0 fim da arte
A incapacidade da critica em reconhecer o valor da pin-tura
impressionista, quando esta surgiu, gerou nos criticos futu-res urn
complexo de culpa e uma intimi~a~ao tal que, hoje, tudo o que se
anuncia como novidade a critica se sente obriga-da a aprovar. Essa
observa~ao foi feita por John Canaday, ha muitos anos, quando
exercia a critica de arte do New York Times. E ele acrescentou
entao: se hoje urn pintor espremer uma bisna-ga de tinta no nariz
do critico, ele sera capaz de ver nisso uma manifesta~ao de alta
criatividade ...
0 sarcasmo de Canaday reflete a perda de referencia a que ja
haviam chegado, nos anos sessenta, criticos e artistas, nao apenas
nos Estados Unidos, mas no mundo inteiro. A insti-tui~ao da
novidade como valor fundamental da arte tornou-se uma especie de
terrorismo que inibe o juizo critico e garante a vigencia impune de
qualquer ideia idiota. Como nas organi-za~oes poli ticas radicais,
on de o exercicio da sensatez pode ser tornado como indicia de
covardia ou trai~ao, assim nos campos da "vanguard a" levan tar
duvidas sobre qualquer su posta inova-~ao ja era naquela -epoca
atitude suicida: quem a isso se atrevesse era imediatamente taxado
de retrograde, como hoje e taxado de "careta". Com isso criou-se
uma especie de conivencia for~ada (ou nao) entre artistas e
criticos, que terminaram - devido preci-samente ao esoterismo de
seu universe estetico - por constitui-rem uma especie de seita.
Como esse prestigio da novidade e consubstancial a nossa
civiliza~ao cons.umista, ela, mesmo sem entender e tambem por
oportunismo, avaliza as extravagancias
15
esteticas abrindo-lhe as portas das institui~oes oficiais e
comer-
oats. Naturalmente, esse fenomeno tern causas profundas, que
vern desde a ruptura da arte com o processo de representa~ao,
ate as imposi~oes do mercado de arte, que exige sempre nevi-clades
para manter ou ampliar suas vendas. Dai o rapido exito e declinio
das "modas" que nao refletem uma aquiescencia dos ar-tistas ao
gosto do publico, mas uma necessidade de estimula-lo e provoci-lo,
conforme observa Giulio Carlo Argan. A critica, co-mo ja vimos, nao
escapa a esse processo de adequa~ao da arte as exigencias do
consume, e da sua colabora~ao, precipitando a ob-solescencia das
mesmas obras cujo exito anunciara pouco antes. Assim, a condi~ao de
mercadoria a que a obra de arte se sub-mete, desde a instaura~ao do
regime capitalista, atinge-lhe a prO-pria essenciar tornartdo-a
apenas uma mercadoria como as outras. 0 artista, por sua vez, ou
entra na desabalada carreira da obsolescencia das modas ou nao se
submete e corre o risco de ser ignorado pela critica, pelas
institui~ees oficiais e pelo nierca-do.
Esse fenomeno da obsolescencia provocada no campo da arte estava
latente nas teses defendidas por algumas vanguardas do come~o do
seculo que, entusiasmadas com o progresso in-dustrial, afirmavam
que a obra de arte nao mais devia aspirar a
. contempla~ao do espectador. Pelo contrario, deveria renunciar
a ela e igualar-se ao objeto industrial que nao e fruido na
contem-pla~ao, mas no uso, ou seja, no consume. Nao se davam conta,
porem, de que semelhan te proposta con traria a natureza mesma da
obra de arte.
Nao ha duvida de que qualquer objeto, artistico ou nao, pode ser
fonte de prazer estetico e portanto sujeito a contempla-~ao. Nao
obstante, a produ~ao de objetos que se querem "obras de arte"
resulta de uma op~ao espiritual e pratica, diferente da que produz
outros objetos. Se e verdade que o designer, ao conce-ber a forma
de uma nova geladeira, tern, em principia, como o pintor, o mesmo
prop6sito de criar uma coisa bela, as condi~oes efetiyas em que
trabalha, atendendo as imposi~oes do consume
16
de massa e da produ~ao industrial, impregnam sua concep~ao de
caracteristicas que estao - ou devem estar - ausentes do tra-balho
de urn pintor ou de urn escultor. Por exemplo: o designer e levado
a conceber a forma da nova geladeira em fun~ao do in-teresse da
empresa para a qual trabalha, que exige dele urn feitio que esta na
moda. Ora, essas nao sao as determinantes do traba-lho do pintor,
voltado para as exigencias e possibilidades de sua propria
linguagem e de sua fantasia desinteressada.
Tambem e diferente a rela~ao do publico com a obra de arte e com
o objeto industrial. Qlem compra urn quadro com-pra-o como objeto
de contempla~ao e de valor cultural. Mesmo quando a razao principal
da compra e investir, essa razao se ap6ia na possibilidade de
frui~ao estetica do quadro, na sua condi~ao de obra de arte, e nao
de objeto utilitario. Hi, portan-to, uma contradi~ao insanavel
entre a concep~ao da obra de arte como coisa descartavel e a
natureza da experiencia estetica, tan-to do ponte de vista do
criador como do consumidor.
.. Esta e a questao. As tendencias mais radicais da arte de hoje
consideram que a arte nao se afirma como obra, que ela re-pele
qualquer juizo critico e qualquer fun~ao na sociedade, des-cartando
a existencia mesma de "bens culturais". Dentro dessa visao, a arte
e apenas o conceito de arte, que se separa de qual-quer experiencia
da realidade, de qualquer finalidade social ou ideol6gica, de
qualquer no~ao hist6rica da arte, de qualquer teo-ria da arte ou
estetica, conforme observa Argan.
As causas dessa visao niilista podem ser facilmente locali-zadas
na hist6ria da arte moderna que, depois de Cezanne, ope-ra talvez a
mais drastica ruptura ocorrida em seculos de arte. N a base de
tudo, parece estar o desenvolvimento tecnico e cientifi-co e suas
conseqiiencias na vida material e espiritual do homem do seculo XX.
As mudan~as ocorridas a partir do final do seculo XIX, por tao
drasticas, amplas e revolucionarias, espanta-nos ve-rificar como
sao recentes. Essas mudan~as geraram nos intelec-tuais, de urn
lado, a convic~ao de que tudo o que pertencia ao passado estava
morto e, de outro, o entusiasmo pela nova vida que nascia, na qual,
com a ajuda da ciencia e da tecnica, o ho-
17
segue esse caminho, a obra nao tern importartcia senao pela
re-percussao n~ midia. 0 processo de realiza~ao da obra, que deve
ser c~~ulatlvo e aprofundador, e abandonado e substituido pe-l~
attvtdade aleat6ria de coletar detritos ou adquirir no comer-ClO
elementos prontos que serao arranjados de algum modo para
constituir a "obra". Como a cada "obra" o artista muda de meio~ -
hoje sao baldes de plastico, amanha tijolos ou garrafas, depots de
amanha cordas ou peda~os de borracha - seu trabalho se mantem
ocasional e exterior ao material, sem, por isso, orga-nizar-se em
linguagem. A obra, entao, nao resulta da elabora~ao e
aprofundamento da experiencia, mas de saca~oes ("Tive uma boa
ideia!") que visam de fato abrir uma brecha na indiferen~a da
midia.
E inegavel que as condi~oes geradas pela sociedade de massa
criam para os artistas dificuldades e imposi~oes diflceis de
superar. Mas isso nao justifica concessoes que, no fundo, ter-min~m
por destrui-lo, tal como ocorre com os jovens composi-tores de
hoje, que brilham no ceu televisivo por urn mes, dais, e em seguida
desaparecem para sempre. Reconhecemos que a si-tua~ao a que a arte
chegou decorre de fatores hist6ricos e objeti-vos. Foi o proprio
curse seguido pela sociedade e pela arte que gerou OS problemas de
agora. Resta saber se essa evidencia e jus-tificativa suficiente
para que o artista persista em seguir urn ru-mo que destr6i OS seus
pr6prios valores. Pergunto se ja nao e hora de rompermos de vez com
a visao evolucionista que apre-senta o processo artistico como urn
encadeamento de etapas as-cen.dentes, de tal modo que,
contraditoriamente, temos que acettar as contrafa~oes esteticas de
hoje como a culmina~ao do caminho iniciado pelos impressionistas.
Qte de Cezanne nasce, de algum modo, o cubismo, e certo; e que o
cubismo gera (mal-gre luz) o neoplasticismo, tambem e certo. Mas o
que nos garante que o cubismo e urn avan~o com respeito a Cezanne e
o necr plasticismo urn avan~o com respeito ao cubismo? Eu
pessoal-mente estou convencido de que Mondrian radicalizou de tal
modo as propostas cubistas (em fun~ao da filosofia de
Schoen-maekers) que levou a linguagem pict6rica a esterilidade. 0
entu-
20
siasmo pelo novo e a quebra do quadro de referencias anularam o
juizo critico e provocaram o surgimento de centenas de movi-mentos
esteticos num curta espa~o de tempo. Como e mais facil destruir que
construir, no curse das decadas o que as vanguar-das fizeram - com
raras exce~oes - foi desfazer o sistema da lin-guagem artistica,
num processo ilus6rio em que o mais na verdade era menos, e o passe
adiante, urn passe atras. Ate que se chegou finalmente ao
esgotamento da linguagem artistica, ou se-ja: nao havia mais o que
destruir. Agora, sentados sabre esses es-combros, os artistas que
insistem na ilusao vanguardista nao se dao conta de que 0 que, no
passado, era audacia, hoje e oportu-nismo; o que antes era ruptura,
hoje e conformismo. A grande revolu~ao de agora e redescobrir -
como alias ja o fizeram mui-tos artistas dentro e fora do Brasil -
que a arte nao e uma dadi-va dos deuses mas uma inven~ao
maravilhosa do homem e que sua destrui~ao s6 nos empobrece a
todos.
21
fimdaarte001fimdaarte002fimdaarte003fimdaarte004