades cometidas
emnome do ideal comunista. Sob seus olhares zelosos, os "obstculos"
- qualquer homem, cidade ou povo - foramsendo exterminados
comviolncia e brutalidade. O livro negro do comunismo no quer
justificar nemencontrar causas para tais atrocidades. Tampouco
pretende ser mais umcaptulo na polmica entre esquerda e direita,
discutindo fundamentos ou teorias marxistas. Trata-se, sobretudo,
de dar nome e voz s vtimas e a seus algozes. Vtimas ocultas
5. por demasiado tempo sob a mquina de propaganda dos PCs
espalhados pelo mundo. Algozes muitas vezes festejados e recebidos
comtoda a pompa pelas democracias ocidentais. Todos que de
algummodo tomaramparte na aventura comunista neste sculo esto,
doravante, obrigados a rever as suas certezas e convices. Encontra-
se, assim, uma das principais virtudes deste livro: luz dos fatos
aqui revelados, o Terror Vermelho deve estar presente na conscincia
dos que ainda cremnumfuturo para o comunismo. O editor e os autores
dedicameste livro 2 memria de Franois Furet, que havia concordado
em redigir o seu prefcio. SUMRIO OS CRIMES DO COMUNISMO 11 PRIMEIRA
PARTE UM ESTADO CONTRA O POVO Paradoxos e equvocos de Outubro 53 O
"brao armado da ditadura do proletariado"
6. 69 O Terror Vermelho 90 A "guerra suja" 102 De Tambov grande
fome 134 Da trgua "grande virada" 161 Coletivizao forada e
deskulakizao 178 A grande fome 193 "Elementos estranhos sociedade"
e ciclos repressivos 205
7. O Grande Terror (1936-1938) 223 O imprio dos campos de
concentrao 244 O avesso de uma vitria 259 Apogeu e crise do Gulag
278 O ltimo compl 290 15- A sada do Stalinismo 299 guisa de
concluso 311 SEGUNDA PARTE REVOLUO MUNDIAL, GUERRA CIVIL E
TERROR
8. 1. O Komintern emao 321 A revoluo na Europa 321 Komintern e
guerra civil 325 Ditadura, incriminao dos opositores e represso no
interior do Komintern 338 O grande terror atinge o Komintern 350
Terror no interior dos partidos comunistas 354 A caa aos
"trotskistas" 361 Antifascistas e revolucionrios estrangeiros
vtimas do terror na URSS
9. 366 Guerra civil e guerra de libertao nacional 382
10. 2. A sombra do NKVD sobre a Espanha 394 A linha geral dos
comunistas 395 "Conselheiros" e agentes 398 "Depois das calnias...
as balas na nuca" 401 Maio de 1937 e a liquidao do POUM 402 O NKVD
emao 407 Um"julgamento de Moscou" emBarcelona 410
11. Dentro das Brigadas Internacionais 411 Exlio e morte na
"ptria dos proletrios" 415
12. 3. Comunismo e terrorismo 418 TERCEIRA PARTE A OUTRA EUROPA
VTIMA DO COMUNISMO
13. 1. Polnia, a "nao inimiga" 429 O caso do POW (Organizao
Militar Polonesa) e a "operao polonesa" do NKVD (1933-1938) 430
Katyn, prises e deportaes (1939-1941) 434 O NKVD contra a Armia
Krajowa (Exrcito Nacional) 440 Bibliografia 443 Polnia 1944-1989: o
sistema de represso 444 conquista do Estado ou o terror de massa
(1944-1947)
14. 444 A sociedade como objetivo de conquista ou o terror
generalizado (1948-1956) 449 O socialismo real ou o sistema de
represso seletiva (1956- 1981).... 454 O estado de guerra, uma
tentativa de represso generalizada 459 Do cessar-fogo capitulao, ou
a confuso do poder (1986- 1989) 461 Bibliografia 462
15. 2. Europa Central e do Sudeste 464 Terror "importado"? 464
Os processos polticos contra os aliados no comunistas 469 3 A
destruio da sociedade civil 479 O sistema concentracionrio e a
"gente do povo" 486 Os processos dos dirigentes comunistas 498 Do
"ps-terror" ao ps-comunismo
16. 514 Uma gesto complexa do passado 528 Bibliografia
selecionada 537 QUARTA PARTE COMUNISMOS DA SIA: ENTRE "REEDUCAO" E
MASSACRE
17. 1. China: uma longa marcha na noite 545 Uma tradio de
violncia? 548 Uma revoluo inseparvel do terror (1927-1946) 554
Reforma agrria e expurgos urbanos (1946-1957) 561 Os campos:
submisso e engenharia social 562 As cidades: "ttica do salame" e
expropriaes 567 A maior fome da histria (1959-1961) 576
18. Um"Gulag" escondido: o laogai 590 A Revoluo Cultural:
umtotalitarismo anrquico (1966- 1976) 606 A era Deng: desagregao do
terror (depois de 1976) 639 Tibet: umgenocdio no teto do mundo?
644
19. 2. Coreia do Norte, Vietn e Laos: a semente do Drago 650
Crimes, terror e segredo na Coreia do Norte 650 Antes da constituio
do Estado comunista 651 Vtimas da luta armada 652 Vtimas comunistas
do Partido-Estado norte-coreano 654 As execues 656 Prises e campos
657
20. O controle da populao 663 Tentativa de genocdio
intelectual? 664 Uma hierarquia estrita 666 A fuga 667 Atividades
no exterior 668 Fome e misria 669 Balano final 670 Vietn: os
impasses de umcomunismo de guerra
21. 672 Laos: populaes emfuga 683
22. 3. Camboja: no pas do crime desconcertante 686 A espiral do
horror 688 Variaes emtorno de ummartirolgio 699 A morte cotidiana
no tempo de Pol Pot 711 As razes da loucura 734 Umgenocdio? 755
Concluso 758
23. Seleo bibliogrfica sia 764 QUINTA PARTE O TERCEIRO
MUNDO
24. 1. A Amrica Latina e a experincia comunista 769 Cuba. O
interminvel totalitarismo tropical 769 Nicargua: o fracasso de
umprojeto totalitrio 789 Peru: a "longa marcha" sangrenta do
Sendero Luminoso 800 Orientaes bibliogrficas 806
25. 2. Afrocomunismos: Etipia, Angola, Moambique 808 O
comunismo de cores africanas 808 O Imprio Vermelho: a Etipia 813
Violncias lusfonas: Angola, Moambique 823 A Repblica Popular de
Angola 824 Moambique 830
26. 3. O comunismo no Afeganisto 835 O Afeganisto e a URSS de
1917 a 1973 836 Os comunistas afeganes 839 O golpe de Estado de
Mohammed Daud 840 O golpe de Estado de abril de 1978 ou a "Revoluo
de Saur" 841 A interveno sovitica 846 A amplitude da represso
849
27. PORQU? 861 OS AUTORES 897 4 NDICE ONOMSTICO 901 OS CRIMES
DO COMUNISMO [por Stphane Courtois | "A vida perdeu para a morte,
mas a memria ganha seu combate contra o nada." Tzvetan Todorov Os
abusos da memria J se escreveu que "a histria a cincia da
infelicidade dos homens";1 nosso sculo de violncia parece confirmar
essa frmula de maneira eloquente. verdade que nos sculos
precedentes poucos povos e poucos Estados estiveram
28. isentos da violncia de massa. As principais potncias
europeias estiveramimplicadas no trfico de negros; a repblica
francesa praticou uma colonizao que, apesar de algumas contribuies,
foi marcada por numerosos episdios repugnantes, e isso at o seu
trmino. Os Estados Unidos permanecemimpregnados de uma certa
cultura da violncia que se enraza emdois dos mais terrveis crimes:
a escravido dos negros e o extermnio dos ndios. No resta dvida de
que, a esse respeito, nosso sculo deve ter ultrapassado seus
predecessores. Umolhar retrospectivo impe uma concluso incmoda:
este foi o sculo das grandes catstrofes humanas - duas guerras
mundiais, o nazismo, semfalar das tragdias mais circunscritas, como
as da Armnia, Biafra, Ruanda e outros pases. Comefeito, o Imprio
Otomano entregou-se ao genocdio dos armnios, e a Alemanha ao dos
judeus e dos ciganos. A Itlia de Mussolini massacrou os etopes. Os
tchecos tm dificuldades emadmitir que seu comportamento emrelao aos
alemes dos Sudetos, em1945-1946, no esteve acima de qualquer
suspeita. A prpria Sua hoje alcanada por seu passado como o pas que
gerenciava o ouro roubado pelos nazistas dos judeus exterminados,
apesar desse comportamento no ser emnenhuma medida to atroz quanto
o do genocdio. O comunismo insere-se nessa faixa de tempo
histrico
29. transbordante de tragdias, chegando mesmo a constituir umde
seus momentos mais intensos e mais significativos. O comunismo,
umdos fenmenos mais importantes deste curto sculo XX - que comea
em1914 e termina emMoscou em1991 -, encontra-se no centro desse
quadro. Umcomunismo que preexistia ao fascismo e ao nazismo, e que
sobreviveu a eles, atingindo os quatro grandes continentes. O que
designamos precisamente coma denominao "comunismo"? 1 Raymond
Queneau, Une histoire modele, Gallimard, 1979, p. 9. 5 Devemos,
desde j, introduzir uma distino entre a doutrina e a prtica. Como
filosofia poltica, o comunismo existe h sculos, e quemsabe, h
milnios. Pois no foi Plato quem, emA Repblica, fundou a ideia de
uma cidade ideal na qual os homens no seriamcorrompidos pelo
dinheiro e pelo poder, na qual a sabedoria, a razo e a justia
comandariam? No foi umpensador e estadista to eminente quanto Sir
Thomas More, chanceler da Inglaterra em1530, autor da famosa Utopia
e morto sob o machado do carrasco de Henrique VIII, umoutro
precursor da ideia dessa cidade
30. ideal? O mtodo utpico parece perfeitamente legtimo como
instrumento crtico da sociedade. Ele participa do debate das ideias
- oxignio de nossas democracias. Entretanto, o comunismo aqui
abordado no se situa no cu das ideias. umcomunismo bemreal, que
existiu numa determinada poca, emdeterminados pases, encarnado por
lderes clebres - Lenin, Stalin, Mo, Ho Chi Minh, Castro, e te., e,
mais prximos da histria poltica francesa, Maurice Thorez, Jacques
Duelos, Georges Marchais. Qualquer que seja o grau de envolvimento
da doutrina comunista anterior a 1917 na prtica do comunismo real -
retornaremos a esse ponto -, foi este quemps emprtica uma represso
metdica, chegando a instituir, emmomentos de grande paroxismo, o
terror como modo de governo. Isso faz comque a ideologia seja
inocente? Os espritos ressentidos ou escolsticos sempre podero
sustentar que o comunismo real no temnada a ver como comunismo
ideal. Evidentemente, seria absurdo imputar a teorias elaboradas
antes de Cristo, durante a Renascena ou mesmo o sculo XDC, eventos
que surgiramno decorrer do sculo XX. Entretanto, como escreve
Ignazio Silone, "na verdade, as revolues so como as rvores, elas so
reconhecidas atravs de seus frutos". No foi semrazo que os social-
democratas russos, conhecidos como
31. "bolcheviques", decidiram, emnovembro de 1917, chamar a si
prprios de "comunistas". Tampouco foi por acaso que erigiramjunto
ao Kremlin ummonumento emglria daqueles que eles consideravamseus
precursores: More ou Campanella. Excedendo os crimes individuais,
os massacres pontuais, circunstanciais, os regimes comunistas
erigiram, para assegurar o poder, o crime de massa como verdadeiro
sistema de governo. certo que no fimde umperodo de tempo varivel
alguns anos no Leste Europeu ou vrias dcadas na URSS ou na China o
terror perdeu seu vigor, os regimes estabilizaram-se na gesto da
represso cotidiana, censurando todos os meios de comunicao,
controlando as fronteiras, expulsando os dissidentes. Mas a "memria
do terror" continuou a assegurar a credibilidade e,
consequentemente, a eficcia da ameaa * O autor se refere aqui a trs
lderes do Partido Comunista Francs. (N. T.) 6 repressiva. Nenhuma
das experincias comunistas, populares durante algumtempo no
Ocidente, escapou a essa lei: nema China do "Grande Timoneiro",
nema Coreia de KimII Sung, nemmesmo o Vietn do "gentil Tio Ho" ou a
Cuba do flamejante Fidel, ladeado pela pureza de umChe Guevara, no
se esquecendo da Etipia de Mengistu, da
32. Angola de Neto e do Afeganisto de Najibullah. Ora, os
crimes do comunismo no foramsubmetidos a uma avaliao legtima e
normal, tanto do ponto de vista histrico quanto do ponto de vista
moral. Semdvida, trata-se aqui de uma das primeiras vezes que se
tenta uma aproximao do comunismo, perguntando-se sobre esta dimenso
criminosa como uma questo ao mesmo tempo global e central. Podero
retorquir-nos que a maioria dos crimes respondia a uma
"legalidade", ela prpria sustentada por instituies pertencentes aos
regimes vigentes, reconhecidos no plano internacional e cujos
chefes eramrecebidos comgrande pompa por nossos prprios dirigentes.
Mas no ocorreu o mesmo como nazismo? Os crimes que expomos neste
livro no se definememrelao jurisdio dos regimes comunistas, mas ao
cdigo no escrito dos direitos naturais da humanidade. A histria dos
regimes e dos partidos comunistas, de sua poltica, de suas relaes
comas sociedades nacionais e coma comunidade internacional no se
resume a essa dimenso criminosa, ou mesmo a uma dimenso de terror e
de represso. Na URSS e nas "democracias populares" depois da morte
de Stalin, na China aps a morte de Mo, o terror atenuou-se, a
sociedade comeou a retomar suas cores, a "coexistncia pacfica" -
mesmo sendo ainda "uma continuao da luta de classes sob outras
formas"
33. tornou-se umdado permanente da vida internacional.
Entretanto, os arquivos e os testemunhos abundantes mostramque o
terror foi, desde sua origem, uma das dimenses fundamentais do
comunismo moderno. Abandonemos a ideia de que tal execuo de refns,
tal massacre de trabalhadores revoltados, tal hecatombe de
camponeses mortos de fome, foramsomente "acidentes" conjunturais,
prprios a tais pases ou a tal poca. O nosso mtodo ultrapassa a
especificidade de cada terreno e considera a dimenso criminosa como
uma das dimenses prprias ao conjunto do sistema comunista, durante
todo o seu perodo de existncia. Do que falaremos, de quais crimes?
O comunismo cometeu inmeros: inicialmente, crimes contra o esprito,
mas tambm crimes contra a cultura universal e contra as culturas
nacionais. Stalin ordenou a demolio de centenas de igrejas
emMoscou; Ceaucescu destruiu o corao histrico de Bucareste para
construir edifcios e traar perspectivas megalomanacas; Pol Pot fez
comque fosse desmontada pedra por pedra a Catedral de PhnomPenh e
abandonou 7 selva os templos de Angkor; durante a revoluo cultural
maosta, tesouros inestimveis foramquebrados ou queimados pelas
Guardas Vermelhas. Entretanto, por mais graves que tenhamsido essas
destruies, a longo prazo,
34. para as naes envolvidas e para a humanidade inteira, em que
medida elas pesamemface do assassinato emmassa de pessoas, de
homens, de mulheres, de crianas? Portanto, consideramos apenas os
crimes contra as pessoas, os que constituema essncia do fenmeno do
terror. Esses respondema uma nomenclatura comum, mesmo que tal
prtica seja mais acentuada neste ou naquele regime: execuo por
meios diversos fuzilamento, enforcamento, afogamento, espancamento
e, emalguns casos, gs de combate, veneno ou acidente de automvel;
destruio pela fome indigncia provocada e/ou no socorrida; deportao
- a morte podendo ocorrer no curso do transporte (emcaminhadas a p
ou emvages para animais) ou nos locais de residncia e/ou de
trabalhos forados (esgotamento, doena, fome, frio). O caso dos
perodos ditos de "guerra civil" mais complexo: no fcil distinguir o
que decorre do combate entre poder e rebeldes e o que massacre da
populao civil. Contudo, podemos estabelecer os nmeros de umprimeiro
balano que pretende ser somente uma aproximao mnima e que
necessitaria ainda de uma maior preciso, mas que, de acordo
comestimativas pessoais, d uma dimenso da grandeza e permite sentir
a gravidade do assunto: -URSS, 20 milhes de mortos,
35. -China, 65 milhes de mortos, -Vietn, l milho de mortos,
-Coreia do Norte, 2 milhes de mortos, -Camboja, 2 milhes de mortos,
-Leste Europeu, l milho de mortos,-Amrica Latina, 150.000 mortos,
-frica, l ,7 milho de mortos,-Afeganisto, 1,5 milho de mortos,
-Movimento comunista internacional e partidos comunistas fora
dopoder, uma dezena de milhes de mortos. O total se aproxima da
faixa dos cemmilhes de mortos. Essa escala de grandeza recobre
situaes de grande disparidade. incontestvel que, emvalor relativo,
o "trofeu" vai para o Camboja, onde Pol Pot, emtrs anos e meio,
conseguiu matar da maneira mais atroz - a fome, a tortura
aproximadamente umquarto da populao total do pas. Entretanto, a
experincia maosta choca pela amplitude das massas atingidas. Quanto
Rssia leninista ou stalinista, ela d calafrios por seu lado
experimental, porm perfeitamente refletido, lgico, poltico.
36. 8 Essa abordagemelementar no poderia esgotar a questo cujo
aprofundamento implica a utilizao de ummtodo "qualitativo" que
repouse na definio de crime. Tal definio deve apoiar-se emcritrios
"objetivos" e jurdicos. A questo do crime cometido por umEstado foi
tratada pela primeira vez, do ponto de vista jurdico, em1945, no
tribunal de Nuremberg institudo pelos Aliados para julgar os crimes
nazistas. A natureza desses crimes foi definida pelo artigo 6 dos
estatutos do tribunal, que designa trs crimes maiores: os crimes
contra a paz, os crimes de guerra, os crimes contra a humanidade.
Ora, umexame do conjunto dos crimes cometidos sob o regime
leninis-ta/stalinista, e tambmno mundo comunista emgeral,
conduz-nos ao reconhecimento de cada uma dessas trs categorias. Os
crimes contra a paz so definidos pelo artigo 6a e concernem"a
dire-o, a preparao, o incio ou o prosseguimento de uma guerra de
agresso, ou de uma guerra de violao de tratados, garantias ou
acordos internacionais, ou a participao numplano concertado ou
numcompl para a consecuo de qualquer umdos atos precedentes".
Stalin cometeu incontestavelmente esse tipo de crime, pelo menos
quando negociou secretamente com Hitler, atravs dos tratados de 23
de agosto e de 28 de
37. setembro de 1939, a partilha da Polnia e a anexao dos Pases
Blticos, da Bucovina do Norte e da Bessarbia URSS. O tratado de 23
de agosto, libertando a Alemanha do perigo de umcombate emduas
frentes, provocou diretamente o incio da Segunda Guerra Mundial.
Stalin perpetrou umnovo crime contra a paz ao agredir a Finlndia
em30 de novembro de 1939. O ataque imprevisto da Coreia do Norte
contra a Coreia do Sul em25 de junho de 1950 e a interveno macia do
exrcito da China comunista so atos da mesma ordem. Os mtodos de
subverso, assumidos durante umtempo pelos partidos comunistas
comandados por Moscou, poderiamigualmente ser assimilados aos
crimes contra a paz, pois sua ao desembocou emalgumas guerras;
assim, o golpe de Estado comunista no Afeganisto acarretou, em27 de
dezembro de 1979, uma interveno militar macia da URSS, inaugurando
uma guerra que ainda no terminou. Os crimes de guerra so definidos
no artigo 6b como "as violaes das leis e costumes da guerra. Essas
violaes compreendem- semestaremlimitadas a isto, porm o
assassinato, maus-tratos ou deportao para trabalhos forcados, ou
ainda comoutro objetivo, das populaes civis dos territrios
ocupados, o assassinato ou maus-tratos de prisioneiros de guerra e
de pessoas no mar, a execuo de
38. refns, a pilhagemdos bens pblicos ou privados, a destruio
semmotivos de cidades e povoados ou a devastao no justificada por
exigncias militares". As leis e costumes de guerra esto inscritos
emconvenes, sendo que a mais conhecida dentre elas a Conveno de
Haia de 1907, que estipula: "Emtempos de guerra, as populaes e os
beligerantes permane-9 cemsob o imprio dos princpios do direito
internacional, tais como os que resultamdos usos estabelecidos
pelas naes civilizadas, as leis da humanidade e as exigncias da
conscincia pblica." Ora, Stalin ordenou ou autorizou numerosos
crimes de guerra, sendo a execuo da quase-totalidade dos oficiais
poloneses aprisionados em1939 -dos quais os 4.500 mortos de Katyn
so apenas umepisdio o crime mais espetacular. Mas outros crimes de
amplitude ainda maior passaramdespercebidos, como o assassinato ou
a morte no Gulag* de centenas de milhares de militares alemes
aprisionados entre 1943 e 1945; a isto acrescentam-se os estupros
emmassa de mulheres alems pelos soldados do Exrcito Vermelho na
Alemanha ocupada; semfalar da pilhagemsistemtica de todo o parque
industrial dos pases ocupados pelo Exrcito Vermelho. Incorremno
mesmo artigo 6b o aprisionamento, o fuzilamento ou a deportao das
resistncias organizadas que combatiamabertamente o
39. poder comunista: por exemplo, os militares das organizaes
polonesas de resistncia antinazista (POW, AK), os membros das
organizaes de partidrios blticos e ucranianos armados, as
resistncias afegs, etc. A expresso "crimes contra a humanidade"
apareceu pela primeira vez em18 de maio de 1915, numa declarao d
Frana, da Inglaterra e da Rssia contra a Turquia, emrazo do
massacre dos armnios, qualificado como "novo crime da Turquia
contra a humanidade e a civilizao". As extorses nazistas levaramo
tribunal de Nuremberg a redefinir a noo emseu artigo 6c: "O
assassinato, o extermnio, a escravido, a deportao e todo ato
inumano cometido contra toda e qualquer populao civil, antes ou
durante a guerra, ou ainda perseguies por motivos polticos, raciais
ou religiosos, quando estes atos ou perseguies forem cometidos na
sequncia de todo crime que entre na competncia do tribunal, ou que
esteja ligado a este crime, quer violemou no o direito interno do
pas onde foram perpetrados." Emseu requisitrio emNuremberg, Franois
de Menthon, procurador geral francs, destacava a dimenso ideolgica
dos crimes: "Proponho-me a demonstrar-lhes que toda criminalidade
organizada e sistemtica decorre do que me permitirei chamar
40. de crime contra o esprito, quero dizer, de uma doutrina
que, negando todos os valores espirituais, racionais ou morais, sob
os quais os povos tentaramh milnios fazer progredir a condio
humana, visa a devolver a Humanidade barbrie, no mais a barbrie
natural e espontnea dos povos primitivos, mas a barbrie demonaca, j
que consciente dela prpria e * Gulag o nome dado aos campos de
concentrao na URSS. (N. T.) 10 utilizando para os seus fins todos
os meios materiais postos disposio dos homens pela cincia
contempornea. Esse pecado contra o esprito a falta original do
nacional- socialismo da qual todos os crimes decorrem. Essa
doutrina monstruosa a do racismo. [...] Que se trate de crime
contra a Paz ou de crimes de guerra, no nos encontramos diante de
uma criminalidade acidental, ocasional, que os eventos pudessem,
talvez, no apenas justificar, mas explicar, encontramo-nos
simdiante de uma criminalidade sistemtica, que decorre direta e
necessariamente de uma doutrina monstruosa, servida pela vontade
deliberada dos dirigentes da Alemanha Nazista." Franois de Menthon
explicava tambmque as deportaes
41. destinadas a assegurar mo-de-obra suplementar para a mquina
de guerra alem e as que visavama exterminar os oponentes eramapenas
"consequncia natural da doutrina nacional-socialista, segundo a
qual o homemno tem nenhumvalor emsi quando no est a servio da raa
alem". Todas as declaraes no tribunal de Nuremberg insistiamnuma
das caractersticas maiores do crime contra a humanidade: o fato de
que a potncia do Estado esteja a servio de polticas e de prticas
criminosas. Porm, a competncia do tribunal estava limitada aos
crimes cometidos durante a Segunda Guerra Mundial. Era ento
indispensvel ampliar a noo jurdica a situaes no implicadas nessa
guerra. O novo Cdigo Penal francs, adotado em23 de julho de 1992,
define assimo crime contra a humanidade: "a deportao, a escravido,
ou a prtica macia e sistemtica de execues sumrias, de sequestro de
pessoas seguido de sua desapario, da tortura ou de atos inumanos,
inspirados por motivos polticos, filosficos, raciais ou religiosos,
e organizados emexecuo de um plano concertado que atinja umgrupo de
populao civil" (grifo nosso). Ora, todas essas definies,
emparticular a recente definio francesa, aplicam-se a numerosos
crimes cometidos no perodo de Lenin, e sobretudo no de Stalin, e
tambmpor todos os pases de regime comunista, comexceo (sob reserva
de verificao) de Cuba e da Nicargua dos
42. sandinistas. A condio principal parece incontestvel: os
regimes comunistas trabalharam"emnome de umEstado praticante de uma
poltica de hegemonia ideolgica". exatamente emnome de uma doutrina,
fundamento lgico e necessrio do sistema, que forammassacrados
dezenas de milhes de inocentes semque nenhumato particular possa
lhes ser censurado, a menos que se reconhea que era criminoso ser
nobre, burgus, kulak, ucraniano, ou mesmo trabalha- * Campons russo
que dispunha de terras e haveres, tendo a seu servio outros
camponeses emregime de verdadeira escravido. (N. T.) 11 dor ou...
membro do Partido Comunista. A intolerncia ativa fazia parte do
programa posto emprtica. assimque Tomski, o grande lder dos
sindicatos soviticos, declarava em13 de novembro de 1927, no Trud.
"Emnosso pas, outros partidos tambmpodemexistir. Mas eis o princpio
fundamental que nos distingue do Ocidente; a situao imaginvel a
seguinte: umpartido reina, todos os outros esto na priso."2 A noo
de crime contra a humanidade complexa e recobre crimes designados
formalmente. Umdos mais especficos o
43. genocdio. Aps o genocdio dos judeus pelos nazistas, e a
fimde tornar mais preciso o artigo 6c do tribunal de Nuremberg, a
noo foi definida por uma conveno das Naes Unidas, de 9 de dezembro
de 1948: "O genocdio compreendido como umdos atos infracitados,
cometidos na inteno de destruir, todo ou emparte, umgrupo nacional,
tnico, racial ou religioso, como tal: a) mortes de membros do
grupo; b) atentado grave integridade fsica ou mental de membros do
grupo; c) submisso intencional do grupo s condies de existncia que
acarretemsua destruio fsica, total ou parcial; d) medidas que
visema impedir nascimentos no seio do grupo; e) transferncias
foradas de crianas do grupo a umoutro grupo." O novo Cdigo Penal
francs d ao genocdio uma definio ainda mais ampla: "O fato, a
execuo de umplano concertado que tenda destruio total ou parcial de
um grupo nacional, tnico racial ou religioso, ou de umgrupo
determinado a partir de qualquer outro critrio arbitrrio" (grifo
nosso). Essa definio jurdica no contradiz a abordagemmais filosfica
de Andr Frossard, para quem "h crime contra a humanidade quando se
mata algumsob o pretexto de que ele nasceu."3 Emseu curto e
magnfico relato intitulado Toutpasse, Vassili Grossman diz a
respeito de Ivan Grigorievitch, seu heri oriundo do campo: "Ele
permaneceu o que ele era emseu nascimento, umhomem".4 precisamente
esse o motivo de ele sucumbir ao golpe do
44. terror. A definio francesa permite sublinhar que o genocdio
no sempre do mesmo tipo - racial, como no caso dos judeus - e que
tambmpode visar grupos sociais. Emumlivro publicado emBerlim,
em1924 - intitulado La terreur rouge en Russie-, o historiador e
socialista russo Serguei Melgunov cita Latzis, umdos primeiros
chefes da Tcheka (a polcia poltica sovitica) que, em19 de novembro
de 1918, deu as seguintes diretivas a seus esbirros: "Ns no fazemos
uma guerra especfica contra as pessoas. Ns exterminamos a burguesia
enquanto classe. No procurem, na investigao, documentos e provas do
que Citado por Kostas Papaionannou, Ls Marxistes, J'ai Lu, 1965. L
Crime contre l'humanit, Robert Laffont, 1987. 4 Tout passe,
Julliard-L'Age de 1'homme, 1984. 12 o acusado fez, ematos ou
palavras, contra a autoridade sovitica. A primeira questo que vocs
devemcolocar-lhe a que classe ele pertence, qual sua origem, sua
educao, sua instruo, sua profisso."
45. Desde o incio, Lenin e seus camaradas se situaramno
contexto de uma "guerra de classes" semperdo, na qual o adversrio
poltico, ideolgico, ou mesmo a populao recalcitrante
eramconsiderados - e tratados - como inimigos e deveriamser
exterminados. Os bolcheviques decidiram eliminar legalmente, mas
tambmfisicamente, toda oposio ou toda resistncia - e mesmo a mais
passiva - ao seu poder hegemnico, no somente quando esta era
formada por grupos de adversrios polticos, mas tambmpor grupos
sociais propriamente ditos tais como a nobreza, a burguesia, a
intelligentsia, a Igreja, etc., e tambmas categorias profissionais
(os oficiais, os policiais...) -conferindo, por vezes, uma dimenso
de genocdio a esses atos. Desde 1920, a "descossaquizao"
corresponde abertamente definio de genocdio: o conjunto de uma
populao comimplantao territorial fortemente determinada, os
cossacos, era exterminado, os homens fuzilados, as mulheres, as
crianas e os idosos deportados, os povoados destrudos ou entregues
a novos habitantes no cossacos. Lenin assimilava os cossacos
Vendia,* durante a revoluo francesa, e desejava aplicar- lhes o
tratamento que Gracchus Babeuf, o "inventor" do comunismo moderno,
qualificava como "populicdio".6 A "deskulakizao" de 1930-1932 no
foi seno a retomada, emgrande escala, da "descossaquizao", coma
novidade
46. de a operao ser reivindicada por Stalin, para quema palavra
de ordemoficial, alardeada pela propaganda do regime, era
"exterminar os kulaks enquanto classe". Os kulaks que resistiam
coletivizao eramfuzilados, os outros eram deportados junto comsuas
mulheres, crianas e os idosos. De fato, eles no foramtodos
diretamente exterminados, mas o trabalho forado ao qual
foramsubmetidos, nas zonas no desbravadas da Sibria ou do Grande
Norte, deixou-lhes pouca chance de sobrevivncia. Vrias centenas de
milhares deixaramali suas vidas, mas o nmero exato de vtimas
permanece desconhecido. Quanto grande fome ucraniana de 1932-1933,
relacionada resistncia das populaes rurais coletivizao forada, ela
empoucos meses provocou a morte de seis milhes de pessoas. Aqui, o
genocdio "da classe" junta-se ao genocdio "da raa": matar de fome
uma criana kulak ucraniana deliberadamente coagida indigncia pelo
regime stalinista "vale" o matar de fome uma criana judia do gueto
de 5 Jacques Baynac, La Terreur sous Lnine, L Sagittaire, 1975, p.
75. * Guerras de Vende ou Vendia, insurreio contra-
47. revolucionria provocada em1793, entre os camponeses da
Bretanha, Poitou e Anjou, pela constituio civil do clero e o
recrutamento emmassa. (N. T.) 6 Gracchus Babeuf, La Guerre de Vende
et l systeme de dpopulation, Tallandier, 1987. 13 Varsvia coagida
indigncia pelo regime nazista. Essa constatao de modo algumrepe
emcausa a "singularidade de Auschwitz": a mobilizao dos mais
modernos recursos tcnicos e a implantao de um verdadeiro "processo
industrial" - a construo de uma "usina de extermnio", o uso de
gases, a cremao. Mas destaca uma particularidade de muitos regimes
comunistas: a utilizao sistemtica da "arma da fome"; o regime tende
a controlar a totalidade do estoque de comida disponvel e, por
umsistema de racionamento por vezes bastante sofisticado, s o
distribui emfuno do "mrito" e do "demrito" de uns e de outros. Este
procedimento pode mesmo provocar gigantescas situaes de indigncia.
Lembremo-nos de que, no perodo posterior a 1918, somente os pases
comunistas conheceramessa grande fome que levou morte de centenas
de milhares, ou quemsabe at de milhes de pessoas. Ainda nesta ltima
dcada, dois pases
48. da frica que se dizemmarxistas-leninistas -Etipia e
Moambique sofreramdessas indigncias assassinas. Umprimeiro balano
global desses crimes pode ser esboado: fuzilamento de dezenas de
milhares de refns, ou de pessoas aprisionadas semjulgamento, e
massacre de centenas de milhares de trabalhadoresrevoltados entre
1918 e 1922; a fome de 1922, provocando a morte de cinco milhes de
pessoas; -execuo e deportao dos cossacos da regio do Don em 1920;
assassinato de dezenas de milhares de pessoas emcampos de
concentrao entre 1919 e 1930; execuo de cerca de 690.000 pessoas
por ocasio do Grande Expurgode 1937- 1938; deportao de dois milhes
de kulaks (ou supostos kulaks) em1930-1932; destruio por fome
provocada e no socorrida de seis milhes deucranianos em1932-1933;
deportao de centenas de milhares de poloneses, ucranianos,
blticos,moldvios e bessarbios em1939-1941, e posteriormente
em1944-1945; deportao dos alemes do Volga em1941;
49. deportao-abandono dos trtaros da Crimia em1943;
deportao-abandono dos chechenos em1944; deportao-abandono dos
inguches em1944; -deportao-abandono das populaes urbanas do Camboja
entre1975 e 1978; -lenta destruio dos tibetanos pelos chineses,
desde 1950, etc. No terminaramos nunca de enumerar os crimes do
leninismo e do stalinismo, comfrequncia reproduzidos de modo quase
idntico pelos regimes de Mo Zedong, KimII Sung, Pol Pot. 14
Permanece uma difcil questo epistemolgica: o historiador est apto a
usar, emsua caracterizao e emsua interpretao, fatos ou noes tais
como "crime contra a humanidade" ou "genocdio", relativos, como
vimos acima, ao domnio jurdico? No seriamessas noes demasiado
dependentes de imperativos conjunturais - a condenao do nazismo em
Nuremberg -
50. para seremintegradas a uma reflexo histrica que vise
estabelecer uma anlise pertinente a mdio prazo? Por outro lado,
essas noes no esto demasiado carregadas de "valores" suscetveis de
"falsearem" o objetivo da anlise histrica? Sobre o primeiro ponto,
a histria deste sculo mostrou que a prtica do massacre de massa,
feita por Estados ou por Partidos-Estados, no foi uma exclusividade
nazista. Bsnia e Ruanda provamque essas prticas perdurame que elas
constituiro, semdvida, uma das caractersticas principais deste
sculo. Sobre o segundo ponto, no se trata de modo algumde um
retorno s concepes histricas do sculo XIX, segundo as quais o
historiador procurava bemmais "julgar" do que "compreender".
Contudo, diante das imensas tragdias humanas diretamente provocadas
por certas concepes ideolgicas e polticas, pode o historiador
abandonar todo princpio de referncia a uma concepo humanista ligada
nossa civilizao judaico-crist e nossa cultura democrtica - como,
por exemplo, o respeito pela pessoa humana? Numerosos e renomados
historiadores, tais como Jean-Pierre Azema numartigo sobre
"Auschwitz"? ou Pierre Vidal-Naquet comrespeito ao processo de
Touvier,8 no hesitamemutilizar a expresso
51. "crime contra a humanidade" para qualificar os crimes
nazistas. Parece-nos, ento, que no ilegtimo utilizar essas noes
para caracterizar alguns dos crimes cometidos pelos regimes
comunistas. Almda questo da responsabilidade direta dos comunistas
no poder, coloca-se a questo da cumplicidade. O Cdigo Criminal
canadense, modificado em1987, considera, emseu artigo 7 (3.77), que
as infraes de crime contra a humanidade incluemas infraes de
tentativa, cumplicidade, conselho, ajuda e encorajamento ou de
cumplicidade de fato? So tambmassimilados aos crimes contra a
humanidade - artigo 7 (3.76) - "a tentativa, o compl, a
cumplicidade aps o fato, o conselho, a ajuda ou o encorajamento a
respeito desse fato" (grifo nosso). Ora, dos anos 20 aos anos 50,
os comunistas do mundo /J.-P. Azema, F. Bdarida, Dictonnaire ds
annes de tourmente, Flammarion, 1995, p. 777. Rflexions sur l
gnocide, La Dcouverte, 1995, p. 268; P. Vidal-Naquet escreve,
alis:"Falamos de Katyn e do massacre, em1940, dos oficiais
poloneses prisioneiros dos soviticos.Katyn entra perfeitamente na
definio de Nuremberg". Denis Szabo, Alain Joff, "La rpression ds
crimes contre
52. l'humanit et ds crimes du genreau Canada", in Mareei Colin,
L Crime contre 1'humanit, Ers, 1996, p. 65. 15 inteiro e vrias
outras pessoas aplaudiramcomentusiasmo a poltica de Lenin e,
emseguida, a de Stalin. Centenas de milhares de homens engajaram-se
nas fileiras da Internacional Comunista e nas sees locais do
"partido mundial da revoluo". Nos anos 50-70, outras centenas de
milhares de homens veneraramo "Grande Timoneiro" da revoluo chinesa
e cantaramos grandes mritos do Grande Salto Adiante ou os da
Revoluo Cultural. J emnosso meio, muita gente se felicitou quando
Pol Pot tomou o poder.10 Alguns respondero que "no sabiam". verdade
que nemsempre foi fcil saber, j que os regimes comunistas fizeramdo
segredo uma das estratgias de defesa privilegiadas. Mas,
frequentemente, essa ignorncia era to- somente resultado de uma
cegueira devida crena militante. E, desde os anos 40 e 50, muitos
fatos eram conhecidos e incontestveis. Ora, se vrios desses
bajuladores abandonaramseus dolos de ontem, foi com silncio e
discrio. Mas o que pensar do profundo amoralismo que h emabandonar
umengajamento pblico no maior dos segredos, semtirar dele qualquer
lio? Em1969, umdos pioneiros no estudo do terror comunista,
53. Robert Conquest, escreveu: "O fato de tantas pessoas
'engolirem' efetivamente [o Grande Expurgo] foi, semdvida, umdos
fatores que tornarampossvel qualquer Expurgo. Os processos,
principalmente, teriamtido muito pouco interesse se no tivessemsido
validados por certos comentadores estrangeiros - ou seja,
'independentes'. Estes ltimos devem, pelo menos emparte, arcar coma
responsabilidade de uma certa cumplicidade para comessas mortes
polticas, ou, em todo caso, para como fato de que elas vierama se
repetir quando a primeira operao, o processo Zinoviev [de 1936],
foi beneficiada comumcrdito injustificado."11 Se atribumos, atravs
desse parmetro, uma cumplicidade moral e intelectual a umcerto
nmero de no-comunistas, o que dizer da cumplicidade dos comunistas?
E no nos lembramos de ver Louis Aragon arrepender-se publicamente
por ter, numpoema de 1931, evocado a vontade da criao de uma polcia
poltica comunista na Frana,12 mesmo que, algumas vezes, ele tenha
criticado o perodo stalinista. Joseph Berger, antigo membro do
Komintern, ele prprio "expurgado" e conhecedor dos campos, cita a
carta recebida de uma antiga deportada do Gulag, mas que permaneceu
membro do Partido aps ter retornado dos campos de concentrao:
54. "Os comunistas de minha gerao aceitarama autoridade de
Stalin. Eles aprovaramseus crimes. Isso vale no somente para os
comu-10 Ver a este respeito a anlise de Jean-Nol Darde, L Ministrc
de Ia Vrt: histoire d'un gno-cide damlejournal, UHumanit, L Seuil,
1984. 11 "La Grande Purge", Preuves, fevereiro-maro de 1969. 12 Ver
Louis Aragon, Prlude au temps ds cerses. 16 nistas soviticos, mas
tambmpara aqueles do mundo inteiro, e essa ndoa nos marca
individual e coletivamente. S podemos apag-la fazendo comque isso
nunca mais se reproduza. O que aconteceu? Havamos perdido a razo ou
somos traidores do comunismo? A verdade que todos ns, inclusive os
que estavammais prximos a Stalin, fizemos dos crimes o contrrio do
que eles realmente eram. Ns os consideramos como uma importante
contribuio para a vitria do socialismo.
55. Acreditamos que tudo o que fortalecia a potncia poltica do
Partido Comunista na Unio Sovitica e no mundo era uma vitria para o
socialismo. No imaginvamos jamais que pudesse haver umconflito no
interior do partido entre a poltica e a tica." Por sua vez, Berger
desenvolve essa afirmao: "Estimo que se podemos condenar a atitude
daqueles que aceitarama poltica de Stalin, o que no foi o caso de
todos os comunistas, bemmais difcil censur-los por no terem tornado
esses crimes impossveis. Acreditar que homens, mesmo aqueles
compostos mais elevados, podiamopor-se a seus desejos no
compreender nada do que foi o seu despotismo bizantino." Berger
tema "desculpa" de ter estado na URSS e, portanto, de ter sido
tragado pela mquina infernal, sempoder escapar dela. Mas e os
comunistas da Europa Ocidental que no sofriamnenhum constrangimento
direto do NKVD*, que cegueira fez com que continuassemfazendo a
apologia do sistema e de seu chefe? Seria preciso que a poo mgica
que os mantinha em submisso fosse potente! Emsua notvel obra sobre
a Revoluo Russa La Tragdie Sovitique , Martin Malia traz umpouco de
luz ao assunto falando "desse paradoxo: umgrande ideal que levou a
umgrande crime."14 Annie Kriegel, uma outra grande analista do
comunismo, insistia nessa articulao quase necessria das duas faces
do comunismo: uma luminosa e outra escura.
56. A esse paradoxo, Tzvetan Todorov traz uma primeira
resposta: "O habitante de uma democracia ocidental queria pensar no
totalitarismo como algo completamente estranho s aspiraes humanas
normais. Ora, o totalitarismo no teria se mantido por tanto tempo,
no teria arrastado tantos indivduos emsua senda, se ele fosse
assim. Ele , ao contrrio, uma mquina de tremenda eficcia. A
ideologia comunista prope a imagemde uma sociedade melhor e nos
incita a desej-la: no faz parte da identidade humana o desejo de
transformar o mundo emnome de umideal? [...] Almdo mais, a
sociedade comu-13 Joseph Berger, L Naufrage d'unegnration, Denol,
"Lettres nouvelles", 1974, p. 255. * Sigla das palavras russas que
significam "Comissariado do Povo para os Negcios Interiores",
organismo criado em1934 aps a dissoluo da GPU (Polcia Poltica
Sovitica de 1922 a 1934). (N. T.) MLeSeuil, 1995, p. 15. 17 nista
priva o indivduo de suas responsabilidades: so sempre "eles"
quemdecidem. Ora, a responsabilidade frequentemente umfardo pesado
a ser carregado. [...] A atrao pelo sistema totalitrio,
experimentada inconscientemente por numerosos indivduos, provmde
umcerto medo da liberdade e da responsabilidade - o que
57. explica a popularidade de todos os regimes autoritrios ( a
tese de Erich FrommemO medo da liberdade); o que existe uma
'servido voluntria', j dizia La Botie".1* A cumplicidade daqueles
que enveredaramna servido voluntria no foi e continua no sendo
abstrata e terica. O simples fato de aceitar e/ou assumir uma
propaganda destinada a esconder a verdade demonstrava e continua
demonstrando uma cumplicidade ativa. Pois tornar pblico o nico meio
- ainda que no seja sempre eficaz, como acaba de mostrar a tragdia
de Ruanda de lutar contra os crimes de massa cometidos emsegredo,
protegidos dos olhares indiscretos. A anlise dessa realidade
central do fenmeno comunista no poder -ditadura e terror - no
simples. Jean Ellenstein definiu o fenmeno stalinis-ta como uma
mistura de tirania grega e despotismo oriental. A frmula sedutora,
mas no d conta do carter moderno dessa experincia, de seu alcance
totalitrio, distinto das formas anteriormente conhecidas de
ditadura. Umrpido sobrevoo comparativo permitir uma melhor
compreenso. Poder-se-ia inicialmente evocar a tradio russa da
opresso. Os bolcheviques combatiamo regime terrorista do Czar,
que,
58. entretanto, empalidece diante dos horrores do bolchevismo
no poder. O Czar denunciava os prisioneiros polticos diante de uma
verdadeira justia; a defesa podia exprimir-se tanto quanto ou ainda
mais do que a acusao e tomar o testemunho de uma opinio pblica
nacional inexistente no regime comunista e, sobretudo, de uma
opinio pblica internacional. Os prisioneiros e os condenados se
beneficiavamde uma regulamentao nas prises, e o regime de desterro,
ou mesmo o de deportao, era relativamente leve. Os deportados
podiampartir comsuas famlias, ler e escrever o que quisessem: caar,
pescar e se encontrarem, nos momentos de lazer, comseus
companheiros de "infortnio". Lenin e Stalin puderamexperimentar
essa situao pessoalmente. Mesmo as Recordaes da casa dos mortos, de
Dostoievski, que tanto chocarama opinio pblica na poca de sua
publicao, parecemandinas em face dos horrores do comunismo.
Seguramente, houve, na Rssia dos anos 1880 a 1914, tumultos
populares e insurreies duramente reprimidos por umsistema poltico
arcaico. Porm, de 1825 a 1917, o nmero total de pessoas condenadas
UTzvetanTodorov, UHommedfpays, L Seuil, 1996, p. 36. 18
59. morte nesse pas, por sua opinio ou sua ao poltica, foi de
6.360, dos quais 3.932 foramexecutados - 191 de 1825 a 1905, e
3.741 de 1906 a 1910 -quantidade que j havia sido ultrapassada
pelos bolcheviques emmaro de 1919, aps somente quatro meses de
exerccio de poder. O balano da represso czarista , assim,
semparalelo como do terror comunista. Entre os anos 20 e 40, o
comunismo censurou violentamente o terror praticado pelos regimes
fascistas. Umrpido exame dos nmeros mostra que as coisas no so
assimto simples. O fascismo italiano, o primeiro emao e tambm
quemabertamente reivindicou para si o ttulo de "totalitrio",
aprisionou e comfrequncia maltratou seus adversrios polticos.
Entretanto, ele raramente chegou a cometer assassinatos, de modo
que, na metade dos anos 30, a Itlia tinha algumas centenas de
prisioneiros polticos e vrias centenas de confnati postos
emresidncia vigiada nas ilhas , mas, verdade, tinha tambmdezenas de
milhares de exilados polticos. At a guerra, o terror nazista visou
alguns grupos; os oponentes ao regime - principalmente comunistas,
socialistas, anarquistas, alguns sindicalistas foram reprimidos de
maneira aberta, encarcerados emprises e
60. sobretudo internados emcampos de concentrao, submetidos a
humilhaes severas. No total, de 1933 a 1939, aproximadamente 20.000
militantes de esquerda foram assassinados comou semjulgamento nos
campos e prises; semfalar dos acertos de contas internos ao
nazismo, como a "noite dos punhais" emjunho de 1934. Outra
categoria de vtimas destinadas morte foramos alemes que
supostamente no correspondiamaos critrios raciais do "grande ariano
loiro" - doentes mentais, deficientes fsicos, idosos. Hider decidiu
executar seus intentos por ocasio da guerra: 70.000 alemes
foramvtimas de umprograma de eutansia comasfixia por gs, entre o
fimde 1939 e o incio de 1941, at que as Igrejas protestasseme que o
programa fosse encerrado. Os mtodos de asfixia por gs aperfeioados
na ocasio so os que foramaplicados no terceiro grupo de vtimas, os
judeus. At a guerra, as medidas de excluso contra eles eram
generalizadas, mas sua perseguio teve seu apogeu na ocasio da
"Noite de Cristal" - vrias centenas de mortos e 35.000
internamentos emcampos de concentrao. Foi somente coma guerra, e
sobretudo como ataque URSS, que se desencadeou o terror nazista,
cujo balano sumrio o
61. seguinte: 15 milhes de civis mortos nos pases ocupados; 5,1
milhes de judeus; 3,3 milhes de prisioneiros de guerra soviticos;
1,1 milho de deportados mortos nos campos; vrias centenas de
milhares de ciganos. essas vtimas se juntaram8 milhes de pessoas
destinadas a trabalhos forados e 1,6 milho de detentos
sobreviventes emcampos de concentrao. O terror nazista chocou as
imaginaes por trs razes. Inicialmente, 19 por ter atingido
diretamente os europeus. Por outro lado, uma vez vencidos os
nazistas, e comseus principais dirigentes julgados emNuremberg,
seus crimes foram oficialmente designados e condenados como tais.
Enfim, a revelao do genocdio dos judeus foi umchoque por seu carter
de aparncia irracional, sua dimenso racista, o radicalismo do
crime. Nosso propsito aqui no o de estabelecer uma macabra
aritmtica comparativa qualquer, uma contabilidade duplicada do
horror, uma hierarquia da crueldade. Entretanto, os fatos so
tenazes e mostramque os regimes
62. comunistas cometeramcrimes concernentes a aproximadamente
100 milhes de pessoas, contra 25 milhes de pessoas atingidas pelo
nazismo. Essa simples constatao deve, pelo menos, provocar uma
reflexo comparativa sobre a semelhana entre o regime que foi
considerado, a partir de 1945, como o regime mais criminoso do
sculo, e umsistema comunista que conservou, at 1991, toda a sua
legitimidade internacional e que, at hoje, est no poder emalguns
pases, mantendo adeptos no mundo inteiro. Mesmo que muitos dos
partidos comunistas tenham reconhecido tardiamente os crimes do
stalinis-mo, eles no abandonaram, emsua maioria, os princpios de
Lenin e nunca se interrogamsobre suas prprias implicaes no fenmeno
terrorista. Os mtodos postos emprtica por Lenin e sistematizados
por Stalin e seus mulos, no somente lembramos mtodos nazistas como
tambm, e comfrequncia, lhes so anteriores. A esse respeito, Rudolf
Hoess, encarregado de criar o campo de Auschwitz, e tambmseu futuro
comandante, sustentou afirmaes bastante indicativas: "A direo da
Segurana fizera chegar aos comandantes dos campos uma detalhada
documentao sobre os campos de concentrao russos. Baseando-se nos
testemunhos dos fugitivos, estavamexpostas emtodos os detalhes
as
63. condies reinantes no local. Destacava-se particularmente
que os russos exterminavampopulaes inteiras utilizando- as
emtrabalhos forados."16 Porm, se fato que a intensidade e as
tcnicas da violncia de massa foram inauguradas pelos comunistas e
que os nazistas tenhamse inspirado nelas, isto no implica, a nosso
ver, que se possa estabelecer uma relao direta de causa e efeito
entre a tomada do poder pelos bolcheviques e a emergncia do
nazismo. Desde o fimdos anos 20, a GPU (novo nome da Tcheka)
inaugurou o mtodo das quotas: cada regio e cada distrito
deviamdeter, deportar ou fuzilar uma determinada percentagemde
pessoas pertencentes s camadas sociais "inimigas". Essas
percentagens eramdefinidas centralmente pela direo do Partido. A
loucura planificadora e a mania estatstica no diziamrespeito
somente economia; elas tambmse aplicavamao domnio do terror. Desde
16 L commandant 'Auschwitzparle, La Dcouverte, 1995, p. 224. 20
1920, coma vitria do Exrcito Vermelho sobre o Exrcito Branco, na
Crimia, surgirammtodos estatsticos, e mesmo sociolgicos: as vtimas
so seleciona-das segundo critrios precisos, estabelecidos coma
ajuda de questionrios aos quais ningumpoderia deixar de responder.
Os mesmos
64. mtodos "sociolgicos'' sero postos emprtica pelos soviticos
para organizar as deportaes e execues em massa nos Estados Blticos
e na Polnia ocupada de 1939- 1941. O transporte dos deportados
emvages de animais acarretou as mesmas "aberraes" que as cometidas
pelo nazismo: em1943-1944, emplena batalha, Stalin fel comque
milhares de vages e centenas de milhares de homens das tropas
especiais do NKVD deixassemo fronte para assegurar emumcurtssimo
espao de tempo a deportao das populaes do Cucaso. Essa lgica do
genocdio -que consiste, retomando o Cdigo Penal francs, na
"destruio total ou parcial de umgrupo nacional, tnico, racial ou
religioso, ou de umdeterminadogrupo, a partir de qualquer outro
critrio arbitrrio" - aplicada pelo podercomunista a grupos
designados como inimigos, a fraes de sua prpria sociedade, foi
conduzida ao seu paroxismo por Pol Pot e seus khmers vermelhos.
Fazer a aproximao entre o nazismo e o comunismo, no que diz
respeito a seus respectivos extermnios, pode chocar. Entretanto,
Vassili Grossman -cuja me foi morta pelos nazistas no gueto de
Berditchev, escritor do primeiro texto sobre Treblinka e
tambmumdos
65. mestres do Livre noir sobre oextermnio dos judeus na URSS -
que, emseu relato Tout passe, faz umdeseus personagens dizer a
respeito da fome na Ucrnia: "Os escritores e o prprio Stalin
diziamtodos a mesma coisa: os kulaks so parasitas, eles queimamo
trigo, matamas crianas. E nos disseramsemrodeios: preciso que as
massas se revoltem contra eles, para aniquil-los todos, enquanto
classe, esses malditos." E acrescenta: "Para mat-los, seria preciso
declarar: os kulaks no soseres humanos. Do mesmo modo que os alemes
diziam: os judeus no soseres humanos. Foi o que Lenin e Stalin
disseram: os kulaks no so sereshumanos." E Grossman conclui, a
respeito das crianas kulaks: " como osalemes que assassinaramas
crianas judias nas cmaras de gs: vocs no tmdireito de viver, vocs
so judeus."17 cada vez, no so tanto os indivduos que so atingidos,
mas os grupos. O terror temcomo objetivo exterminar um grupo
designado como inimigo, que, na verdade, constitui- se somente como
uma frao da sociedade, mas que atingido enquanto tal por uma lgica
do genocdio. Assim, os mecanismos de segregao e de excluso do
"totalitarismo da classe" se parecemsingularmente queles do
"totalitarismo da raa". sociedade nazista futura devia ser
construda emtorno da "raa pura"; a sociedade comunista
66. 17 Vassili Grossman, op. cit., pp. 140 e 150. 21 futura,
emtorno de umpovo proletrio, purificado de toda escria burguesa. O
remodelamento dessas duas sociedades foi planejado do mesmo modo,
apesar de os critrios de excluso no seremos mesmos. Portanto, falso
pretender que o comunismo seja umuniversalismo: se o projeto tem
uma vocao mundial, uma parte da humanidade declarada indigna de
existir neste mundo, como no caso do nazismo; a diferena que
umrecorte por estratos (classes) substitui o recorte racial e
territorial dos nazistas. Logo, os empreendimentos leninista,
stalinista, maosta e a experincia cambojana pem humanidade
assimcomo aos juristas e historiadores uma nova questo: como
qualificar o crime que consiste emexterminar, por razes
poltico-ideo-lgicas, no mais indivduos ou grupos limitados de
oponentes, mas partes inteiras da sociedade? preciso inventar uma
nova denominao? Alguns autores anglo-saxes pensamdessa forma,
criando o termo "politicdio". Ou preciso chegar, como o fazemos
juristas tchecos, a qualificar os crimes cometidos pelos regimes
comunistas como "crimes comunistas"? O que se sabia dos crimes do
comunismo? O que se queria
67. saber? Por que foi preciso esperar o fimdo sculo para que
esse tema obtivesse o status de objeto de cincia? Pois evidente que
o estudo do terror stalinista e comunista em geral, comparado ao
estudo dos crimes nazistas, temum enorme atraso a recuperar, mesmo
que, no Leste, os estudos se multipliquem. Umgrande contraste no
pode deixar de nos causar surpresa: foi comlegitimidade que os
vencedores em1945 situaramo crime - e emparticular o genocdio dos
judeus - no centro de sua condenao ao nazismo. Numerosos
pesquisadores emtodo o mundo trabalhamh dcadas sobre essa questo.
Milhares de livros lhe foram consagrados, dezenas de filmes, dos
quais alguns muito famosos nos mais diferentes gneros Noite e
Neblina ou Shoah, A Escolha de Sofia ou A Lista de Schindler. Raul
Hilberg, para citarmos apenas umautor, fez da descrio detalhada das
modalidades da matana aos judeus no III Reich18 o centro de sua
obra mais importante. Ora, no existe umtrabalho como esse sobre a
questo dos crimes comunistas. Enquanto que nomes como os de Himmler
ou o de Eichman so conhecidos emtodo o mundo como smbolos da
barbrie contempornea, os de Dzerjinski, lagoda ou de lejov so
ignorados da maioria. Quanto a Lenin, Mo, Ho Chi Minh e o prprio
Stalin, eles sempre
68. foramtratados comuma surpreendente reverncia. Umrgo do
Estado francs, a Loto, chegou a ter a inconscincia de associar
Stalin e Mo a uma de suas campanhas publicitrias! Quemteria a ideia
de utilizar Hitler ou Goebbels numa operao semelhante? 18 Raul
Hilberg, La Destruction desjuifi d'Europe, Fayard, 1988. 22 A ateno
excepcional concedida aos crimes hitleristas perfeitamente
justificada. Ela responde vontade dos sobreviventes de testemunhar,
dos pesquisadores de compreender e das autoridades morais e
polticas de confirmar os valores democrticos. Mas por que os
testemunhos dos crimes comunistas tmuma repercusso to fraca na
opinio pblica? Por que o silncio constrangido dos polticos? E,
sobretudo, por que um silncio "acadmico" sobre a catstrofe
comunista que atingiu, h aproximadamente 80 anos, umtero da espcie
humana, sobre quatro continentes? Por que essa incapacidade de
situar no centro da anlise do comunismo umfator to essencial quanto
o crime, o crime de massa, o crime sistemtico, o crime contra a
humanidade? Estamos diante de uma impossibilidade de compreenso? No
se trata, antes, de uma recusa deliberada de saber, de ummedo
69. de compreender? As razes dessa ocultao so mltiplas e
complexas. Inicialmente, estava emjogo a vontade clssica e
constante dos carrascos de apagar as marcas de seus crimes e de
justificar o que eles no podiamesconder. O "relatrio secreto" de
Kruschev (1956), que se constituiu como o primeiro reconhecimento
dos crimes comunistas pelos prprios dirigentes comunistas, tambmo
relato de um carrasco que vai procurar mascarar e encobrir seus
prprios crimes -como chefe do Partido Comunista ucraniano no auge
do terror atribuindo-os somente a Stalin e valendo-se do fato de
que obedecia a ordens; ocultar a maior parte do crime ele fala
somente das vtimas comunistas, bemmenos numerosas do que todas as
outras; atenuar o significado desses crimes - ele os qualifica como
"abusos cometidos pelo regime stalinista"; e, enfim, justificar a
continuidade do sistema comos mesmos princpios, as mesmas
estruturas e os mesmos homens. Kruschev nos d umtestemunho franco,
relacionando as oposies comas quais ele se chocou ao preparar o
"relatrio secreto", particularmente no que diz respeito ao homemde
confiana de Stalin: "Kaganovitch era de tal modo umadulador, que
ele teria cortado a garganta de seu pai se Stalin assimo ordenasse
comuma piscada de olhos, dizendo-lhe que era no interesse da Causa:
a causa
70. stalinista, claro, f...] Ele argumentava contra mimpor
causa do medo egosta de perder o pescoo. Ele obedecia ao desejo
impaciente de fugir a toda responsabilidade. Se havia crimes,
Kaganovitch queria somente uma coisa: estar certo de que suas
marcas foramapagadas."1^ O fechamento absoluto dos arquivos dos
pases comunistas, o controle total da imprensa, da mdia e de todas
as sadas para o exterior, a propaganda do "sucesso" do regime, toda
essa mquina de ocultar informaes visava, emprimeiro lugar, impedir
que viesse luz a verdade sobre os crimes. Nikita Kruschev,
Souvenirs, Robert Laffont, 1971, p. 330. 23 No contentes emesconder
seus delitos, os carrascos combaterampor todos os meios aqueles que
tentavam relat-los. Pois alguns observadores e analistas tentaram
esclarecer seus contemporneos. Aps a Segunda Guerra Mundial, isso
foi particularmente claro emduas ocasies na Frana. De janeiro a
abril de 1949 teve lugar emParis o processo que ops Victor
Kravchenko - umex-alto funcionrio sovitico que havia escrito/'tf /
choisi Ia liberte, livro no qual era descrita a ditadura stalinista
- ao jornal comunista dirigido por Louis Aragon, Ls Lettres
Franaises, que cobria Kravchenko de injrias. Teve lugar
tambmemParis, de novembro de 1950 a janeiro de 1951, um
71. outro processo entre Ls Lettres Franaises (mais uma vez) e
David Rousset, umintelectual, ex-trotskista, deportado da Alemanha
pelos nazistas e que, em1946, havia recebido o prmio Renaudot por
seu livro LUniven concentrationnaire; Rousset convocara, em12 de
novembro de 1949, todos os antigos deportados dos campos nazistas
para formar uma comisso de investigao sobre os campos soviticos,
sendo ento violentamente atacado pela imprensa comunista, que
negava a existncia desses campos. Em seguida convocao feita por
Rousset, em25 de fevereiro de 1950, numartigo do Figaro littraire
intitulado "Pour 1'enqute sur ls camps sovitiques. Qui estpire,
Satan ou BelzbutW? Margaret Buber-Neumann expunha sua dupla
experincia de deportada dos campos nazistas e soviticos. Contra
todos esses esclarecedores da conscincia humana, os carrascos
desenvolveram, numcombate sistemtico, todo o arsenal dos grandes
Estados modernos, capazes de intervir no mundo inteiro. Eles
procuraramdesqualific-los, desacredit- los, intimid-los. A.
Soljenitsyne, V. Bukovsky, A. Zinoviev L. Plichki foramexpulsos de
seu pas, Andr Sakharov foi exilado emGorki, o general Piotr
Grigorenko, abandonado numhospital psiquitrico, Markov, assassinado
comum guarda-chuva envenenado.
72. Diante de tal poder de intimidao e de ocultao, as prprias
vtimas hesitavamemse manifestar, tornando-se incapazes de
reintegrar a sociedade onde desfilavamseus delatores e carrascos.
Vassili Grossman20 narra essa desesperana. Ao contrrio da tragdia
dos judeus em relao qual a comunidade judia internacional
encarregou- se da celebrao dos mortos do genocdio - durante muito
tempo foi impossvel s vtimas do comunismo e aos seus interessados
manter uma memria viva da tragdia, estando proibido qualquer tipo
de celebrao ou demanda de reparao. Quando no conseguiammanter a
verdade escondida a prtica dos fuzilamentos, os campos de
concentrao, a fome imposta , os carrascos tra- * Pela investigao
dos campos soviticos. Quem pior, Sat ou Belzebu? (N. T.) 20
Toutpasse, of. cit., 1984. 24 mavama justificao dos fatos
maquiando-os grosseiramente. Depois de teremreivindicado o terror,
eles o erigiramcomo figura alegrica da revoluo: "quando se corta a
floresta, as farpas voam", "no se pode fazer uma omelete semse
quebraremos ovos". A isto Vladimir Bukovski replicava ter visto os
ovos quebrados, mas no ter
73. nunca provado omeletes. Mas, semdvida, foi coma perverso da
linguagemque se chegou ao pior. Atravs da magia vocabular, o
sistema dos campos de concentrao tornou-se obra de reeducao, e os
carrascos, educadores aplicados emtransformar os homens de uma
sociedade antiga em"homens novos". Pedia-se, atravs da fora, aos
zeks - termo que designa os prisioneiros dos campos de concentrao
soviticos para que acreditassemnumsistema que os subjugava. Na
China, o interno na concentrao denominado "estudante": ele deve
estudar o pensamento justo do partido e reformar o seu prprio
pensamento imperfeito. Como acontece comfrequncia, a mentira no ,
strcto sensu, o inverso da verdade, e toda mentira se apoia sobre
elementos verdadeiros. As palavras pervertidas aparecem como uma
viso deslocada que deforma a perspectiva de conjunto: somos
confrontados a umastigmatismo social e poltico. Ora, fcil corrigir
a percepo deformada pela propaganda comunista, mas muito difcil
reconduzir aquele que percebeu erroneamente a uma concepo
intelectual pertinente. A impresso primeira permanece e torna-se
preconceito. Como fazemos praticantes do judo - e graas a sua
incomparvel potncia propagandista, amplamente baseada na perverso
da linguagem, os comunistas utilizaramtoda a fora das crticas
feitas aos seus mtodos
74. terroristas para retorn-las contra essas prprias crticas,
reunindo, a cada vez, as fileiras de seus militantes e
simpatizantes na renovao do ato de f comunista. Assim, eles
reencontraramo princpio primeiro da crena ideolgica, formulada por
Tertuliano, emsua poca: "Creio porque absurdo." No contexto dessas
operaes de contrapropaganda, os intelectuais, literalmente, se
prostituram. Em1928, Gorki aceitou ir em"excurso" s ilhas Solovki,
umcampo de concentrao experimental que, atravs de suas "metstases"
(Soljenitsyne), dar origemao sistema do Gulag. Ele trouxe de l
umlivro exaltando Solovki e o governo sovitico. Henri Barbusse,
escritor francs ganhador do Goncourt* de 1916, no hesitou, emtroca
de uma recompensa financeira, emexaltar o regime stalinista,
publicando, em1928, umlivro sobre a "maravilhosa Gergia" - onde,
precisamente em1921, Stalin e seu aclito Ordjonikidze se
entregarama uma verdadeira carnificina, e onde Beria, chefe do
NKVD, se fazia notar por seu maquiavelismo e seu sadismo - *
PrxGoncourt, grande prmio de literatura na Frana. (N. T.) 25
75. e, em1935, a primeira biografia oficiosa de Stalin. Mais
recentemente, Ma-ria-Antonietta Macciochi fez a apologia de Mo,
Alain Peyrefitte lhe fez coro, enquanto Danielle Mitterrand
passeava ao lado de Castro. Cupidez, apatia, vaidade, fascinao pela
fora e pela violncia, paixo revolucionria: qualquer que seja a
motivao, as ditaduras totalitrias sempre encontraramos bajuladores
dos quais necessitavam, tanto a ditadura comunista quanto as
outras. Diante da propaganda comunista, o Ocidente mostrou-se
durante muito tempo de uma cegueira excepcional, mantida tanto pela
inocncia emface de umsistema astuto, quanto pelo medo da potncia
sovitica, semfalar do cinismo dos polticos e dos interesseiros.
Cegueira presente emYalta, quando o presidente Roosevelt deixou o
Leste Europeu entregue a Stalin, contra a promessa, redigida de
forma clara e limpa, de que ele organizaria eleies livres na regio
o mais rapidamente possvel. O realismo e a resignao
estavampresentes emMoscou quando, emdezembro de 1944, o General de
Gaulle trocou o abandono da infeliz Polnia ao Moloch pela garantia
da paz social e poltica, assegurada pela volta de Maurice Thorez a
Paris. Cegueira que foi fortalecida, quase que legitimada, por uma
crena entre os comunistas ocidentais e muitos homens de esquerda
segundo a qual esses pases estavam "construindo o socialismo", e
que a utopia que nas
76. democracias alimentava os conflitos sociais e polticos
tornava-se "para eles" uma realidade cujo prestgio Simone Weil
destacou: "Os trabalhadores revolucionrios so felizes por
teremumEstado por detrs deles umEstado que d s suas aes esse carter
oficial, uma legitimidade, uma realidade que somente ele, o Estado,
pode conferir, e que, ao mesmo tempo, est situado longe deles o
suficiente para no causar-lhes desgosto".21 O comunismo
apresentava, ento, sua face clara: ele se declarava Iluminado,
inserido numa tradio de emancipao social e humana, de sonho da
"igualdade real" e da "felicidade para todos" inaugurada por
Gracchus Babeuf. essa face luminosa que ocultava quase que
totalmente a face das trevas. ignorncia desejada ou no da dimenso
criminosa do comunismo juntou-se, como sempre, a indiferena de
nossos contemporneos para comseus irmos humanos. No que o
homemtenha o corao de pedra. Pelo contrrio, eminmeras
situaes-limite, ele mostra insuspeitadas fontes de solidariedade,
de amizade, de afeio e mesmo de amor. Entretanto, como destaca
Tzvetan Todorov, "a memria de nossos lutos nos impede de
percebermos o sofrimento dos outros".22 E, terminada a Primeira e,
em seguida, a
77. 21 Simone Weil, L'Enracinement, Gallimard, 1949. 22 Tzvetan
Todorov, "La Morale de 1'historien", colloque L'Homme, Ia langue,
ls camps, ParisIV-Sorbonne, maio de 1997. 26 Segunda Guerra
Mundial, que povo europeu ou asitico no estava ocupado emcurar as
chagas de inmeros lutos? As dificuldades encontradas na prpria
Franca no afrontamento dos anos sombrios so suficientemente
eloquentes. A histria - ou melhor, a no-histria - da Ocupao
continua a envenenar a conscincia francesa. Acontece o mesmo,
talvez commenos intensidade, coma histria dos perodos "nazi" na
Alemanha, "fascista" na Itlia, "franquista" na Espanha, da guerra
civil na Grcia, etc. Neste sculo de ferro e sangue, cada umesteve
demasiadamente ocupado com suas prprias mazelas para poder
compadecer-se das dos outros. A ocultao da dimenso criminosa do
comunismo remete,
78. porm, a trs razes especficas. A primeira refere-se ao apego
prpria ideia da revoluo. Ainda hoje, o luto dessa ideia, tal como
ela foi preconizada nos sculos XIX e XX, est longe de terminar.
Seus smbolos bandeira vermelha, a Internacional, punho erguido -
ressurgempor ocasio de todo movimento social importante. Che
Guevara retorna moda. Grupos declaradamente revolucionrios
permanecem ativos e se manifestamcomtoda legalidade, tratando com
desprezo a menor reflexo crtica sobre os crimes dos seus
predecessores e no hesitando emreiterar os velhos discursos
justificativos de Lenin, de Trotski ou de Mo. Paixo revolucionria
que no acometeu somente aos outros. Muitos dos prprios autores
deste livro acreditaram durante algumtempo na propaganda comunista.
A segunda razo refere-se participao dos soviticos na vitria sobre o
nazismo, o que permitiu aos comunistas mascarar sob umpatriotismo
intenso seus fins ltimos, que visavam tomada do poder. A partir de
junho de 1941, os comunistas do conjunto dos pases ocupados
entraram numa resistncia ativa e comfrequncia armada ocupao nazista
ou italiana. Do mesmo modo que os demais resistentes aos regimes de
sujeio, eles tiveramde pagar o imposto da represso, com milhares de
fuzilados, massacrados, deportados. Eles se serviramdesses mrtires
para sacralizar a causa do
79. comunismo e proibir toda crtica a seu respeito. Almdisso,
no curso dos combates da Resistncia, muitos dos no- comunistas
estabeleceramlaos de solidariedade, de combate, de sangue
comcomunistas, o que impediu que muitos olhos se abrissem; na
Frana, a atitude dos gaullistas foi comfrequncia comandada por essa
memria comume encorajada pela poltica do general de Gaulle que
utilizava o contrapeso sovitico diante dos americanos.23 A
participao dos comunistas na guerra e na vitria sobre o nazismo fez
triunfar definitivamente a noo de antifascismo como critrio de
verdade da 23 Ver Pierre Nora, "Gaullistes et communistes", Ls
Lieuxde mmoire, Gallimard, 1997, Quarto, vol. 2. 27 esquerda, e,
certamente, os comunistas se colocaramcomo os melhores
representantes e os melhores defensores desse antifascismo. O
antifascismo tornou-se umrtulo definitivo para o comunismo, sendo
fcil, emnome do antifascismo, silenciar os recalcitrantes. Franois
Furet escreveu pginas esclarecedoras sobre esse assunto crucial.
Como nazismo vencido, designado pelos Aliados como o "Mal
Absoluto", o comunismo saltou quase que mecanicamente para o campo
do Bem. O que ocorreu, evidentemente, na ocasio do
80. processo de Nuremberg, quando os soviticos estiveram
sentados no banco da acusao. Assim, episdios embaraosos para os
valores democrticos foram escamoteados, tais como os pactos
germano-soviticos de 1939 ou o massacre de Katyn. A vitria sobre o
nazismo deveria supostamente fornecer a prova da superioridade do
sistema comunista. Na Europa libertada pelos anglo-ameri- canos,
ela teve, sobretudo, o efeito de suscitar umduplo sentimento de
gratido para como Exrcito Vermelho (do qual no se teve que suportar
a ocupao) e de culpa em face dos sacrifcios suportados pela populao
da URSS, sentimentos que a propaganda comunista no hesitou em
manipular a fundo. Paralelamente, as modalidades de "libertao"
feitas pelo Exrcito Vermelho no Leste Europeu permanecem amplamente
desconhecidas no Ocidente, onde os historiadores assimilaramdois
tipos de "libertao" bastante diferentes: o primeiro deles conduzia
restaurao das democracias, o outro abria caminho instaurao das
ditaduras. Na Europa Central e no Leste Europeu, o sistema sovitico
postulava sucesso do Reich de mil anos, e Witold Gombrowicz
exprimiu empoucas palavras o drama desses povos: "O fimda guerra no
trouxe libertao aos poloneses. Nesta triste Europa Central,
significou somente a troca de uma noite por outra, dos carrascos de
Hitler pelos de Stalin. No momento exato emque, nos cafs
parisienses,
81. as nobres almas saudavamcomumcanto radiante a 'emancipao do
povo polons do jugo feudal', na Polnia, o mesmo cigarro aceso
simplesmente mudava de mo e continuava a queimar a carne humana".24
Aqui reside a falha entre duas memrias europeias. Entretanto,
certas obras revelaramrapidamente a maneira pela qual a URSS
libertou do nazismo poloneses, alemes, tchecos e eslovacos.25 A
ltima razo dessa ocultao a mais sutil, e tambma mais delicada a
exprimir. Aps 1945, o genocdio dos judeus apareceu como o paradigma
da barbrie moderna, chegando mesmo a ocupar todo o espao reservado
percepo do terror de massa no sculo XX. Aps negarem, durante algum
tem-24 Witold Gombrowicz, Testament. Entretens avec Dominique de
Roux, Folio, 1996, p. 109. 25 Cf. Piotr Pigorov, J'ai quitt ma
patre, La Jeune Parque, 1952; ou Michel Koriakoff, Je memets hors
Ia loi, ditions du Monde Nouveau, 1947. 28 p, a especificidade da
perseguio dos nazistas aos judeus,
82. os comunistas compreenderamtoda a vantagemque eles
podiamtirar de umtal reconhecimento, reutilizando regularmente o
antifascismo. O espectro do "animal imundo cujo ventre ainda
fecundo" - segundo a frmula famosa de Bertolt Brecht foi agitado
comfrequncia, comou sem motivo justificado. Mais recentemente, o
fato de ter sido posta emevidncia a "singularidade" no genocdio dos
judeus, focalizando a ateno sobre sua atrocidade excepcional,
tambmimpediu que se percebessemoutras realidades da mesma natureza
no mundo comunista. Como imaginar que eles prprios, que
tinhamcontribudo comsua vitria na destruio de umsistema de
genocdio, pudessemtambmpraticar os mesmos mtodos? A reao mais
corrente foi a recusa emadmitir tal paradoxo. A primeira grande
virada no reconhecimento oficial dos crimes comunistas situa-se
em24 de fevereiro de 1956. Nessa noite, Nikita Kruschev,
pri-meiro-secretrio, vem tribuna do XX Congresso do Partido
Comunista da Unio Sovitica, o PCUS. A sesso a portas fechadas;
somente os delegados do congresso esto presentes. Emsilncio
absoluto, aterrorizados, eles escutamo primeiro-secretrio do
Partido destruir metodicamente a imagemdo "pequeno pai dos povos",
do "Stalin genial" que foi, durante 30 anos, o heri do comunismo
mundial.
83. Esse relato, conhecido como o "relatrio secreto", constitui
uma das inflexes fundamentais do comunismo contemporneo. Pela
primeira vez, umdirigente comunista do mais alto escalo reconheceu
oficialmente, ainda que assistido somente pelos comunistas, que o
regime que tomara o poder em1917 cometera uma "deriva" criminosa.
As razes que levaramo "Senhor K" a quebrar umdos maiores tabus do
regime sovitico erammltiplas. Seu principal objetivo era o de
imputar os crimes do comunismo somente a Stalin, circunscrevendo e
extraindo o mal para poder salvar o regime. Tambmfazia parte de sua
deciso a vontade de atacar o cl dos stalinistas que se opunhama seu
poder emnome dos mtodos de seu antigo chefe. Alis, aps o vero de
1957, esses homens foramdemitidos de todas as suas funes. Contudo,
pela primeira vez desde 1934, a "morte poltica" destes ltimos no
foi acompanhada da morte real, podendo- se inferir, atravs desse
simples "detalhe", que as razes de Kruschev erammais profundas.
Ele, que tinha sido durante anos o grande chefe da Ucrnia e, por
isso mesmo, havia conduzido e acobertado gigantescas chacinas,
parecia cansado de todo esse sangue. Emsuas memrias, onde, sem
dvida, temo papel de mocinho, Kruschev relembra o que lhe passava
pelo esprito:
84. "O Congresso vai terminar; resolues sero tomadas, todas
para cumprir comas fornia-29 lidades. Mas para qu? Aqueles que
foramfuzilados s centenas de milhares permanecero emnossas
conscincias".26 Ao mesmo tempo, ele censura duramente seus
camaradas: "O que faremos comos que foramdetidos, assassinados?
[...] Sabemos agora que as vtimas das represses eram inocentes.
Temos a prova irrefutvel de que, longe de sereminimigos do povo,
eramhomens e mulheres honestos, devotados ao Partido, Revoluo,
causa leninista da edificao do socialismo e do comunismo. [...]
impossvel tudo esconder. Cedo ou tarde, os que esto na priso, nos
campos, sairo e retornaro a suas casas. Eles relataro ento aos seus
parentes, seus amigos, seus camaradas o que lhes aconteceu. [...]
por isso que somos obrigados a confessar aos delegados tudo a
respeito do modo como o Partido foi dirigido naqueles anos. [...]
Como pretender nada saber do que acontecia? [...] Sabemos que
reinava a represso e a arbitrariedade no Partido, e devemos dizer
ao Congresso o que sabemos. [...] Na vida de todos os que
cometeramum crime, vemo momento emque a confisso assegura a
85. indulgncia, e mesmo a absolvio".27 Emalguns dos homens que
haviamparticipado diretamente dos crimes perpetrados pelo regime
stalinista - e que, emsua maioria, deviamsua promoo ao extermnio de
seus predecessores na funo emergia umcerto tipo de remorso;
umremorso constrangido, claro, umremorso interesseiro, umremorso
poltico, mas, ainda assim, um remorso. Efetivamente, era preciso
que algumterminasse como massacre; Kruschev teve essa coragem,
mesmo no tendo hesitado, em1956, emenviar uma frota de tanques
soviticos a Budapeste. Em1961, na ocasio do XXII Congresso do PCUS,
Kruschev evocou no somente as vtimas comunistas, mas tambm todo o
conjunto das vtimas de Stalin, chegando a propor que fosse erigido
ummonumento emmemria delas. Sem dvida, ele havia transposto o
limite invisvel almdo qual o prprio princpio do regime estava posto
emcausa: o monoplio do poder absoluto reservado ao Partido
Comunista. O monumento jamais veio luz. Em1962, o
primeiro-secretrio autorizou a publicao de Une journe d'Ivan
Denissovitch, de Alexandre Soljenitsyne. Em24 de outubro de 1964,
Kruschev foi brutalmente demitido de todas as suas funes, mas ele
tampouco foi assassinado, morrendo no anonimato em1971.
86. Todos os analistas reconhecema importncia decisiva do
"relatrio secreto" que provocou a ruptura fundamental na trajetria
do comunismo no sculo XX. Franois Furet, que justamente acabava de
deixar o Partido Comu-as Nikita Kruschev, op. ct., p. 329. 27
Nikita Kruschev, op. cit., pp. 331-2. 30 nista Francs em1954,
escreve a este respeito: "Ora, eis que o 'relatrio secreto' de
fevereiro de 1956 transtorna de uma s vez, assimque ele veio a
pblico, o estatuto da ideia comunista no universo. A voz que
denuncia os crimes de Stalin no vemmais do Ocidente, mas de Moscou,
e do santo dos santos de Moscou, o Kremlin. No se trata mais de
umcomunista infringindo seu exlio, mas do primeiro dos comunistas
no mundo, o chefe do Partido Comunista da Unio Sovitica. Ento,
emlugar de ser alvo das suspeitas que acometemos discursos dos
ex-comunistas, esta voz est investida da autoridade suprema
outorgada pelo sistema ao seu chefe. [...] O extraordinrio poder do
'relatrio secreto' sobre as conscincias vemdo fato de ele no ter
contraditores".28 Desde o comeo, o evento era to paradoxal, que
numerosos contemporneos haviamprevenido os bolcheviques contra os
perigos de seus procedimentos. Desde 1917-1918 batiam-
87. se no prprio interior do movimento socialista os que
acreditavamno "grande claro do Leste" e os que criticavam
semremisso os bolcheviques. A disputa recaa essencialmente sobre o
mtodo de Lenin: violncia, crimes, terror. Enquanto que, dos anos 20
aos anos 50, o lado sombrio da experincia bolchevique foi
denunciado por numerosas testemunhas, vtimas, observadores
qualificados, e tambmpor incontveis artigos e obras, foi preciso
esperar que os prprios comunistas no poder reconhecessemessa
realidade ainda que de modo limitado para que uma frao cada vez
maior da opinio pblica pudesse tomar conhecimento do drama.
Reconhecimento enviesado, j que o "relatrio secreto" abordava
somente a questo das vtimas comunistas. Ainda assim,
umreconhecimento que trazia a primeira confirmao de testemunhos e
estudos anteriores, e que corroborava o que muitos desconfiavamh
bastante tempo: o comunismo havia provocado na Rssia uma imensa
tragdia. Os dirigentes de muitos dos "partidos irmos" no se
persuadiram, de imediato, de que era preciso que se engajassemno
caminho das revelaes. Ao lado do precursor Kruschev, eles
pareciamumtanto retardados: foi necessrio esperar 1979 para que o
Partido Comunista chins distinguisse na poltica de Mo "grandes
mritos" - at 1957 - e "grandes erros" emseguida.
88. Os vietnamitas somente abordamessa questo luz da condenao
do genocdio perpetrado por Pol Pot. Quanto a Castro, ele nega as
atrocidades cometidas sob sua gide. At ento, a denncia dos crimes
comunistas vinha somente da parte dos seus inimigos, dos
dissidentes trotskistas ou dos anarquistas; e ela no tinha sido
particularmente eficaz. A vontade de testemunhar era to forte nos
28 Franois Furet, L Passe d"une illusion. Essai sur l'ide
communiste au XX? sicle, Robert Laffont/Calmann-Lvy, 1995, p. 513.
31 sobreviventes dos massacres comunistas quanto nos sobreviventes
dos massacres nazistas. Mas eles forammuito pouco - ou quase nada -
escutados, emparticular na Frana, onde a experincia concreta do
sistema de campos de concentrao sovitico s afetou diretamente a
grupos restritos, tais como os Malgr-nous da Alsace-Lorraine.2^ Na
maior parte das vezes, os testemunhos, as erupes de memria, os
trabalhos das comisses independentes criadas sob a iniciativa de
algumas pessoas - assimcomo a Commission Internationale sur l
regime concentrationnaire, de David Rousset, ou a Commission pour
Ia vritsur ls crimes de Staline* - foramencobertos pelo tamanho da
verba para a propaganda comunista,
89. acompanhado por umsilncio covarde ou indiferente. Esse
silncio, que sucede geralmente a algummomento de sensibilizao
provocado pela emergncia de uma obra - UArchipel du Goulag, de
Soljenitsyne . ou de um testemunho mais incontestvel do que outros
- Ls Rcits de Ia Kolyma, de VariamChalamov,3 ou UUtopie meurtrire,
de Pin Yathay3i -, mostra uma resistncia prpria aos vrios e
diferentes segmentos das sociedades ocidentais no que diz respeito
ao fenmeno comunista; eles se recusam, at o momento, a encarar a
realidade: o sistema comunista comporta, ainda que emgraus
diversos, uma dimenso fundamentalmente criminosa. Comesta recusa,
as sociedades participaramda mentira, no sentido aludido por
Nietzsche: "Recusar-se a ver algo que se v; recusar-se a ver algo
como se v". A despeito de todas essas dificuldades na abordagemda
questo, vrios observadores tentarama empreitada. Dos anos 20 aos
anos 50 - na falta de dados mais confiveis, cuidadosamente
dissimulados pelo regime sovitico a pesquisa repousava
essencialmente sobre os testemunhos dos desertores. Suscetveis de
estaremimbudos de um esprito vingativo, ou difamatrio, ou ainda de
serem manipulados por umpoder anticomunista, esses
90. testemunhos - passveis de contestao pelos historiadores,
como todo testemunho - eramfrequentemente desconsiderados pelos
bajuladores do comunismo. O que se poderia pensar, em1959, da
descrio do Gulag feita por um desertor dos altos escales da KGB,
tal como ela fora recuperada no livro de Paul Barton?32 E o que
pensar de Paul Barton, ele prprio umexilado tcheco, cujo
verdadei-29 Cf Pierre Rigoulot, Ls Franais au Goulag, Fayard, 1984;
e, sobretudo, Jacques Rossi, LGoulag de A Z, L Cherche Midi, 1997.
* Respectivamente: Comisso Internacional Sobre os Regimes dos
Campos de Concentrao e Comisso Pela Verdade Sobre os Crimes de
Stalin. (N. T.) 30 VariamChalamov, Rcits de Ia Kolyma, F. Maspero,
1980, reed. La Dcouverte/Fayard,1986. 3' Pin Yathay, UUtofie
meurtrire, Robert Laffont, 1980. 32 paul Barton, UInatution
concentrationnaire en Russie, 1930-1957, Plon, 1959. 32
91. ro nome Jiri Veltrusky, umdos organizadores da insurreio
antinazista de 1945 emPraga, obrigado a fugir de seu pas em1948?
Ora, a confrontao comos arquivos doravante abertos mostra que essa
informao era perfeitamente confivel. Nos anos 70 e 80, a grande
obra de Soljenitsyne - UArchipel du Goulag, e depois o ciclo dos
"Ns" da Revoluo Russa - provocou umverdadeiro choque na opinio
pblica. Sem dvida, umefeito produzido muito mais pela literatura,
pelo cronista genial, do que por uma tomada de conscincia geral do
horrvel sistema por ele descrito. Entretanto, Soljenitsyne
encontrou dificuldades emperfurar a crosta da mentira, chegando a
ser comparado, em1975, por umjornalista de um grande jornal francs,
a Pierre Lavai, Doriot e Dat, "que acolhiamos nazistas como
libertadores"^^. Seu testemunho foi, todavia, decisivo para uma
primeira tomada de conscincia, assimcomo o de Chalamov sobre a
Kolyma, ou o de Pin Yathay sobre o Camboja. Mais recentemente,
Vladimir Bukovski, uma das principais figuras da dissidncia
sovitica no perodo Brejnev, ergueu umnovo grito de protesto que
reclamava, sob o ttulo Jugement Moscou,^ a instaurao de umnovo
tribunal de Nuremberg para julgar as atividades criminosas do
regime; seu livro foi recebido no ocidente comgrande sucesso de
crtica, mas no de pblico. Simultaneamente, vemos as publicaes que
tentama
92. reabilitao de Stalin35 florescerem. Que motivao pode
encorajar, neste fimde sculo XX, a explorao de umdomnio to trgico,
to tenebroso, to polmico? Hoje, no somente os arquivos confirmama
exatido desses testemunhos, como tambmpermitemir muito mais
adiante. Os arquivos internos do sistema de represso da ex-Unio
Sovitica, das ex-democracias populares e do Camboja evidenciamuma
realidade aterradora: o carter macio e sistemtico do terror, que,
em vrios casos, conduziu ao crime contra a humanidade. Chegou o
momento de abordar de maneira cientfica documentada por fatos
incontestveis, e livre das implicaes pol-tico-ideolgicas que a
sobrecarregavam- a questo recorrente que todos os observadores se
puseram: que lugar ocupa o crime no sistema comunista? Nessa
perspectiva, qual pode ser a nossa contribuio especfica? Procuramos
utilizar procedimentos que respondam, emprimeiro lugar, a umdever
para coma histria. Nenhumtema tabu para o historiador, e as impli-
Bernard Chapuis, L Monde, 3 de julho de 1975. Vladimir
Boukovski,/gfjff Moscou, Robert Laffnt, 1995. Ver, por exemplo, o
livro de Ludo Martens, Un autre
93. regarsur Staline (EPO, 1994,350 pp.),vendido na Cidade dos
livros da Festa da Humanidade 1997. J numestilo umpouco
menoshagiogrfico, Lilly Marcou publicou Staline, vieprve,
Calmann-Lvy, 1996. 33 caes e presses de todo tipo - polticas,
ideolgicas, pessoais - no devemimpedi-lo de seguir o caminho do
conhecimento, da exumao e da interpretao dos fatos, sobretudo
quando estes estiverampor umlongo tempo voluntariamente enterrados
no segredo dos arquivos e das conscincias. Ora, a histria do terror
comunista constitui-se como umdos maiores panos de fundo da histria
europeia, sustentando comfirmeza os dois extremos da grande questo
historiogrfica do totalitarismo. Este ltimo teve uma verso
hitlerista como tambmas verses leninista e stalinista, no sendo
mais aceitvel elaborar uma histria hemiplgica, que ignore a
vertente comunista. Do mesmo modo, a posio defensiva que consiste
emreduzir a histria do comunismo unicamente a sua dimenso nacional,
social e cultural insustentvel. Sobretudo porque o fenmeno
totalitrio no se limitou Europa e ao episdio sovitico. Ela
compreende tambma China maosta, a Coreia do Norte, o Camboja de Pol
Pot. Cada comunismo nacional esteve ligado por algumtipo de cordo
umbilical matriz russa e sovitica, o que tambmcontribuiu para o
progresso desse
94. movimento mundial. A histria coma qual nos confrontamos a
de umfenmeno que se desenvolveu emtodo o mundo e que diz respeito a
toda a humanidade. O segundo dever ao qual responde esta obra o de
um dever para coma memria. E uma obrigao moral honrar a memria dos
mortos, sobretudo quando so vtimas inocentes e annimas do Moloch
conduzido por umpoder absoluto que procurou, inclusive, apagar a
sua prpria lembrana. Aps a queda do Muro de Berlime o
desmoronamento do centro do poder comunista em Moscou, a Europa,
continente matricial das experincias trgicas do sculo XX, est
prestes a recompor uma memria comum; podemos, por nossa parte, dar
a nossa contribuio. Os prprios autores deste livro so portadores
dessa memria: ummais ligado Europa Central devido a sua vida
profissional; outro, s ideias e prticas revolucionrias, em seus
engajamentos contemporneos a 1968 ou mesmo mais recentes. Esse
duplo dever, para coma memria e a histria, inscreve- se nos mais
diversos contextos. Para alguns, ele se refere a pases onde o
comunismo praticamente nunca pesou, nem sobre a sociedade nemsobre
o poder - Gr-Bretanha, ustria, Blgica, etc. Para outros, ele se
manifesta empases emque o comunismo foi uma potncia temida como nos
Estados Unidos aps 1946 ou temerria, mesmo no
95. tendo jamais chegado ao poder como na Frana, Itlia,
Espanha, Grcia, Portugal. Do mesmo modo, ele se impe comfora nos
pases onde o comunismo perdeu o poder que detivera por vrias dcadas
- Leste Europeu, Rssia. Por fim, sua pequena chama vacila emmeio ao
perigo nos lugares onde o comunismo ainda est no poder - China,
Coreia do Norte,