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Campinas-SP, (31.1-2): pp. 77-93, Jan./Dez. 2011
A Arte de recitAr o homem Aspectos dA relAo entre ensAio
e experinciA em montAigne e musil
rica gonalves de [email protected]
Si mon me pouvait prendre pied,
je ne messaierais pas, je me rsoudrais ; elle est toujours
en
apprentissage et en preuve.Montaigne
Essayismus ist kenie Theorie, sondern eine Lebensform.
Robert Musil
a partir de Montaigne que o ensasmo se constitui como forma
privilegiada de reflexo e como o veculo mais apto a dar voz s
experincias do homem na modernidade. Este artigo explora alguns
aspectos da relao entre os Ensaios de Montaigne e a nova dimenso
que o ensasmo assume no contexto do sculo XX, e que atinge um de
seus momentos mais fecundos no romance O Homem sem Qualidades, de
Robert Musil.
Para tanto, comeamos abordando os Ensaios de Montaigne como um
momento inaugural do processo que associa escritura e
conhecimento
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78 Remate de Males 31.1-2
de si. A seguir, tecemos algumas consideraes sobre a relao entre
ensaio e forma literria, que tem em Lukcs e Starobinski alguns de
seus principais analistas. Por fim, focalizamos o papel do ensasmo
no romance Musil em seu duplo vis: como aspecto formal e como
princpio de vida propagado pelo protagonista.
O objetivo desta anlise mostrar que, redimensionado luz de uma
obra romanesca, o princpio ensastico historiciza o papel da
escritura como via de acesso a um conhecimento de si e do mundo a
partir dos limites da experincia.
i. A legitimAo dA subjetividAde modernA
Os Ensaios de Montaigne ilustram de modo exemplar um dos
princpios centrais da literatura, que o conhecimento de si e do
mundo a partir da mise en forme na obra. Como aponta Starobinski em
seu estudo (2003), foi Montaigne quem ligou a gnese da
subjetividade moderna ao processo de escritura: esta no apenas
descreve o sujeito como tambm faz com que este se constitua durante
o prprio ato de escrever. Tal constituio, porm, no deve ser tomada
no sentido de uma subjetividade que se complementa aos poucos, j
que o sujeito que surge ao longo desse processo ser
irremediavelmente cindido. Mesmo fadado incompletude, o
conhecimento de si o nico possvel, e por isso dele, e no da cincia,
que depende uma compreenso efetiva da histria e da realidade
emprica: a elas, aplicamos as escalas que nossa prpria vida e nossa
prpria experincia interna nos oferecem (AUERBACH, 1987, p.
265).
Nesse sentido, os Ensaios representam o momento de legitimao da
subjetividade moderna e, ainda, a pea mestra da cincia moral
moderna (STAROBINSKI, 2003, p. 107), j que no parte de uma ideia
pr-determinada de existncia, mas sim da realidade tal como ela
(ibidem). O eu que toma a palavra nos Ensaios se recusa a adotar
uma posio professoral ou doutrinria, declarando-se, antes, um
observador disposto a investigar sua condio a partir de critrios
genuinamente humanos, desvinculados de instncias normativas, tais
como a cincia ou a religio. Les autres forment lhomme: je le recite
(MONTAIGNE, 1965, III, p. 43) esta conhecida passagem dos Ensaios
serve para ilustrar que o prprio autor localiza sua empreitada numa
zona intermediria entre a filosofia e a poesia. Friedrich (1968, p.
34 ss.) identifica em Montaigne um desejo de sair da cincia
especializada e da filosofia tradicional para dar livre vazo
cultura humanista na qual se formou. Por isso sua reflexo
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Castro 79
nivela todos os setores da vida, sem privilegiar temas que,
primeira vista, seriam mais propensos ao conhecimento humano.
O homem focalizado por Montaigne no pretende estabelecer
verdades universais; ele , antes, um ser mediano, que busca
conhecer a si a ao mundo em que vive em plena conscincia de suas
limitaes. As questes centrais dos Ensaios, Que sais-je?, Quest-ce
que lhomme?, refletem o esprito do humanismo em declnio do XVI, e
do ponto de vista de um gentilhomme, um representante de uma camada
culta da sociedade que via o legado humanista dar vazo a um saber
especializado, um conhecimento dirigido para fins profissionais1. A
experincia surge, assim, como antdoto contra o abuso de um tipo de
discurso, e a autoanlise, como reao a uma necessidade
epistemolgica. Je suis moi-mme la matire de mon livre (MONTAIGNE,
1965, I, p. 47)i: ao fazer de si mesmo o objeto de seu livro,
Montaigne cunha um gnero de discurso que possibilita uma forma de
expresso fora dos limites da doxa e de uma verdade concebida como
valor fixo e eterno. Para Obaldia (2005, p. 110 ss.), tomar-se a si
mesmo por matria uma prova de honestidade neste contexto de negao
da doxa, uma vez que no pode pretender conhecer de fato um objeto
que no seja a si prprio, como podemos ler em Du repentir: [...]
jamais homme ne traita sujet quil entendt ni connu mieux que je
fais celui que jai entrepris, et quen celui-l je suis le plus
savant homme qui vive (MONTAIGNE, 1965, III, p. 45).
Sua inteno de escrever sem ordem nem propsito sobre tudo o que
viesse a lhe alcanar o esprito (MONTAIGNE, 1965, I, p. 8) pode ser
notada at mesmo nos ensaios em que, primeira vista, teriam um
objetivo especfico, como o caso da Apologie de Raimond de Sebonde :
neste, que o mais extenso de seus ensaios, a defesa da obra
teolgica de Sebonde apenas o ponto de partida para que Montaigne
persista em seu tema principal a afirmao da impotncia da razo e dos
limites da natureza humana. O nome de Sebonde sequer mencionado ao
longo de vrias pginas. A apologia que se realiza, portanto, no a de
uma obra ou idia, mas a de uma experimentao dos limites do
conhecimento humano e da liberdade de que cada um dotado por Deus
para conhecer-se a si e ao mundo. Ao assumir-se como incapaz de
apresentar argumentos slidos que confirmem ou refutem a tese de
Sebonde de que a razo humana pode conhecer Deus Montaigne endossa a
soberania do poder divino. Deus uma instncia que no
1 Sobre a influncia da estrutura social do sculo XVI na concepo
dos Ensaios, ver AUERBACH (1987).
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questionada por Montaigne, pois se trata, segundo ele, de uma
verdade nica seja ela qual for [quelle quelle soit] e acessvel a
todos, mesmo aos mais vulgares.
La participation que nous avons la connaissance de la vrit,
quelle quelle
soit, ce nest point par nos propos forces que nous lavons
acquise. Dieu nos a
assez appris cela par les tmoins, quil a choisi du vulgaire,
simples et ignorants
pour nous instruire de ses admirables secrets : Notre foi ce
nest pas notre
acqut, cest un pur prsent de la libert datrui. (MONTAIGNE, II,
p. 779).
Nessa apologia que se encerra com uma concluso religiosa de um
homem pago (II, p. 932), a reflexo de Montaigne assume sua ironia
desde o ttulo, pois a impossibilidade de tomar partido de uma
opinio ou de adotar um ponto de vista fixo sempre esteve presente
no horizonte do autor. No cabe ao homem questionar a existncia de
Deus, pois ele um ser mediano, submetido a essa instncia superior:
Il ne peut voir que de ses yeux, ni saisir que de ses prises. Il
slvera si Dieu lui prte extraordinairement la main. (ibidem).
Valeria ainda observar que, mesmo no seguindo uma argumentao
sistemtica, Montaigne recorre com freqncia a citaes de obras de
diferentes reas do conhecimento e na Apologia so inmeras as citaes
em latim e, por vezes, em grego associando o discurso considerado
cientfico s suas reflexes pessoais. Mas o recurso a tais fontes
serve, antes, para que o autor aponte os limites e contradies das
mesmas. Weisssenberger (1985, p. 108) demonstra como, nos Ensaios,
a citao perde sua funo retrica para atuar como princpio reflexivo,
numa variao do jogo de procura pela verdade. A meta do ensasmo de
Montaigne, ainda seguindo com Weissenberger, mostrar que toda
verdade que no a divina apenas uma verdade parcial, sujeita a
lacunas que nenhum discurso, nem mesmo o seu, poder preencher
(ibidem).
O mtodo de Montaigne, como foi demosntrado, o de se sujeitar ao
concreto, ao acontecido ou vivido, deixando-se guiar pelas coisas,
com olhos muito abertos e esprito sempre pronto a receber impresses
em meio ao mundo (AUERBACH, 1987, p. 258); o pesquisador da condio
humana segue um ritmo prprio, no se atendo a pontos especficos, mas
pulando livremente de uma [coisa] para outra (ibidem). O homem deve
limitar-se a se experimentar a si prprio sempre de novo, pois todo
conhecimento se furta expresso. (idem, p. 263). De outra forma, o
conhecimento adquirido assumiria a mesma posio de autoridade contra
a qual se insurge a empreitada
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ensastica. Reconhecendo sua ignorncia forte e generosa,
Montaigne se aproxima da meta final de sua pesquisa, que viver
corretamente (vivre propos). Para isso, vale repetir, no lhe serve
de nada um saber objetivo, mas somente uma sabedoria que retira da
prpria vida. Nesse percurso, sujeito e obra se compem mutuamente Je
nai pas plus fait mon livre que mon livre ma fait, livre
consubistantiell son auteur [...] (MONTAIGNE, 1965, II, p. 426).
Ainda no que tange ao mtodo montaigneano de conhecimento, Friedrich
(1968, p. 15) destacar uma sinceridade atenciosa, que reconhece no
poder dizer nada alm do que garante ser o contedo atual do eu Il
faut accommoder mon histoire lheure (MONTAIGNE, 1965, III, p.
46).
O ensasmo montaigneano resultado, portanto, de uma crise de
confiana que inclui toda a epistme, o movimento de um esprito que
busca conhecer sem, contudo, esperar por fundamentaes ltimas.
Ocupar-se consigo mesmo surge como uma espcie de imperativo
categrico para indivduo que agora pisa em um terreno oscilante. Se
nos detivermos brevemente no momento posterior ao surgimento dos
Ensaios, veremos que o processo de autoafirmao em relao autoridade
sobrepujada dos Antigos que teve incio no XIV ser devidamente
matizado pelo primeiro romantismo alemo. Como observa Mller-Funk
(1996, p. 77), em Montaigne j esto presentes os elementos que faro
parte da esttica moderna desde os romnticos de Jena como a
desconfiana em relao cincia, a recusa de todo e qualquer sistema e,
sobretudo, um conceito radicalmente individualista de verdade. A
passagem do XVIII para o XIX marcou a superao definitiva da
doutrina clssica e a sedimentao de uma conscincia da modernidade.
Ser moderno significa despedir-se dos modelos do passado, atingir
uma viso de mundo descentralizada e, portanto, oposta predominante
at ento mas, acima de tudo, desenvolver critrios normativos a
partir de si mesmo (BEHLER, 1997, p. 70-71). Modelo de reflexo
surgido de uma noo inequvoca da historicidade do sujeito, o ensasmo
se torna, assim, uma forma de organizao filosfica apta a expressar
as experincias do homem com e no mundo moderno.
ii. ensAsmo como imperAtivo formAl
Este sujeito que, nos Ensaios, cria-se a si mesmo no ato da
escrita, faz do livro o seu lugar no mundo. No se trata, porm, de
um lugar idlico. Se, por um lado, escrever sobre si causa inquietao
e evidencia
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a impossibilidade de uma verdade ltima; por outro, o fim da
escritura significa a morte. Deste modo, no se trata de um processo
progressivo de descoberta; a escritura , antes, um cuidado de si,
uma forma de manter-se vivo. Escrever no tranqiliza o esprito
porque implica seguir experimentando idia que Mller-Funk expressa
na forma de um trocadilho com a mxima cartesiana: Jcris, donc je
suis un autre (1996, p. 71). Na medida em que se constitui como um
momento ainda inacabado, mas que alude a um acabamento futuro, o
ensaio se aproxima da arte. No por acaso que, ao expandir-se para
os demais mbitos do pensamento crtico, seja justamente na crtica de
arte que o ensaio atinja seu pice. Em nenhum outro registro a relao
entre o mundo objetivo e o subjetivo se d de maneira to indissolvel
quanto na crtica de arte (STAROBINSKI, 2004, p. 174).
A ligao intrnseca entre ensaio e literatura, ou entre ensaio e
forma, foi elucidada de modo contundente pelo jovem Lukcs em sua
obra inaugural, A alma e as formas (1910). Partindo da idia de que
a forma o elemento comum s duas instncias, Lukcs (1971, p. 17)
observa que tanto o ensasta quanto o artista sugerem em seus
escritos uma iluso da vida sendo que o primeiro, por estar mais
ligado ideia e ao trabalho do conceito, consegue faz-lo com mais
vigor do que o literato. A razo profunda pela qual o ensaio fala
preferencialmente de arte e de literatura que esta lhe fornece
justamente aquela ponderao sensvel de que privado devido a sua
proximidade com o conceito. Ensaio e literatura esto, portanto,
destinados a se complementarem. Ambos so, cada um a seu modo,
momentos em que todos os sentimentos e experincias que estavam aqum
e alm da forma, recebem uma forma (ibidem). A forma a realidade nos
escritos do crtico, a voz com a qual ele dirige suas perguntas vida
(ibidem) eis porque a literatura e a arte em geral constituem a
matria-prima da crtica.
A interao entre crtica e arte assume nova feio na passagem do
XIX para o XX, no contexto de uma nova crise de valores - agora na
j consolidada cultura burguesa. nesta poca que o romance assume
contornos ensasticos cada vez mais ntidos. A forma romanesca
assimila o processo de fragmentao da realidade, furtando-se a
narrar uma histria de modo linear. Luft (1984, p. 121) observa que
o movimento da fico em direo ao ensasmo uma tendncia que a ecloso
da Primeira Guerra s iria acentuar tanto uma conseqncia do colapso
da narrativa pica tradicional, quanto uma tentativa de buscar um
caminho para alm do colapso do progresso e do isolamento do
indivduo numa sociedade de
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Castro 83
massa. Uma tendncia, portanto, que vai ao encontro da
necessidade de uma atitude ensastica, no sentido pleno da palavra,
diante da realidade: mais uma vez, as contingncias histricas
exigiam que o sujeito buscasse novos parmetros de
comportamento.
Vale notar que essa tendncia reflexo e especulao se coaduna com
as condies in potentia prprias do romance um gnero que se
caracteriza pela representao realista dos fenmenos atravs de um
discurso lgico-intencional e que, por isso, o que mais se aproxima
de uma representao total da vida. Nesse sentido, a associao entre
uma reflexo fragmentria por excelncia e um gnero de pretenses
totalizantes se revela bastante fecunda, uma vez que o romance pode
ampliar ou potencializar significativamente a reflexo ensastica que
se incorpora a ele2. Apto a refletir a orientao tpica do pensamento
moderno que Watt (1982, p. 28) define como a descrio da vida em
termos de tempo e espao o romance passar a reproduzir tambm a
complexidade das relaes e das formas de conscincia
espacio-temporais.
Herdeiro da disposio crtica de Montaigne, o autor moderno
reconhece que seu material ser sempre um recorte de um todo
extremamente complexo, uma possibilidade de viso do mundo entre
tantas outras possveis. Nos dizeres de Auerbach (1987, p. 494),
esses autores perderam a f na totalidade, e por isso receiam impor
vida, ao seu tema, uma ordem que ela prpria j no oferece. O ensasmo
ganha novo flego no momento em que o discurso estabelecido no d
mais conta de representar a realidade: na modernidade, ele se
assume como princpio interdiscursivo, em que a simultaneidade de
diferentes tipos de discurso no pretende que esses se complementem
uns aos outros; ao contrrio, a partir da fragilidade da reflexo que
se evidenciam aspectos da realidade ainda no apreensveis
conceitualmente3. Thomas Mann, Hermann Broch e Marcel Proust esto
entre os autores cujas obras se caracterizam pela
interdiscursividade, e se encaixam na vertente do romance
ensastico. Mas em nenhuma outra obra literria, a relao entre
romance e ensaio se deu de forma to veemente quanto na de Robert
Musil.
2 A esse respeito, ver o terceiro captulo de Obaldia, Approche
diachronique de la literature en puissance, (2005, p. 34-52).
3 A noo de ensasmo como princpio discursivo desenvolvida por
Moser (1985, p. 13 e ss.).
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iii. um ensAio de romAnce
Ao longo de mais de vinte anos Musil trabalhou em seu romance, O
homem sem qualidades, e ainda o deixou inacabado4. A interseco
entre romance e ensaio, nessa obra, se d de modo to radical que a
ausncia de um desfecho no interfere em absoluto no seu potencial
crtico e literrio. Como vimos em relao a Montaigne, o ensasmo para
Musil tambm no se restringe a um gnero discursivo, consistindo,
antes, em uma estratgia em relao ao discurso dominante, em um
caminho tanto para um novo papel da arte na sociedade moderna
quanto para uma existncia menos sufocada pela ordem objetiva. Mais
do que um recurso formal, o ensasmo, em O Homem sem qualidades, se
converte numa atitude, ou mesmo numa filosofia que envolve tanto o
autor Musil quanto o protagonista Ulrich. Nesse sentido, seu
romance no encena propriamente a vida de um heri mas, antes, o que
se passa dentro dele, ou sua busca por possibilidades paralelas
realidade efetiva.
Na maior parte dos romances modernos, o vis ensastico se
manifesta na forma de reflexes ou digresses trabalhadas pelo
narrador ou pelas personagens. No caso de O homem sem qualidades, o
ensasmo adquire um novo status: ele ser o princpio de vida que move
o protagonista, Ulrich, e o movimento que anima a obra. Ulrich
algum que se deixa animar pelo que vivencia, e na medida em que
grande parte da obra se ocupa de suas idias, estas so transmitidas
sobrepondo-se umas s outras, sem inteno de atingir uma sntese. As
longas passagens ensasticas no se desenvolvem, portanto, como uma
espcie de conferncia dirigida ao leitor, em que um pensamento
introduzido, desenvolvido e concludo. Tais inseres tm, num primeiro
momento, a funo estratgica de impedir uma narrao linear dos
eventos, ou um romance estruturado de acordo com a pica
tradicional. Esse o primeiro passo para que as condies de assimilao
da realidade por um indivduo comum ou mediano, para dizer com
Montaigne sejam reproduzidas em sua complexidade. Num segundo
momento, como veremos, o ensasmo deixa de se limitar a um aspecto
formal para se transformar numa atitude crtica diante da
realidade.
O heri romanesco moderno se caracteriza por lanar-se numa busca
fadada de antemo ao fracasso. Como bem demonstra a Teoria do
romance
4 O romance foi publicado em duas partes, em 1930 e em 1932.
Musil prosseguiu trabalhando na obra at sua morte, em 1942. Os
captulos que fariam parte da terceira e ltima parte do romance, bem
como esboos de captulos deixados pelo autor integram o segundo
volume da atual edio em lngua alem.
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Castro 85
de Lukcs, esse heri procura por valores absolutos sem os
conhecer ou mesmo sem poder viv-los integralmente ou seja, ele
algum que ensaia continuamente uma existncia plena de sentido. O
heri de Musil representa la lettre essa premissa, na medida que se
retira da vida emprica para poder viver uma histria das idias em
vez de uma histria do mundo, como se fosse personagem de um livro
(MUSIL, 2006, p. 396)5. Consciente de que permanecer suspenso entre
a vida emprica e as vrias possibilidades paralelas a esta, Ulrich
define seu propsito como uma utopia do ensasmo.
Mais ou menos como um ensaio examina um assunto de muitos lados
em seus vrios captulos, sem o analisar inteiro pois uma coisa
concebida inteira perde de repente sua abrangncia e se derrete num
conceito -, ele acreditava ver e tratar corretamente o mundo e a
prpria vida. (HSQ, p. 277).
E mais adiante:
Na natureza de Ulrich havia algo que agia de modo distrado,
paralisante e desarmante, contra toda a ordem lgica, contra a
vontade clara, contra os ordenados impulsos da ambio; tambm isso se
ligava ao nome que ele escolhera: ensasmo. (HSQ, p. 280).
O protagonista musiliano se considera um homem sem qualidades no
sentido de no possuir um carter, uma profisso, uma maneira slida do
ser que pudesse fixar sua identidade. Na verdade, sua qualidade
mais relevante um senso aguado de possibilidade, sua capacidade de
pensar tudo aquilo que tambm poderia ser (HSQ, p. 34), atribuindo o
mesmo valor ao real e ao possvel. Ele algum que ama as diferentes
manifestaes da vida, numa disposio de esprito que o impede de crer
no acabado, embora perceba que tudo em volta dele parea estar
acabado. Ulrich sente como se tivesse nascido com um talento para o
qual no havia objetivo no presente. (HSQ, p. 78-9). Por isso, aos
completar 32 anos idade em que os heris dos romances burgueses
tradicionais j estariam devidamente formados ele decide tirar frias
da vida, ou dos compromissos da vida prtica, na esperana de ao
menos vislumbrar hipteses mais autnticas de existncia6. No se pode
deixar de notar
5 A partir de agora, as citaes que se referem ao romance O homem
sem qualidades sero indicadas pela sigla HSQ seguida do nmero da(s)
pgina(s).
6 No podemos deixar de observar a mesma atitude em Montaigne:
aos 37 anos, ele abandona seu cargo de conselheiro da corte de
Bordeaux para isolar-se no campo, entregando seu esprito ao cio e
ocupando-se apenas consigo mesmo e com seus lazeres (apud MAGNIEN,
2007, XI). Sabemos que nesse perodo de recolhimento que ele concebe
seu livro.
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aqui que o mesmo intuito leva Montaigne, aos 37 anos, a
abandonar seu cargo de conselheiro da corte de Bordeaux para
isolar-se no campo: a inteno de entregar seu esprito ao cio e de
ocupar-se apenas consigo mesmo. Ora, sabemos que os Ensaios surgem
justamente dessa entrega de Montaigne a seus prprios
pensamentos.
Musil concebe a literatura como uma alternativa aos hbitos
mentais ou de leitura adquiridos ao longo da evoluo cultural7. Para
ele, o romance no estaria mais apto a narrar uma histria pois,
retomando Auerbach, a literatura no pode impor vida uma ordem que h
muito ela j perdera. O atual estgio da histria impe novas funes
literatura, sendo a principal delas uma reao a um processo
crescente de abstrao da vida, ao enredamento das questes humanas
numa ordem que sacrifica a interioridade das coisas (MUSIL, 1978,
p. 1284). Para compor um romance que encene a possibilidade de
experimentar novas perspectivas de pensamento, Musil desenvolve um
protagonista que se v diante do desafio de atribuir algum
significado pessoal s suas experincias. O sujeito moderno
determinado por suas experincias, mesmo que no se identifique de
fato com elas. Ulrich sente que as coisas ligam-se muito mais umas
s outras do que a ele (HSQ, p. 171) e no conhece suas qualidades
prprias pois, como muitas pessoas, nunca se analisara seno no
cumprimento de alguma tarefa, e em relao a ela (HSQ, p. 172).
Da falta de oportunidade de se vivenciar experincias autnticas,
que fossem motivadas pela subjetividade de cada um no pela imposio
de assumir determinados papis sociais surge um mundo de qualidades
sem homem em que as vivncias agora independem das pessoas (HSQ, p.
173). O indivduo se resume quilo que faz, s atividades que exerce;
ou seja, suas qualidades so moldadas por circunstncias externas a
ele. Matiza-se, desta forma, uma questo tico-moral: sem termos
experincias autnticas, como podemos conhecer? Musil focaliza uma
relao entre conhecimento e experincia que se tornou ainda mais
problemtica do que no incio da modernidade e isso necessariamente
exige uma postura mais radical do sujeito que se lana num processo
de aprendizagem. Neste romance-ensaio, a histria comea de fato
quando o protagonista decide se retirar da realidade emprica. neste
momento que a diferena entre pensamento e ao se converte num
7 A esse respeito, ver os ensaios ber den Essay (1914), Das
hilfslose Europa (1922), Die Krisis des Romans (1931), e a
conferncia Der Dichter in dieser Zeit (1934), todos no volume
indicado (MUSIL, 1978).
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pensamento em ao (OBALDIA, 2005, p. 312) que evidenciar cada vez
mais o quanto ele est distante de uma unidade.
No fim da primeira parte da obra, o heri finalmente consegue
transpor em palavras a causa de sua dissonncia em relao ao mundo em
que vive: Aquela ordem simples que consta de poder dizer: depois
disso acontecer, aconteceu aquilo! eis a operao que Ulrich no
consegue mais realizar corretamente (HSQ, p. 688-9). Ao longo do
desenvolvimento de sua escritura, o autor encaminha sua personagem
para uma aproximao entre sua busca por uma identidade e a perda do
sentido primitivo da narrao, evidenciando assim que ambos, autor e
personagem, sofrem do mesmo conflito. essa coincidncia que garante,
nessa obra, momentos em que, retomando a formulao de Lukcs, todos
os sentimentos e experincias que estavam aqum e alm da forma,
recebem uma forma (op. cit.). A impossibilidade de um conhecimento
total da essncia e o carter fragmentrio do ensaio se condicionam
mutuamente para encenar, nos limites da forma, toda a problemtica
de que o sujeito vtima.
[...] a lei desta vida, pela qual ansiamos... no seno a vida da
ordem narrativa! [...] isso que nos tranquiliza; o enfileiramento
de tudo o que acontece no tempo e no espao, em um s fio, aquele
famoso fio da narrativa, no qual consistiria tambm o fio da vida.
[...] isso que o romance utilizou artificialmente... o leitor
sente-se confortvel.. e isso seria difcil de entender se esse
eterno artifcio da obra pica, com o qual j as amas-de-leite acalmam
as criancinhas, esse eficiente encurtamento em perspectiva da razo
j no fizesse parte da prpria vida. (HSQ, p. 689).
O que se convencionou chamar de ordem narrativa , na verdade, a
sobreposio de vrias hipteses em conflito, ou de vrias verses de uma
mesma histria. Perder o fio narrativo significa, para Ulrich,
compreender que aquilo que se convencionou chamar de vida no passa
de um conjunto de fatores que lhe foi imposto e que no corresponde
s suas inclinaes pessoais.
Um paralelo interessante estabelecido por Obaldia (2005, p. 318)
entre esse eu que tira frias da vida para se abrir a outras
possibilidades de existncia e o autor dos Ensaios: ambos percebem
que no so nada mais que uma sucesso de eus justapostos, e a
relativizao de todos esses nveis de subjetividade acaba por reforar
a impresso de que o processo narrativo no avana, mesmo regride em
vez de progredir [...] ou que nem mesmo consegue recomear. As obras
de Montaigne e de Musil retratam personagens que giram em crculos,
que no se desenvolvem como numa linha evolutiva; enfim, traam um
processo de conhecimento que
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88 Remate de Males 31.1-2
se d de forma multvoca e no sistemtica. nesse sentido que Adorno
(2004, p. 62) afirma que romances como o de Musil, que rompem a
pura imanncia da forma e que no endossam um mundo pleno se sentido
atuam como epopias negativas, na medida que testemunham uma condio
na qual o indivduo liquida a si mesmo. Mas valeria ressaltar que,
tanto em Montaigne quanto em Musil, esse autoaniquilamento do
sujeito no o conduz ao desespero, sendo apenas mais um ndice de sua
finitude. No primeiro, a aceitao da finitude vai ao encontro de uma
necessidade de afirmao de um sujeito desvalorizado pelo
cristianismo (FRIEDRICH, 1968, p. 115); no segundo, a busca do heri
condicionada pela esperana de um desligamento momentneo da
realidade efetiva como o proporcionado pela arte. Ns erramos
avante! (Wir irren vorwrts!) a frase anotada a esmo por Musil (apud
BERGHAHN, 1963, p. 85) traduz com preciso a situao do sujeito
moderno e acrescenta uma nova dimenso ideia de escritura como
alternativa morte: no se trata apenas de continuar vivo, mas tambm
de reivindicar uma vida mais autntica.
iv. cinciA como imperAtivo de exAtido
Como viemos demonstrando, a desconstruo do fio narrativo, no
Homem sem qualidades, na medida em que amplia os horizontes de
pensamento e, por conseguinte, estabelece novas relaes entre as
experincias vividas, ser o caminho pelo qual o romance busca
refrear um processo de abstrao da vida. Tal processo tem relao
direta como o modo pelo qual o homem assimila a histria: como um
amontoado de fatos que tm uma unidade e uma causalidade simuladas
por um discurso que se empenha em restabelecer os nexos
irremediavelmente perdidos. No mundo do ps-guerra, mais urgente do
que perguntar o que seria o homem, ou o que ele conhece de fato,
investigar que desejos autnticos poderiam mov-lo, ou a que mais ele
poderia ansiar conhecer diante de uma realidade que lhe apresentada
como continuidade, que forja a impresso de que sua vida tem um
curso.
Vemos ento que o enredamento entre a falta de qualidades e uma
experincia alienada do mundo retoma, em nova chave, as questes
fundamentais de Montaigne (Que sais-je?, Quest-ce que lhomme?). Se
a histria se tornou uma forma de fico que se repete, ento preciso
criar uma outra, que consistiria, nos dizeres de Cometti (2001, p.
73), em tentar desesperadamente ressuscitar uma narrativa como se
tenta fazer reviver um corpo por meio de simulaes cardacas. o que
vem
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Castro 89
expresso no ttulo do captulo 83 Acontece a mesma coisa, ou:
porque no se inventa uma outra histria?, que tematiza outra percepo
fundamental do protagonista: a de que a histria nada mais do que um
expediente de que lanamos mo para termos a impresso de nossa vida
tm um curso (HSQ, p. 689).
O caminho da histria no , pois, o de uma bola de bilhar que, uma
vez tocada, segue determinado curso, mas assemelha-se ao trajeto
das nuvens, ao caminho de algum que vagabundeia pelas ruelas,
distraindo-se aqui com uma sombra, ali com um grupo de pessoas
[...] por fim chegando a um ponto que no conhecia, nem queria
atingir. No curso mundial da histria h um certo perder-se por a.
(HSQ, p. 392).
Ao incorporar formalmente a perda do sentido primitivo da
narrao, fazendo com que as reflexes do heri prevaleam sobre a
narrao dos eventos, a obra de Musil atua como antdoto contra essa
mesma idia de histria, e acaba por inventar uma outra: a das idias
de um ser mediano e finito, e por isso mesmo representativo da poca
em que vive.
Quando o indivduo passa a ser apenas mais um elemento num grande
todo, suas foras morais se tornaram muito frgeis em relao ao mundo
que o cerca, tambm a literatura est sujeita ao risco de reforar seu
enquadramento nessa ordem opressora (MUSIL, 1978, p. 1246). O
romance moderno, para Musil, deve narrar a vida de um indivduo
especfico, procurando mostr-lo como parte de um todo e, ao mesmo
tempo, acenando com a possibilidade de sua desvinculao dessa mesma
ordem. Este o programa que uma obra como O Homem sem Qualidades
pretende cumprir, ao subordinar a narrao de eventos ou a
representao de situaes e personagens num contexto especfico narrao
de uma aventura intelectual de um heri que tenta escapar dos
perigos da razo moderna. A articulao entre os registros romanesco e
ensastico reproduz o ritmo autntico dos fenmenos da realidade
efetiva, que no , de modo algum, linear8.
justamente por apresentar o processo reflexivo de Ulrich, e no o
produto final de seu pensamento, que a narrativa reproduz o mais
fielmente possvel o processo reflexivo do sujeito moderno, que
no
8 A esse respeito, vale citar uma passagem do captulo 84: Todo
grande livro tem esse esprito, que prefere destinos individuais
porque no se adaptam s formas que a sociedade pretende lhes impor.
[...] Retire das obras literrias o seu sentido, e ter, com exemplos
isolados, uma negao, no completa, mas evidente e interminvel, de
todas as regras, princpios e preceitos que fundamentam a sociedade
amante dessa literatura! (HSQ, p. 398).
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90 Remate de Males 31.1-2
lida com verdades universais nem ideias definitivas. Para
Ulrich, trata-se de conhecer a si e a realidade que o cerca como se
fizesse parte de um experimento. E somente ao assumir a disposio de
um ser que experimenta, ele est em condies de romper com o esquema
de uma realidade sempre tornada fico.
Neste ponto vemos que, diferentemente do ceticismo que Montaigne
nutria em relao cincia e que, como foi demonstrado, se justifica
pelo prprio contexto histrico , Musil atribui a esta um papel
determinante: para ele, o carter exato das cincias bem vindo quando
se trata de lidar com a esfera subjetiva. No crescente processo de
abstrao da vida, os assuntos da existncia passam a demandar o mesmo
tratamento que as cincias da natureza dispensam aos fenmenos que
analisa. Por lidar com fenmenos humanos, o ensaio corre o risco de
se perder na abstrao, de no conseguir conciliar as esferas da vida
emprica e da essncia. O narrador musiliano nos adverte: de se
pensar que conduzimos muito irracionalmente nossos assuntos
humanos, se no os atacamos conforme a cincia, que teve um progresso
to exemplar. (HSQ, p. 272). Assim, a atitude ensastica diante da
realidade supe, paradoxalmente, um vis cientfico. Na utopia do
ensasmo proposta por Musil, a cincia surge lado a lado com a
experincia na defesa de uma vida experimental em seu sentido pleno:
da mesma forma que Ulrich deseja viver como personagem de um livro,
ele se posiciona diante da realidade como objeto de um experimento
cientfico. A exatido cientfica, associada ao esprito ensastico,
garante que a reflexo se desloque da ordem objetiva para a
subjetiva, conservando, contudo, seu vis crtico-analtico. Para
Schrf (1999, p. 26) justamente na vinculao com as cincias naturais
a obra de Musil confirma a possibilidade de conhecimento a partir
da prpria subjetividade. A exatido pode ser compreendida, portanto,
no como a primazia do objetivo sobre o subjetivo, mas, antes a
convivncia entre as duas esferas. O ser exato aquele que no
privilegia nenhum dos plos, permanecendo suspenso entre os mundos
do sentimento e do intelecto, das idias e dos fatos.
A prpria obra ndice desse imperativo de exatido, na medida em
que toma por contedo o pressuposto da criao literria, que o de
suspender o mundo para melhor conhec-lo. No Homem sem Qualidades,
forma e contedo fomentam-se reciprocamente, num procedimento que
Lukcs define como agravamento da problemtica9:
9 Est no primeiro ensaio de Die Seele und die Formen: Quando
algo se tornou problemtico [...] a soluo s pode surgir do mais
aparente agravamento da problemtica, de um ir-at-o-fim
[Bis-zu-Ende-gehen] nela (LUKCS, 1971, p. 27).
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Castro 91
o heri declaradamente um ser em potencial, e a realidade, um
texto a ser escrito, numa uma indiferenciao entre vida e literatura
ou entre verdade e verdade na arte. Em De lexprience, Montaigne
escreve que a nica verdade universal exisitente que a razo possui
tantas formas quanto a experincia (1965, III, p. 467). Viver
propos, para esse sujeito, significa assegurar sua individualidade
a partir da conscincia dos prprios limites. Trs sculos mais tarde,
viver corretamente ou de forma exata permanece sendo o fim
almejado; os meios, no entanto, precisam ser revisados luz das
contingncias histricas, pois o tempo modifica a natureza de todo o
mundo (MONTAIGNE, 1965, II, p. 253).
considerAes finAis
O princpio do ensasmo que vincula diretamente Montaigne e Musil
o de buscar, por meio da escritura e do reconhecimento dos limites
da experincia, um conhecimento de si e do mundo. Intrinsicamente
ligado conscincia da historicidade do sujeito, o ensasmo, nos
dizeres de Mller-Funk, o mdium pelo qual a pr-modernidade que se
atualiza na ps-modernidade (1996, p. 78). A virada copernicana que
Starobinski (2003, p. 442) identifica nos Ensaios o fato de que, a
partir deles, a literatura atinge o status que a caracteriza na
modernidade: o de o produto de uma experincia interna, de uma fora
da imaginao e do sentimento que o saber objetivo no d conta, o de
uma rea protegida, na qual a evidncia do sentimento e da percepo tm
o direito de prevalecer como verdade pessoal. Deste ponto de vista,
a obra de Musil pode ser considerada a legitimao e a atualizao da
empreitada ensastica de Montaigne, j que descreve a situao precria
do sujeito moderno e, ao mesmo tempo, d um passo alm, ao se propor
descobrir no seio mesmo daquilo que parece constituir sua negao
mais irrefutvel, uma utopia vivel, isto , novas fontes ticas que
ainda estariam a adormecidas (COMETTI, 2001, p. 156-7).
Num momento em que a literatura parece estar diante de um
impasse formal, o ensasmo garante a ela o pleno desempenho de seu
papel, que o de encenar a incerteza das relaes, o desejo de nos
atermos a coisas slidas e de nos mostrar que a realidade percebida
apenas uma forma de realizao entre outras possveis. O ensasmo,
associado indeterminao prpria da forma romanesca, atua como uma luz
que o possvel lana sobre o real, fazendo com o leitor se desligue
momentaneamente de seus hbitos mentais, daquele falso fio narrativo
que reduz os mais diversos fenmenos e experincias a uma representao
padronizada e alienante.
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92 Remate de Males 31.1-2
o prprio Musil quem observa que, no ensaio, o que parece assumir
a forma de um julgamento apenas a formulao momentnea de algo quer s
pode ser concebido naquele instante, e ainda, que to difcil
traduzir as articulaes internas de um ensaio para o pensamento
conceitual quanto converter um poema em prosa (MUSIL, 1978, p.
1450). La philosophie nest quune poesie sophistique, podemos ler em
Montaigne (1965, II, 518). Ora, o potencial filosfico e gnosiolgico
de obras como as desses autores deve-se justamente ao fato de
permanecerem nos limites da experincia, sem a pretenso de formar
(ou narrar) o homem, mas apenas de recit-lo, transformando-o no
poema no escrito de sua existncia (HSQ, p. 278).
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