UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM MARCELA DE CASTRO ÁVILA AGUIAR O INSÓLITO EM MURILO RUBIÃO: UMA ANÁLISE ESTILÍSTICO-COMPARATIVA D’O EX-MÁGICO DA TABERNA MINHOTA CUIABÁ/MT 2014
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM
MARCELA DE CASTRO ÁVILA AGUIAR
O INSÓLITO EM MURILO RUBIÃO: UMA ANÁLISE
ESTILÍSTICO-COMPARATIVA D’O EX-MÁGICO DA
TABERNA MINHOTA
CUIABÁ/MT
2014
MARCELA DE CASTRO ÁVILA AGUIAR
O INSÓLITO EM MURILO RUBIÃO: UMA ANÁLISE
ESTILÍSTICO-COMPARATIVA D’O EX-MÁGICO DA
TABERNA MINHOTA
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, sob a orientação da Prof
a.
Dra. Célia Maria Domingues da Rocha Reis.
CUIABÁ/MT
2014
Para as minhas avós, Aurênia e Maria Aparecida.
AGRADECIMENTOS
À Professora Célia, pela confiança em minha capacidade de realizar esta pesquisa, pela
orientação cuidadosa e pelo carinho.
À Professora Franceli, por todo o ensinamento recebido em suas disciplinas na graduação e no
mestrado – sempre gentil e atenciosa – e, especialmente, pelas valiosas contribuições no Exame
de Qualificação.
Ao Professor Audemaro, pela disciplina ministrada neste Programa de Pós-Graduação, e pela
gentileza ao fazer suas considerações sobre este trabalho.
Ao Acervo de Escritores Mineiros da Universidade Federal de Minas Gerais, pela
disponibilização do material utilizado nesta pesquisa.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem, da Universidade
Federal de Mato Grosso.
Às queridas Professoras Soraia e Patatas, pelo carinho e incentivo desde a graduação.
Às colegas do mestrado, que se tornaram amigas queridas, Izabel e Mirian.
Aos amigos que (quase) se acostumaram às minhas ausências nesses anos de estudo e pesquisa.
Aos meus pais, pelo apoio em todos os meus projetos.
E ao Hugo, meu melhor amigo, pela paciência... Sempre.
Todos os anos, pelo mês de março, uma
família de ciganos esfarrapados plantava a
sua tenda perto da aldeia e, com um grande
alvoroço de apitos e tambores, dava a
conhecer os novos inventos. Primeiro
trouxeram um ímã. Um cigano corpulento,
de barba rude e mãos de pardal, que se
apresentou com o nome de Melquíades, fez
uma demonstração pública daquilo que ele
mesmo chamava a oitava maravilha dos
sábios alquimistas da Macedônia. Foi de
casa em casa arrastando dois lingotes
metálicos, e todo o mundo se espantou ao
ver que os caldeirões, os tachos, as tenazes
e os fogareiros caíam do lugar (...). ‘As
coisas têm vida própria’, apregoava o
cigano com áspero sotaque, ‘tudo é questão
de despertar a sua alma’.
Gabriel García Márquez, Cem anos de
solidão (1967)
RESUMO
Nesta pesquisa investigamos o estilo literário de Murilo Rubião, considerado pela
crítica como pertencente à literatura fantástica. Após leitura dos contos do autor,
pesquisa da sua fortuna crítica e de leituras crítico-teóricas acerca da literatura
fantástica, dos primórdios ao contemporâneo, concluímos que as narrativas de Murilo
Rubião correspondem ao insólito banalizado. Tendo em perspectiva esse conceito,
centramos a pesquisa na análise comparativa extrínseca e intrínseca de três versões do
conto “O ex-mágico da Taberna Minhota”, respectivamente, com base na teoria da
modernidade líquida, de Zygmunt Bauman, e da estilística literária, de Dámaso Alonso,
e da língua portuguesa, de Nilce Sant’Ana Martins. As obras do linguista José Lemos
Monteiro e dos gramáticos, José Carlos de Azevedo e Napoleão Mendes de Almeida,
também constituíram fontes bibliográficas importantes para esta análise estilística.
Desse modo, foi-nos possível afirmar que o autor antecipou características da sociedade
contemporânea – como a diluição da identidade do sujeito – e também refletiu sobre a
função da literatura.
Palavras-chave: Conto fantástico brasileiro. Murilo Rubião. Insólito banalizado.
ABSTRACT
The present study investigates the literary style of Murilo Rubião, whose work is
considered by the critic as fantastic literature. After reading all the author’s short stories,
having a deep look into his critical fortune and having critical-theoretical reading of
fantastic literature, from its beginnings up to contemporary times, we concluded that his
narratives correspond with the trivialized uncommon. Keeping this concept in
perspective, we focused our research on the comparative analysis both extrinsic and
intrinsic of three versions of the short story “The ex-magician of Minhota Tavern”,
basing, respectively, on the theory of liquid modernity from Zigmunt Bauman, on the
literary stylistic from Damaso Alonso and on portuguese language stylistic from Nilce
Sant’Ana Martins. Other important bibliography sources to such stylistic analysis are
the work of linguist José Lemos Monteiro and grammarians José Carlos de Azeredo e
Napoleão Mendes de Almeida. Hence, we concluded that the writer Murilo Rubião not
only anticipated characteristics of contemporary society in his work – such as the
dilution of the subject identity – but also reflected about the very role of literature.
Keywords: Brazilian fantastic short story. Murilo Rubião. Trivialized uncommon.
A- Versão não publicada do conto “O ex-mágico da Taberna Minhota”
B- Versão publicada no livro O ex-mágico (1947)
C- Reedição do conto para o livro O pirotécnico Zacarias (1974)
D- Carta de Marques Rebelo a Murilo Rubião
E- Carta de Caio César Pinheiro a Murilo Rubião
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INTRODUÇÃO
O universo fantástico foi um assunto que sempre me interessou. Gabriel García
Marquez foi o primeiro autor com o qual tive contato – primeiro com a leitura de Doze
contos peregrinos (1992), depois, Cem anos de solidão (1967) – e, durante a graduação
em Letras, pesquisando sobre o assunto e selecionando um conto para analisar em
minha monografia, deparei-me com os contos de Murilo Rubião. A partir daí, o
fantástico se tornou um objeto, e a identificação de elementos do fantástico nos contos
murilianos, um objetivo, estudos aos quais dei continuidade no projeto de pesquisa
elaborada para ser desenvolvido no curso de pós-graduação, na UFMT.
O primeiro procedimento da pesquisa sobre o autor mineiro foi a consulta à
biblioteca digital da FALE – Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas
Gerais –, com a leitura de alguns artigos publicados no Suplemento Literário do Minas
Gerais – semanário criado e dirigido por ele, em 1966, quando diretor de redação do
jornal mineiro (RUBIÃO, 2010, p.225).
Em seguida, já no primeiro ano da pós-graduação, visitamos o Acervo dos
Escritores Mineiros, na Biblioteca da Universidade Federal de Minas Gerais. O contato
com textos originais e algumas correspondências entre o autor d’O ex-mágico (1947) e
colegas escritores e editores, constituíram um grande estímulo ao nosso trabalho.
Concomitantemente, realizamos uma revisão bibliográfica das teorias acerca do
fantástico, o que, em primeiro lugar, indicou a necessidade de um posicionamento a
respeito do fantástico como gênero ou modo literário. Os estudos tradicionais – como os
de Furtado (1980), Ceserani (2006) e Todorov (2007) –, lidam com o fantástico como
um gênero. Mesmo nas décadas de 80 e 90, encontramos, nos livros de Jorge Schwartz
(1980) e Audemaro Goulart (1995), essa denominação.
Já os trabalhos produzidos por grupos de pesquisa mais recentes – como o Nós
do Insólito: vertentes da ficção, da teoria e da crítica, sob a coordenação do Prof.
Flávio García / UERJ, e Vertentes do fantástico na literatura, coordenado por Karin
Volobuef / UNESP – observam a necessidade de uma historiografia sobre o fantástico
literário. Esses estudos têm em comum o alinhamento com as idéias da estudiosa
francesa Irene Bessière, Le récit fantastique: forme mixte du cas et de la devinette
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(1974), que usou a denominação “relato fantástico”. Incluímos, também, em nosso
texto, a questão do insólito banalizado terminologia que, em nosso entendimento, traduz
com precisão o modo discursivo praticado por Murilo Rubião.
Tais são os conteúdos apresentados e discutidos no Capítulo 1 desta dissertação,
dividido em dois subitens: “Um percurso teórico” e “Murilo Rubião e a narrativa do
insólito”. A compreensão das variáveis que fizeram de Rubião um escritor que lançou
mão de uma estética nova – no sentido de diferir do realismo social que caracterizava a
cena literária brasileira naquele período – foi o que direcionou nossa redação nessa
primeira parte.
O Capítulo 2 concentra-se na análise do modo como o autor construiu o seu
estilo, utilizando-se de elementos do insólito literário. No primeiro subitem, “Criação
literária, insólito ficcional e a modernidade líquida”, apresentamos, brevemente, a teoria
de Zygmunt Bauman sobre a modernidade líquida, terminologia adotada pelo autor para
designar a sociedade contemporânea.
O aprofundamento de nossa análise se deu a partir de leituras interpretativas das
obras O mal-estar da pós-modernidade (1998), Modernidade Líquida (2001) e
Identidade (2005), as quais nos permitiram detectar, no conto analisado, uma temática
já tratada desde o romantismo e acentuada no modernismo – a da identidade –, que
assume uma nova forma na sociedade atual: a da identidade diluída. Abordagem
possível quando consideramos o fato de o protagonista do conto não ter origem, passado
ou memória, situação responsável pela sua dificuldade de se relacionar com as pessoas
com as quais convive.
A revisão bibliográfica realizada no decorrer de nossa pesquisa nos levou à obra
de Ítalo Ogliari, A poética do conto pós-moderno e a situação do gênero no Brasil
(2012), que nos esclareceu os caminhos percorridos pelo conto brasileiro e nos permitiu
afirmar o insólito ficcional como representação da representação literária da sociedade
líquida descrita por Zygmunt Bauman em seus estudos de sociologia humanística. Do
mesmo modo, a teoria do conto de Ricardo Piglia (1994) nos auxiliou no
aprofundamento dos aspectos da construção poética de Murilo Rubião.
Já o subitem “A reescrita muriliana: aspectos estilísticos” compreende a análise
estilístico-comparativa de um dos contos mais conhecidos de Murilo Rubião (e que deu
nome ao seu primeiro livro): “O ex-mágico da Taberna Minhota”.
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As três versões de que nos utilizamos são as seguintes: uma versão não
publicada, a versão publicada em 1947 e a versão da reedição de 1974; nas quais
verificamos que a maior parte das modificações, realizadas pelo autor, buscavam a
forma perfeita, como ele próprio declarou em entrevistas. Isso nos lembrou uma das
explicações de Ítalo Calvino para a sua opção pelo insólito ficcional:
Se num determinado período de minha atividade literária senti certa
atração pelos contos populares e as histórias de fadas, isso não se
deveu à fidelidade a uma tradição étnica (...), nem por nostalgia de
minhas leituras infantis (...), mas por interesse estilístico e estrutural,
pela economia, o ritmo, a lógica essencial com que tais contos são
narrados (CALVINO, 1990, p.49).
Murilo Rubião se alinhava, portanto, aos autores de sua geração, fascinados
pelos aspectos estilísticos do texto; e, como Calvino, o autor mineiro se identificava
com o insólito ficcional justamente pelas possibilidades desse modo discursivo.
O estudo dos recursos estilísticos que ora apresentamos focalizou a relação entre
essas escolhas sintático-semânticas e o contexto da criação literária, procurando
vislumbrar o sentimento de um artista diante de sua realidade e a sua proposta de
transformá-la. A seleção do conto “O ex-mágico da Taberna Minhota”, dentre todos os
outros que, do mesmo modo, sofreram modificações após a primeira publicação se deu
pelo nosso gosto pessoal e, também, pelo interesse em apresentarmos uma possibilidade
de leitura para a história do mágico que perde sua capacidade de fazer truques, vendo-se
condenado a uma existência precária nessa sociedade diluída, construída a partir do
desmoronamento das ideologias vigentes no início da era moderna.
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Capítulo 1 O FANTÁSTICO LITERÁRIO: DA TRADIÇÃO AO MODO
DISCURSIVO
Iniciamos nossa análise pelo estudo dos textos críticos, a fim de compreender as
linhas gerais da literatura fantástica, considerada por pesquisadores como um objeto
movente, uma vez que suas características principais tornam-se mais ou menos
acentuadas de acordo com a época em que é produzida.
Partimos da variação na sua classificação no âmbito da teoria literária,
nomeadamente duas, gênero e modo literário. Considerados alguns autores que
discutem o assunto, e ora diferem, ora convergem entre si; das discussões decorrem, em
princípio, a questão: o que significam tais denominações e quais implicações são
assumidas em se optar por uma ou outra?
1.1 Um percurso teórico
As raízes da literatura fantástica estão nas lendas medievais e nas novelas
góticas. O escritor e crítico H. P. Lovecraft (1890-1937), tomou aquelas narrativas, que
tinham como principal efeito o despertar do medo no leitor, como objeto de estudo, em
O horror sobrenatural em literatura (1945). Para ele,
Os primeiros instintos e emoções do homem foram sua resposta ao
ambiente em que se achava. Sensações definidas baseadas no prazer e
na dor se desenvolveram em torno dos fenômenos cujas causas e
efeitos ele compreendia, enquanto em torno dos que não compreendia
– e eles fervilhavam no Universo nos tempos primitivos – eram
naturalmente elaborados como personificações, interpretações
maravilhosas e as sensações de medo e pavor que poderiam atingir
uma raça com poucas e simples idéias, e limitada experiência. O
desconhecido, sendo também o imprevisível, tornou-se, para nossos
ancestrais primitivos, uma fonte terrível e onipotente das benesses e
calamidades concedidas à humanidade por razões misteriosas e
absolutamente extraterrestres, pertencendo, pois, nitidamente, a
esferas de existência das quais nada sabemos e nas quais não temos
parte (LOVECRAFT, 2007, p.14).
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O medo é, então, o sentimento mais antigo experimentado pela humanidade, e o
seu tipo mais instigante é o medo do desconhecido.
Para este crítico norte-americano, a literatura que explorava o medo como
sentimento estético só era apreciada por um pequeno número de leitores sofisticados,
que se permitia, por meio de “um curioso rasgo de fantasia”, um distanciamento do
cotidiano, do mundo que lhe era familiar. Além disso, o caráter de permanência da
literatura do medo é ilustrado pelo fato de escritores com escolhas estéticas diferentes se
aventurarem, vez ou outra, no terreno do sobrenatural (p.16).
Lovecraft (2007) também se preocupou em tratar o fantástico como “a literatura
do medo cósmico”, a qual, diferentemente do “medo físico e do horrível vulgar”,
caracterizava-se pela “atmosfera inexplicável e empolgante de pavor de forças externas
desconhecidas” e pela “suspensão ou derrota maligna” das forças da Natureza que tudo
explicam, livrando o sujeito “do caos e dos demônios dos espaços insondáveis” (p.17).
O detalhamento dessa estética do medo – cujos pressupostos também orientaram
a escrita de Mary Shelley (1797-1851) e Edgar Allan Poe (1809-1849), para ficarmos
em dois dos autores que tiverem seus estilos analisados por Lovecraft (2007) – não é
pertinente ao nosso trabalho, uma vez que nos interessa, inicialmente, o fantástico com a
configuração de que tratou Tzvetan Todorov (1939 -), em Introdução à literatura
fantástica, na década de 70.
O filósofo e linguista búlgaro recuperou as obras mais expressivas de artistas dos
séculos XIX e XX a fim de delimitar suas características principais – isso o transformou
no maior representante da tradição crítica em estudos sobre o fantástico literário.
De acordo com a teoria todoroviana, a condição essencial para que o fantástico
se constitua é a dúvida quanto à natureza de um acontecimento não natural:
Somos assim transportados ao âmago do fantástico. Num mundo que é
exatamente o nosso, aquele que conhecemos (...), produz-se um
acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo
mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma das duas
soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um
produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser
o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte
integrante da realidade, mas nesse caso a realidade é regida por leis
desconhecidas para nós (TODOROV, 2007, p.30).
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Para essa corrente teórica, portanto, a existência do fantástico está atrelada à
permanência da dúvida, à hesitação diante do acontecimento sobrenatural. A fragilidade
do fantástico está aí, uma vez que a hesitação termina no momento em que a
personagem ou até mesmo o leitor decide por uma das alternativas mencionadas por
Todorov: trata-se ou de um produto da esfera onírica, ou de uma (outra) realidade, até
então desconhecida. Essa definição do fantástico origina-se, portanto, da oposição entre
o que é real e o que é tido como um elemento do imaginário (2007, p.48).
À época da elaboração do modelo estruturalista do gênero fantástico, buscava-se
uma maneira de atribuição de sentido às obras do século XVIII e XIX, que se
diferenciavam daquelas narrativas de horror de que falava Lovecraft (2007). E a
atmosfera dos estudos estruturalistas favorecia as análises que priorizassem a forma do
texto literário excluindo, assim, o contexto histórico, o autor e o leitor real (OLIVEIRA,
2011, p.9). Nesse sentido, o estudo de Todorov alcançou êxito, uma vez que se voltou
para a estrutura da obra literária, possibilitando, desse modo, a atribuição de sentido aos
textos que se enquadravam nas características do novo gênero.
Entretanto, perante as narrativas do século XX, especialmente A metamorfose
(1915), de Franz Kafka, Todorov (2007) se perguntaria, no último capítulo de
Introdução à literatura fantástica: “Em que se transformou a narrativa do sobrenatural
do século XIX?”. Para ele, “a Psicanálise substituiu (e por isso mesmo tornou inútil) a
literatura fantástica”, uma vez que passou a tratar de tabus, loucuras e perversões sem
recorrer aos elementos do fantástico, mas considerando-os uma realidade específica dos
pacientes que os manifestassem (p.169).
Da mesma maneira, no século XX, não existiria mais o que Todorov chamou de
“metafísica do real e do imaginário” e a crença em uma “realidade imutável” também
perderia sustentação. Nesse sentido, realmente, a literatura fantástica descrita naquele
seu modelo de análise desapareceu: “desta morte, deste suicídio nasceu uma nova
literatura” (TODOROV, 2007, p.177). E é nesta nova forma de narrativa que a obra de
Franz Kafka estaria situada. Nesse ponto, é possível estendermos nossas considerações
para as narrativas de Murilo Rubião, que serão estudadas no próximo capítulo, no qual
observaremos que elas devem ser pensadas neste novo modelo, que Todorov não
chegou a enunciar, mas percebeu que existia. Daí a aproximação natural entre Murilo
Rubião e Franz Kafka, mesmo o autor mineiro não tendo admitido essa influência.
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A respeito das mudanças na configuração do fantástico, Schwartz (2006)
resolveu da seguinte forma:
Ao contrário dos modelos canônicos do século XIX, em que prevalece
a hesitação do narrador, do personagem e até do leitor, o sobrenatural
moderno nunca postula um enigma a ser decifrado, uma intriga que
vise a desvendar o inexplicável ou uma explicação racional para a
intrusão do irracional (SCHWARTZ, 2006, p.102).
Os estudos críticos que se seguiram, em alguma medida, retomaram as principais
ideias todorovianas, e se dedicaram ao preenchimento das lacunas deixadas pelo teórico
búlgaro – principalmente no que se refere à hesitação como elemento essencial para a
existência do fantástico. Dentre esses estudos, situa-se o de Filipe Furtado, em A
construção do fantástico na narrativa (1980)1.
Nessa obra, o teórico português sustenta que a manifestação do insólito não se
dá arbitrariamente em um mundo desconhecido, mas surge “no contexto de uma ação e
de um enquadramento espacial até então supostamente normais” (p.19). Um mundo
normal, um ambiente cotidiano e, de repente, um ou mais elementos aparentemente
estranhos passam a pertencer àquela esfera, alterando sua ordem normal de
funcionamento e estabelecendo o equilíbrio de um novo gênero.
Elementos sobrenaturais, seres estranhos, manifestações insólitas – alguns dos
termos possíveis ao se referir ao que Furtado chamou fenomenologia meta-empírica;
que não trata apenas dos elementos sobrenaturais em sentido mais geral, mas também
daqueles que,
[...] seguindo embora os princípios ordenadores do mundo real, são
considerados inexplicáveis e alheios a ele apenas devido a erros de
percepção ou desconhecimento desses princípios por parte de quem
porventura os testemunhe (FURTADO, 1980, p.20).
Esse crítico se utilizou, indiferentemente, das palavras: sobrenatural,
extranatural, meta-natural, alucinado e insólito, ao abordar a temática.
1 Em nosso trabalho, preservamos a grafia original da edição portuguesa da obra de Filipe Furtado.
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O sobrenatural aparece, então, em um ambiente quotidiano, comum, no qual são
encenados temas da literatura universal. Furtado (1980) ressalva que a temática do
sobrenatural não é exclusiva do fantástico – o estranho e o maravilhoso também fazem
parte do grande grupo da “literatura do sobrenatural” (p.20).
Onde estariam, então, as diferenças entre esses três gêneros? O crítico, para
responder a esse seu questionamento, passa à investigação da característica comum ao
estranho, ao maravilhoso e ao fantástico – a temática do sobrenatural.
Inicialmente, explica que nem todas as narrativas que descreviam manifestações
insólitas pertenciam ao gênero fantástico:
[...] entre a infinidade de variantes dessa fenomenologia imaginária,
muitas não se adequam minimamente às outras características do
fantástico, pelo que se torna necessário distinguir entre as que convêm
à construção do gênero e as que dele se excluem (FURTADO, 1980,
p.22).
E conclui que tais narrativas não fazem parte do que chama “literatura do
sobrenatural”, pois incluem apenas “parcelas da ação ou personagens de índole meta-
empírica” – o sobrenatural, portanto, não possui caráter dominante. Este último termo
foi utilizado pelo formalista russo Tomachevski, ao descrever os “processos
dominantes”, isto é, elementos a que “todos os outros processos necessários à criação do
conjunto artístico” estariam subordinados nessas narrativas (TOMACHEVSKI apud
FURTADO, 1980, p.20).
O crítico ressalta, ainda, a existência do sobrenatural positivo e do sobrenatural
negativo – o primeiro associado à ideia do Bem, e o segundo, ao conceito de Mal –, e
declara: “só o sobrenatural negativo convém à construção do fantástico” (FURTADO,
1980, p.22).
Essa questão pode ser compreendida se considerarmos que o sobrenatural
positivo reestabelece, na narrativa, a ordem do mundo natural – justamente a ordem que
o elemento insólito vem romper; e apenas o sobrenatural negativo é de caráter
“irreversível e de consequências inelutáveis, conduzindo a um desenlace nefasto às
forças positivas integradas na natureza conhecida” (Ibidem, p.24).
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Neste ponto, Furtado separa o fantástico e o estranho – que trabalham com o
lado negativo do sobrenatural – do maravilhoso, que admite ambos os aspectos do
elemento sobrenatural.
Voltando ao fantástico, observa que o sobrenatural positivo até pode aparecer,
mas não como elemento dominante, afinal, apenas o sobrenatural negativo apresenta-se
como um “transgressor” da ordem de funcionamento tida como normal para o mundo e
as coisas. Caso ocorra o predomínio excessivo de elementos extranaturais de índole
positiva, a narrativa passa ao universo do maravilhoso (FURTADO, 1980, p.25).
No tocante às narrativas do maravilhoso, o extranatural está presente desde o
início e, em nenhum momento, existe um movimento por parte do narrador para torná-
lo real aos olhos do receptor ou, ao menos, suscitar a dúvida. Ao contrário, narrador e
receptor travam um pacto no qual cabe a este último “aceitar todos os fenômenos (...) de
forma apriorística, como dados irrecusáveis e, portanto, não passíveis de debate sobre a
sua natureza e causas” (FURTADO, 1980, p.35). A ambiguidade não se instaura,
portanto.
Já em se tratando do estranho, Furtado esclarece:
Com efeito, o texto deste género faz usualmente surgir a hipótese de
que determinados acontecimentos ou personagens por ele encenados
têm origem e carácter alheios às leis naturais. Tal conjectura, porém,
apenas permanece durante uma parte da acção. A dado passo ela é
completamente destruída, vindo a esclarecer-se de forma lógica todos
os aspectos que poderiam levantar dúvidas quanto à completa
integração dessa fenomenologia no mundo familiar quotidiano
(FURTADO, 1980, p.35).
No fantástico, a dicotomia natural/antinatural, real/imaginário não tem fim e o
elemento insólito permeia toda a narrativa, aderindo a ela, e o gênero, “tenta suscitar e
manter por todas as formas o debate sobre esses dois elementos cuja coexistência
parece, em princípio, impossível” (FURTADO, 1980, p.35).
Importante salientar que, para Furtado, assim como para Todorov, o fantástico é
um gênero “abordado como uma organização dinâmica de elementos que, mutuamente
combinados ao longo da obra, conduzem a uma verdadeira construção de equilíbrio
difícil” (FURTADO, 1980, p.15). E é a dúvida perante o acontecimento insólito, ou
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seja, a ambiguidade resultante de uma construção que se dá nos planos do enunciado e
da enunciação, a responsável por esse equilíbrio, não no sentido da proporcionalidade e
harmonização de forças e circunstâncias, mas no sentido de que uma nova unidade
narrativa é criada.
Outro estudo importante sobre o fantástico foi o desenvolvido por Irène
Bessière, em Le récit fantastique. La poétique de l’incertaine, publicado em Paris, no
ano de 1974, traduzido no Brasil por Biagio D’Angelo e Maria Rosa Duarte de Oliveira,
em 2009. Dedicamos algumas linhas a um capítulo em especial, “O relato fantástico:
forma mista do caso e da adivinha”, no qual a autora passa ao exame textos críticos
anteriores aos seus, e atribui grande parte da dificuldade expressa pela comunidade
crítica em relação ao estudo do fantástico à perspectiva teórico-metodológica adotada.
A esse respeito, a autora faz referência ao estudo de Jean Bellamin-Nöel (1972)
e à afirmação de que as narrativas fantásticas se estruturam como “fantasmas”, o que,
em seu entendimento, é uma redução da “organização do relato [fantástico] a um traço
não-específico: a hesitação”. Para ela, essa declaração associa o universo fantástico a
uma situação inconsciente, excluindo todo o seu conteúdo semântico e, principalmente,
as suas raízes na sociedade e na cultura (BESSIÈRE, 2009, p.1).
Proceder à análise do fantástico na perspectiva daquele crítico, diz Bessière, não
leva o estudioso a outro lugar senão o das “enumerações de imagens”, e conclui:
Todo o estudo do relato fantástico é sintético, não por evocar ou intuir
uma lei artística (...), mas por uma perspectiva polivalente.
[...]
A síntese não nasce aqui do inventário vasto e diverso dos textos, mas
da organização, por contraste e por tensão, dos elementos e das
implicações heterogêneas que fazem o atrativo do relato fantástico e
sua unidade (BESSIÈRE, 2009, p.2).
A autora alerta para o fato de que a análise temática e, portanto, a ênfase nas
“referências teológicas, esotéricas, filosóficas ou psicopatológicas” não é recomendada,
na medida em que esses elementos não instauram o insólito na narrativa, nem mesmo
garantem a sua permanência, são, tão somente, “artifícios narrativos destinados a
encerrar o herói e o leitor em uma forma de paradoxo” (BESSIÈRE, 2009, p.3).
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O relato fantástico, explica a autora,
utiliza marcos socioculturais e formas de compreensão que definem os
domínios do natural e do sobrenatural, do banal e do estranho, não
para concluir com alguma certeza metafísica, mas para organizar o
confronto entre os elementos de uma civilização relativos aos
fenômenos que escapam à economia do real e do surreal, cuja
concepção varia conforme a época (BESSIÈRE, 2009, p.3).
Percebemos que o que incomoda essa estudiosa é o fato de se procurar o
fantástico na reação do leitor ou das personagens ao elemento insólito, quando,
entretanto, o fantástico é uma construção, um trabalho com a linguagem:
O relato fantástico provoca a incerteza ao exame intelectual, pois
coloca em ação dados contraditórios, reunidos segundo uma coerência
e uma complementaridade próprias. (BESSIÈRE, 2009, p.2).
E, portanto, deve-se partir da linguagem, da análise formal e semântica, para se
desvendar os mistérios que ela instaura no texto literário.
Em sua análise das proposições de Irène Bessière (2009), Remo Ceserani (2006)
mostra concordância ao afirmar o fantástico como um modo literário, uma vez que pode
assumir diversas formas de gênero – assim, seria possível ampliar as possibilidades de
ocorrência do fantástico na literatura, mesmo em obras posteriores às do século XIX
(CESERANI, 2006, p.149).
Dentre os outros estudos sobre o fantástico, já no século XX, destacamos a
proposta de Jaime Alazraki (2001), que introduziu o termo “neofantástico” na esfera dos
estudos literários.
Esse crítico argentino partiu do trabalho com contos dos escritores argentinos
Júlio Cortázar e Jorge Luis Borges e, procurando relacioná-los à teoria do fantástico
tradicional, concluiu que esses textos apresentavam um mecanismo de funcionamento
distinto daqueles incluídos sob a denominação do fantástico.
22
Alazraki (2001) passou a refletir sobre essa questão após assistir a duas
conferências de Cortázar, uma no ano de 1962 e outra em 1975, nas quais o escritor
falava de sua insatisfação quanto à classificação de suas obras (p.272).
Então, o crítico argentino partiu da definição de Cortázar sobre o gênero ao qual
pertencia, em uma entrevista ao jornalista Ernesto Gonzalez Bermejo:
Para mim o fantástico” – explica – “é a indicação súbita de que, à
margem das leis aristotélicas e da nossa mente racional, existem
mecanismos perfeitamente válidos, vigentes, que nosso cérebro lógico
não pode captar, mas que em alguns momentos irrompem e se fazem
sentir (ALAZRAKI apud BERMEJO, 1981, p.42, tradução nossa).
e elaborou o conceito dessa variação do fantástico tradicional, que assume o mundo real
como uma máscara que esconde uma segunda realidade: o verdadeiro espaço ficcional.
Neste ponto, Alazraki diferencia o fantástico contemporâneo do fantástico
tradicional que, segundo ele, “se propõe a abrir uma fissura ou rachadura em uma
superfície sólida e imutável”, enquanto para aquela, “a realidade é uma esponja, um
queijo gruyère, uma peneira, de cujos orifícios se pode enxergar, como num flash, essa
outra realidade” (ALAZRAKI, 2001, p.276, tradução nossa).
Segundo Alvarez (2009), esta segunda realidade é “o cenário apresentado pelo
escritor em suas obras e também é a zona de lucidez a partir da qual cria sua arte”, e
quanto ao surgimento do insólito, a autora completa que esta é “rapidamente digerida
pelas forças em jogo, de tal modo que é impossível isolar o fato insólito do todo da
narrativa (...)” (p.6).
A outra característica desse novo relato fantástico diz respeito à intenção da
narrativa, que já não é a de suscitar o medo, como eram as narrativas referidas por
Lovecraft (2007). E qual seria essa intenção?
Para Alazraki, a perplexidade e a inquietude até estão presentes nos relatos
fantásticos – o que é explicado pelo caráter insólito das situações narradas –, no entanto,
a sua intenção é ainda outra, qual seja a de expressar, a partir de suas metáforas,
[...] vislumbres, entrevisões ou interstícios da irracionalidade que
escapam ou resistem à língua da comunicação, que não cabem nos
casulos construídos pela razão, que vão contra o sistema conceitual e
23
científico com o qual estamos acostumados (ALAZRAKI, 2001,
p.277, tradução nossa).
O crítico enfatiza, portanto, o sentido metafórico do relato fantástico – a
necessidade de uma “segunda linguagem” para descrever aquela segunda realidade
(Ibidem, p. 278).
Por último, o modus operandi é o que mais distancia o relato neofantástico do
fantástico tradicional. É ele o responsável pela introdução, já nas primeiras linhas, do
elemento insólito, que é “incorporado ao cenário que vai sendo construído” e, ao
contrário do funcionamento do fantástico tradicional, “personagens e leitor estão presos
numa teia vagarosa e habilmente tecida, sem sobressaltos, surpresas ou reviravoltas
contundentes” (ALVAREZ, 2009, p.7).
Como percebemos, o neofantástico de Jaime Alazraki apresenta-se como uma
nova forma de compreensão das obras surgidas a partir do século XX, que se associam
ao fantástico tradicional por meio do insólito e, ao mesmo tempo, guardam certa
distância devido ao seu modo de funcionamento.
David Roas (2001) também entende o fantástico como um modo narrativo
originado no “código realista, mas que, por sua vez, supõe uma transformação, uma
transgressão daquele código” (p.27, tradução nossa). Entretanto, o autor espanhol,
utiliza em seus textos, indiferentemente, os termos: relato, modo e gênero.
Luiz Costa Lima (1981) examinou a questão dos gêneros no decorrer da história
dos estudos literários e percebeu o seu caráter mutável e transitório, relacionando-o ao
ambiente sociocultural.
Para esse crítico, o gênero não é uma “entidade fechada”, ou seja, não apresenta
traços rigorosamente definidos e que permitem os “julgamentos de valor”; ao contrário,
[...] o gênero apresenta uma junção instável de marcas, nunca
plenamente conscientes, que orienta a leitura e a produção – sem que,
entretanto, se presuma que as marcas orientadoras sejam as mesmas.
(LIMA, 1981, p.286)
o que justificaria a mudança sofrida pelo gênero fantástico a partir do século XX, com o
advento da sociedade moderna.
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Esse caráter flexível do gênero nos permitiria entender o fantástico em suas
diferentes vertentes e, em cada uma delas, compreender suas variações e
especificidades.
As tensões entre as concepções genológica e modal também foram tratadas pelo
pesquisador Flávio García (UERJ/CNPq) que, em artigo publicado em 2008, por meio
de um percurso pela história do insólito ficcional, observou as diferentes terminologias
assumidas por essas narrativas, e achou pertinente a criação de uma nova terminologia,
mais condizente com a pós-modernidade, o “insólito banalizado”. Nesse artigo, García
(2008) demonstrou a existência de um “macro-gênero” do insólito, do qual fariam parte,
também, aqueles gêneros já estudados pela crítica – o maravilhoso, o fantástico, o
estranho, o sobrenatural, o realismo maravilhoso e o absurdo (p.1).
As leituras dos contos de Murilo Rubião e de sua fortuna crítica indicam não
apenas a elaboração de outra realidade ou outro mundo, de onde ou para o qual
personagens fossem deslocados, e sim a convivência de duas realidades ou, melhor
dizendo, de um mundo com as características do mundo tal qual o conhecemos,
aceitamos e vivenciamos, mas com a presença de elementos e/ou situações insólitas.
A definição da palavra “insólito” nos remete ao não habitual, não comum, ou
seja, ao elemento que está fora de lugar, no sentido de ser uma transgressão às leis da
realidade. Jorge Schwartz, em Murilo Rubião: a poética do uroboro (1981), observa a
existência de três categorias operacionais:
a) o sólito, que sói acontecer, e que representa a vigência da norma.
Não chega a se configurar como tema central da literatura; é o
universo do cotidiano, do corriqueiro, cuja função ficcional é a de
servir como suporte real de dados inverossímeis;
b) o insólito, que não sói acontecer, opondo-se assim à norma,
apontando para o ‘estranho’;
c) o sobrenatural propriamente dito, que não tem possibilidade
alguma de acontecer no universo real, apontando na ficção para o
‘fantástico’ e o ‘maravilhoso’ (SCHWARTZ, 1981, p.54).
Essa narrativa pressupõe a presença de um ou mais elementos que vão contra a
ordem aceita pelas categorias narrativas e pelo leitor, atentando-o para o absurdo
mascarado por situações cotidianas.
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Também para García (2011), o insólito
[...] engloba eventos ficcionais que a crítica tem apontado ora como
extraordinários – para além da ordem – ora como sobrenaturais – para
além do natural – e que são marcas próprias de gêneros literários de
longa tradição, a saber, o Maravilhoso, o Fantástico, o Sobrenatural, o
Estranho, o Realismo Maravilhoso e o Absurdo (GARCÍA, 2011, p.1).
Parece-nos, então, que o “relato”, assim como exposto por Bessière (2009) – e
que orientou os trabalhos dos grupos de pesquisa recentes que optaram pela concepção
modal – coloca o fantástico como um dos modos literários que têm no insólito o seu
diferencial. Assim, outros modos discursivos (ou literários) nos quais o insólito se
manifesta seriam – citando apenas os já tratados neste trabalho – o sobrenatural, o
maravilhoso, o estranho e o neofantástico.
A questão do enquadramento teórico-crítico da literatura fantástica, como gênero
ou modo literário, também foi objeto de discussão no artigo de Marisa Gama-Khalil
(UFU/CNPq), “A literatura fantástica: gênero ou modo?”, publicado em dezembro de
2013, constituindo-se, portanto, como o referencial teórico mais atual utilizado em
nossa pesquisa.
Nesse artigo, a autora realizou uma análise detalhada da tradição crítica sobre a
construção da narrativa fantástica e posicionou-se favoravelmente aos teóricos que,
como ela, entendem a literatura fantástica “por intermédio da fratura que ela realiza no
real, do descompasso que ela gera em seu espaço discursivo” (GAMA-KHALIL, 2013,
p.24). Assim como Ceserani (2006), essa pesquisadora adotou a concepção modal2. No
entanto, a sua justificativa para tal, complementou as considerações do teórico italiano:
Pela vertente que considera o fantástico como um modo, podemos
alargar o enfoque analítico sobre essa literatura, porque o que mais
nos interessa nas pesquisas sobre a literatura fantástica não é datar
determinada forma de fantástico nem enfeixá-la em uma espécie ou
outra, mas compreender de que maneira o fantástico se constrói na
narrativa e, o mais importante, que efeitos essa construção
desencadeia (GAMA-KHALIL, 2013, p.30).
2 Cf. p.17.
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Uma atualização possível ao trabalho ora citado seria quanto à adoção de
“insólito ficcional” para se referir a todos os modos literários nos quais o sobrenatural
se configura como o seu elemento estruturador. Já que o “fantástico”, como vimos, é
apenas um desses modos.
1.2 Murilo Rubião e o insólito ficcional
Apenas um detalhe se intromete, mas o mundo inteiro vira fantástico.
(ANDRADE, 1996, p.3)
A breve biografia que aqui incluímos sintetiza as informações contidas no
capítulo inicial do livro de Audemaro Taranto Goulart, O conto fantástico de Murilo
Rubião (1995); no texto de Vera Lúcia Andrade, “A trajetória fantástica de Murilo
Rubião”, publicado no Suplemento Literário de Minas Gerais, em 1996; e no prefácio
“A aventura solitária de um grande artista”, de Humberto Werneck para a edição de O
pirotécnico Zacarias (2006), da editora Companhia das Letras. Nessa introdução,
registramos, também, nossas impressões acerca da visita ao Acervo dos Escritores
Mineiros, na Biblioteca da Universidade Federal de Minas Gerais, bem como algumas
indagações a respeito do projeto literário desse escritor obstinado e cuidadoso.
Murilo Eugênio Rubião, nascido em 1916, no interior de Minas Gerais, seguiu o
caminho da escrita não por acaso. Seu avô e seu pai foram escritores; além de seu
primo, Godofredo Rangel, membro da Academia Mineira de Letras. Apesar de haver
iniciado seus estudos no interior do estado, já no ensino médio estava em Belo
Horizonte, onde cursou a faculdade de Direito. Ainda na faculdade, envolveu-se em
atividades ligadas ao jornalismo e à literatura.
Incentivado pela família e pelas leituras de Machado de Assis e da Bíblia,
revelou-se um escritor para além de seu tempo na medida em que partiu das raízes
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realistas e dessas leituras para imprimir em sua criação o insólito e o absurdo que, em
sua opinião, faziam parte do mundo à sua volta (WERNECK, 2006, p.8).
A respeito de Murilo Rubião haver inaugurado, na literatura brasileira, um novo
modo discursivo, há alguns trabalhos críticos que investigaram as primeiras publicações
do autor mineiro, as quais indicam o caráter inaugural de sua obra no âmbito nacional.
A primeira versão do conto “Elvira e outros mistérios” foi publicada na Revista
Tentativa, em de fevereiro de 1940 (FURUZATO, 2009, p.119), mas o autor havia
estreado em 1939, com a publicação do poema “Ausência”, na mesma revista literária
(NUNES, 2010, p.138).
Apesar de sua primeira opção estética ter sido o poema, Rubião ouviu a
recomendação de amigos escritores, como Jair Rebelo Horta e Fernando Sabino, e se
concentrou nos contos e nas crônicas. Após consultar os originais dessas crônicas,
Sandra Nunes (2010) relacionou as mais representativas, publicadas entre 1939 e 1945:
“A filosofia do Grão Mogol”, “Carta à Lúcia”, “As primeiras ilusões de 1941”,
“Lirismo de fim de semana”, “A minha Praça da Liberdade”, “Memórias de um
calígrafo” e “Mariazinha não voltou”. A autora constatou que elas representam um
“processo embrionário da escrita muriliana”, quando o insólito se delineia e “a
linguagem do absurdo ou do fantástico” é a escolhida para a recriação da realidade
(NUNES, 2010, p.145).
Fábio Furuzato (2009), em sua pesquisa de doutoramento, optou por pesquisar
os primeiros contos de Murilo Rubião, publicados na Revista Belo Horizonte: “O outro
José Honório” (1940), “Margarida e outras reticências” (1940), “O mundo tem duas
faces”(1940) e “Ofélia, meu cachimbo e o mar” (1940) – dos quais apenas este último
reapareceria em seu primeiro livro de contos, O ex-mágico (1947). A respeito deste, o
crítico observa que já estava concluído em 1940, e teve vários nomes: Elvira e outros
mistérios, Girassol Vermelho, Os três nomes de Godofredo e O dono do Arco-Íris.
Também Wilson Castelo Branco menciona, no texto “Um contista em face do
sobrenatural” (1944), que Rubião já estava com um livro pronto, que carecia de editora.
Castelo Branco se referia ao, então, O dono do Arco-Íris, no qual “o sobrenatural,
plasmado no cotidiano, representa quase sempre uma atitude de revolta do homem
contra as traições da realidade” (1944, s/p).
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Importante ressaltar, entretanto, que já em 1925, outro escritor mineiro, Aníbal
Monteiro Machado (1916-1991) publicou o conto “O rato, o guarda-civil e o
transatlântico” na Revista Estética. Em 1944, Aníbal Machado publicou o livro de
novelas e contos Vila Feliz, reeditado em 1959, e que, na reedição de 1969, recebeu
novo título, A morte da porta-estandarte e outras histórias, e o prefácio de Cavalcanti
Proença, intitulado “Os balões cativos”, uma imagem que Proença utilizou para se
referir à obra daquele que considerou o “contista do século”, por produzir uma narrativa
que “se desenvolve em terreno fronteiriço, ora pisando chão de realidade, ora pairando
nas nuvens do imaginário, entre sonho e vigília, entre espírito e matéria, verdade e
mentira, relatório e ficção” (MACHADO, 1969, p.6).
Murilo Rubião era mais novo que Aníbal Machado, que faleceu quando Rubião
ainda estava produzindo, mas eles tinham convívio. Ambos organizaram e participaram
do I Congresso Brasileiro dos Escritores, realizado em São Paulo, em 1945 – um dos
movimentos que contribuíram para a derrubada, em outubro do mesmo ano, da ditadura
do Estado Novo3.
Também outros autores brasileiros, anteriores a Murilo Rubião, trabalharam com
o insólito ficcional. Todavia, Antonio Candido (1989) esclarece o autor mineiro
“elaborou os seus contos absurdos num momento de predomínio do realismo social,
propondo um caminho que poucos identificaram e só mais tarde outros seguiram”
(p.237).
No artigo “A corrosão do real na obra de Murilo Rubião”, Goulart (s/d) destaca
que Álvares de Azevedo, Machado de Assis e Monteiro Lobato, entre outros, “já
haviam feito incursões no terreno do surreal”, porém, esses autores não o utilizaram
como um “sistema que patrocinasse a leitura da realidade, com o claro objetivo de
chamar a atenção para esta realidade, pondo-a em xeque” (p.1)4.
A fim de resolver a questão de Murilo Rubião ter sido ou não o precursor do
fantástico na literatura brasileira, e diante dos dados considerados em nossa pesquisa, é
possível afirmar que ele foi um dos precursores do fantástico moderno brasileiro.
3 A respeito da participação de Aníbal Machado nesse congresso, conf. “Os balões cativos” (1969),
prefácio de Cavalcanti Proença ao livro do autor. A participação de Murilo Rubião pode ser consultada na
Cronologia da edição de sua Obra Completa, pela Companhia de Bolso (2010). 4 Não encontramos a data de publicação deste artigo, que pode ser consultado no endereço eletrônico: