Dossiê Novas Faces do Poder – http://revistaecopos.eco.ufrj.br/ – ISSN 2175-8689 – v. 22, n. 2, 2019. DOI: 10.29146/eco-pos.v22i2.26049 66 O idiota acima de todos: “Momento Waldo” – fanatismo, espetáculo e esvaziamento do político The stupid above all: “Waldo Moment” - fanaticism, spectacle and the end of political debate Maria Cristina Franco Ferraz Doutora em Filosofia - Universite de Paris I (Pantheon-Sorbonne, 1992), com pós- doutorados no Instituto Max-Planck de História da Ciência (Berlim, 2004) e no Centro de Pesquisa em Literatura e Cultura de Berlim (2007 e 2010). É Professora Titular de Teoria da Comunicação da ECO/UFRJ desde junho de 2012. Foi professora visitante nas universidades de Paris 8 (2000), Richmond (EUA, 2004), Perpignan (França, 2005, 2009 e 2013), Nova de Lisboa (2005 e 2013) e Saint Andrews (Escócia, 2005). Publicou os livros Nietzsche, o bufão dos deuses (no Rio e em Paris), Platão: as artimanhas do fingimento (no Rio e em Lisboa), Nove variações sobre temas nietzschianos, em 2010, Homo deletabilis - corpo, percepção, esquecimento: do século XIX ao XXI. É pesquisadora nível 2 do CNPq. Ericson Saint Clair Professor do Programa de Pós-graduação em Cultura e Territorialidades (PPCULT-UFF) e do Departamento de Artes e Estudos Culturais (UFF Rio das Ostras). Doutor em Comunicação e Cultura (ECO-UFRJ). Suas pesquisas privilegiam a análise das relações entre comunicação, corpo e subjetividade. É autor de “Gabriel Tarde e a Comunicação: por um contágio da diferença” (2012). Submetido em 16 de Julho de 2019 Aceito em 01 de Setembro de 2019 RESUMO O artigo investiga as relações entre política e espetáculo a partir do episódio “Momento Waldo”, da série Black Mirror. A trama permite observar as novas e ominosas dobras do capitalismo no ocidente, em sua associação com o pensamento reacionário, expresso na ascensão política de personagens caricatas, paradoxalmente eleitas de modo democrático. Articula-se o pensamento de Agamben sobretudo ao de Amós Oz e Barbara
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O idiota acima de todos: “Momento Waldo” – fanatismo ...
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MariaCristinaFrancoFerrazDoutora em Filosofia - Universite de Paris I (Pantheon-Sorbonne, 1992), com pós-doutoradosnoInstitutoMax-PlanckdeHistóriadaCiência(Berlim,2004)enoCentrodePesquisa em Literatura e Cultura de Berlim (2007 e 2010). É Professora Titular deTeoriadaComunicaçãodaECO/UFRJdesdejunhode2012.FoiprofessoravisitantenasuniversidadesdeParis8(2000),Richmond(EUA,2004),Perpignan(França,2005,2009e 2013),Nova de Lisboa (2005 e 2013) e SaintAndrews (Escócia, 2005). Publicou oslivrosNietzsche, o bufão dos deuses(no Rio e em Paris),Platão: as artimanhas dofingimento(no Rio e em Lisboa),Nove variações sobre temas nietzschianos, em2010,Homo deletabilis - corpo, percepção, esquecimento: do século XIX ao XXI. Épesquisadoranível2doCNPq.
EricsonSaintClairProfessordoProgramadePós-graduaçãoemCulturaeTerritorialidades(PPCULT-UFF)e do Departamento de Artes e Estudos Culturais (UFF Rio das Ostras). Doutor emComunicação e Cultura (ECO-UFRJ). Suas pesquisas privilegiam a análise das relaçõesentrecomunicação,corpoesubjetividade.Éautorde“GabrielTardeeaComunicação:porumcontágiodadiferença”(2012).
RESUMOOartigoinvestigaasrelaçõesentrepolíticaeespetáculoapartirdoepisódio“MomentoWaldo”,dasérieBlackMirror.Atramapermiteobservarasnovaseominosasdobrasdocapitalismonoocidente,emsuaassociaçãocomopensamentoreacionário,expressonaascensão política de personagens caricatas, paradoxalmente eleitas de mododemocrático.Articula-seopensamentodeAgambensobretudoaodeAmósOzeBarbara
Cassin, a fim de ressaltar, no debate político, o sequestro insidioso da potência dapalavra e sua substituição pelo regime discursivo do fanatismo. A figura emergentedesse regime - o idiota - é desdobrada em duas direções. Por um lado, salientam-sevariaçõeshistóricasdesentidodeidiotanaculturaocidental;poroutro,explora-seseuvínculo a modelos comportamentais contemporâneos difundidos na campanhapublicitáriadamarcaDiesel,comseulemaBestupid.Palavras-chave:BlackMirror;CrisedoPolítico;AscensãodoIdiota.
ABSTRACTThe article investigates the relations between politics and spectacle bymeans of theBlackMirrorepisode“TheWaldoMoment”.TheplotallowsustoobservethenewandominousturnsofthescrewofcapitalismintheWestanditsassociationwithreactionarythinking, expressed in thepolitical riseof caricatural characters,paradoxicallyelectedbydemocratictools.Agamben'sthoughtismainlyarticulatedwiththatofAmosOzandBarbaraCassininordertoemphasizetheinsidioushijackingoflanguagepoweranditsreplacementbythediscursiveregimeoffanaticisminthepoliticaldebate.Theemergingfigureofthisregime-theidiot-isunfoldedintwodirections.Ontheonehand,historicalvariationsofidiocymeaninginWesternculturearedescribed;ontheother,itslinkwithcontemporary behavioral models diffused in Diesel’s advertising campaign motto Bestupidareexplored.KEYWORDS:BlackMirror;PoliticalCrisis;RiseoftheIdiot.
RESÚMENEl artículo investiga las relaciones entre política y espectáculo a partir del episodio"MomentoWaldo", de la serie BlackMirror. La trama permite observar las nuevas yominosasdoblasdel capitalismoen el occidente, en su asociación con el pensamientoreaccionario, expresado en la ascensión política de personajes caricatos,paradójicamenteelegidosdemododemocrático.SearticulaelpensamientodeAgambensobre todo al de AmósOz y Barbara Cassin a fin de resaltar, en el debate político, elsecuestro insidioso de la potencia de la palabra y su sustitución por el régimendiscursivodelfanatismo.Lafiguraemergentedeeserégimen-elidiota-sedesdoblaendosdirecciones.Porunlado,sedestacanvariacioneshistóricasdesentidodeidiotaenlacultura occidental; por otro, se explora su vínculo a modelos comportamentalescontemporáneosdifundidosenlacampañapublicitariadelamarcaDiesel,consulemaBestupid.PALABRAS-CLAVES:BlackMirror;CrisisdelaPolítica;elAscensodelIdiota
1Porexemplo:CLETO,Murilo.“ComoBlackMirrorajudaaentenderofenômenoBolsonaro”.RevistaÉpocaOnline.15out.2018.Disponívelem:<https://epoca.globo.com/como-black-mirror-ajuda-entender-fenomeno-bolsonaro-23148634> Acessoem:10abr.2019.HAWKES, Rebecca. “Black Mirror's Charlie Brooker on predicting Donald Trump, and the lovestorythat'terrified'him”.TheTelegraphOnline.20fev.2017.Disponívelem:<https://www.telegraph.co.uk/on-demand/0/black-mirrors-charlie-brooker-predicting-donald-trump-love-story/>Acessoem:10abr.2019.
Sua matriz nesta esfera é o abuso da vida enquanto força de criação etransmutação–suaessênciaetambémcondiçãoparasuapersistência,naqualreside seu destino ético. Isto inclui a potência vital em todas as suasmanifestações e não apenas como força de trabalho, como se pensava nomarxismo(Rolnik,2018)
A força de criação como ação política tem sido estrangulada em países como
Brasil e Estados Unidos, a partir de uma série de estratégias de ordens distintas.
outras, baseia-se na ideia de troca igualitária burguesa (com origem nas mundanas
trocas comerciais). A discussão funciona, portanto, porque respeita as bases de um
igualitarismonecessariamenteconstruído:
Os fins só devem ser alcançados através de uma mediação, por assim dizer,através domercado, graças à pequena vantagem que o poder consegue tirarobservandoaregradojogo:concessõesemtrocadeconcessões.Ainteligênciaé superada tão logo o poder deixa de obedecer à regra do jogo e passa àapropriaçãoimediata.Omeiodainteligênciatradicionalburguesa,adiscussão,sedesfaz.Osindivíduosjánãopodemmaisconversaresabemdisso(...)Nãoéfácil falar com um fascista. Quando o outro toma a palavra, ele reageinterrompendo-ocominsolência.Eleéinacessívelàrazãoporquesóaenxerganacapitulaçãodooutro(Adorno;Horkheimer,1985,p.196,grifonosso).
veridizione, de pôr-se em jogo interpretativo e junto àquilo que se diz. As práticas
5Essaperspectivafuncionaemumsentidodiversodoqueestáimplicadonanoçãode“lugardefala”(emque pese a relevância desta noção em atuais disputas no campo social), na medida em que ela nãopressupõeum lugar fixoemquese situariauma identidadepreviamentedada.Emnossaabordagem,osujeito,sempreprovisório,emergedeseusjogosinterpretativos,questionando-seinclusiveacercadoqueenuncia.
De fato, é porque temos uma responsabilidade em relação às palavras queempregamos uma responsabilidade de autor, e não de receptor ou detransmissor comunicante, que a língua é, também ela, coisa política. Toda apercepçãoarendtianada línguaseenraízanadefiniçãoaristotélicadohomemcomo[...]animaldotadodelinguagem,“maispolíticodoqueosoutrosanimais”justamenteporserdotadodelinguagem(Cassin,2013,p.99,nossatradução).
6Inspiramo-nosaquinasargumentaçõesacercado“revisionismo”historiográficodesenvolvidasporPaulVidal-Naquet no livro Les assassins de la mémoire. Vidal-Naquet desmonta a falaciosa pretensão do“revisionismo” (no caso, a negação da existência mesma de campos de concentração e extermínio noTerceiro Reich), cuja tática era a de desqualificar e negar sistematicamente qualquer documento ou
A seguir, a fim de destacar traços particulares da atualidade, ressaltaremos algumas
testemunho.Defato,nãosetratanessecasodeuma“revisão”dahistória,masdesuanegação,quetempor efeito assassinarmais uma vez os que foram exterminados, namedida em que golpeia e destrói amemóriadetaisacontecimentos.(Vidal-Naquet,2012).7Cabeaqui convocarmoso instigante filósofodaviradadoséculoXIXparaoXX:GabrielTarde (2001).Inspiradopelasciênciasdeseutempo,Tardepartedosestudosdemagnetismoehipnoseparadescrever-nos a todos como sonâmbulos em intensoestadode constante sugestibilidade.Tardedirá, ainda, que amovimentaçãodefluxosimitativosdecrençasedesejosnassociedadesdependerádecertosarranjosdeforças(sempreprovisórios)quesedãoemalgunsindivíduos.Porisso,organizaumaespéciedetipologiasocial. Em relação a determinado tema social, haveria assim: osmagnetizadores, homens e mulherescapazesdeconcentrar,porumlado,umaimensaquantidadedecrençasedesejose,poroutro,hábeisemcomunicá-los aos outros por sugestão; os sonâmbulos, ou imitadores, que comportariam aqueles que,sobre certa temática, apresentam compostos de crenças e desejos dispersos, porém potencialmenteadaptáveis; e, finalmente, os loucos ou inventores, indivíduos que reelaboram as correntes imitativas, apartirdocontatocomsuasnuancesdiferenciadoras,abrindocaminhoparaas forçasativasque fazemavida cumprir sua meta de infinita criatividade e potente diferenciação. É importante destacar quemagnetizadores, imitadores e inventores somos todos nós. Convivem em nós todos esses “tipos”, emarranjos de forças que se darão a depender de circunstâncias contingentes que as intensifiquem ouenfraqueçam.Nãosetrata,portanto,de“pessoas”.Cf.SAINTCLAIR,2012.8Performances típicasdeperfisde instagram,blogs, canaisdoyoutube etc, dissimulamseusprotocolosnarrativosficcionaisparasefazerempassarporautênticas.Aesserespeito,verFerraz,2015,“Doespelhomachadiano aos ciberespelhos”, capítulo 8 do livro Ruminações: cultura letrada e dispersãohiperconectada. Ver também Paula Sibilia, “‘Madame Bovary sou eu: A ficção acuada sob a ilusão datransparência,dacorreçãopolíticaedaautenticidade”,trabalhoapresentadonoXXVIIEncontroAnualdaAssociação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós), PUC-MG, BeloHorizonte, em junho de 2018. Disponível em:<http://www.compos.org.br/data/arquivos_2018/trabalhos_arquivo_RJW1AE358H634D8MGQR6_27_6348_26_02_2018_08_27_53.pdf>Acessoem:04jun2019.
portanto ter surgido na Antiguidade uma ética do idiota, uma vez que aética estava
imediatamente ligada à política, enquanto o que definia o idiota era exatamente sua
9UmaboasíntesedessatradiçãoseencontranodossiêdedicadoaessetemanoCadernoIV/2,publicadonoverãode2010,darevistaalemãZeitschrift für Ideengeschichte,editadaporBreckman,KlennerevonRahden.
corroborar o acerto e sucesso dessa campanha de marketing - caso esse lema não10Veja-seotítulodeseulivromonumentalsobreFlaubert:L’Idiotdelafamille,Oidiotadafamília.11NoterceirocapítulodolivroRuminações,MariaCristinaFerrazanalisaesselivrodeMelville(FERRAZ,2015,p.47-59).
poeta israelense Yehuda Amichai,mencionado por Oz: “Onde temos razão, flores não
podemcrescer”.
Referênciasbibliográficas
ADORNO,T;HORKHEIMER,M.Dialéticadoesclarecimento:fragmentosfilosóficos.RiodeJaneiro:Zahar,1985.AGAMBEN,Giorgio.“Emquecremos?Redescubramosaética”.In:LaRepubblica.Roma,2011.Disponívelem:http://www.ihu.unisinos.br/noticias/42848-em-que-cremos-redescubramos-a-etica-entrevista-com-giorgio-agambenAcessoem:11abr.2019.CASSIN,Barbara.Lanostalgie.Paris:Fayard,2013.CRARY,Jonathan.24/7:capitalismoeosfinsdosono.1ªed.SãoPaulo:CosacNaify,2014.DEBORD,G.Sociedadedoespetáculo.RiodeJaneiro:Contraponto,2000.DELEUZE,G.Conversações.SãoPaulo:Editora34,1992.FERRAZ,MariaCristinaFranco.Nietzsche,obufãodosdeuses.SãoPaulo:N-1,2017.______. Ruminações: cultura letrada e dispersão hiperconectada. Rio de Janeiro:Garamond/Faperj,2015.OZ,Amós.Comocurarumfanático:IsraelePalestina:entreocertoeocerto.1ªed.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2016.
ROLNIK, Suely. “O novo tipo de golpe de estado: um seriado em três temporadas”.ElPaís.12maio2018.Disponívelem:https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/12/actualidad/1526080535_988288.htmlAcessoem:06abril2019SAINTCLAIR,Ericson.GabrielTardeeacomunicação:porumcontágiodadiferença.RiodeJaneiro:Multifoco,2012.TARDE,Gabriel.Lesloisdel´imitation.Paris:ÉditionsduSeuil,2001.VIDAL-NAQUET.Lesassassinsdelamémoire.Paris:ÉditionsduSeuil,2012.