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Revista Territrios e Fronteiras V.1 N.1 Jan/Jun 2008 Programa de
Ps-Graduao Mestrado em Histria do ICHS/UFMT
Mauro Cezar Coelho
O IMENSO PORTUGAL: VILAS E LUGARES NO VALE AMAZNICO
Resumo: O Imprio Portugus, em sua face
americana, resultou de um longo processo de
expanso que colocou por terra os termos
inicialmente institudos nomeadamente o famoso Tratado de
Tordesilhas. Este artigo
destaca a ampliao e consolidao do poder
imperial no Vale Amaznico, por meio da
anlise de como o espao amaznico,
constitudo at meados do sculo dezoito por
aldeamentos, indgenas e missionrios, e por
umas poucas unidades coloniais (civis e
militares), foi transformado, a partir de 1757,
de modo a tornar o Vale Amaznico parte do
Imprio Portugus.
Palavras-Chave Poltica Indigenista,
Civilizao, Fronteira.
Abstract: The Portuguese Empire, in its
American face, resulted of a long process of
expansion that did not respect the terms
initially instituted the Tordesilhas Treat. This article
detaches the enlargement and the
consolidation of the imperial power in the
Amazonian Valley. The analysis
demonstrates how the Amazonian space
(constituted until middle of Eighteen Century
by aboriginals and missionaries villages, and
by one few colonial units, civil and military)
had been transformed, from 1757, in order to
become the Amazonian Valley part of the
Portuguese Empire.
Keywords: Indian politics, Civilization,
Frontier.
Oh musa do meu fado!
Oh minha me gentil!
Te deixo consternado
No primeiro abril
Mas no se to ingrata
No esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou
Ai esta terra ainda vai cumprir seu ideal!
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!
Fado Tropical Chico Buarque
O Imprio Portugus, em sua face americana, resultou de um longo
processo de expanso
que colocou por terra os termos inicialmente institudos
nomeadamente o famoso Tratado de
Universidade Federal do Par, Professor Adjunto, Doutor em
Histria Social pela Universidade de So Paulo,
Faculdade de Histria, Rua Augusto Correia, 1, Campus do Guam,
Belm (PA) 66.075-900, [email protected]. Este artigo compe
parte das reflexes desenvolvidas no mbito de minha tese de
doutoramento, intitulada Do
Serto para o Mar um estudo sobre a experincia portuguesa na
Amrica: o caso do Diretrio dos ndios (1751-1798), concebida no
Programa de Histria Social da Universidade de So Paulo e defendida
em 2006, sob a
orientao de Mary Del Priore.
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Tordesilhas, primeiro marco a estabelecer os limites das
possesses espanholas e portuguesas.
Os bandeirantes paulistas tm sido vistos pela historiografia
como os principais protagonistas
dos eventos que pontuaram o alargamento das fronteiras
luso-espanholas e, conseqentemente,
do Imprio Portugus (Holanda, 1989; Palacin, 1976; Silva 2001).
Neste artigo, minha inteno
destacar uma outra dinmica desse processo - a iniciativa
metropolitana de ampliao e
consolidao do poder imperial no Vale Amaznico.
Analisarei, a seguir, uma das dimenses da poltica indigenista
promulgada na segunda
metade do sculo XVIII, o Diretrio dos ndios: legislao
complementar Lei de Liberdades de
1755, a qual estabeleceu de modo definitivo a liberdade das
populaes indgenas, pondo fim s
possibilidades abertas pelos aparatos legislativos anteriores,
como a Guerra Justa e o Resgate. A
Guerra Justa (sic) se aplicava, grosso modo, s populaes indgenas
refratrias ao contato com
os representantes coloniais leigos ou religiosos e facultava a
escravido dos vencidos. As
Tropas de Resgate (sic) tinham por objetivo a compra de ndios
escravizados em guerras
intertribais. (Farage, 1991, p. 27-28; Domingues, 2000; p.
45-46).
O Diretrio dos ndios consistiu em um aparato legislativo que
pretendeu regular a
liberdade indgena. Seus noventa e cinco artigos tratavam tanto
dos limites daquela liberdade
quanto dos procedimentos a serem adotados com vistas transformao
daquelas populaes em
participantes ativas no processo de consolidao das fronteiras,
como cidados do Imprio.
Assim, para alm de sua condio de instrumento regulador, o
Diretrio dos ndios manifestava
uma pretenso civilizatria.
Enganam-se, no entanto, aqueles que associam a legislao
unicamente s populaes
indgenas. verdade que o corpo legislativo as tinha como objeto
privilegiado de sua ateno e
ao. Todavia, seus objetivos eram mais amplos, pois pretendiam
abarcar a regio e todos os
seus habitantes como, de resto, parte significativa das polticas
reformadoras do perodo
(Coelho, 1998). Francisco Xavier de Mendona Furtado, o
governador e capito-general do
Estado do Gro-Par e Maranho, denunciou, em sua correspondncia o
descaso dispensado s
determinaes metropolitanas. Relacionadas a outras vozes do mesmo
perodo, suas alegaes
caracterizam o Vale como um espao no qual a autoridade
metropolitana estava por se construir
(Coelho, 2006).
A preocupao com a civilizao do espao, sua submisso ao projeto de
ocupao e de
consolidao da presena portuguesa no Vale Amaznico, evidncia
dessa condio da
legislao indigenista: sua pretenso em atingir a todos, em
conformar a Colnia aos desgnios
do Imprio. Nesse sentido, tratarei de como o espao amaznico,
constitudo at meados do
sculo dezoito por aldeamentos, indgenas e missionrios, e por
umas poucas unidades coloniais
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(civis e militares), transformado, a partir de 1757, em funo de
um objetivo poltico que
ultrapassava a questo indgena: tornar o Vale Amaznico parte do
Imprio Portugus.
Historiografia
Capistrano de Abreu pontuava, como marco inicial da ocupao
lusitana no Vale
Amaznico, a consolidao da presena portuguesa no litoral
pernambucano. A expanso rumo
s terras do Norte teria partido dali, na luta contra invasores
europeus e na lida com as
populaes indgenas por meio do estabelecimento de alianas ou da
submisso dos resistentes.
A relao com os ndios fora vista como fundamental, uma vez que
por meio dela os portugueses
teriam esperado conter as invases estrangeiras ao territrio
colonial (Abreu, 1998, p. 67-78). A
remisso s populaes indgenas como fator determinante na conquista
do Vale foi, a partir de
ento, freqente.
Elas tm sido vistas, desde Caio Prado Jnior, como a razo para o
fortalecimento do
empreendimento missionrio na regio o qual contribuiu
decisivamente para a ocupao do
Vale (Prado Jnior, 1977, p. 37). Caio Prado destacou, ainda, o
papel fundamental da rede fluvial
nesse processo: os ncleos populacionais, religiosos ou leigos,
seguiram os cursos dos rios, que
se apresentavam como as melhores vias de comunicao (Prado Jnior,
1977, p. 69). Arthur
Cezar Ferreira Reis ressaltou, no entanto, que a despeito da
importncia missionria, ela no
constituiu o nico recurso adotado pela Metrpole para o
povoamento daquela rea. Segundo ele,
os colonos aorianos foram vistos, desde 1616, como uma das
solues para o problema: levas
de aorianos teriam aportado no Vale em 1620, 1621, 1667 e 1676
(Reis, 1993, p. 106-109).
A bibliografia unnime, todavia, em apontar o papel central que a
assinatura do Tratado
de Madri e o conseqente processo de delimitao das fronteiras
desempenharam na projeo de
uma nova poltica de ocupao do territrio. Antes dele, a ocupao da
imensa rea que se
estendia do Gurupi at perto das cabeceiras do Japur se resumia a
uma cidade, Belm; quatro
vilas Caet, Camet, Gurup e Vigia; oito fortificaes Prespio, So
Pedro Nolasco, Barra,
Gurup, Desterro, Araguari, Rio Negro e Pauxs; e cerca de setenta
estabelecimentos
missionrios (Arajo, 2003, p. 155).
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Construo de uma poltica imperial1
Uma perspectiva relativamente recente da historiografia
brasileira pontua a necessidade
de considerarmos a Colonizao Moderna como um processo, no qual
as relaes estabelecidas
entre os agentes envolvidos so determinantes para a conformao e
o dimensionamento das
foras polticas que a constituem (Alencastro, 2000; Florentino
& Fragoso, 2001). Tal
perspectiva proveitosa para considerarmos a construo da poltica
exercida pela metrpole.
Menos que uma poltica exclusivamente metropolitana pombalina
conforme a denominao
freqente nas obras relativas ao perodo a execuo do projeto de
integrao do Vale
Amaznico ao Imprio buscou satisfazer demandas coloniais.
At meados do Setecentos, as populaes indgenas ocupavam um lugar
na vida colonial.
Eram as mos e os ps da Colnia, realizando todas as tarefas que
garantiam a reproduo da
vida. Retiradas das reas em que viviam por meio de mecanismos
diversos, concentravam-se,
preferencialmente, nos aldeamentos missionrios (a servio dos
religiosos), de onde eram
retiradas para servir aos colonos. O convvio com os colonos se
dava, segundo a letra da lei e
mesmo a sua revelia (quando os colonos recusavam a interveno
missionria ou o suporte legal
para a arregimentao e distribuio da mo-de-obra indgena) no
contexto das relaes de
trabalho a que as populaes indgenas eram submetidas.
As relaes de trabalho demarcavam, ento, fundamentalmente, as
relaes de
missionrios e colonos com as populaes indgenas. rea de colonizao
tardia, o Vale
Amaznico atraiu poucos investimentos. A atividade extrativa
pareceu, mesmo antes do
estabelecimento portugus no Vale, ser mais promissora pelo pouco
investimento inicial que
exigia, de forma que a agricultura conheceu um avano relativo,
medida que transcorriam os
anos, mas jamais foi preponderante (Cardoso, 1984). As populaes
indgenas compunham a
principal e quase exclusiva mo-de-obra aplicada nos processos
extrativos e, mesmo, nas
atividades agrcolas. Da sua importncia para colonos e
missionrios que disputavam
acirradamente o controle sobre elas.
A assinatura do Tratado de Madri introduz uma questo nova.
Resultado de uma longa e
penosa negociao envolvendo as Coroas portuguesa e espanhola, o
tratado dispunha sobre os
limites das possesses coloniais de ambas, em funo do abandono
dos marcos iniciais. O novo
1 A documentao que fundamenta as concluses apresentadas compe
trs acervos distintos. Em primeiro lugar,
documentao impressa: a correspondncia ativa e passiva de
Francisco Xavier de Medona Furtado, publicada por
Marcos Carneiro de Mendona (1963). Em seguida a, documentos
manuscritos: os cdices da Coleo Pombalina,
sob a guarda da Biblioteca Nacional de Lisboa e do Fundo
Diversos com o Governo, do Arquivo Pblico do Estado
do Par. Por fim, a documentao digitalizada do Arquivo Histria
Ultramarino, constante do Projeto Resgate. A
seguir, por economia de espao, indicarei apenas a documentao
impressa, quando ela for expressamente citada.
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tratado estabelecia como parmetro para a definio das fronteiras
o recurso ao conceito de uti
possidetis a posse seria atribuda Coroa que tivesse ocupado
previamente a rea em disputa
(Cortezo, 2001).
Apesar das iniciativas apontadas por Arthur Cezar Ferreira Reis,
o Vale Amaznico era
rea com populao colonial rarefeita, dispersa em ncleos coloniais
distantes entre si, mas
concentrados nas margens dos rios e nos arredores da cidade de
Belm. Um imenso serto
reclamava a presena portuguesa, de forma a garantir e consolidar
a sua posse sobre o territrio
colonial. Recursos humanos disponveis para a ocupao e o
povoamento do Vale, todavia, eram
escassos. As populaes indgenas surgiram, assim, como uma opo
valiosa.
Ndia Farage pontuou, em obra imprescindvel compreenso do perodo,
que as
populaes indgenas, desde o incio da conquista do Vale,
constituram o meio pelo qual as
Coroas europias estabeleceram domnio sobre extensas reas
(Farage, 1991). O estabelecimento
de associaes de paz e amizade, permeadas por relaes de troca,
conformaram domnios ao
longo de todo o Vale, em sua grande maioria interrompidos pelos
portugueses desde 1616,
quando se instalaram na regio. O recurso s populaes indgenas,
como muralhas que
definiriam as possesses portuguesas, pareceu, portanto, uma
alternativa vivel e frutfera pois
garantiriam a incorporao de dois importantes capitais ao Imprio
homens e terras.
As populaes indgenas, no entanto, j eram objeto de intensa
disputa, de forma que a
Coroa no pode dispor delas sem considerar os demais agentes
coloniais. Colonos e missionrios
apresentaram forte resistncia ao projeto metropolitano.
Francisco Xavier de Medona Furtado, o
Governador e Capito-General do Estado, enviado com o objetivo de
implementar o Tratado de
Madri e consolidar a presena da Coroa na regio, enfrentou toda a
sorte de contratempos,
interpostos por colonos e missionrios, que apontavam a
indisposio de todos contra qualquer
iniciativa que privasse a Colnia do acesso ao brao indgena
(Coelho, 2006).
A poltica finalmente formulada foi resultado de um processo de
conflitos ocorridos entre
1750 e 1757, no qual as pretenses metropolitanas tiveram de
adequar-se s limitaes impostas
pela Colnia. A anlise desse processo pode esclarecer sobre a
construo do Imprio Portugus.
Menos que resultado da vontade lusa, de construto das
determinaes emanadas da metrpole,
ele resulta de uma conformao poltica, na qual os agentes
dispersos nas diversas unidades que
o compem jogam uma partida decisiva: por meio de sua interveno
sua conformao ou
resistncia s projees metropolitanas eles dimensionam o Imprio;
consolidam ou
enfraquecem os laos que os ligam metrpole, colocando questes a
serem resolvidas, de
forma a salvaguardar a unidade imperial.
O Vale Amaznico vivia um conflito secular, a disputa pelo
controle da mo-de-obra
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indgena. Colonos e missionrios eram os protagonistas. Os
primeiros acusavam os segundos de,
sob o libi da catequizao, utilizar as populaes indgenas para a
edificao de uma imensa
fortuna. De fato, os missionrios, especialmente os jesutas, eram
detentores de privilgios de
muita importncia: tinham sob sua responsabilidade um conjunto
portentoso de indivduos,
distribudos em quase setenta aldeias missionrias; nelas,
produziam um sem nmero de gneros,
escoados pelo porto de Belm, sem qualquer adio tarifria; possuam
vrias fazendas de gado,
nas quais reuniam mais de cem mil reses; e, por fim, controlavam
a distribuio daqueles
indivduos, reunidos em suas aldeias, pelas demandas interpostas
pelos colonos.
Os missionrios, por sua vez, consideravam que o interesse
pecunirio dos colonos
prejudicava a catequese e a civilizao das populaes indgenas.
Denunciavam as violncias a
que aquelas populaes eram submetidas: afirmavam que, em muitos
casos, aldeias indgenas
eram invadidas revelia do que predispunha a legislao; que
motivaes eram forjadas para o
estabelecimento de Guerras Justas; que muitos indivduos eram
submetidos escravido por
meio da falsificao de sua condio de resgatado.
Ambos, no entanto, se mostraram contrrios s projees
metropolitanas,
consubstanciadas nas Instrues Rgias Pblicas e Secretas para
Francisco Xavier de Mendona
Furtado, Capito general do Estado do Gro-Par e Maranho (Mendona,
1963, v. 1, p. 26-38),
que pontuavam a administrao de Francisco Xavier de Mendona
Furtado. Nelas, a metrpole
definia as bases por sobre as quais a colnia seria integrada ao
Imprio Portugus: introduo da
regio nas trocas comerciais atlnticas, atravs da ampliao da
produo de gneros, e
submisso da colnia s diretrizes legais e polticas da metrpole. A
concesso da liberdade aos
ndios era o meio pelo qual tais bases se concretizariam em nmero
variado de iniciativas: os
gneros extrativos seriam colonizados; as diversas unidades
coloniais produtoras seriam
integradas por redes de transporte fluvial; todo o complexo
colonial deveria ser protegido por
uma rede de fortificaes com o reparo das que j existiam e a
construo de novas fortalezas.
As populaes indgenas constituiriam os agricultores, os agentes
de transporte, as tropas e,
sobretudo, os elementos povoadores.
J disputadas por colonos e missionrios, aquelas populaes
passaram, ento a ser objeto
de interesse de mais um agente o Estado portugus. Os outros dois
contendores no aceitaram
passivamente o projeto metropolitano. Desde a sua chegada,
Francisco Xavier de Mendona
Furtado teve de conviver com manifestaes de resistncia de ambas
as partes. No entanto, cedo
percebeu que os missionrios representavam o maior entrave. Em
funo do controle efetivo que
exerciam sobre uma populao imensa, impediam que muitas das
polticas projetadas fossem
executadas. Um exemplo a organizao da primeira expedio, reunindo
espanhis e
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portugueses, responsvel pela definio das fronteiras que
demarcariam os limites dos dois
territrios.
Os deslocamentos pelo territrio colonial dependiam, enormemente,
das populaes
indgenas. Elas exigiam muitos esforos e a participao de um
grande nmero de indivduos
como batedores, flecheiros, remadores e carregadores. Em alguns
casos, como as expedies que
realizavam a comunicao entre o Mato Grosso e o Gro-Par, os
deslocamentos compreendiam
mais de cinco centenas de indivduos necessrios s transposies de
cachoeiras, coleta e
preparo de gneros, que garantissem a alimentao, e defesa dos
viajantes contra eventuais
perigos.
Mendona Furtado necessitava organizar as expedies que o levariam
ao encontro dos
ministros espanhis, a fim de dar incio demarcao das fronteiras.
Todavia, lidava com toda
srie de contratempos para arregimentar os recursos, materiais e
humanos, necessrios viagem.
Segundo as denncias que fazia Metrpole, os missionrios, jesutas
especialmente,
dificultavam a concesso de canoas, gneros e, especialmente,
ndios, alegando no os terem em
nmero suficiente e sugerindo que o governador apresasse, ele
mesmo, tantos quantos
necessitava.
Outro fator denunciado por Mendona Furtado foi a resistncia de
colonos e missionrios
(estes, evidentemente, com especial responsabilidade) pelo
descumprimento da recomendao de
que as populaes indgenas fossem catequizadas por meio da Lngua
Portuguesa, e no da
Lngua Geral, a qual impedia o reconhecimento das determinaes
metropolitanas. Os colonos,
por sua vez, eram acusados de utilizar todo tipo de meios para
burlar as restries legais a fim de
submeter ndios ao trabalho, tanto pelo substituto de Mendona
Furtado em suas ausncias, Frei
Miguel de Bulhes, Bispo do Par, quanto pelo prprio Furtado.
Diante de tamanha resistncia, a administrao metropolitana
reformulou suas projees
iniciais. A concesso da liberdade no previa qualquer instrumento
regulatrio (Coelho, 2006, p.
149-171). Todavia, o posicionamento assumido pelos missionrios,
colocou em cheque a
efetivao dessa poltica tanto Mendona Furtado quanto o Bispo do
Par consideraram que
livres da autoridade de qualquer agente do Estado, as populaes
indgenas estariam sujeitas
influncia missionria e, portanto, infensas s pretenses
metropolitanas. Da mesma forma, a
resistncia de colonos fez ver que o acesso mo-de-obra indgena no
poderia ser sustado. A
falta de recursos para a aquisio de braos escravos africanos e a
prpria amplitude do uso da
fora de trabalho exigiam como demandavam os colonos
continuamente alguma forma de
acesso mo-de-obra indgena.
O Diretrio dos ndios consubstanciou, ento, as projees
metropolitanas e as demandas
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coloniais, medida que buscou garantir, de um s golpe, o fim do
poder missionrio visto
como um risco consecuo da autoridade metropolitana no Estado do
Gro-Par , o acesso
dos colonos mo-de-obra indgena sob o controle e as determinaes
do governo da capitania
e, finalmente, a utilizao das populaes como instrumentos de
certificao da presena
portuguesa no Vale, nos termos propostos pelo Tratado de Madri.
Este ltimo aspecto promoveu
uma profunda transformao do Vale Amaznico. Dezenas de unidades
coloniais surgiram,
erigidas por sobre antigos aldeamentos missionrios. Elas foram
criadas com diversas
atribuies: consolidar a presena portuguesa no Vale; promover a
civilizao das populaes
indgenas; incentivar o convvio e a integrao entre populaes
indgenas e coloniais; e, no
menos importante, produzir bens para o comrcio.
A introduo e a consolidao do poder imperial no Vale Amaznico
implicou, a partir
da, a adoo de uma srie de medidas, boa parte delas includas no
Diretrio dos ndios. A
transformao da condio das populaes indgenas em instncias
definidoras das fronteiras
coloniais implicava no somente em uma alterao de estatuto, mas
na prpria modificao da
natureza daquelas populaes. A primeira daquelas medidas, e uma
das mais importantes, atingiu
diretamente o estatuto das populaes inseridas no universo
colonial: alcanavam a condio de
vassalos do rei portugus passo fundamental para afianarem o
poder metropolitano luso sobre
as reas em disputa com a Espanha.
Outras obedeciam ao mesmo imperativo: criao de unidades
coloniais por todo o
territrio, especialmente em reas de fronteira; introduo da Lngua
Portuguesa e banimento da
Lngua Geral; promoo de atividades produtivas que
potencializassem as possibilidades de cada
rea do territrio cada uma das unidades se especializaria na
produo do gnero que mais lhes
favorecesse, de forma que no concorressem umas com as outras; e,
no menos importante,
consolidao do poder metropolitano com a eliminao da presena
missionria e introduo
da administrao laica, diretamente submetida ao governo
metropolitano.
No entanto, a poltica adotada deveria dar conta, tambm, das
demandas coloniais. Nesse
sentido, o Diretrio dos ndios previa, como medidas
civilizatrias, o incentivo ao trabalho
(agrcola, especialmente) e mais importante para os colonos a
manuteno do trabalho
compulsrio, com a distribuio regular de ndios para os colonos,
com a novidade da obrigao
de pagamento pelo trabalho indgena.
Todo esse processo considerava a transformao do espao: a
edificao de unidades
coloniais que viabilizassem tanto o projeto metropolitano quanto
as demandas coloniais. Cabe,
portanto, percorrer o processo que conformou o aportuguesamento
do Vale Amaznico, de
forma a corroborar o argumento que apresento aqui: a conformao
do Imprio Portugus no
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pode ser percebida como uma determinao da Metrpole, mas como
resultado de um processo
no qual conflitos de diversas ordens contribuem para o
delineamento do Imprio tanto do ponto
de vista geogrfico, quanto no que se refere s polticas que
permeiam as tentativas de
construo de sua unidade.
O imenso Portugal
A consecuo do projeto metropolitano para o Vale Amaznico e a
satisfao de
demandas coloniais conformou a ocupao da regio. Conduzida pela
Metrpole, ela buscou
integrao do espao e das populaes que o habitavam aos interesses
do Imprio. O primeiro
passo nesse sentido foi, sem dvida, a transformao das antigas
aldeias missionrias em
unidades coloniais leigas e a criao de unidades coloniais em
reas fronteirias. O que se
pretendeu foi reverter o carter da ocupao realizada at 1750,
quando as ordens religiosas
respondiam pela maior parte das unidades coloniais, nas quais
afianavam os agentes
administrativos a autoridade metropolitana era rarefeita.
O empreendimento conduzido por Francisco Xavier de Mendona
Furtado pretendeu e,
em larga medida, conseguiu transformar aquele quadro. A converso
das aldeias missionrias
em vilas e lugares facultou um intenso convvio entre colonos e
populaes indgenas (Prado
Jnior, 1980, p. 72; Domingues, 2000b, p. 82-83), quase
inexistente no passado (Belloto, 1988,
p. 53). Enquanto que aqueles aldeamentos gozavam de uma
autonomia relativa, as povoaes
institudas pela poltica pombalina pretendiam integrar suas
populaes ao universo colonial, de
maneira inequvoca (Moreira Neto, 1988, p. 25). As povoaes
criadas no mbito da execuo
do Tratado de Madri e do Diretrio dos ndios se distinguiam em
Vilas e Lugares. Segundo
Eliane Ramos Ferreira, as Vilas eram unidades de povoamento,
enquanto que os Lugares eram
centros de arregimentao, organizao e distribuio da mo-de-obra
indgena (Ferreira, 1998,
98). A despeito da propriedade da distino, tratava-se, a rigor,
de espaos complementares, em
acordo com o projeto de ocupao do territrio, integrao da populao
indgena e utilizao de
sua fora de trabalho. Vilas e Lugares serviram aos propsitos de
povoamento, de irradiao da
cultura portuguesa e de ordenao dos ndios e colonos, segundo os
ditames metropolitanos
(Santos, 2001, p. 24; Arajo, 2003, p. 151 e 158-161).
Tais povoaes concretizaram, ainda que no de todo, as projees de
recriao do
espao colonial imagem da Metrpole. O imenso Portugal projetado e
semeado em mais de
cinqenta unidades urbanas est, segundo Palma Muniz, na origem
das municipalidades
paraenses (Muniz, 1916, p. 3). Ele se encontrava formulado, j,
nas Instrues Rgias Pblicas e
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Secretas para Francisco Xavier de Mendona Furtado, Capito
general do Estado do Gro-Par e
Maranho, recebidas por Mendona Furtado. Elas ordenavam o
estabelecimento de novas aldeias
para os ndios, especialmente nas regies de fronteira, como os
rios Mearim, Solimes e Japur e
na rea do Cabo Norte.
Mendona Furtado acatou-as de imediato. Em novembro de 1751,
preparava a fundao
de aldeias nos rios Japur e Solimes. Em janeiro de 1752,
encaminha a fundao da vila de So
Jos de Macap e, um ano depois, da Aldeia de Santana, ambas no
Cabo Norte. No mesmo ano
de 1753, informava a transformao da Vila do Caet em Vila de
Bragana. A fundao desta
ltima, alis, acarretou a distino a que me referi h dois
pargrafos: aps recomendar que ela
fosse povoada com colonos remetidos das ilhas, sugeria a
edificao de uma aldeia de ndios que
lhe fosse anexa, a fim de supri-la de trabalhadores encontra-se
aqui, talvez, a gnese da
distino de Vilas e Lugares.
Logo no incio, apesar da preferncia pela criao de
estabelecimentos livres da
participao missionria, ela no foi descartada. S em 1753, j num
contexto de conflitos com
os missionrios, sugeriu-se a transformao das aldeias em vilas,
isentas da sua autoridade. Em
1756, Sebastio Jos de Carvalho e Melo noticiou a concordncia de
Sua Majestade, autorizando
a transformao das aldeias e fazendas missionrias em povoaes
civis. Mendona Furtado,
contudo, havia se antecipado, solicitando aos missionrios que
fornecessem relatrios
minuciosos sobre os seus estabelecimentos, de modo a tomar p do
que assumiria.
Ele formulara, ao longo dos primeiros anos de seu governo, a
idia de que os
estabelecimentos missionrios no contribuam para a consecuo das
projees metropolitanas.
Entendera, cedo, que as aldeias no facultariam a emergncia do
vnculo que pretendia ver
constitudo entre as populaes indgenas e os colonos:
No podemos fazer um estabelecimento slido [...] se os ndios
no
concorrerem conosco igualmente, para a causa comum, fazendo os
intersses
recprocos; preciso que nos benquistemos com eles, e que faamos
todo o
possivel para que eles conheam, no s que os estimamos, mas que
buscamos
todos os meios de os fazer ricos e opulentos (Instruo passada ao
tenente Diogo Antnio de castro, para estabelecer a vila de Borba, a
Nova, antiga
Aldeia de Trocano, em 06/01/1756 Mendona, 1963, v. 3, p.
897).
Mendona Furtado entendeu, portanto, que o incentivo aos
casamentos inter-tnicos
(medida que integravas as iniciativas civilizatrias), a introduo
da Lngua Portuguesa e o
trabalho agrcola s cumpririam o seu papel em um espao propcio as
povoaes civis. No
entanto, os missionrios resistiram em abrir mo do que entendiam
ser seu patrimnio. Antes de
partir, tentaram levar o que podiam: segundo o Bispo do Par, o
missionrio da antiga Aldeia
Trocano (convertida em Vila de Borba, a Nova) cobrara, dos
ndios, supostas dvidas de
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comrcio; outro, da mesma vila, segundo Mendona Furtado, arrancou
as fechaduras das casas e
reclamara para a sua Ordem os benefcios existentes na aldeia;
ainda outros, conforme o mesmo
Furtado, tentavam convencer os ndios a se transferirem para os
domnios espanhis. A grita dos
missionrios foi tanta que Mendona Furtado publicou uma Carta
Circular alertando que os bens
das misses no eram privativos dos padres missionrios, como
alegavam alguns religiosos. A
emenda no consertou o soneto, de modo que tivera de lidar com as
dificuldades interpostas
pelos regulares at o ltimo momento.
A converso das aldeias missionrias em estabelecimentos laicos,
mais que culminar um
processo de disputas que ops missionrios e administrao colonial
como pretendeu Colin
MacLachlan (MacLachlan, 1972, p. 360) teve por objetivo
implementar a ocupao do
territrio, no contexto poltico institudo pelo Tratado de Madri
(Avellar, 1983, p. 26-27). Em
funo do que ele dispunha, os espaos urbanos, as vilas e lugares,
foram projetados como
centros de irradiao da autoridade metropolitana. E, nesse caso,
no houve novidade: A. J. R.
Russel-Wood, Ronald Raminelli e Luiz Centurio afirmam ter sido
este um recurso freqente no
processo de ocupao e consolidao da presena portuguesa na Amrica
(Russel-Wood, 1977,
p. 35; Raminelli, 1992; Centurio, 1996, p. 131; 1999, p. 211,
214-215, 229-232).
As notcias sobre a fundao de vilas so constantes, em meio
documentao. Do
conta do estabelecimento das vilas de So Jos do Jaguaribe,
Borba, a Nova, Portel, Poiares,
Conde, Chaves, Melgao, Vistoza, Nossa Senhora do Socorro das
Salinas, Vizeu e Aveiro. Tais
notcias indicam a preocupao que norteou a ao metropolitana, no
sentido de ocupar o
territrio. At o final do sculo, o Estado contava com mais de
noventa povoaes, sessenta
delas na Capitania do Par, grande parte das quais fundadas no
governo de Mendona Furtado.
Por meio delas, aquele governador pretendeu fortalecer a presena
do poder metropolitano,
denominando-as com nomes portugueses, escolhidos dentre os das
terras da Real Casa de
Bragana, da Coroa e da Rainha (Arajo, 1998, p. 122; Rodrigues,
1999, p. 106).
A edificao dessas povoaes expe uma outra faceta do processo de
dominao
iniciado com a Conquista. O recurso queles topnimos portugueses
teve a inteno de tornar
mais forte a relao entre a Colnia e a Metrpole. Evidentemente, a
disputa por terras com a
Coroa espanhola, no contexto de concretizao do disposto pelo
Tratado de Madri foi decisiva: a
nomeao se constitua em mais uma estratgia para afirmar a
antiguidade da ocupao
portuguesa e a sua autoridade sobre o territrio. Mas, dar nomes
portugueses s novas vilas
cumpria, tambm, um importante papel no desmantelamento das
culturas nativas, pois as
populaes passariam, progressivamente, a se reconhecer pelo lugar
de moradia, deixando de
lado a identificao primeira com os seus grupos de origem. A
nomeao com topnimos
-
274
portugueses foi, portanto, mais um movimento, no processo de
integrao das populaes
indgenas na sociedade colonial portuguesa. E no foi o nico:
aqueles estabelecimentos foram
planejados. Ao contrrio da falta de ordenao, comumente atribuda
s cidades coloniais
portuguesas (Holanda, 1979, p. 61-100; Centurio, 1999, p. 217;
Cosentino, 1999, p. 89-91;
Marins, 2001, p. 46-50), as vilas e lugares introduzidos no Vale
Amaznico na segunda metade
do sculo dezoito obedeceram a um minucioso planejamento. Ruas e
casas foram projetadas, de
modo a maximizar o potencial pedaggico das povoaes (Sommer,
2000, p. 108-109; Arajo,
2003, p. 162).
A preocupao com o delineamento de ruas, edificao de casas,
preparao de roas e
manuteno das igrejas foi constante. Em 1764 (por volta de oito
anos depois de iniciado o
processo de edificao das vilas e lugares), o Ouvidor Geral,
Feliciano Ramos Nobre Mouro,
percorreu as vilas de Monsars, Salvaterra, Monforte, Colares,
Cintra, Bragana, Nova dEl Rei,
Ourm e Soure. Em relao a todas, o ouvidor atentou para a
necessidade de se edificarem
prdios pblicos, para servirem de cmara e cadeia; afirmou ser
imperativo traar ruas, capinar o
entorno das vilas, reparar os cais, aprontar roas e edificar
casas para colonos e ndios,
sugerindo, inclusive a construo de olarias que suprissem a
demanda por telhas em
substituio palha, que requeria trocas freqentes e tijolos em
lugar da madeira e barro e
que viabilizasse o fabrico de louas.
O fortalecimento do poder metropolitano era percebido, portanto,
como algo mais que a
presena dos seus representantes juzes, vereadores e procuradores
(componentes das cmaras
e portadores das chaves da cadeia). A Metrpole se fortalecia com
a transformao do serto
amaznico em uma paisagem domesticada: com as aldeias volvidas
vilas e as matas tornadas
roas. Umas e outras teriam de evocar, continuamente, a presena
do poder metropolitano, por
meio de suas denominaes, traado urbano e arquitetura. As igrejas
cumpririam papel relevante
nesse processo. Em lugar dos missionrios que representavam as
Ordens s quais pertenciam
os procos, seus substitutos, deveriam fazer valer os interesses
da Metrpole: cristianizar e
contribuir para a transformao do ndio em vassalo. Da decorreu a
preocupao constante com
a construo e manuteno das igrejas, manifesta pelos governadores
e, em grau diverso, pelos
diretores.
Como aponta Brbara Sommer, todavia, as vilas no se constituram
tal e qual a projeo
portuguesa. A uniformidade esperada no foi de todo alcanada, uma
vez que as povoaes
investiam de modo distinto em melhorias. Assim, algumas se
desenvolveram mais que outras, e
todas sofreram de forma similar a deteriorizao imposta pelo
clima do Vale. Da mesma forma, a
esperada integrao no foi absoluta, porque algumas povoaes
adotaram uma distribuio
-
275
espacial, a qual separava brancos e ndios em bairros distintos.
Independentemente da ocorrncia
de divises como essas, a viabilidade das povoaes como
instrumentos integradores foi posta
prova. A maior parte da populao vivia, grande parte do tempo,
junto s suas roas, de forma
que os contatos entre os habitantes restringiam-se aos domingos
e dias santos, quando as Vilas
tornavam-se plos de reunio (Sommer, 2000, p. 108-116).
Edificar e manter as povoaes no foram, ento, tarefas fceis.
Havia que se rasgar ruas,
levantar casas, erguer igrejas e prdios pblicos casas de Camera,
e Cadas publicas,
cuidando muito em que estas sejo erigidas com toda a segurana, e
aquellas com a possivel
grandeza (Directorio que se deve observar nas Povoaoens dos
ndios do Par, e Maranho em
quanto Sua Magestade no mandar o contrrio, Moreira Neto, 1988,
p. 196-197). Para tudo
cortar madeira, tranar folhas para elaborao de coberturas das
construes etc. o ndio era
necessrio; sem esquecer, evidentemente, sua importncia como
povoador.
A poltica indigenista formulada no governo de Francisco Xavier
de Mendona Furtado
alterou, profundamente, as formas pelas quais as populaes
indgenas eram contatadas e
convencidas a habitarem as povoaes. Os descimentos, termo que
designava o processo de
convencimento e alocao das populaes nas povoaes coloniais,
sofreram uma inflexo
significativa. Antes de 1750, eram trs os meios de arregimentao
das populaes indgenas: a
guerra justa, as tropas de resgate e os descimentos promovidos
por missionrios ou particulares.
Os descimentos constituam um conjunto de prticas com vistas
alocao de populaes
indgenas em povoaes coloniais, com fins catequticos e de
constituio de reserva de mo-de-
obra (Domingues, 2000b, p. 33).
Guerra justa e resgate foram, praticamente, deixados de lado. A
primeira passou a ser
aplicada, quase que exclusivamente, s populaes promotoras de
ataques s povoaes, a
despeito das iniciativas de estabelecimento de paz como os
Mundurucus. A escravizao dos
vencidos foi, evidentemente, abolida, diante do contexto de
liberdade, j previsto nas Instrues
recebidas por Mendona Furtado. O segundo foi abandonado
formalmente em 1753. Os
descimentos, ao contrrio, foram expressamente ordenados pelas
mesmas Instrues, as quais
recomendavam o recurso aos missionrios, de modo que estes
convencessem aos ndios da
convenincia de se estabelecerem junto aos portugueses.
Mendona Furtado cumpriu imediatamente tal dispositivo, logo no
incio de seu governo,
enviando o padre Antonio Machado ao rio Mearim, a fim de que ele
promovesse o descimento
dos ndios Gamela. Em relatrio sobre suas atividades, no entanto,
o padre sugeriu que as
populaes refratrias fossem submetidas fora. Mendona Furtado
recusou prontamente a
sugesto, uma vez que ela colocava em risco a poltica de paz e
amizade com os indgenas, os
-
276
quais eram essenciais para as projees de ocupao do territrio
colonial. A insistncia na
manuteno daquela poltica fora incorporada, posteriormente, ao
texto do Diretrio dos ndios e
compuseram o discurso da administrao colonial at o fim do
sculo.
Tantas povoaes exigiam habitantes. Assim, ao longo da vigncia da
lei do Diretrio, a
administrao colonial se manteve firme no incentivo realizao de
descimentos. E muitos
ocorreram. A documentao coligida por mim, registra trinta
descimentos, totalizando cerca de
dois mil indivduos. Tais descimentos, no entanto, diferiam
daqueles promovidos antes de 1750.
Segundo a informao de Joo Daniel, a qual se refere aquele
perodo, o ponto de partida para o
sucesso de um descimento era o estabelecimento da confiana. Para
constru-la, os missionrios
transferiam-se para junto das populaes ou recorriam ao auxlio de
um ndio, j cristianizado,
ou de algum colono com quem mantivessem relaes de comrcio. De
todo modo, a confiana
era alimentada com presentes, garantia de abrigo contra os
inimigos, oferta de ferramentas para
elaborao de roados e promessa de fartura de gneros. As chefias
indgenas eram
especialmente seduzidas, sendo as principais beneficirias dos
presentes, promessas e garantias.
Nada disso, no entanto, tornava certo o sucesso do
empreendimento, pois freqentemente as
populaes descidas retornavam a sua condio original. Isto acabou
por consolidar como que
uma norma: o estabelecimento das populaes descidas em reas
distantes daquelas das quais
provinham, de forma a dificultar qualquer eventual retorno
(Daniel, 1976, p. 40-45).
Nos descimentos ocorridos durante a vigncia do Diretrio dos
ndios, a oferta de
presentes permaneceu intocada, como um dos momentos fundamentais
do processo de
convencimento. Roupas, tecidos, chapus, machados, foices,
barbantes, granadas, plvora,
espelhos etc. faziam parte da relao de bens que eram oferecidos
aos ndios. A primeira
distino, no entanto, se dava na relao que se estabelecia com as
chefias indgenas. Alm da
ateno especial que j lhes era dispensada pelos missionrios,
concretizada na oferta de mais ou
melhores tecidos, roupas e chapus e tudo o mais que pudesse
distingu-los dos demais
Francisco Xavier de Mendona Furtado lhes acenou com a manuteno
de sua autoridade.
Em um dos descimentos em que esteve envolvido, Mendona Furtado
relatara ao irmo o
encontro que tivera com vrias chefias indgenas. Ouamo-lo:
Os primeiros trs me disseram que me vinham ver e saber o que
queria dles, e
respondendo-lhes eu que desejava muito conhec-los e ter trato
com les e
pedir-lhes que se quisessem descer para o grmio da Igreja,
porque alm de
interessarem o fazerem-se filhos de Deus e salvarem as suas
almas, se lhes
seguiam muitos bens temporais, sendo os primeiros e mais
importantes os de se
livrarem de seus inimigos e viverem entre ns com descanso e em
vida civil, e
que com todas as convenincias, no perdiam a autoridade do govrno
dos seus
vassalos, por que Sua Majestade os ficava conservando nle,
devendo, porm,
regular-se pelas suas reais leis: ao que me responderam todos
que eles no
teriam dvidas a descer-se, porm, que por ora lhes era impossvel,
dando-me
-
277
algumas desculpas, ainda que frvolas, para pretextarem aquela
dilao, sem
embargo de cujo desengano os tratei muito bem, e quando se
despediram lhes
fiz seus presentes e no exterior foram alegres, porm, no fizeram
nada das
esperanas que deram (Correspondncia de 15/11/1755 Mendona, 1963,
v. 2, p. 841-848).
A fala de Mendona Furtado sinaliza a permanncia de outros
momentos do processo de
convencimento das populaes que se pretendiam descer: oferta de
abrigo diante dos inimigos,
garantia de oferta regular de alimentos e de condies para
cultiv-los. O destaque, todavia,
dado ao penhor da manuteno da autoridade das chefias indgenas e
nisto reside uma enorme
distino, em relao ao perodo anterior introduo do Diretrio dos
ndios. Enquanto os
missionrios seduziam as chefias pelo acesso que elas facultavam
s populaes sob sua
autoridade, Mendona Furtado as valorizava pela participao que
elas poderiam ter no processo
de ocupao do territrio de controle das populaes descidas. Da
decorreu, em larga medida, a
ateno de que foram objeto.
O Diretrio dos ndios sinalizou, depois, o quanto elas seriam
importantes, pois transferia
para elas e para as chefias coloniais leigas os diretores
nomeados pelo governador a
responsabilidade pela promoo dos descimentos. E eles foram
fundamentais. Principais,
sargentos-mores, capites e alferes os oficiais ndios estiveram
envolvidos na realizao de
descimentos, ao longo de todo o perodo de vigncia da lei. Muitos
saiam das vilas com o
objetivo de convencer primos, tios e irmos a juntarem-se aos
estabelecidos nas povoaes
portuguesas.
Sua participao, todavia, no era sinnimo de sucesso. Este, alis,
dependia do interesse
das populaes indgenas, que pareciam levar em conta os dividendos
provenientes dos
descimentos, antes de qualquer deciso definitiva. Freqentemente,
como apontou o testemunho
de Mendona Furtado, as confabulaes com vistas ao estabelecimento
em alguma povoao
eram apenas um meio de subtrair dos colonos aquilo que lhes
interessava. Ainda em 1755, os
ndios Gamela aceitaram presentes e recusaram a vida nas povoaes.
Em 1766, o governador da
Capitania do Gro-Par reportava o assassinato de Francisco
Rodrigues, durante a tentativa de
descimento dos ndios Mobi. O mesmo teriam feito os ndios Sumama,
tomando para si tudo o
que os representantes coloniais carregavam.
Os descimentos, contudo, mantiveram vivas as povoaes do Vale
Amaznico, ao longo
daquela metade de sculo. Para as populaes indgenas, o descimento
podia se constituir em
uma alternativa proveitosa, diante de seu horizonte imediato.
Como sinalizou Brbara Sommers,
os descimentos ocorriam aps intensas negociaes, nas quais as
populaes indgenas
consideravam as suas demandas imediatas, acima de tudo (Sommer,
2000, p. 102-108). Refgio
-
278
diante de inimigos mais poderosos, promessa de oferta regular de
alimentos, auxlio em
momentos de fragilidade as povoaes coloniais representaram
possibilidades diversas para as
populaes indgenas, especialmente quelas debilitadas depois de
mais de cento e cinqenta
anos de presena europia efetiva e desmantelamento de muitos
grupos indgenas.
Maria Regina Celestino de Almeida argumenta, muito
acertadamente, que a poltica de
descimentos praticada ao longo da vigncia do Diretrio dos ndios
no representou um
crescimento populacional efetivo, tal como pretendeu a poltica
portuguesa. Mais que garantir o
povoamento da regio, os descimentos significaram o despovoamento
de algumas reas
indgenas em favor das coloniais (Almeida, 2005). No obstante, a
transferncia daquelas
populaes para as unidades coloniais alterou de forma definitiva
o universo amaznico
matizou de lusas as suas razes e fez emergir relaes e tipos
sociais novos, atinentes s questes
emergidas do processo histrico resultante da integrao da regio
ao Imprio Portugus.
Para concluir
A transformao do Vale Amaznico em regio conforme a conceituao
feita por
Ilmar Rohloff de Matos (1990) se deu em um longo processo,
iniciado no sculo XVII, com o
estabelecimento definitivo dos portugueses na rea prxima entrada
do grande rio das
Amazonas. Desde o comeo, relaes de necessidade foram se
estabelecendo, vinculando reas
coloniais e reas indgenas. Os vnculos com a metrpole foram
estabelecidos, alis, por meio
das populaes indgenas: a Coroa portuguesa entendeu, cedo, que o
controle sobre quelas
populaes era imperativo. A cesso do controle sobre elas para as
ordens religiosas teve o
objetivo de garantir o territrio e os vnculos, sem prejuzo da
ocupao e da explorao colonial
(MacLachlan, 1972).
No entanto, em meados do sculo XVIII a situao exigiu a interveno
direta da
Metrpole. A assinatura do Tratado de Madri e a necessidade de
tornar o territrio rea
portuguesa fez com que o recurso s ordens religiosas sofresse
soluo de continuidade. A
autoridade metropolitana, rarefeita at quela data, teve de ser
construda sob novas bases. Os
atores polticos tiveram de ser redimensionados, de forma que os
missionrios regulares
agentes importantes dos interesses metropolitanos perderam espao
em favor dos colonos
leigos. A presena lusa reforada.
A transformao da paisagem do Vale, com a edificao de Vilas e
Lugares, diretamente
submetidos autoridade rgia, fez emergir no apenas um novo mapa,
mas novas relaes
sociais. Tomadas como ndice da ocupao lusitana, foram
rebatizadas com nomes portugueses
-
279
Par torna-se Almeirim; Borary, Alter do Cho; Guarimocu,
Arraiolos; Taparaj, Aveiro;
Sumama, Beja e, assim por diante, Portugal reproduzido em quase
todas as povoaes
amaznicas do perodo, por meio da nomenclatura que recria o mundo
luso nos trpicos.
Amplia-se o Imprio.
Naquelas povoaes, populaes indgenas e coloniais exerceram um
convvio indito.
Associaes e conflitos fizeram emergir uma sociedade nova,
vinculada, sem sombra dvida, ao
Imprio Portugus, mas, relacionada, da mesma forma ao Vale e as
injunes que a vida, nele,
estabeleciam. Conforme aponta aquela historiografia referida no
incio deste artigo, portanto, foi
por meio das tenses que demarcavam a vida no Vale e a relao dele
com a Metrpole que a
insero no Imprio se fez.
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