Top Banner
O menino é o pai do homem (Machado de Assis, In: Memórias Póstumas de Braz Cubas, 1881). Somos professores de Educação Infantil... somos aqueles que, educando meninos e meninas, formamos homens e mulheres. Que homens e mulheres temos por objetivo formar? Em nossos discursos, insistimos em ressaltar a formação de cidadãos críticos, conscientes e participativos como nossa principal tarefa. Será que já nos demos conta do que é realmente necessário para o desenvolvimento dessas características em cada criança? Será que estamos conscientes de que, no dia-a-dia educativo, propiciamos vivências potencializadoras do desenvolvimento da consciência, mas que, por outro lado e muitas vezes, as experiências propostas no espaço das creches e pré-escolas contradizem e se opõem ao desenvolvimento pleno da cidadania das crianças? Se, machadianamente, “o menino é o pai do homem”, que experiências são necessárias, em cada momento do desenvolvimento infantil, para que homens e mulheres se tornem conscientes das próprias possibilidades? Que conhecimentos devem ser constituídos para que compreendam e atuem sobre o mundo e as relações entre as pessoas a partir de objetivos humanizadores? Que práticas podem possibilitar que se saibam pessoas singulares e, concomitantemente, parte de uma universalidade capaz de superar a homogeneização das mentes e dos corações em função da construção de relações em que as diferenças não estejam no campo dos direitos, mas nas inúmeras possibilidades de expressão do ser gente? Sim, “o menino é o pai do homem”. A forma como o educamos vai se refletir em seus modos de compreender o mundo, as pessoas, a si mesmo. O modo como o acolhemos vai dar forma ao autoconceito, vai influenciar a formação da sua identidade. As vivências que lhe proporcionarmos podem enriquecer o desenvolvimento de sua inteligência, de sua personalidade, de suas formas de expressão das vontades, das opiniões, das impressões... Portanto, se queremos homens e mulheres plenamente humanizados é preciso refletir sobre as oportunidades de humanização proporcionadas desde os primeiros anos de vida. Se queremos pessoas capazes de construir novos capítulos da História, preenchendo o livro da vida com novas e intensas cores, movimentos, emoções, gestos e palavras, é preciso que lhes sejam proporcionadas oportunidades de ler o mundo por meio de novas lentes: não aquelas exigidas pelo mercado, que se limitam à formação de capacidades diretamente aproveitáveis para a produção e o consumo; mas outras, através das quais seja possível formar todos os sentidos para a apreciação e para a produção de novos sons, formas, músicas, histórias, poemas, imagens, objetos, relações. Precisamos formar, desde cedo, para as diversas possibilidades humanas de expressão, para todas as linguagens que a criança tem a seu dispor, mas que, por Michelle de Freitas Bissoli O Espaço Lúdico na Educação Infantil ? ? ?
14

O espaço lúdico na Educação Infantil

Feb 02, 2023

Download

Documents

PATRICIA Melo
Welcome message from author
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
Page 1: O espaço lúdico na Educação Infantil

O menino é o pai do homem (Machado de Assis, In: MemóriasPóstumas de Braz Cubas, 1881).

Somos professores de Educação Infantil... somos aqueles que,educando meninos e meninas, formamos homens e mulheres. Quehomens e mulheres temos por objetivo formar? Em nossos discursos,insistimos em ressaltar a formação de cidadãos críticos, conscientes eparticipativos como nossa principal tarefa. Será que já nos demosconta do que é realmente necessário para o desenvolvimento dessascaracterísticas em cada criança? Será que estamos conscientes de que,no dia-a-dia educativo, propiciamos vivências potencializadoras dodesenvolvimento da consciência, mas que, por outro lado e muitasvezes, as experiências propostas no espaço das creches e pré-escolascontradizem e se opõem ao desenvolvimento pleno da cidadania dascrianças? Se, machadianamente, “o menino é o pai do homem”, queexperiências são necessárias, em cada momento do desenvolvimentoinfantil, para que homens e mulheres se tornem conscientes daspróprias possibilidades? Que conhecimentos devem ser constituídospara que compreendam e atuem sobre o mundo e as relações entre aspessoas a partir de objetivos humanizadores? Que práticas podempossibilitar que se saibam pessoas singulares e, concomitantemente,parte de uma universalidade capaz de superar a homogeneização dasmentes e dos corações em função da construção de relações em que asdiferenças não estejam no campo dos direitos, mas nas inúmeraspossibilidades de expressão do ser gente?

Sim, “o menino é o pai do homem”. A forma como oeducamos vai se refletir em seus modos de compreender o mundo, aspessoas, a si mesmo. O modo como o acolhemos vai dar forma aoautoconceito, vai influenciar a formação da sua identidade. Asvivências que lhe proporcionarmos podem enriquecer odesenvolvimento de sua inteligência, de sua personalidade, de suasformas de expressão das vontades, das opiniões, das impressões...Portanto, se queremos homens e mulheres plenamente humanizadosé preciso refletir sobre as oportunidades de humanizaçãoproporcionadas desde os primeiros anos de vida. Se queremospessoas capazes de construir novos capítulos da História,preenchendo o livro da vida com novas e intensas cores, movimentos,emoções, gestos e palavras, é preciso que lhes sejam proporcionadasoportunidades de ler o mundo por meio de novas lentes: não aquelasexigidas pelo mercado, que se limitam à formação de capacidadesdiretamente aproveitáveis para a produção e o consumo; mas outras,através das quais seja possível formar todos os sentidos para aapreciação e para a produção de novos sons, formas, músicas,histórias, poemas, imagens, objetos, relações. Precisamos formar,desde cedo, para as diversas possibilidades humanas de expressão,para todas as linguagens que a criança tem a seu dispor, mas que, por

Michelle de Freitas Bissoli

O Espaço Lúdico naEducação Infantil

?

?

?

Page 2: O espaço lúdico na Educação Infantil

Coleção Cefort v. 4

tanto tempo, têm sido silenciadas, dando espaço àfrenética corrida pela inteligência, divorciada detodas as demais e igualmente importantescapacidades humanas.

– –

A Educação Infantil tem sido, ao longo dosanos, responsabilizada pelo preparo das criançaspara o Ensino Fundamental. Temos buscado,sobretudo, a formação das capacidades de leitura eescrita. Relutamos em aceitar que esse momento tempeculiaridades que precisam ser consideradas paraque a criança, em vez de estar no espaço educativo àespera dos anos iniciais da escolarização, possa viverplenamente a sua primeira infância, desenvolvendoas suas “cem linguagens”, como nos aponta LorisMalaguzzi (apud EDWARDS et al. 1999).Precisamos superar a imagem pobre que temos dacriança, como a de alguém que, em comparação como adulto, é caracterizada, antes, por aquilo que lhefalta... Pelo contrário, quando acreditamos, comMalaguzzi (DAHLBERG et al., 2003) em umacriança rica, forte, competente, poderosa, tornamo-nos, também, professores ricos, capazes, fortes osuficiente para prover as condições de vida e deeducação necessárias à humanização dessas crianças.Uma educação que seja a vida e não apenas umpreparo para ela.

Homens e mulheres são muito mais quecérebros. São, também, movimento e afetividade,desenho e música, gesto e dança, pintura emodelagem, escultura e construção, canto, ciência,moral, filosofia, arte, usos, oralidade, costumes,política, escrita, leitura, ludicidade... Restaquestionar: Se somos tantos e tão ricos empotencialidades, por que temos limitado nossasoportunidades ao ler e escrever? E mais: por quenem mesmo somos capazes de utilizar ascapacidades de leitura e escrita em sua plenitude,sabendo expressar-nos e comunicarmo-nosefetivamente por meio delas? Por que insistirmosnesse caminho?

Se nascemos com tamanhas possibilidades, oque tem feito com que homens e mulheres não seexpressem livremente, sequer conheçam asinúmeras formas de linguagem, não encontremprazer no belo? Goethe nos faz lembrar daimportância de novas oportunidades para ahumanização que tanto buscamos, em discurso, masque se mantêm, ainda, distante de nossas práticas:

Reflitamos: Que espaços temos reservado,diariamente, em nossas práticas, para que as criançaspequenas e bem pequenas possam desenvolver a

? Que momentos têm sidoorganizados para as diferentes linguagens, para obelo, para a humanização dos pequenos? Em quemomentos as crianças têm brincado, têm sidosujeitos de interações ricas e desenvolventes? Comoestão organizados os espaços da instituição: temoslugar para multiplicidade de experiências (com terra,com água, com tinta, colagem, argila, sucata,brinquedos e objetos diversos, histórias, cantos,com práticas culturais, que digam respeito àcomunidade de onde provêm as crianças, e com oenriquecimento dessas referências culturais) ounossos espaços têm estado limitados à organizaçãotradicional em salas de aula? Por quê? Para quê?

Temos encontrado muitos professores paraquem o brincar não representa oportunidade dedesenvolvimento. Temos nos deparado com asexigências de pais e da sociedade, que esperam daEducação Infantil, nada mais nada menos, que aalfabetização das crianças. E, diante de tal situação,grande parte dos professores cede às pressõesexternas, dedicando a maior parcela de seu trabalhoao ensino das letras e sílabas. Será que nós,professores, estamos realmente convencidos de queo espaço lúdico tem importância fundamental para aformação das crianças? Ou engrossamos a filadaqueles que entendem o lúdico como perda detempo, como algo para o qual não é preciso reservarespaço na Educação Infantil? Será que nãoestaríamos entendendo que diminuir o espaçolúdico pudesse ser uma forma de superar a idéiabastante difundida de que a creche e a pré-escola sãoapenas espaços para a guarda das crianças que, semmais o que fazer, apenas brincam? Será que nãoestaríamos pensando que nosso trabalho apenaspudesse ser valorizado se as crianças deixassem de

faculdade de sentir

13

O E sp a ço Lúd i co n a E d uca çã o I n f a n t i l

Tão propenso anda o homem a dedicar ao que há demais vulgar, com tanta facilidade se lhe embotam oespírito e os sentidos para as impressões do belo edo perfeito, que por todos os meios deveríamosconservar em nós essa faculdade de sentir. Pois nãohá quem possa passar completamente sem umprazer como esse, e só a falta de costume dedesfrutar algo de bom é a causa de muitos homensencontrarem prazer no frívolo e no insulto,contanto que seja novo. Deveríamos diariamenteouvir ao menos uma pequena canção, ler um belopoema, admirar um quadro magnífico, e, se possível,pronunciar algumas palavras sensatas. (apudANTUNES, 2002, p. 43-44).

FUN DA ME N TO S DA E D UC A Ç Ã O I NFA NTI L

Page 3: O espaço lúdico na Educação Infantil

lado as atividades pouco úteis e se tornassem, naEducação Infantil, leitores e escritores de textosescolares? Por que o ler e escrever estariam tomandoo lugar de tantas outras linguagens, possíveis deserem desenvolvidas a partir do lúdico?

Revisitar nossas concepções é uminstrumento essencial para a tomada de consciênciaa respeito dos significados da Educação Infantil.Aquilo que pensamos, muitas vezes, ficaobscurecido pela reprodução de discursos que nãocorrespondem às práticas... Sem nos aperceber,f a l amos sobre uma Educação Infant i ldesenvolvente, mas, influenciados por concepçõesnão questionadas, fazemos, na prática, o justooposto do que pregam nossas falas. Muitas vezes,repetimos práticas já consideradas tradicionais naEducação Infantil, sem tomar consciência de suareal função no desenvolvimento das crianças. Edeixamos, assim, de contribuir para a formação deseres humanos plenos de possibilidades dehumanização.

Já sabemos que brincar é importante.Entretanto, por não estarmos plenamente

convencidos de como o brincar pode contribuir paraa formação da criança, deixamo-nos levar pelasidéias do senso comum, que consideram aludicidade como algo natural e que deve, ao longodos anos, ser substituído pela seriedade das tarefasdirigidas à apropriação dos conteúdos escolares. Poressa mesma razão, deixamos de dedicar tempo àsartes visuais, à dança, à música, ao movimento.Afinal, de acordo com o senso comum, essas sãocapacidades que apenas algumas pessoasdesenvolvem: aquelas que nasceram com um domespecial. Para os demais, devemos ensinar aquilo querealmente importa: as capacidades exigidas pelomercado de trabalho. Nessa visão, é importantecomeçar desde cedo a preparar para os examesvestibulares, para a concorrência, para a vida... Seráesse mesmo o nosso papel? Ou somos, pelocontrário, aqueles que têm a possibilidade depreparar espaços, tempos, formas de agrupamentodas crianças, atividades, com o objetivo maior depromover oportunidades de desenvolvimento dasmais diversas linguagens humanas? Está em nossasmãos a escolha de um desses caminhos...

Mi ch e l l e d e Fr e i t a s B i s so l i

14Coleção Cefort v. 4

FUN DA ME N TO S DA E D UC A Ç Ã O I NFA NTI L

Page 4: O espaço lúdico na Educação Infantil

Sabemos que o brincar é uma atividade quenão acontece apenas entre os seres humanos. Osanimais também brincam. Mas, diferentemente detodas as demais espécies, o brincar humano tem umcaráter histórico-cultural. Ou seja: as criançasbrincam de maneiras bastante diversas, de acordocom as experiências propiciadas desde o seunascimento, pelo ambiente sociocultural. Pensemosnas crianças indígenas, por exemplo: suasbrincadeiras e as brincadeiras das crianças não-indígenas são as mesmas? Sabemos que não. Acriança indígena brinca com objetos de sua cultura e,

em seu brincar, reproduz atividades sociais própriasde seu povo, como caçar, pescar, produzir cestos...As relações observadas no mundo adulto são o temade sua atividade lúdica. Também as crenças, ashistórias contadas, a forma de lidar com os objetos ede movimentar o próprio corpo, o modo de serelacionar com a natureza, com os animais, com osobjetos, ao serem observados pela criança, vãosendo reproduzidos durante as suas experiênciaslúdicas. Neste sentido, em cada sociedade, ascrianças brincam de reproduzir as atividades sociais,ali observadas.

O E sp a ço Lúd i co n a E d uca çã o I n f a n t i l

Compreendendo o lúdico: por que a criança brinca?

Para saber mais...

A palavra lúdico vem do Latim ludus e significa jogo, brinquedo, recreação. Segundo o, significa aquilo “que se faz por gosto, sem outro objetivo que o

próprio prazer de fazê-lo”. Podemos dizer que uma atividade é lúdica, portanto, quando seu objetivo estáno próprio processo. Algumas características são peculiares às atividades lúdicas (KISHIMOTO, 2003):

o caráter voluntário: a criança brinca movida pelo desejo de brincar. Sabemos, por exemplo, que éimpossível brincar quando não estamos motivados para isso;

o envolvimento emocional: sempre que brinca, a criança ou o adulto vivenciam emoções boas ou más.Quando vencemos um jogo, somos tomados por emoções positivas, o que não acontece quando somosderrotados. Por isso, nem sempre o brincar é sinônimo de prazer. Há, também, momentos em que asemoções são negativas;

as regras implícitas ou explícitas: toda atividade lúdica possui regras, ainda que não estejam evidentes.Há regras em jogos como o de xadrez, que estão explícitas. Nos jogos de faz-de-conta, apesar de nãoevidentes, as regras também existem: para ser mamãe, motorista, médico, professor, o menino ou amenina fazem das características sociais desses papéis a regra que determina as suas ações. Quandoimitam uma determinada função social, há ações permitidas e proibidas em cada papel...;

o caráter improdutivo: a relevância do brincar está no processo. Não existe nenhuma utilidade naatividade lúdica, a não ser o envolvimento com os objetos ou com os demais integrantes da interação;

a incerteza de resultados: ao brincar, tanto em jogos com regras explícitas quanto no faz-de-conta, nãosabemos qual será o desfecho da atividade. No caso dos jogos com regras, quem vencerá? No caso do faz-de-conta, sabemos o que as interações possibilitarão? Como a brincadeira vai terminar? Dará origem aoutras situações lúdicas, com papéis diferentes ou não?;

a não literalidade: ao brincar, separamo-nos da realidade e experimentamos uma representação. Aindaque a criança tenha consciência de que está no quintal de sua casa e não no palácio onde dorme a BelaAdormecida, quando brinca, representa estar em uma nova realidade. Utiliza objetos substitutivos, comouma régua, para representar uma vara de condão. Nesse sentido, o jogo possui caráter simbólico;

a imaginação: considerando o caráter simbólico do jogo, é possível compreender que a imaginaçãoatua produzindo as situações fictícias que permitem o brincar. A criança cria, imaginariamente, novassituações e realiza suas ações simbólicas a partir de elementos reais;

a contextualização no tempo e no espaço: o jogo é histórica e socialmente regulado. Brinca-se, emcada tempo e espaço históricos, com objetos, ações e temas diferentes, relacionados à realidade emque vivem aqueles que brincam.

DicionárioHouaiss da Língua Portuguesa (2001)

1

2.

3.

4.

5.

7.

8.

.

6.

Coleção Cefort v. 415

FUN DA ME N TO S DA E D UC A Ç Ã O I NFA NTI L

Page 5: O espaço lúdico na Educação Infantil

Mi ch e l l e d e Fre i t a s B i s so l i

Para refletir...

Ao brincar, a criança se apropria das formas sociais de uso dosobjetos, das palavras e expressões, dos costumes, dos valores da vidagrupal. Assim, podemos dizer que o brincar é uma forma privilegiadade inserção na cultura. Brincando, a criança desenvolve a sua memóriavoluntária, a sua atenção. Enriquece a sua percepção, a sua linguagem.Estabelece relações que sofisticam o seu pensamento. Aprende arepresentar simbolicamente as ações do mundo adulto e torna-secapaz de, por meio da imaginação, projetar novas ações. Além disso, obrincar contribui para a formação de sua identidade pessoal e grupal eda consciência das próprias possibilidades. Em cada cultura, o brincarauxilia a formação de capacidades humanas importantes para asvivências sociais do grupo.

Criança Yanomami montando seu arcoFonte: www.terrabrasileira.net/folclore/manifesto/jogos-in.htm

objetos que possuem, na situação da brincadeira,um sentido lúdico (KISHIMOTO, 2003).

é a conduta estruturada dequem brinca, obedecendo a regras simples,explícitas ou implícitas. Assim, por exemplo, oesconde-esconde é uma brincadeira tradicional(como a amarelinha, o pega-pega, o jogo combolas de gude, com peteca, corda), que exige ocumprimento de certas regras explícitas e açõesdeterminadas daqueles que estão brincando.Também podemos falar em brincadeiras de faz-de-conta, conhecidas na Teoria Histórico-Cultural como jogos de papéis. Essas brincadeiraspossuem regras implícitas, determinadas pelopapel social representado pela criança, ao brincar(médico(a), cabeleireiro(a), professor(a), mamãe,papai, por exemplo). É importante salientar que abrincadeira é produto de um processo de relaçõesque se estabelecem entre a criança e o brinquedo, acriança e outras crianças e entre crianças e adultos.

possui a mesma natureza que abrincadeira, por estar pautado em regras. Mas nosjogos, as regras são sempre explícitas e as açõeslúdicas são determinadas pelos próprios materiaisou objetos que condicionam o brincar: ostabuleiros de damas, de xadrez, de trilhas, porexemplo.

BRINCADEIRA:

JOGO:

Para saber mais...

Quais as diferenças entre jogo, brinquedoe brincadeira? É importante saber que não háum consenso quanto a essas definições, quevariam conforme a teoria do jogo adotada. Paranós, neste trabalho, os significados são:

é o suporte da brincadeira.Qualquer objeto com o qual se brinque, sendoele produzido para brincar (como as bonecas, asbolas, as bicicletas, por exemplo) ou um objetoque esteja representando outro (uma vareta querepresenta um termômetro, um prato querepresenta o volante de um caminhão) sãoconsiderados brinquedos... são, portanto,

BRINQUEDO:

Meninos Tukano brincam no io Balaio – São Gabriel da Cachoeira AMr /Fonte: www.terrabrasileira.net/folclore/manifesto/jogos-in.htm

16Coleção Cefort v. 4

FUN DA ME N TO S DA E D UC A Ç Ã O I NFA NTI L

Page 6: O espaço lúdico na Educação Infantil

Com os animais, pelo contrário, isso nãoacontece. Os cachorrinhos brincam sempre damesma forma, dando mordiscadas, correndo, seesfregando uns nos outros ou nas paredes e no chão.Isso pode ser explicado porque as espécies animais,com exceção do homem, têm todo o seucomportamento determinado biologicamente,pelos instintos.

As crianças, entretanto, não têm seucomportamento determinado por instintos, maspelos hábitos e costumes do meio em que vivem apartir dos primeiros momentos depois do seunascimento. Sabemos que os bebês, que sãoembalados no colo para dormir, choram quando sãocolocados no berço. Não se trata, portanto, de uminstinto, mas de um costume... nem todas as criançasreagem da mesma maneira.

Podemos perceber que o mesmo acontececom todos os demais hábitos, como os alimentares,a hora do sono, o ter ou não um cobertor paraagarrar enquanto dorme, a hora do banho... e com obrincar.

Desde bebês, as crianças se acostumam abrincar porque os adultos brincam com elas.Brincam com seu corpo, fazendo com que batampalmas, acenem, façam caretas, façam bico...Inserem alguns objetos na brincadeira, como oschocalhos, os móbiles, os objetos para morder, asbolas, os bichinhos de borracha. Os adultosdemonstram para as crianças como manipular cadabrinquedo, como obter os efeitos de produção desons, como sentir sua textura, como lançá-los, comoescondê-los e encontrá-los... Pouco a pouco, o bebêpassa da condição de “objeto” do brincar do adultoe passa à condição de parceiro. Começa a construir asua . Mas o que isso significa?cultura lúdica

O E sp a ço Lúd i co n a E d uca çã o I n f a n t i l

A cultura lúdica

.

é formada por um conjunto de saberes sobre o brincar. Ela permite que uma brincadeirase inicie, considerando que o brincar produz uma realidade diferente da vida cotidiana. Na brincadeira,algumas palavras, gestos, sons e expressões são características, como, por exemplo, a fala teatral, em que ascrianças utilizam o verbo no imperfeito “Agora eu era a mamãe e fazia a comidinha pra você...”

Os brinquedos de cada época, assim como os programas de televisão, os filmes, os livros, as músicas,influenciam a cultura lúdica, tornando-se temas de brincadeiras. A criança, portanto, atribui novossentidos ao universo cultural em que vive quando brinca... Ela os vivencia de maneira ativa, não apenascomo espectadora, criando novas interpretações, novas leituras.Ampliar a cultura lúdica da criança é contribuir para a ampliação das formas de socialização infantil, daexperiência do processo cultural e da interação simbólica, mobilizando pensamento, linguagem,imaginação, percepção, memória, atenção, movimento. É intervir sobre o processo de desenvolvimentodas mais diversas capacidades humanas.

Segundo os estudos sócio-antropológicos doteórico francês Gilles Brougère (2002), a culturalúdica é a constituição de saberes sobre o brincar.Ela permite que as crianças distingam quando estãoinseridas em uma brincadeira ou em uma situaçãoreal. A cultura lúdica é formada por um conjunto decomportamentos próprios do brincar: a criançaaprende, brincando, que sons são emitidos, quepalavras são usadas, que gestos e expressões sãopróprios desse momento. E, como um conjuntovivo e diversificado, que se consolida a partir dasrelações sociais estabelecidas entre a criança e ooutro (um adulto ou outra criança), a cultura lúdicase complexifica à medida que as relações sociais sediversificam e se sofisticam.

Desse modo, não se trata apenas de umproduto do desenvolvimento de cada criança. Acultura lúdica resulta das interações sociais quepossibilitam aprendizagens e desenvolvimento,como aponta a Teoria Histórico-Cultural deVygotsky. Ela é constituída pelas experiênciaslúdicas de cada criança, que se iniciam com asprimeiras interações entre a mãe e o bebê. Desdemuito cedo, portanto, a criança brinca e constituisaberes sobre o brincar. Mas por que a formação dacultura lúdica se faz tão importante? Por que oaprender a brincar merece a nossa atenção?

Para entendermos isso, uma primeira questãodeve ser objeto de nossas reflexões: Afinal, o quemotiva a brincadeira infantil? Se sabemos que obrincar é aprendido e que, portanto, não decorre deum amadurecimento biológico autônomo dos sereshumanos, por que a criança brinca?

Desde pequenininha, a criança tem umaimensa necessidade de estabelecer uma relação

Coleção Cefort v. 417

FUN DA ME N TO S DA E D UC A Ç Ã O I NFA NTI L

Page 7: O espaço lúdico na Educação Infantil

os fatos, de dizer o que sente, de relacionar osobjetos, classificando-os, de perceber o mundo aoseu redor de maneira compreensiva, e não como umconjunto desarticulado de objetos, permitem que acriança comece a notar que é alguém diferente dasoutras pessoas. Que, além de sujeito das ações sobreos objetos (que já pode segurar a colher quandocome, que tem força para lançar longe o seucarrinho, que é capaz de correr, pular, empurrar), étambém sujeito das relações com as pessoas. É nessemomento que a criança dá mostras dodesenvolvimento da auto-consciência. Ela começa asaber que é alguém diferente dos demais. Um sinalde que isso acontece é o uso do pronome “eu” ao sereferir a si mesma.

os fatos, de dizer o que sente, de relacionar osobjetos, classificando-os, de perceber o mundo aoseu redor de maneira compreensiva, e não como umconjunto desarticulado de objetos, permitem que acriança comece a notar que é alguém diferente dasoutras pessoas. Que, além de sujeito das ações sobreos objetos (que já pode segurar a colher quandocome, que tem força para lançar longe o seucarrinho, que é capaz de correr, pular, empurrar), étambém sujeito das relações com as pessoas. É nessemomento que a criança dá mostras dodesenvolvimento da auto-consciência. Ela começa asaber que é alguém diferente dos demais. Um sinalde que isso acontece é o uso do pronome “eu” ao sereferir a si mesma.

afetiva e comunicativa com o adulto. Essanecessidade, é bom lembrar, é criada pelo próprioadulto, quando conversa e acolhe o bebê, ainda queeste não tenha possibilidade de compreender o queas pessoas lhe falam. Até o primeiro ano de vida, aforma pela qual a criança mais aprende e sedesenvolve está relacionada a essa comunicaçãoafetiva com os pais ou com aqueles que cuidam dela.

Conversamos com o bebê enquantotrocamos sua fralda ou o alimentamos. Aochegarmos com nosso rosto bem perto dele,percebemos que a sua boca se movimenta com aintenção de imitar os movimentos da nossa. O bebêsolta gritinhos de alegria e mexe todo o seu corpoquando nos aproximamos. Isso demonstra quantoas emoções são fortes nesse momento em que éimpossível, para ele, ter o controle do próprio corpo.Brincamos com os pezinhos e mãos, fazemoscócegas na barriga, emitimos sons e o bebê, além denos observar, tenta interagir conosco. O adulto é ocentro de suas atenções e de suas emoções.

Ao percebermos que o bebê já fica maistempo acordado e pode enxergar e segurar osobjetos, o que fazemos? Vamos enchendo sua vidade novas impressões: visuais, táteis, auditivas ecinestésicas. Colocamos a criança em contato comsuperfícies coloridas, com objetos que semovimentam, com mordedores, chocalhos... Ecriamos, assim, outra necessidade: a de que nostornemos parceiros do bebê na atividade demanipulação de objetos. Ele nos observa e exploraconosco, e a partir de nossas ações, as diferentessensações que os objetos lhe causam. Morde, lançaao chão, aperta, busca conhecer as propriedadesfísicas de cada coisa que lhe chega às mãos e, nesseprocesso, aprende a brincar: de esconder eencontrar, de movimentar, de jogar para que alguémbusque... aprende a nos imitar, tentando realizar asnossas ações com os objetos de que dispõe.

Podemos dizer que o adulto continua sendo,depois do primeiro ano de vida, o grande motivadordas atividades da criança, mas, agora, como alguémque possibilita a exploração do mundo que a cerca. Éimportante lembrar que essa atividade exploratóriapermite que a criança perceba o seu corpo, as suaspossibilidades. E permite que comece a entenderque ela é sujeito das suas ações...

Perceber o próprio corpo e as ações sobre osobjetos, com a ajuda ou o modelo do adulto,contribui para que a criança, por volta dos três anos,comece a perceber o mundo, as pessoas e a si mesmade maneira completamente diferente. A linguagem,já bastante desenvolvida, a possibilidade de recordar

Mi ch e l l e d e Fre i t a s B i s so l i

Para refletir...

Do que nossas crianças têm brincado nascreches e pré-escolas? O que suas brincadeirasrevelam de seu ambiente sociocultural? Comotemos propiciado a ampliação e oenriquecimento de sua cultura lúdica?

A criança pequenininha não compreende que éalguém diferente dos demais. Para ela, seu corpo é

uma extensão do corpo do adulto e vice-versa. Suasvontades são automaticamente conhecidas por ele.Por volta dos três anos, passa a ter consciência de sie a referir-se a si mesma como “eu”. Assim, quandoperguntamos a ela de quem é a boneca que segura,ela é capaz de responder “É minha!” e não “É do

nenê!”, por exemplo. Quando reconhece suaimagem no espelho ou em uma fotografia, é capaz

de dizer “Sou eu!”.

18Coleção Cefort v. 4

FUN DA ME N TO S DA E D UC A Ç Ã O I NFA NTI L

Page 8: O espaço lúdico na Educação Infantil

Todo esse desenvolvimento que acontece atéos três anos de idade é fundamental para acomplexificação das formas de compreensão domundo, das pessoas e de si mesma pela criança. Énesse momento que se formam as bases da memóriae da atenção voluntária (a criança busca recordar-sedos nomes das coisas, dos fatos, das brincadeiras etende a concentrar cada vez mais a sua atençãonaquilo que faz, sem que nenhuma mudança ao seuredor seja tão envolvente a ponto de que deixe delado, freqüentemente, uma atividade para dedicar-sea outra). Além disso, o pensamento infantil passapor uma intensa sofisticação. Se, quando bebê, épossível pensar por intermédio das ações,estabelecendo relações entre os objetosmanipuláveis, com o passar do tempo e odesenvolvimento da memória, o pensamento passaa ser visual por imagens, ou seja, a criança torna-secapaz de estabelecer relações entre as imagensmentais dos objetos, mesmo na sua ausência. Assim,se antes o pensar era agir sobre, manipular eexplorar, nesse momento, pensar é recordar. Com oamplo desenvolvimento da linguagem, a criança detrês anos passa por uma nova etapa dedesenvolvimento do pensamento, que se torna,progressivamente, verbal. A partir de então, cada vezmais, a criança recorda pensando, estabelecendorelações, elaborando hipóteses, generalizações. Emais uma transformação essencial, que ocorre porvolta dos três anos, pode nos ajudar a compreendermelhor o brincar nesse período e suas principaiscaracterísticas. Vejamos.

Saber-se alguém diferente das outras pessoasé um passo essencial no desenvolvimento infantil. Acriança de três anos passa, progressivamente, aperceber que suas vontades se diferenciam dasvontades do adulto. Assim, se antes a principalmotivação dos pequenos era atender às expectativasadultas a seu respeito, agora, suas vontades sediferenciam e entram em conflito com as vontadesdas demais pessoas. Esse momento de contradição éessencial para o desenvolvimento da personalidadeda criança e um dos elementos motivadores dobrincar, que se caracteriza, nessa idade,principalmente, pelo faz-de-conta.

Por tudo isso, podemos perceber que, apesarde pequenininhas, as crianças, por volta de três anos,manifestam sua vontade de agir por conta própria,de ser independentes. Querem escolher a própriaroupa e vestirem-se sozinhas; querem servir-se àmesa; contrariam a olhos vistos o que o adulto lhesindica. E todas essas contradições se explicam daseguinte maneira: as crianças querem ser como os

adultos. Elas se sentem capazes e querem realizartodas as tarefas que as pessoas grandes realizam.Mas isso é impossível! Assim, para resolver esseconflito, a criança lança mão da brincadeira de faz-de-conta. Porque, brincando, ela imita as atividadesadultas e vivencia novas experiências.

No faz-de-conta, as ações executadas peloadulto são possíveis à criança apenas de formasimbólica. Como ela não pode dirigir um carro,senta-se em uma cadeira, segura um prato e imaginaestar viajando pelas estradas afora. Prepara oalmoço, usando panelinhas de brinquedos epedacinhos de folhas e terra. Faz compras nosupermercado que monta com embalagens vazias...E vai, nesse processo, compreendendo as relaçõesentre as pessoas, vivenciando costumes, valores,usos e hábitos sociais. Vai realizando, efetivamente,uma atividade simbólica e generalizada. O que issosignifica?

Quando brinca, a criança imita as ações dosadultos conforme os papéis sociais quedesempenham, isto é, realiza um papel lúdico. Masela não brinca de ser uma mamãe, uma professora,um motorista, especificamente. Quando estáimitando, ela busca realizar ações que, de acordocom a sua compreensão e as suas experiências,todas as mães, todas as professoras ou todos osmotoristas realizariam. Ela imita os papéis sociais enão os indivíduos. Evidentemente, para tanto, elautiliza as referências que conhece. Daí podermosdizer que a criança realiza uma atividadegeneralizada.

É importante compreender, ainda, que, nabrincadeira de faz-de-conta, há uma profundarelação entre a atividade lúdica, o uso da imaginaçãoe as situações reais da vida da criança. Podemosverificar que, ao brincar, ela fundamenta o conteúdoe a seqüência de suas ações em situações reais,observadas no dia-a-dia. Assim, ao brincar decasinha, por exemplo, nenhuma criança vai servir asobremesa antes do almoço, já que não é essa aseqüência de ações do adulto, na vida real. Mas, paraalém das situações reais, que surgem como modelopara a atividade lúdica, há um espaço reservado paraas situações fictícias. Busquemos entender isso.

A situação imaginária acontece porque acriança não pode cozinhar, dirigir, medicar, deverdade. Os objetos utilizados na brincadeira sãosubstitutivos e representativos dos objetos reais. Elaescolhe objetos que lembrem, pela sua forma epossibilidade de manipulação, os objetos utilizadospelos adultos nas situações reais que imita em suabrincadeira (por isso, a injeção não precisa ser uma

O E sp a ço Lúd i co n a E d uca çã o I n f a n t i l

Coleção Cefort v. 419

FUN DA ME N TO S DA E D UC A Ç Ã O I NFA NTI L

Page 9: O espaço lúdico na Educação Infantil

seringa de verdade, mas um lápis, caneta, que, pelasua forma e possibilidades de manipulação, façamlembrar a seringa). Justamente porque a criança lida,no faz-de-conta, com essa duplicidade, com essapossibilidade de representação simbólica, abrincadeira é tão importante para o seudesenvolvimento psíquico.

O brincar de faz-de-conta possibilita que acriança atribua novos sentidos aos objetos, semconfundir realidade e fantasia. O lápis continuasendo um lápis, mas adquire o sentido determômetro quando, na brincadeira, é preciso aferira temperatura de alguém. A areia continua sendoareia, mas se torna um ingrediente delicioso nopreparo de um bolo de aniversário (que serásaboreado apenas de forma fictícia). Para Leontiev,um colaborador de Vigotski e estudioso do papel dofaz-de-conta no desenvolvimento da criançapequena, “Não é a imaginação que determina a ação,mas são as condições da ação que tornam necessáriaa imaginação e dão origem a ela” (LEONTIEV,1998, p. 127). A criança transita, por intermédio daimaginação, entre dois mundos: o real e o fantástico.E isso representa uma verdadeira revolução em seudesenvolvimento.

Essa breve passagem pelos principaismomentos do desenvolvimento infantil até os trêsanos de idade já nos permite responder a questãoque nos fizemos anteriormente. Por que a criançabrinca? Pelo que já sabemos, ela brinca porquevivencia o brincar com o outro desde os primeirosmomentos de vida. Porque, segundo Vygotsky,aquilo que experimentamos nas interações sociaistorna-se, progressivamente, parte de nossascapacidades psíquicas. Aprendemos a brincar com ooutro e, como o brincar tem como característica oenvolvimento emocional, a proximidade afetiva,essa atividade passa a fazer sentido em nossas vidasdesde muito cedo. Assim, à medida que vamos

acumulando experiências lúdicas, mais nossa culturalúdica se enriquece e temos ainda maiorespossibilidades de nos relacionar de forma lúdicacomas outras pessoas.

É fundamental lembrar que as crianças dequatro, cinco e seis anos também têm nos jogos eatividades lúdicas as suas melhores oportunidadesde desenvolvimento. Por isso, a Educação Infantilprecisa estar permeada pelas experiências lúdicas.Com o passar do tempo, as brincadeiras de faz-de-conta vão dando lugar a jogos com regrasestruturadas, que exigem um maior domínio daconduta pelas crianças. Ou seja, se para os bempequenininhos é praticamente impossível brincar de“dança das cadeiras” ou de “esconde-esconde” pornão conseguirem adequar sua conduta às regras, éainda durante a Educação Infantil que essa transiçãovai acontecendo e as crianças aprendem a seguirregras explícitas.

Mi ch e l l e d e Fr e i t a s B i s so l i

Para saber mais...

Se você deseja aprofundar sua compreensãosobre a brincadeira de faz-de-conta (ou jogo depapéis), é importante ler o texto: LEONTIEV,A. N. Os princípios psicológicos da brincadeirapré-escolar. In: VYGOTSKY, L. S.; LURIA, A.R . ; LEONTIEV, A. N.

. São Paulo:Ícone/Edusp, 1988. p. 119-142.

Lingua g em ,Desenvolvimento e Aprendizagem

Para refletir...

Quatro crianças decidem brincar juntas de“dança das cadeiras”. Três delas têm entre cincoe seis anos de idade, enquanto uma ainda temtrês anos. A brincadeira inicia com três cadeiras.A música toca e todas as crianças correm emvolta das cadeiras até que a música pára. Duasmeninas maiores e a pequena conseguemsentar-se. A menina que ficou fora, sai dabrincadeira e fica ao lado, apenas observando.Na próxima rodada, há apenas duas cadeiras e,quando a música pára, a criança de três anos nãoconsegue sentar-se. A regra prevê que ela saia dabrincadeira, mas não é o que acontece. Ela tentaempurrar uma das crianças maiores e sentar-sejunto. Ao ser impedida, ela começa a chorar. Pormais que as outras crianças expliquem a regra, amenininha continua chorando, inconsolável...O que acontece?Se, para as maiores, o interesse da brincadeiraestá em cumprir a regra para ver quem vence,para a menina menor o interesse está nopróprio movimento de correr em volta dascadeiras e sentar quando a música cessa. Elaainda não consegue compreender a regra e essaé uma aprendizagem que vai acontecendo aospoucos, à medida que os jogos com regrasexplícitas passam a fazer parte de suasexperiências lúdicas.

20Coleção Cefort v. 4

FUN DA ME N TO S DA E D UC A Ç Ã O I NFA NTI L

Page 10: O espaço lúdico na Educação Infantil

Ainda temos um outro questionamento aresponder: Por que o lúdico é importante e por quedevemos estar atentos ao brincar das crianças? Decerta forma, também já refletimos um pouco sobreisso. As atividades lúdicas são uma formaprivilegiada de interação com o outro, contribuindopara a socialização da criança. E socializar-sesignifica vivenciar experiências que se tornam osubstrato das capacidades humanas de cadaindivíduo. O brincar favorece a apropriação dacultura, estando aí incluídos os valores, omovimento, a linguagem, as formas de relacionarobjetos e situações, a atenção, a memória, aimaginação, o domínio do próprio comportamento.Podemos perceber, portanto, que brincar temimportância essencial para o desenvolvimento dascapacidades da criança, porque essa é a atividade quemais as desenvolve na Educação Infantil. Por isso,estar atentos ao brincar da criança, enriquecendo seuconteúdo com vivências culturais significativas écontribuir para a formação humana integral nosprimeiros anos de vida.

Como organizar experiências lúdicas naEducação Infantil?

A ampliação das experiências lúdicas dacriança representa a ampliação de suas vivênciasculturais. É importante lembrar que a cultura lúdicadas crianças recebe influência da cultura geral emque vivem. Por isso, ao ampliar significados, aoenriquecer as experiências da criança, o professorcontribui para a sofisticação das relações que elaestabelece entre a cultura geral e a cultura lúdica.

Ampliar as experiências culturais das criançasé criar nelas novas necessidades. É abrir as portaspara aquelas experiências que enriquecem afaculdade do sentir, de que Goethe nos falou noinício desta discussão. Como fazê-lo?

Evidentemente, não há receitas para isso.Como em todos os aspectos da educação, a cadamomento lidamos com crianças únicas e irrepetíveis,com experiências próprias e com infinitaspossibilidades de estabelecimento de relações.Alguns princípios, entretanto, podem nortear asnossas reflexões e nos auxiliar a construir nossoprocesso de conhecimento, reconhecimento,compreensão, valorização e intervenção das/nasexperiências lúdicas de nossas crianças.

Um primeiro aspecto para nossa reflexão é ode que o adulto pode e deve ser um parceiro dasexperiências lúdicas infantis. Durante muito tempo,nas organizações sociais mais antigas, as brincadeiraseram compartilhadas entre adultos e crianças. Éimportante lembrar que antes do surgimento da

O E sp a ço Lúd i co n a E d uca çã o I n f a n t i l

Coleção Cefort v. 421

FUN DA ME N TO S DA E D UC A Ç Ã O I NFA NTI L

Page 11: O espaço lúdico na Educação Infantil

indústria dos brinquedos, quem os confeccionavaeram os adultos próximos: mães, pais, avós, tios,dedicavam seu tempo para a confecção de piões,petecas, carrinhos em miniatura, bonecas, bolas demeia, saquinhos, pipas. A feitura dos brinquedos eraelemento motivador e resultado da relação entreadultos e crianças. Aprender a brincar também...

Com a industrialização, o crescimento dascidades e a imposição de novos modos de vida erelações entre as pessoas, a relação tríplice entreadulto, criança e brinquedo foi substituída. Cada vezmais, o papel dos adultos está na simples compra dosbrinquedos prontos, que são escolhidos pelascrianças para, em grande parte das vezes, brincaremsozinhas. Faz parte do confinamento cultural eetário das crianças o brincar sem a presença dosadultos – e, cada vez mais, sem a presença de outrascrianças. Filmes e programas, livros e brinquedossão utilizados para manter as crianças ocupadas eafastadas da convivência social. Como reverter essequadro?

Nas creches e pré-escolas isso tambémacontece. As crianças são impedidas de trazer decasa seus brinquedos. A justificativa, muitas vezes, éa de que não sabem socializá-los ou a de que, napresença dos brinquedos, as crianças deixariam deaprender conteúdos importantes. Ora, já sabemosque o processo de socialização das crianças dependedas oportunidades que têm de interagir com outrascrianças e com os adultos. E o brincar é uma formaprivilegiada de socialização, como vimos. Porqueaprende-se a compartilhar, compartilhando; aresolver conflitos, passando-se por eles; a dividir e asomar, vivenciando experiências em grupo. Quantoà segunda afirmativa, qual seja, a de que a criançaficaria distraída com os brinquedos, deixando deaprender, podemos dizer que está igualmenteequivocada. A criança aprende a dominar a suaatenção e a sua conduta quando lhes são propostasatividades interessantes e envolventes, capazes deatrair sua atenção. Os brinquedos distraem sim, masporque são a grande novidade da rotina, porquequase não se brinca e já que são trazidos apenas devez em quando, quando as crianças os têm por perto,a vontade de mostrá-los, de utilizá-los é realmentemuito forte. Se os brinquedos fossem já uma partedo dia-a-dia das crianças na Educação Infantil, issoaconteceria?

A presença dos brinquedos, quando não é aúnica força atrativa do interesse da criança, nãoimpede que ela se envolva em outras atividades. Enão estamos dizendo aqui que as crianças devemestar todo o tempo às voltas com os brinquedos. Se

elas têm um mundo tão interessante a sua volta paraexplorar e conhecer, se elas percebem quanto égostoso e interessante cuidar de uma horta ou de umbichinho de estimação da sala; pintar um painelcoletivamente, cada um pondo as suas impressõessobre o jardim da escola; observar e registrar o queacontece com a semente que foi plantada; fazer umadobradura para enfeitar o mural da escola, ondeconstam os avisos da exposição de brinquedos quecada criança fez com seus pais; escrever uma cartacoletiva para contar para as crianças de uma escolabem longe quais são as melhores receitas preparadaspela turma; confeccionar fantoches para aapresentação de uma peça; ouvir uma linda história;fazer um recital de poemas; descobrir porquequando faz muito calor chove; misturar as cores paradescobrir que cor vai dar... Enfim, quando aEducação Infantil é uma janela aberta, através daqual se pode ver e sentir o mundo, a presença dosbrinquedos é mais um elemento para enriquecer asrelações e experiências.

Dissemos que um primeiro princípio para aconstrução das experiências lúdicas das crianças é aparceria entre adultos e crianças no brincar. Quandoe como isso acontece? O adulto é um parceiro debrincadeiras quando inventa brinquedos junto;quando se transforma em uma personagem do faz-de-conta; quando organiza espaços para que asbrincadeiras aconteçam; quando fica de fora,observando e percebendo as interações entre ascrianças e promove momentos em que gruposdiferentes brinquem juntos; quando traz uma caixacheia de fantasias para as crianças vestirem em frenteao espelho da sala, para construírem inúmerashistórias; quando canta ou conta histórias(diariamente!); quando ensina uma brincadeira dequando era criança e pede para que alguém lá da casadas crianças venha contar também sobre os seusbrinquedos... Sermos professores-parceiros lúdicosé estarmos conscientes de que somos maisexperientes e que por isso, e porque sabemos comoas brincadeiras podem ser desenvolventes, podemosintervir direta e indiretamente nas atividades lúdicasdas crianças.

Um outro princípio é a presença e variedadede brinquedos acessíveis às crianças. Mas quebrinquedos devem estar presentes em nossascreches e pré-escolas? Brinquedos que possam serportadores de inúmeros sentidos, que possamenriquecer as experiências lúdicas, que possam sermanipulados e explorados pelas crianças, quepossam motivar interações. Não brinquedos que“brinquem sozinhos”. Em nossas creches e pré-

Mi ch e l l e d e Fre i t a s B i s so l i

22Coleção Cefort v. 4

FUN DA ME N TO S DA E D UC A Ç Ã O I NFA NTI L

Page 12: O espaço lúdico na Educação Infantil

Descobrir nossas capacidades de expressão, sentirquanto as brincadeiras podem ser prazerosas,perceber o belo nas pequenas coisas, enriquecendo anossa faculdade de sentir por intermédio da leiturade poemas, da música, do conhecimento sobre asartes e seus produtores (músicos, pintores,escritores, escultores, bailarinos, etc.), são e devemser tarefas com duplo objetivo: nos tornar maissensíveis, mais abertos, mais expressivos e descobriras enormes possibilidades de uso desses saberes naeducação dos pequenos.

Assim, a construção de práticas novas e maisdesenvolventes na Educação Infantil depende doinvestimento de cada um de nós. É preciso queestejamos abertos:

aos conhecimentos teóricos, que nosauxiliam a compreender como a criança aprende e sedesenvolve e como a nossa atuação favorece esseprocesso;

à observação atenta das crianças, que nosensinam a perceber as formas pelas quais seapropriam de saberes, se tornam capazes deproduzir cultura, descobrem o mundo e a simesmas;

ao registro das nossas experiências (deprofessores e crianças), que nos ajudam a re-pensarsobre as nossas propostas de atividades, sobre o queconseguimos e sobre o que falta alcançar em relaçãoaos objetivos educativos a que nos propomos emcada momento;

ao diálogo com nossos colegas, com asfamílias e com as crianças, que nos possibilitaformular e reformular teorias, produzirconhecimentos sobre a infância e sobre a nossaprofissionalidade;

às canções, aos poemas, às pinturas, àmúsica, à gestualidade, ao movimento, à natureza, àdança, ao desenho, aos contos de fadas e outrashistórias – enfim, à Arte que nos torna pessoasabertas ao belo, ao sonho, ao sentir..

escolas, podemos ter muitas sucatas! Materiais depintura, modelagem, desenho. Blocos de diversostamanhos, com e sem encaixe para os jogos deconstrução. Caixas com roupas, sapatos, maquiageme objetos que lembrem os diferentes papéis sociais.Cordas, piões, petecas, saquinhos, bambolês. Jogosda memória, quebra-cabeças, jogos de botão, dados,trilhas... Pedrinhas, figurinhas e outros pequenosobjetos colecionáveis. Carrinhos, bonecas,miniaturas. Embalagens vazias... Pensemos: Que equantas brincadeiras são possíveis a partir dessesmateriais?

O fundamental é que as crianças tenham aoportunidade de experimentar o lúdico, o fazer peloenvolvimento que o processo proporciona e quepossam expressar seus desejos, opiniões,impressões, descobertas, hipóteses, por meio demuitas linguagens. Que possam “ler com os ouvidose escrever com os olhos”, como nos diz LuizPercival Leme Britto (2005). Que possam desenhar,pintar, construir, modelar, dançar, cantar, gesticular,correr, pular... Que possam viver a infância cheia dedescobertas capazes de enriquecer o seu modo dever a vida, o mundo, as pessoas, a si mesmas. Quepossam ser valorizadas em suas produções, em suasfalas, em seu brincar...

Sabemos da importância de uma EducaçãoInfantil permeada por experiências significativas.Sabemos também que o trabalho fundamental dosprofessores é o enriquecimento das possibilidadesde conhecer e de se expressar da criança. Somoscriadores de necessidades. E alcançamos issoquando possibilitamos que os pequenos explorem omundo a sua volta e revelem as suas curiosidades,hipóteses, conjecturas...

Brincando, a criança desenvolve-seamplamente. Apropria-se de um universo designificados sociais, valores, linguagens, formas derelação afetiva. Por isso, cabe a nós diversificar osmodos de brincar, dar espaço para a expressãomusical, gestual, oral, física, afetiva, escrita, pictóricaque o brincar possibilita. E, para tanto, é preciso quetambém saibamos brincar! Quanto mais rica for anossa cultura lúdica, quanto mais desenvolvermosnossas linguagens e capacidades de expressão, maispoderemos contribuir para que a criança enriqueçaas suas possibilidades.

Disso decorre uma tarefa para cada um denós: humanizarmo-nos para humanizar a criança.

Uma reflexão final...

O E sp a ço Lúd i co n a E d uca çã o I n f a n t i l

Coleção Cefort v. 423

FUN DA ME N TO S DA E D UC A Ç Ã O I NFA NTI L

Page 13: O espaço lúdico na Educação Infantil

Mi ch e l l e d e Fr e i t a s B i s so l i

24Coleção Cefort v. 4

FUN DA ME N TO S DA E D UC A Ç Ã O I NFA NTI L

João e Maria Sivuca – Chico Buarque/1977.

Agora eu era o herói

E o meu cavalo só falava inglês

A noiva do cowboy

Era você

Além das outras três

Eu enfrentava os batalhõesOs alemães e seus canhões

Guardava o meu bodoque

E ensaiava um rock

Para as matinêsAgora eu era o rei

Era o bedel e era também juiz

E pela minha lei

A gente era obrigada a ser feliz

E você era a princesa

Que eu fiz coroar

E era tão linda de se admirar

Que andava nua pelo meu paísNão, não fuja não

Finja que agora eu era o seu brinquedo

Eu era o seu pião

O seu bicho preferido

Sim, me dê a mão

A gente agora já não tinha medo

No tempo da maldade

Acho que a gente nem tinha nascidoAgora era fatal

Que o faz-de-conta terminasse assim

Pra lá deste quintal

Era uma noite que não tem mais fim

Pois você sumiu no mundo

Sem me avisar

E agora eu era um louco a perguntar

O que é que a vida vai fazer de mim?

Que elementos do brincar, discutidos no texto, podem ser encontrados nopoema de Chico Buarque? Que reflexões essa leitura nos possibilita?

Para exercitar afaculdade do sentir...

Page 14: O espaço lúdico na Educação Infantil

Referências

ANTUNES, R. Trabalho e superfluidade. In:LOMBARDI, J. C.; SAVIANI, D., SANFELICE, J;L. (Orgs.). . Campinas:Autores Associados, 2002. p. 35-44.

ASSIS, Joaquim Maria Machado de.. São Paulo: Ática, 1998.

BROUGÈRE, Gilles. A criança e a cultura lúdica.In: KISHIMOTO, Tizuko Morchida (Org.).

. São Paulo: Pioneira ThomsonLearning, 2002. p.19-32.

DAHLBERG, G.; MOSS, P.; PENCE, A.: perspectivas pós-

modernas. Tradução Magda França Lopes. PortoAlegre: Artmed, 2003.

Capitalismo, trabalho e educação

Memóriaspóstumas de Brás Cubas

Obrincar e suas teorias

Qualidadena educação da primeira infância

O E sp a ço Lúd i co n a E d uca çã o I n f a n t i l

Possui graduação em Pedagogia, mestrado edoutorado em Educação pela Faculdade deFilosofia e Ciências – Unesp/Marília.Atualmente é professora adjunta daUniversidade Federal do Amazonas. Temexperiência na área de Educação, com ênfaseem ensino-aprendizagem, atuandoprincipalmente nos seguintes temas: leitura,literatura infantil, teoria histórico-cultural,desenvolvimento da personalidade dacriança e Educação Infantil.

MICHELLE DE FREITAS

BISSOLI

Coleção Cefort v. 425

FUN DA ME N TO S DA E D UC A Ç Ã O I NFA NTI L

EDWARDS, C.; GANDINI, L.; FORMAN, G.: a abordagem de Reggio Emilia

na educação da primeira infância. Porto Alegre: ArtesMédicas, 1999.

HOLANDA, C. B. In: HOLANDA, C.B.

HOUAISS, A.; VILLAR, M. S.. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

KISHIMOTO, T. M. . SãoPaulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.

LEONTIEV, A. N. Os princípios psicológicos dabrincadeira pré-escolar. In: VYGOTSKY, L. S.;LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. L

São Paulo: Ícone/Edusp, 1988. p. 119-142.

Ascem linguagens da criança

João e Maria.

Dicionário Houaiss daLíngua Portuguesa

O jogo e a educação infantil

inguagem,desenvolvimento e aprendizagem.