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PARECER
Ordem Constitucional Econmica, Liberdade e Transporte Individual
de Passageiros: O caso Uber
SUMRIO: 1. A Consulta. 2. Livre iniciativa, livre concorrncia e
interpretao do direito infraconstitucional. 2.1. O papel dos
princpios constitucionais na interpretao do Direito Econmico. 2.2.
O princpio constitucional da livre iniciativa. 2.3. O princpio
constitucional da livre concorrncia. 3. Constituio, servios pblicos
e atividade econmica stricto sensu. 3.1. Noes Gerais. 3.2. Critrios
para distino entre servio pblico e atividade econmica em sentido
estrito. 3.3. Livre empresa, inovao e ausncia de regulamentao da
atividade econmica. 4. Transporte individual de passageiros como
atividade econmica stricto sensu: interpretao da legislao vigente,
restries regulatrias e competncia legislativa. 4.1 A interpretao
constitucionalmente adequada da Lei n 12.587/2012. 4.2. A
debilidade dos argumentos em favor da proibio dos servios da Uber e
de seus motoristas parceiros. 4.3. (In)competncia legislativa dos
municpios, estados e distrito federal. 5. Resposta aos
quesitos.
1. A Consulta
Consulta-me a UBER BRASIL TECNOLOGIA LTDA, por intermdio de sua
ilustre advogada, Dra. Liliane Roriz do Esprito Santo, da
prestigiosa banca Licks Advogados, a propsito da juridicidade das
suas atividades no Brasil, bem como daquelas desempenhadas pelos
motoristas que atuam como seus parceiros.
Narra a Consulente que o aplicativo UBER uma plataforma
tecnolgica para smartphones lanada nos Estados Unidos em 2010, que
permite estabelecer uma conexo entre motoristas profissionais e
pessoas interessadas em contrat-los. Por seu intermdio, indivduos
previamente cadastrados no site/aplicativo da Consulente conseguem
encontrar, de modo simples e gil, motoristas parceiros da UBER para
transport-los com conforto e segurana.
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De acordo com a Consulente, esses motoristas so empreendedores
individuais, que utilizam a plataforma UBER em sistema de economia
compartilhada (sharing economy), que otimiza o acesso e contato
entre passageiros e condutores. Eles so credenciados pela UBER,
pagando-lhe o correspondente a 20% do valor que percebem de cada
passageiro, como retribuio pela utilizao da plataforma tecnolgica.
A UBER credencia apenas motoristas profissionais, cujas carteiras
de habilitao autorizem o exerccio de atividade remunerada de
condutor de veculos. A manuteno do cadastramento dos motoristas
parceiros depende, ademais, das avaliaes annimas que estes recebem
dos respectivos passageiros ao trmino de cada viagem, por meio de
um sistema de pontuao. A avaliao varia de zero a cinco estrelas, e
os motoristas que obtm mdia inferior a 4,6 estrelas podem ser
descredenciados pela UBER.
Os automveis dos motoristas tambm so credenciados pela
Consulente, e devem satisfazer a uma srie de requisitos atinentes
segurana, luxo e conforto, que so muito mais rigorosos do que os
demandados pela legislao para licenciamento dos veculos.
O valor das viagens calculado com base em fatores como a
distncia a ser percorrida e tempo de viagem, tendo em vista as
informaes repassadas previamente por cada cliente, atinentes sua
localizao e destino. A UBER fornece uma estimativa prvia do preo ao
passageiro, e os pagamentos so realizados por meio de carto de
crdito, atravs do prprio aplicativo.
A comodidade e segurana dessa modalidade inovadora de transporte
individual de passageiros, aliadas simplicidade e eficincia do
aplicativo, fizeram com que a UBER casse no gosto dos usurios. A
Consulente est hoje presente em 58 pases e 311 cidades ao redor do
mundo e, no Brasil, opera atualmente em So Paulo, Rio de Janeiro,
Braslia e Belo Horizonte.
Apesar desse sucesso de pblico ou talvez exatamente em razo
desse sucesso as atividades da UBER e dos seus motoristas parceiros
vm sofrendo uma srie de contestaes judiciais e extrajudiciais,
provenientes sobretudo de pessoas, entidades ou foras polticas
ligadas aos taxistas e aos proprietrios de frotas de txi. Tais
opositores argumentam, em sntese, que as referidas atividades
seriam ilegais, eis que pretensamente voltadas prestao de um servio
de transporte pblico individual de passageiros, que, alm de
dependente de autorizao municipal, seria legalmente monopolizado
pelos
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taxistas. Nessa perspectiva, os motoristas parceiros da UBER
seriam, supostamente, prestadores de uma espcie de servio de txi
clandestino, e, por no seguirem a legislao que disciplina a
atividade dos taxistas, praticariam uma pretensa concorrncia
desleal em relao a esses, prejudicando tambm os consumidores.
Diante desse cenrio, formulou a Consulente os seguintes
quesitos:
(a) As atividades desempenhadas pelos motoristas parceiros da
UBER se enquadram no conceito de transporte pblico individual de
passageiros, prevista no art. 4, inciso VIII, da Lei n 12.587/2012,
ou constituem hiptese de transporte individual privado de
passageiros, contemplada no art. 3, 2, inciso I, a, c/c inciso II,
b e inciso III, b, da referida lei?
(b) O transporte individual de passageiros configura no Brasil
servio pblico, ou se trata de atividade econmica stricto sensu?
(c) As atividades da Consulente e dos seus motoristas parceiros
dependem de prvia regulamentao e/ou autorizao para que possam ser
validamente exercidas no pas?
(d) O legislador infraconstitucional de qualquer dos entes
federativos pode converter toda a atividade de transporte
individual de passageiros em servio pblico, ou se valer de restries
regulatrias que impeam que particulares compitam, nesta rea, com os
servios de txi?
Para responder aos quesitos formulados, pretendo abordar,
inicialmente, o papel que os princpios constitucionais da livre
iniciativa e da livre concorrncia devem desempenhar na interpretao
da legislao infraconstitucional que trata de atividades econmicas
lato sensu. Em seguida, discuto os conceitos de servio pblico e de
atividade econmica stricto sensu, demarcando algumas diferenas
entre os seus regimes constitucionais, inclusive no que pertine
liberdade de atuao empresarial. Assentadas essas premissas, passo a
aplic-las ao transporte individual de passageiros, visando a
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responder adequadamente aos questionamentos da Consulente, luz
da Constituio e da legislao pertinente.
2. Livre iniciativa, livre concorrncia e interpretao do direito
infraconstitucional
2.1. O papel dos princpios constitucionais na interpretao do
Direito Econmico
No passado, os princpios constitucionais eram vistos como meras
proclamaes retricas, cujos efeitos jurdicos dependiam de decises do
legislador infraconstitucional. Este tempo, felizmente, ficou para
trs. H, na atualidade, controvrsias importantes sobre os princpios
constitucionais,1 mas um denominador comum est firmemente
assentado: os princpios da Constituio so normas jurdicas
extremamente importantes, verdadeiros pilares do ordenamento, e no
meras exortaes ao legislador, desprovidas de efeitos concretos.
Como normas jurdicas, os princpios constitucionais estabelecem
limites para o legislador infraconstitucional e para a Administrao,
cuja inobservncia enseja a invalidade das normas e dos atos que os
contravenham. Eles tambm incidem diretamente sobre as relaes
sociais, impondo comportamentos positivos e negativos ao Estado e a
particulares.2 Alm disso e este o ponto que nos interessa no
momento , os princpios constitucionais so vetores fundamentais na
interpretao da ordem jurdica.3
Nesse sentido, tais princpios operam como verdadeiras bssolas,
que devem guiar a interpretao de regras constitucionais mais
especficas, mas tambm a exegese da
1 Tratei extensamente do tema em Cludio Pereira de Souza Neto e
Daniel Sarmento. Direito
Constitucional: teoria, histria e mtodos de trabalho. 2 ed.,
Belo Horizonte: Ed. Frum, 2014, pp. 375-390. Na literatura
brasileira, veja-se especialmente Humberto vila. Teoria dos
Princpios. 11 ed., So Paulo: Malheiros, 2010. 2 Na atualidade, tem
grande penetrao a teoria sobre princpios formulada pelo autor alemo
Robert Alexy,
que os concebe como mandados de otimizao, que devem ser
cumpridos na maior medida possvel, dentro das possibilidades fticas
e jurdicas de cada caso. Cf. Robert Alexy. Teoria dos Direitos
Fundamentais. Trad. Virglio Afonso da Silva. So Paulo: Malheiros,
2008, pp. 85-179. 3 Cf. Claus-Wilhelm Canaris. Pensamento
Sistemtico e Conceito de Sistema na Cincia do Direito. Trad.
A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1989,
pp. 88-100.
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legislao infraconstitucional referente ao tema de que tratam.
Essa a chamada eficcia interpretativa dos princpios
constitucionais, assim sintetizada por Lus Roberto Barroso:
A eficcia interpretativa consiste em que o sentido e alcance das
normas jurdicas em geral devem ser fixados tendo em conta os
valores e fins abrigados pelos princpios constitucionais. Funcionam
eles, assim, como vetores da atividade do intrprete, sobretudo na
aplicao de normas jurdicas que comportam mais de uma possibilidade
interpretativa. (...) Em suma: a eficcia dos princpios
constitucionais, nessa acepo, consiste em orientar a interpretao
das regras em geral (constitucionais e infraconstitucionais), para
que o intrprete faa a opo, dentre as possveis exegeses para o caso,
por aquela que realiza melhor o efeito pretendido pelo princpio
constitucional pertinente.4
Ora, o constituinte enunciou diversos princpios que regem a
nossa ordem econmica, previstos no art. 170 da Constituio. Alm
disso, a Lei Fundamental consagra inmeros outros preceitos que
tambm devem influenciar o tratamento infraconstitucional das relaes
econmicas: os princpios fundamentais da Repblica, os direitos
fundamentais, as regras sobre a diviso de competncias entre os
entes federativos, dentre outros. Tais princpios e regras
constitucionais possuem fora normativa, devendo assim orientar a
interpretao do Direito Econmico, cuja constitucionalizao, portanto,
decorre da prpria Constituio.5
Como no poderia deixar de ser, essas normas constitucionais
tambm devem pautar a exegese e aplicao dos diplomas legais que
cuidam do transporte individual de passageiros. Afinal, fora de
dvida que o transporte, pela sua prpria natureza, constitui uma
atividade econmica pelo menos em sentido amplo. No bastasse, o
prprio
4 Lus Roberto Barroso. Curso de Direito Constitucional: Os
conceitos fundamentais e a construo do
novo modelo. So Paulo: Saraiva, 209, p. 319. 5 Advirta-se, porm,
que no possvel extrair diretamente da Constituio um modelo fechado
e minucioso
de ordem jurdica econmica. Nesta seara, existe um razovel espao
para deliberao legtima pelos representantes do povo, que deriva no
s do princpio democrtico, como tambm do carter compromissrio da
Carta de 88 em matria econmica. No se infere da Constituio, por
exemplo, a dosimetria exata da interveno do Estado no mercado, que
pode variar em alguma medida ao sabor das escolhas que o eleitor
tem o direito de fazer periodicamente nas urnas. Veja-se, a
propsito, Cludio Pereira de Souza Neto e Jos Vicente Santos de
Mendona. Fundamentalizao e fundamentalismo na interpretao do
princpio da livre iniciativa. In: Cludio Pereira de Souza Neto e
Daniel Sarmento (Org.). A Constitucionalizao do Direito:
fundamentos tericos e aplicaes especficas. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2007.
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constituinte inseriu a disciplina do transporte (art. 178, CF)
no captulo da Carta intitulado Dos Princpios Gerais da Atividade
Econmica (Captulo I do Ttulo VII).
Dentre os princpios que regem a ordem econmica brasileira
figuram dois que so da mxima importncia no s para a compreenso do
respectivo sistema, como tambm para o equacionamento das questes
suscitadas nesta Consulta: a livre iniciativa (art. 1, IV e 170,
caput, CF), e a livre concorrncia (art. 170, IV, CF). deles que
trataro os prximos subitens do parecer.
2.2. O princpio constitucional da livre iniciativa
A importncia do princpio da livre iniciativa em nossa ordem
jurdica foi propositadamente realada pelo constituinte originrio,
quando o consagrou, logo no artigo 1, inciso IV, da Lei
Fundamental, como um dos fundamentos da Repblica Federativa do
Brasil, ao lado da soberania, cidadania, dignidade da pessoa
humana, valor social do trabalho e pluralismo poltico. A livre
iniciativa, que mantm ntima correlao com a liberdade profissional,
garantida no art. 5, inciso XIII, da Constituio, figura tambm,
junto com a valorizao do trabalho humano, como fundamento da ordem
econmica nacional, no art. 170, caput, da Lei Maior.
A livre iniciativa foi garantida inicialmente na Frana
revolucionria, visando abolio das limitaes e privilgios
corporativos, herdados da Idade Mdia, que cerceavam o exerccio de
profisses e atividades econmicas.6 Trata-se de princpio
estruturante da ordem jurdica capitalista, que preconiza a
liberdade dos agentes privados indivduos, coletividades ou empresas
para empreenderem atividades econmicas, no ambiente do mercado.7 A
livre iniciativa envolve tanto a liberdade de iniciar uma
6 Cf. Modesto Carvalhosa. Direito Econmico: Obras Completas. So
Paulo: Revista dos Tribunais, 2013,
pp. 110-112. 7 No mesmo sentido, Francisco Amaral definiu a
livre iniciativa como a liberdade dos particulares de
utilizarem recursos materiais e humanos na organizao de sua
atividade produtiva, liberdade, enfim, dos particulares de
decidirem o que, quando e como produzir. (A liberdade de iniciativa
econmica. Fundamentos, natureza e garantia constitucional. Revista
de Informao Legislativa, n 92, 1996, p. 228).
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atividade econmica, como de organiz-la, geri-la e conduzi-la.8 O
princpio abarca uma srie de componentes, muitos deles tambm
previstos em outros preceitos constitucionais, como a liberdade de
empresa (art. 170, Pargrafo nico, CF), a proteo da propriedade
privada (art. 5, XXII e 170, II, CF) inclusive dos meios de produo
; e a autonomia negocial.9 Nas palavras de Miguel Reale, a livre
iniciativa
(...) no seno a projeo da liberdade individual no plano da
produo, circulao e distribuio de riquezas, assegurando no apenas a
livre escolha das profisses e atividades econmicas, mas tambm a
autnoma eleio dos processos ou meios julgados mais adequados
consecuo dos fins visados. Liberdade de fins e de meios informa o
princpio de livre iniciativa, conferindo-lhe um valor primordial,
como resulta da interpretao conjugada dos citados arts. 1 e
170.10
certo que o princpio da livre iniciativa no ostenta carter
absoluto e incondicional na ordem constitucional brasileira.
Afinal, a Constituio de 88 est longe de consagrar um modelo
econmico libertrio, moda do laissez-faire do sculo XIX, como se
percebe de outros fundamentos, objetivos e princpios tambm
contemplados no seu art. 170 e.g., valorizao trabalho humano,
existncia digna, justia social, funo social da propriedade, defesa
do meio ambiente, reduo das desigualdades regionais e sociais.
Nossa Constituio legitima a interveno estatal na economia no apenas
para corrigir as chamadas falhas do mercado,11 como tambm
8 Nesse sentido, registraram J. J. Gomes Canotilho e Vital
Moreira: A liberdade de iniciativa tem um duplo
sentido. Consiste, por um lado, na liberdade de iniciar uma
atividade econmica (liberdade de criao de empresa, liberdade de
investimento, liberdade empresarial) e, por outro, na liberdade de
organizao, gesto e atividade da empresa (liberdade de empresa,
liberdade do empresrio, liberdade empresarial). (Constituio da
Repblica Portuguesa Anotada. Vol I. Coimbra: Coimbra Editora, 2007,
p. 790). 9 Cf. Lus Roberto Barroso. A Ordem Econmica Constitucional
e os Limites Estatais Atuao Estatal
no Controle de Preos. In: Temas de Direito Constitucional. Tomo
II. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 50-51. 10
Miguel Reale. O Plano Collor II e a interveno do Estado na ordem
econmica. In: Temas de Direito Positivo. So Paulo: RT, 1992, p.
249. 11Sobre a interveno estatal voltada correo de falhas do
mercado na literatura jurdica brasileira, veja-se Carlos Emmanuel
Jopert Ragazzo. Regulao Jurdica, Racionalidade Econmica e
Saneamento Bsico. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, pp 18-30; e
Marcelo Zenni Travassos. A Legitimao jurdico-moral da regulao
estatal luz de uma premissa liberal-republicana. Rio de Janeiro:
Renovar, 2015, pp. 53-100.
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para promover outros objetivos fundamentais, como a igualdade
substantiva e da justia social.12
Sem embargo, o reconhecimento do carter fundante do princpio da
livre iniciativa em nossa ordem constitucional significa, como
consignou Trcio Sampaio Ferraz, que a estrutura da ordem est
centrada na atividade das pessoas e dos grupos, e no na atividade
do Estado.13 Nas suas palavras, que parecem talhadas para o
presente caso, a livre iniciativa acolhe e promove
a espontaneidade humana na produo de algo novo, de comear algo
que no estava antes. Essa espontaneidade, base da produo da
riqueza, o fator estrutural que no pode ser negado pelo Estado. Se,
ao faz-lo, o Estado a bloqueia e impede, no est intervindo, no
sentido de normar e regular, mas dirigindo, e com isso
substituindo-se a ela na estrutura fundamental do mercado14
Pode-se dizer que a livre iniciativa repousa em dois fundamentos
essenciais: trata-se de uma emanao relevante da liberdade
individual, que tambm deve se projetar na esfera econmica; bem como
de um meio voltado promoo da riqueza e desenvolvimento econmico, em
prol de toda a coletividade.
Em relao proteo dos direitos do indivduo, a ideia de que os
seres humanos tm projetos e fazem escolhas tambm no mbito da sua
vida econmica.15 A salvaguarda da sua liberdade e personalidade
restaria incompleta se no fosse estendida a esta seara a garantia
da sua autonomia, diante de pretenses autoritrias ou paternalistas
do Estado.16 Da porque, a regra geral deve ser a liberdade dos
particulares para se engajarem em
12
Veja-se, a propsito, a obra clssica de Eros Roberto Grau. A
Ordem Econmica na Constituio de 88 (interpretao e crtica). 17 ed.
So Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. 13
Trcio Sampaio Ferraz. Congelamento de preos Tabelamentos
oficiais. In: Revista de Direito Pblico, n 91, 1989, p. 77. 14
Idem, ibidem, p. 78. 15
Isto no significa, porm, que as liberdades econmicas e as
existenciais sejam protegidas pela ordem constitucional brasileira
com a mesma intensidade, o que no ocorre. Explorei o tema em Daniel
Sarmento. Direitos Fundamentais e Relaes Privadas. 2 ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 162 ss. 16
Para um extenso desenvolvimento do ponto no mbito da filosofia
constitucional, a partir de perspectiva liberal, veja-se Charles
Fried. Modern Liberty and the Limits of Government. New York: W.W
Norton & Company, 2007.
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atividades econmicas, desde que no lesem direitos de terceiros
ou interesses relevantes da comunidade.
Na dimenso coletiva, a premissa de que a sociedade tende a ser
mais prspera quando assegura a liberdade aos agentes econmicos, do
que quando o Estado se apropria dos meios de produo ou planifica
completamente a economia. A garantia da livre iniciativa estimula o
empreendedorismo, gerando maior riqueza social. No por outra razo,
Cass Sunstein, jurista insuspeito de simpatias libertrias, afirmou
que os mercados livres so motores de produtividade econmica.17
Ademais, o funcionamento regular de um mercado competitivo tende a
ser instrumento mais eficiente para a captao e satisfao das
necessidades e preferncias de um universo amplo e plural de pessoas
do que a atuao de qualquer autoridade pblica. Por isso, o bem-estar
coletivo promovido quando as instituies asseguram a livre
iniciativa e preservam as regras do jogo em que ela se desenvolve
de modo saudvel18 o que no exclui, claro, a interveno estatal na
economia voltada promoo de outros objetivos legtimos que o mercado
no atende bem, como a distribuio de riqueza.
Apesar da falncia do socialismo real, simbolizada pela queda do
Muro de Berlim, o princpio da livre iniciativa ainda , no Brasil e
em boa parte do mundo, objeto de acesas controvrsias ideolgicas.
Nada obstante, o poder constituinte originrio fez a legtima escolha
no s de positiv-lo, como tambm de elev-lo condio de fundamento da
Repblica. Esse dado fundamental no pode ser ignorado pelo intrprete
na exegese dos preceitos constitucionais e legais que disciplinam a
atividade econmica no Brasil inclusive o transporte individual de
passageiros. que, como destacou Fbio Konder Comparato que
certamente no pode ser tachado de neoliberal , o carter fundamental
do princpio da livre iniciativa na ordem jurdica brasileira importa
que todas as normas constantes no sistema da legislao ordinria, no
campo econmico, devem ser interpretadas luz desse princpio.19
17
Cass R. Sunstein. Free Markets and Social Justice. New York:
Oxford University Press, 1997, p. 3. 18
Veja-se, nesta linha, a obra clssica do Prmio Nobel de Economia
Douglass C. North. Institutions, Institutional Change and Economic
Performance. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. 19
Fbio Konder Comparato. Regime constitucional de controle de
preos. In: Direito Pblico: Estudos e Pareceres. So Pauo: Saraiva,
1996, p. 102.
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2.3. O princpio constitucional da livre concorrncia
Profundamente ligado livre iniciativa, o princpio da liberdade
de concorrncia, previsto no art. 170, inciso IV, da Constituio,
outro pilar essencial da ordem econmica brasileira. Tal princpio se
volta, essencialmente, proteo da livre competio entre os agentes
econmicos no mercado, em prol do consumidor, da eficincia econmica
e de outros objetivos socialmente importantes.20 Nas palavras de
Paula Forgioni, a livre concorrncia consiste, basicamente, na
garantia da disputa no campo econmico.21
A premissa bsica a de que, em um mercado competitivo, amplia-se
o direito de escolha do consumidor, os preos das mercadorias e
servios tendem a cair, e a sua qualidade a se elevar, em proveito
de todos.22 A competio proporciona tambm uma melhoria na eficincia
alocativa da economia, ao fazer com que os preos dos produtos
correspondam aos valores que a sociedade lhes atribui, assim como
na eficincia produtiva das empresas, que so levadas a reduzir os
seus custos e aperfeioar os bens e servios que fornecem, no af de
prosperarem no mercado.23 A concorrncia estimula, nesse sentido, a
inovao e o progresso. Ademais, ela se liga garantia da igualdade de
oportunidades entre os agentes econmicos, na medida em se
concretiza por meio da disputa equnime dos competidores no mercado,
que incompatvel com a criao de privilgios ou imposio de barreiras
estatais que beneficiem ou prejudiquem quaisquer deles.
20
Existe polmica a propsito das finalidades da proteo concorrncia,
que no convm aqui examinar. Veja-se a propsito, com posies muito
distintas, Calixto Salomo. Direito Concorrencial. So Paulo:
Malheiros, 2013, pp. 76-121; Robert H. Bork. The Antitrust Paradox:
A policy at war with itself. New York: The Free Press, 1978; Jack
B. Kirwood & Robert H. Lande. The Fundamental Goal of
Antitrust: protecting consumers, not increasing efficiency. Notre
Dame Law Review, n 191, 2008, pp. 191-243. 21
Paula Forgioni. Princpios constitucionais econmicos e princpios
constitucionais sociais. A formatao jurdica do mercado brasileiro.
Revista do Advogado, n 117, 2012, p. 167. 22
Nesse sentido, o magistrio de Lus Roberto Barroso sobre o
princpio da livre concorrncia: Nele se contm a crena de que a
competio entre os agentes econmicos, de um lado, e a liberdade de
escolha dos consumidores, de outro, produziro os melhores
resultados sociais: qualidade dos bens e servios e preo justo (A
Ordem Econmica Constitucional e os Limites Atuao Estatal no
Controle de Preos. In: Temas de Direito Constitucional. Tomo II.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 58). 23
O tema das vantagens econmicas da concorrncia extensamente
discutido em Richard A. Posner. Antitrust Law. 2 ed. Chicago: The
University of Chicago Press, 2001.
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A livre concorrncia gera, ainda, consequncias polticas
relevantes, pois tende a dispersar o poder econmico, dificultando a
formao de grupos com excessiva influncia sobre o governo e a
sociedade.24 Os objetivos principais da proteo livre concorrncia
foram sintetizados em deciso da Suprema Corte norte-americana
referente ao Sherman Act, que o principal diploma normativo sobre a
matria naquele pas:
Ele (o Sherman Act) se baseia na premissa de que a interao livre
de foras competitivas vai acarretar a melhor alocao dos nossos
recursos econmicos, os preos mais baixos, a melhor qualidade e o
maior progresso material, criando, ao mesmo tempo, um ambiente
propcio preservao das nossas instituies democrticas polticas e
sociais25
O princpio da livre concorrncia tem uma dupla face. Por um lado,
ele limita o Estado, que no pode instituir restries excessivas que
impeam os agentes econmicos de ingressar, atuar e competir
livremente no mercado. Por outro, o princpio impe que o Poder
Pblico atue sobre o mercado, para proteger a sua higidez,
prevenindo e coibindo abusos do poder econmico e prticas
anticoncorrenciais, como a formao de monoplios, oligoplios, cartis
etc. que o princpio no pressupe, romanticamente, a existncia de um
mercado atomizado, formado por agentes econmicos de igual poder,
competindo em condies equnimes pela preferncia do consumidor. Pelo
contrrio, diante da constatao de que, quando livre de todas as
amarras, o poder econmico tende a se concentrar patologicamente em
detrimento da concorrncia, o princpio impe a atuao comissiva do
Estado, em favor da sade do prprio mercado.26 No plano
infraconstitucional, essa atuao comissiva tem como diploma central
a Lei n 8.884/94 (com as alteraes promovidas pela Lei n
12.529/2011), que dispe sobre a preveno e a represso s infraes
contra a ordem econmica.
24
Cf. Eduardo Ferreira Jordo. Restries Regulatrias Concorrncia.
Belo Horizonte: Ed. Frum, 2009, p. 25. 25
Northern Pac. Ry. Co. v. United States, 365 U.S. 1 (1958).
Traduo livre. No original It rests on the premise that the
unrestrained interaction of competitive forces will yield the best
allocation of our economic resources, the lowest prices, the
highest quality and the greatest material progress, while at the
same time providing an environment conducive to the preservation of
our democratic political and social institutions. 26Cf. Eros
Roberto Grau. A Ordem Econmica na Constituio de 1988 (interpretao e
crtica). Op. cit., pp. 205-210.
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Para os fins desta Consulta, interessa mais diretamente a faceta
negativa do princpio da livre concorrncia, que se volta limitao do
poder estatal de intervir na economia, restringindo o acesso e a
atuao de particulares no mercado. Afinal, o que est em discusso se
os motoristas parceiros da UBER podem ou no ingressar no mercado do
transporte individual de passageiros, competindo com os taxistas.
Ou, em outras palavras, debate-se se o cidado deve ou no ter acesso
a essa alternativa de transporte, para que possa exercer a sua
liberdade de escolha, ou se, ao contrrio, o Estado instituiu uma
reserva de mercado em favor dos txis.
Recorde-se, nesse ponto, que, conquanto a liberdade de
concorrncia proteja os agentes econmicos diante de regulaes
estatais restritivas, o seu foco principal no a proteo desses
agentes, mas sim a tutela dos interesses dos consumidores, que so
prejudicados pela imposio de limites injustificados sua liberdade
de escolha.27 Portanto, a criao de embaraos estatais competio, com
a instituio de reservas e privilgios a empresas ou grupos
especficos, viola no apenas os direitos dos potenciais concorrentes
prejudicados. Mais que isso, ela ofende os interesses dos
consumidores e da prpria sociedade.28
A dimenso negativa do princpio da livre concorrncia vem sendo
acentuada pela jurisprudncia do STF, exatamente para rechaar a
criao legal de reservas de mercado. Assim, a Corte afirmou a
inconstitucionalidade, em face da Constituio passada, de lei que
estabelecera o monoplio de empresa de telefonia para a publicao de
listas telefnicas.29 Na mesma trilha, aps proferir sucessivas
decises nesse sentido, o STF 27
Nas palavras de Calixto Salomo, toda a teorizao econmica do
direito anticoncorrencial baseia-se na proteo do consumidor.
(Direito Concorrencial. Op.cit., p. 104). Veja-se, a propsito,
Robert H. Lande e Neil W. Averitt. Using the Consumer Choice
Approach to Antitrust Law. Antitrust Law Journal, vol. 77, 2007,
pp. 175-264. 28
Nesse sentido, veja-se Victor Rheim Schirato. Livre Iniciativa
nos Servios Pblicos. Belo Horizonte: Ed. Frum, 2012, p. 146. 29
STF, 1 Turma, RE 15876, Rel. p/ ac. Min. Seplveda Pertence, DJe
05/10/2007. A ementa do acrdo tem a seguinte redao: Servios
telefnicos. Explorao. Edio de Listas ou Catlogos Telefnicos e Livre
Concorrncia. Se, por um lado, a publicao e a distribuio de listas
telefnicas constitua um nus das concessionrias de servio de
telefonia que podem cumpri-lo com ou sem a veiculao de publicidade
no se pode dizer que estas tinham exclusividade para faz-lo. O
artigo 2 da L. 6.874/80 (A edio ou divulgao das listas referidas no
2 do art. 1 desta Lei, sob qualquer forma ou denominao, e a
comercializao da publicidade nelas inserta so de competncia
exclusiva da empresa exploradora do respectivo servio de
telecomunicaes, que dever contrat-las com terceiros, sendo
obrigatria, em tal caso, a realizao de licitao) era
inconstitucional tendo em vista a Carta de 1969 na medida em que
institui reserva de mercado para a comercializao das listas
telefnicas em favor das empresas concessionrias. RE desprovido.
-
13
editou a Smula Vinculante n 46, segundo a qual ofende o princpio
da livre concorrncia lei municipal que impede a instalao de
estabelecimentos comerciais do mesmo ramo em determinada rea.30
certo que a liberdade de concorrncia, tal como a livre
iniciativa, no protegida pela Constituio de modo absoluto.
Princpios constitucionais eventualmente colidentes, como a proteo
ao meio ambiente,31 podem justificar a imposio de restries
proporcionais a esse importante princpio constitucional. Porm, no
caso do UBER, como se ver adiante, no h qualquer razo legtima que
justifique a restrio concorrncia, que no passa de tentativa de
reserva de mercado para taxistas no transporte individual de
passageiros.
De todo modo, indiscutvel que, como princpio constitucional de
regncia da ordem econmica, a livre concorrncia representa vetor
inafastvel para a interpretao das normas legais que disciplinam o
transporte individual de passageiros.
3. Constituio, servios pblicos e atividade econmica stricto
sensu
3.1. Noes Gerais
Em sentido amplo, a atividade econmica compreende tambm a
prestao de servios pblicos, uma vez que estes mobilizam recursos
escassos para a satisfao de necessidades sociais.32 De todo modo, a
doutrina e jurisprudncia nacional aludem existncia de dois campos
distintos da atividade econmica em sentido amplo, sujeitos a
regimes constitucionais significativamente diversos: a atividade
econmica em sentido
30
STF, Plenrio, DJe 23/06/2015. 31
Cf. STF, Plenrio, ADPF 101, Rel. Min. Carmen Lcia, DJe
04/06/2012. Nessa deciso, afirmou-se que uma ponderao entre, de um
lado, a proteo ao meio ambiente, e, do outro, a livre concorrncia e
livre iniciativa, justificavam a proibio de importao de pneus
usados de pases no pertencentes ao Mercosul. 32
Cf. Eros Roberto Grau. A Ordem Econmica na Constituio de 1988
(interpretao e crtica). Op. cit, pp.89-150; Lus Roberto Barroso. A
Ordem Econmica Constitucional e o Limite Atuao Estatal no Controle
de Preos. Op. cit., p. 67.
-
14
estrito, campo de atuao prioritria da iniciativa privada, e o
servio pblico, setor titularizado pelo Estado.33
Na atividade econmica em sentido estrito, a interveno direta do
Estado, consistente na sua atuao empresarial, deve ser excepcional,
e s se justifica, nos termos da Carta de 88, quando necessria aos
imperativos de segurana nacional ou relevante interesse coletivo,
conforme definidos em lei (art. 173, caput). Ao intervir
diretamente na economia, o Estado, via de regra, vale-se de
empresas pblicas ou sociedades de economia mista e suas subsidirias
(art. 173, 1, CF),34 que atuam em concorrncia com os particulares,
sendo constitucionalmente vedada, nesta competio, a concesso de
vantagens e benefcios aos entes estatais no extensivos iniciativa
privada (art. 173, inciso II e 2, CF). H tambm hipteses
excepcionalssimas de monoplio estatal sobre atividades econmicas em
sentido estrito (e.g., art. 177, incisos I a V, CF). De acordo com
a doutrina dominante, tais hipteses, que representam graves
restries aos princpios da livre iniciativa e da livre concorrncia,
so apenas aquelas taxativamente previstas pela prpria
Constituio.35
O Estado tambm detm o poder de intervir indiretamente sobre a
atividade econmica em sentido estrito, para normatiz-la, exercer o
poder de polcia e fomentar atuaes privadas consideradas socialmente
desejveis (cf. art. 174, caput, CF).36
33
De acordo com Celso Antnio Bandeira de Mello, a separao entre os
dois campos servio pblico, como setor pertencente ao Estado, e
domnio econmico, como campo reservado aos particulares, induvidosa.
(Curso de Direito Administrativo. 13 ed., So Paulo: Malheiros,
2001, p. 610. 34
Na atualidade, fala-se tambm em mecanismos de
neointervencionismo pblico na atividade econmica em sentido
estrito, que se realiza sob novas formas, como a deteno de golden
shares aes que do poderes especiais aos seus titulares em empresas
privadas, participao minoritria estratgica em sociedades (empresas
pblico-privadas), e parcerias societrias entre estatais e empresas
privadas. Veja-se, a propsito, Alexandre dos Santos Arago. Empresa
pblico-privada. Revista dos Tribunais, v. 98, n 980, 2009, pp.
33-68. 35
Nesse sentido, e.g., Lus Roberto Barroso. Regime Constitucional
do Servio Postal. Legitimidade da Atuao da Iniciativa Privada. In:
Temas de Direito Constitucional. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar,
2003, pp. 171-173; Fbio Konder Comparato. Monoplio pblico e domnio
pblico Explorao indireta da atividade monopolizada. In: Direito
Pblico: Estudos e Pareceres. Op. cit., pp. 146-153. Em sentido
contrrio, cf. Cludio Pereira de Souza Neto e Jos Vicente Santos de
Mendona. Fundamentalizao e fundamentalismo na interpretao do
princpio da livre iniciativa. Op. cit. 36
H diversas classificaes sobre as formas de interveno do Estado
na economia. Uma classificao didtica e influente, da lavra de Lus
Roberto Barroso alude interveno direta, atravs da prestao de
servios pblicos e da explorao de atividades econmicas; e interveno
indireta, por meio da disciplina e do fomento. (cf. Modalidades de
interveno do Estado na ordem econmica. Regime jurdico das
sociedades de economia mista. Inocorrncia de abuso de poder
econmico. In: Temas de Direito Constitucional, Tomo I. Rio de
Janeiro: Renovar, 2001, pp. 395-398). Aqui, parto da classificao
proposta
-
15
Evidentemente, a interveno indireta do Estado sobre a atividade
econmica em sentido estrito no est livre de amarras
constitucionais. Pelo contrrio, alm das normas constitucionais que
regem a atividade econmica dentre os quais figuram os princpios da
livre iniciativa e da livre concorrncia37 o desempenho dessa funo
estatal tem de observar vrias outras limitaes importantes, como o
respeito aos princpios da proporcionalidade, da legalidade e da
igualdade. Nessa rea, a regra geral, que tem substrato
constitucional como j se viu nos itens anteriores , a liberdade do
particular para atuar no mercado, que nota essencial dos regimes
capitalistas, como o consagrado pela Constituio de 88.
J o campo dos servios pblicos cometido prioritariamente ao Poder
Pblico pela Constituio (art. 175, caput, CF). De acordo com a
doutrina dominante e a jurisprudncia do STF,38 cabe ao legislador a
deciso poltica sobre manter sob a exclusividade estatal a prestao
de cada servio pblico, ou possibilitar que o particular tambm atue,
em regime de concesso ou permisso do poder pblico.39 Sob essa
perspectiva, sequer incidiriam nesse campo os princpios da livre
iniciativa e da livre
por Barroso, apenas diferenciando, no mbito do que ele chamou de
disciplina, a atividade normativa do Estado do exerccio do poder de
polcia sobre a atividade econmica. 37
Nessa linha, decidiu o STF: I- A interveno estatal na economia,
mediante regulamentao e regulao de setores econmicos, faz-se com
respeito aos princpios e fundamentos da Ordem Econmica. CF, art.
170. O princpio da livre iniciativa fundamento da Repblica e da
Ordem econmica: CF, art. 1, IV; art. 170. (2 Turma, RE 422.941-2,
Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 24/03/2005). 38
Cf. STF, Plenrio, ADPF n 46, Rel. p/ ac. Min. Eros Grau, DJe
26/02/2010. 39
Ressalte-se, porm, que a prpria Constituio contempla inequvocas
excees a esta regra, quando abre iniciativa privada a prestao de
servios pblicos nas reas de sade e educao (cf. arts. 197, 199 e
209, CF)
-
16
concorrncia, j que o Estado pode legitimamente optar por prestar
os servios pblicos em regime de monoplio ou privilgio, sem abri-los
participao dos particulares.40 41
Por ser o titular dos servios pblicos mesmo quando prestados por
particulares cabe ao Estado disciplin-los em detalhe, dispondo
sobre aspectos como os tipos de atividade a serem executadas, os
direitos e deveres dos prestadores e usurios, as tarifas etc. Na
rea dos servios pblicos, portanto, a atuao normativa do Estado,
conquanto tambm sujeita a limites, desfruta de liberdade muito
maior do que a existente no mbito da atividade econmica stricto
sensu.
Em outras palavras, no cabe ao Estado, via de regra, ditar o
preo dos bens e servios oferecidos pelas empresas no mercado, mas
ele pode fixar as tarifas cobradas pelos particulares que prestam
servios pblicos. Do mesmo modo, no lcito ao Poder Pblico, em geral,
definir o modo como os agentes privados exercero as suas atividades
econmicas, buscando atrair a clientela e prosperar. O Estado pode,
certo, instituir limites para essas atividades, visando preservao
de direitos de terceiros ou de interesses da coletividade, mas no
pode se substituir aos particulares em suas decises empresariais
legtimas, privando-os, por exemplo, da possibilidade de inovar, de
criar um
40
Eduardo Ferreira Jordo sintetizou com clareza esta orientao
predominante: No tocante aos servios pblicos, a prpria Constituio
quem estabelece uma exceo aos princpios da livre iniciativa e da
livre concorrncia. Para estes servios, a regra no a liberdade de
iniciativa empresarial, a regra no a livre competitividade. (...).
A excluso dos deveres estatais relativos competitividade, para o
mbito da regulao dos servios pblicos, explcita. Primeiro, porque se
permite ao Poder Pblico prestar diretamente o servio, mesmo
monopolisticamente. Segundo porque se lhe autoriza expressamente o
controle das tarifas e o estabelecimento de regras cogentes
relativas qualidade do servio. Terceiro, porque do Poder Pblico se
exige que controle a entrada nos mercados correspondentes a estes
servios. Note-se que, no tocante ao controle de entrada, a regra
constitucional at mesmo impositiva: se servio pblico, no est aberto
livre iniciativa dos operadores particulares. A prestao privada
deste servio depender de prvia concesso ou permisso do Poder Pblico
(Restries Regulatrias Concorrncia. Op. cit., pp. 47-48). No mesmo
sentido, veja-se, e.g., Eros Roberto Grau. A Ordem Econmica na
Constituio de 1988 (interpretao e crtica). Op. cit, pp.89-150; e
Maral Justen Filho. Teoria Geral das Concesses de Servio Pblico. So
Paulo: Dialtica, 2003, p. 39. 41
Saliente-se, todavia, que vem se fortalecendo na doutrina outra
corrente, ainda minoritria, que afirma que, como os servios pblicos
visam a atender a direitos e interesses dos cidados, e no os do
Estado, quando os primeiros forem melhor servidos pela competio de
agentes econmicos prestadores, o princpio da livre concorrncia
tambm se aplicaria, embora com matizaes prprias. Veja-se, nessa
linha, Alexandre dos Santos Arago. Direito dos Servios Pblicos. Rio
de Janeiro: Forense, 2007, pp. 407-490; Floriano de Azevedo
Marques. A nova regulao dos servios pblicos. Revista Eletrnica de
Direito Administrativo, n 1, 2005; e Vitor Rhein Schirato. Livre
Iniciativa nos Servios Pblico. Op. cit. Essa , desde sempre, a
orientao predominante nos Estados Unidos, em que as public
utilities ideia mais prxima no Direito norte-americano ao nosso
servio pblico so, em geral, titularizadas por particulares, embora
sujeitas a intensa regulao estatal. De acordo com Sabino Cassese,
tambm na Europa contempornea h uma tendncia no campo dos servios
pblico de abertura maior concorrncia, sobretudo em razo da
influncia do Direito Comunitrio (La Nuova Costituzione Economica.
Roma: Editori Laterza, 1995, pp. 71-90)
-
17
novo negcio e oferec-lo ao mercado consumidor. Porm, no campo
dos servios pblicos no assim: como titular do servio, cabe ao
Estado estabelecer a forma como este deve ser prestado, mesmo
quando houver delegao da prestao a particulares. Portando, existe
uma diferena marcante entre os regimes constitucionais da atividade
econmica stricto sensu e do servio pblico, mesmo quando prestado
por entes privados: naquela, a regra a liberdade do particular, e a
exceo a sua submisso s escolhas estatais, enquanto nesse ltimo d-se
justamente o inverso desde que, claro, as escolhas estatais sejam
conformes ordem jurdica e ao interesse pblico.
Demarcadas, de forma muito abreviada, algumas das diferenas mais
significativas entre o regime constitucional da atividade econmica
em sentido estrito e o vigente para os servios pblicos, percebe-se
claramente a importncia prtica de se enquadrar uma determinada
atividade em um ou noutro campo. O tema, como no poderia deixar de
ser, se afigura extremamente relevante tambm em relao ao transporte
individual de passageiros. Por isso, discutir-se-, no prximo item,
os fatores que permitem a identificao de uma atividade como servio
pblico, sendo certo que, sempre que isso no ocorrer, ela ser
enquadrada como atividade econmica em sentido estrito.
3.2. Critrios para distino entre servio pblico e atividade
econmica em sentido estrito
Um dos temas mais polmicos no Direito Pblico a forma de
diferenciar o servio pblico da atividade econmica em sentido
estrito. que os contornos desses institutos, alm de no estarem
expressamente definidos pela Constituio, tendem a variar no tempo e
no espao, ao sabor de mudanas polticas, econmicas, sociais,
tecnolgicas e culturais.42
H hipteses em que a caracterizao de determinada atividade como
servio pblico se afigura indiscutvel, em razo de expressa
determinao constitucional, j que a Constituio de 88 aludiu a uma
srie de servios pblicos (e.g., art. 20, incisos X, XI, 42
Cf. Lus Roberto Barroso. Regime constitucional do servio postal.
Legitimidade da atuao da iniciativa privada. Op. cit., p. 154; Hely
Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro. 19 ed., So
Paulo: Malheiros, 1994, p. 294.
-
18
XII). Cabe notar, neste particular, que a Carta de 88 no faz
qualquer referncia ao transporte individual de passageiros como
servio pblico (a Constituio menciona, isto sim, o transporte
coletivo de interesse local atribudo titularidade municipal - art.
30, inciso V, CF)
De acordo com a doutrina majoritria, qual me filio, tambm a lei
pode caracterizar uma atividade como servio pblico,43 por meio do
que se denomina de publicatio ou publicizao. Portanto, no h reserva
de Constituio para a criao de servios pblicos,44 embora existam
limites constitucionais intransponveis a esta atividade do
legislador. Para deline-los, necessrio realizar um rpido exame de
alguns aspectos tericos atinentes ao servio pblico.
A doutrina tradicional afirmava a presena de trs aspectos
distintivos do servio pblico: o subjetivo ou orgnico, ligado
prestao do servio pelo Estado; o objetivo ou material, relacionado
natureza da atividade, voltada satisfao de necessidades coletivas
relevantes; e o formal, correspondente submisso da atividade a um
regime jurdico peculiar de Direito Pblico.45 Porm, aponta-se
atualmente a existncia de crise nesta noo tradicional,46 ligada a
mutaes sociais relevantes, bem como ao fato de que, com grande
frequncia, tais critrios se encontram dissociados e se revelam
ambguos ou insuficientes. O critrio subjetivo tornou-se invivel,
seja em razo da prestao de servios pblicos tambm por particulares,
seja pela explorao direta da atividade econmica em sentido estrito
pelo Estado. O critrio objetivo, por sua vez, de difcil
43
Cf., e.g., Maral Justen Filho. Curso de Direito Administrativo.
Op. cit., pp. 737-738; Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Direito
Administrativo. 20 ed., So Paulo: Atlas, 2007, p. 88; Alexandre dos
Santos Arago. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro:
Forense, 2012, p. 370; Celso Antnio Bandeira de Mello. Curso de
Direito Administrativo. Op. cit., pp. 607-609. 44
Consigne-se, porm, que existe posio contrria, sustentando que
como o Estado, ao instituir um servio pblico, restringe a livre
iniciativa e a livre concorrncia que so princpios constitucionais
-, o legislador no poderia faz-lo, em razo da supremacia da
Constituio. Veja-se, nesse sentido, Fernando Herren Aguilar.
Controle Social dos Servios Pblicos. So Paulo: Max Limonad, 1990,
pp. 133 ss. 45
Cf. Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro. Op.
cit., p. 294. 46
Cf. Gaspar Orio Ortiz. El Nuevo Servicio Pblico. Madrid: Marcial
Pons, 1997; Alexandre dos Santos Arago. O servio pblico e suas
crises. In: Alexandre dos Santos Arago e Floriano de Azevedo
Marques (Orgs.). Direito Administrativo e seus Novos Paradigmas.
Belo Horizonte: Forum, 2008, pp. 421-440; Maral Justen Filho. Curso
de Direito Administrativo. 10 ed., So Paulo: Revista dos Tribunais,
2014, p. 747.
-
19
manejo, pela sua extrema fluidez e variabilidade, muito
dependente de compreenses ideolgicas sobre o papel do Estado na
sociedade.
Diante desse cenrio, uma corrente importante de publicistas
brasileiros advoga a tese de que o elemento fundamental para a
caracterizao do servio pblico o formal: o regime jurdico ao qual a
atividade esteja submetida. Tal posio capitaneada por Celso Antnio
Bandeira de Mello, para quem o elemento formal, isso , a submisso a
um regime de Direito Pblico, o regime jurdico-administrativo, o que
confere carter jurdico noo de servio pblico.47
Sem embargo, o prprio elemento formal, conquanto de indiscutvel
importncia, tambm atravessa crise e revela insuficincias. que, na
contemporaneidade, se manifesta forte tendncia relativizao dos
institutos e princpios que tradicionalmente caracterizam o regime
jurdico-administrativo. No campo dos servios pblicos, tal tendncia
se manifesta, por exemplo, no emprego de tcnicas regulatrias mais
flexveis, pautadas pela busca da consensualidade e eficincia, na
eventual abertura para a concorrncia, e em fenmenos correlatos, que
pem em xeque alguns purismos e
ortodoxias conceituais.48
Ademais, o foco exclusivo no regime jurdico para a caracterizao
do servio pblico provocaria uma subverso hierrquica, em detrimento
dos princpios constitucionais da livre iniciativa e livre
concorrncia. Isso porque, o legislador quem, em geral, estabelece o
regime jurdico ao qual se submetem as atividades econmicas em
sentido lato. Ora, se o legislador pudesse, ao seu alvitre,
estabelecer o regime jurdico do servio pblico para qualquer
atividade que lhe aprouvesse, permitir-se-ia, por vias oblquas, que
ele suprimisse espaos relevantes da iniciativa privada e institusse
monoplios pblicos, ao arrepio da Constituio. Imagine-se, por
exemplo, uma lei que publicizasse a produo e comercializao de
perfumes, de cerveja ou de automveis, submetendo-as ao regime
jurdico peculiar dos servios pblicos e alijando dessas atividades
as empresas privadas. Haveria, no caso, manifesta
inconstitucionalidade, por afronta aos princpios de regncia da
ordem econmica.
47
Celso Antnio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo.
Op. cit., p. 600. 48
Veja-se, a propsito, Floriano de Azevedo Marques Neto. A nova
regulao dos servios pblicos. Op. cit; e Alexandre dos Santos Arago.
O servio pblico e suas crises. Op. cit.
-
20
Esse ponto reconhecido at mesmo pelos defensores da hegemonia do
critrio formal para a caracterizao do servio pblico, que apontam
para o fato de que o legislador no pode se valer de qualquer
alquimia legal para transmudar em servio pblico aquilo que, luz dos
padres culturais e jurdicos vigentes, considerado atividade
tipicamente econmica, sob pena de absoluto esvaziamento normativo
da garantia constitucional da livre iniciativa.49
Da porque, tem-se buscado limitar a discricionariedade
legislativa nessa rea, a partir do elemento material ou objetivo do
servio pblico. Nesse sentido, por exemplo, Maral Justen Filho
sustenta que s podem ser qualificadas como servio pblico pelo
legislador as atividades vinculadas diretamente a um direito
fundamental, e que sejam, ademais, insuscetveis de satisfao
adequada mediante os mecanismos da iniciativa privada.50 Para o
autor, portanto, se uma atividade no apresentar conexo direta com
direitos fundamentais, ou se for possvel a satisfao das
necessidades subjacentes a esses direitos por meio da iniciativa
privada como no caso da produo de alimentos ou medicamentos ela no
poder ser concebida como servio pblico, independentemente da
vontade do legislador.
Toshio Mukai, por sua vez, associou o servio pblico natureza
essencial da necessidade coletiva por ele atendida51. J Eros
Roberto Grau afirmou que servio pblico
49
Nesse sentido, registrou Celso Antnio Bandeira de Mello: 21.
realmente o Estado, por meio do Poder Legislativo, que erige ou no
em servio pblico tal ou qual atividade, desde que respeite os
limites constitucionais. Afora os servios pblicos mencionados na
Carta Constitucional, outros podem ser assim qualificados, contanto
que no sejam ultrapassadas as fronteiras constitudas pelas normas
relativas `a ordem econmica, s quais so garantidoras da livre
iniciativa. que a explorao da atividade econmica, o desempenho de
servios pertinentes a esta esfera, assiste aos particulares e no ao
Estado. Este apenas em carter excepcional poder desempenhar-se
empresarialmente nesta rbita. 22. Sem embargo, o fato que o Texto
Constitucional, compreensivelmente, no define o que sejam
atividades econmicas. Em consequncia, remanesce ao legislador
ordinrio um certo campo para qualificar determinadas atividades
como servios pblicos, no que, indiretamente, gizar, por excluso, a
rea configurada como das atividades econmicas. lgico, entretanto,
que, em despeito desta margem de liberdade, no h, para o
legislador, liberdade absoluta. falta de uma definio
constitucional, h de se entender que o constituinte se remeteu ao
sentido comum da expresso, isto , ao prevalecente ao lume dos
padres de uma cultura de uma poca, das convices predominantes da
Sociedade. Por isso mesmo no total a liberdade do Legislativo, sob
pena de ser retirado qualquer contedo de vontade ao dispositivo da
Carta Magna, tornando-o letra morta, destitudo de qualquer valia e
significado (Curso de Direito Administrativo. Op. cit., pp.
609-610). 50
Maral Justen Filho. Curso de Direito Administrativo. Op. cit.,
pp. 727-738. 51
Nas suas palavras, servio pblico no pode ser seno aquilo que,
dentro de certas circunstncias de tempo e de lugar, tenha
transcendncia, pela sua necessidade e essencialidade para a
comunidade, alm de outros requisitos retirados da natureza das
coisas (Toshio Mukai, O Direito Administrativo e os regimes
jurdicos das empresas estatais. Belo Horizonte: Frum, 2004, p.
190).
-
21
atividade (...) indispensvel, num dado momento histrico,
realizao e ao desenvolvimento da coeso e interdependncia social
(Duguit).52
H divergncias entre essas posies, mas todas partem de um mesmo e
inobjetvel denominador comum: os princpios da livre iniciativa e da
livre concorrncia que, como visto, so pilares da nossa ordem
constitucional econmica impem limites inarredveis ao poder do
legislador de definir certas atividades como servios pblicos.
Ademais, de tais princpios decorre o dever, para o intrprete, de
evitar as exegeses legais cujo resultado subtraia da livre atuao
das empresas privadas aquelas reas em que no se justifique a sua
excluso.53
Vale ressaltar que o STF j manifestou o mesmo entendimento, em
questo atinente ao prprio setor de transportes. Discutiu-se no RE
220.999-754 se haveria responsabilidade civil da Unio em razo da no
prestao do servio de transporte fluvial de carga em determinado
rio. Para assentar a ausncia de responsabilidade civil, o STF
afirmou que o transporte fluvial de cargas no era servio pblico,
por no atender a qualquer necessidade coletiva essencial. O acrdo
tem trechos importantes, que sero abaixo reproduzidos, em razo da
sua pertinncia em relao ao objeto deste Parecer:
Nem se diga que o transporte fluvial dos servios que integram os
fins do Estado. O Prof. RUY CIRNE LIMA, quanto ao conceito de
servio pblico foi preciso: servio pblico todo servio existencial,
relativamente sociedade ou, pelo menos, assim havido num momento
dado, por isso mesmo tem que ser prestado pelos componentes
daquela, direta ou indiretamente, pelo Estado ou por outra pessoa
administrativa (...) No o que se passa, no caso, com o transporte
fluvial.
52
Eros Roberto Grau. A Ordem Econmica na Constituio de 1988
(interpretao e crtica). Op. cit., p. 132. 53
Nesse sentido, Lus Roberto Barroso sustentou que as normas que
criam servios pblicos no inerentes aqueles que, pela sua natureza,
s podem ser prestados pelo Estado, porque relacionados com o seu
poder de imprio s ser admitida com fundamento, ainda que genrico,
em outra norma constitucional e, em qualquer caso, dever ser
interpretada restritivamente, como convm s normas excepcionais e
restritivas de direitos (Regime Constitucional do Servio Postal.
Legitimidade da Atuao da Iniciativa Privada. Op. cit., p. 165).
54
STF, 2 Turma, RE 220.999-7, Rel. p/ ac. Min. Nelson Jobim, DJ
24/11/2000.
-
22
No indispensvel realizao e ao desenvolvimento da interdependncia
social (DUGUIT). No existencial para a sociedade.
Existenciais e indispensveis realizao e ao desenvolvimento da
interdependncia social so os servios pblicos ditos essenciais.
(...) A Unio no tem a obrigao constitucional, legal nem contratual
de oferecer os servios.
Ora, evidente que o transporte coletivo de passageiros constitui
servio pblico no s por expressa determinao constitucional (art 30,
V, CF) como tambm pelo seu indiscutvel carter essencial para a
coletividade. Mas ser que o mesmo pode ser dito do transporte
individual de passageiros? Ser que o poder pblico tem obrigao de
assegurar acesso a carro com motorista para o transporte individual
de cada cidado? O tema ser retomado mais frente, mas a resposta no
parece muito difcil...
3.3. Livre empresa, inovao e ausncia de regulamentao da
atividade econmica
Antes de passar ao exame da legislao sobre o transporte
individual de passageiros, conveniente firmar outra premissa
importante: a ausncia de regulamentao de determinada atividade
econmica em sentido estrito no importa em vedao ao seu exerccio,
mas em possibilidade de atuao do particular. o que decorre do
princpio da livre empresa, consagrado no art. 170, Pargrafo nico,
da Constituio, segundo o qual assegurado a todos o livre exerccio
de qualquer atividade econmica, independentemente de autorizao de
rgo pblicos, salvo nos casos previstos em lei.
O princpio em questo projeta, no mbito da atividade econmica, a
norma geral sobre a conduta dos particulares que vigora nas
sociedades democrticas, e que se baseia no respeito liberdade:
lcito fazer tudo aquilo que no seja proibido pelas normas
vigentes.
Existe uma sensvel diferena entre a forma de vinculao do Estado
e dos particulares perante as normas jurdicas, que tambm vale no
mbito da atividade
-
23
econmica: o primeiro se acha positivamente vinculado ordem
jurdica,55 e s pode fazer o que essa lhe impe ou autoriza, enquanto
os segundos so negativamente vinculados s leis, podendo atuar com
plena liberdade, sempre que inexista vedao ou imposio legal de
determinada conduta.56 Esta diferena tem fundamento
poltico-filosfico na compreenso de que, no Estado de Direito, os
poderes pblicos devem ser limitados, em prol da garantia dos
direitos fundamentais, mas os particulares devem ser tratados como
intrinsecamente livres.
Essa liberdade do particular se torna ainda mais relevante no
campo da inovao. Sabe-se que a existncia de um arcabouo normativo e
institucional favorvel vital para estimular a inovao na sociedade,
sem a qual no h progresso.57 A proteo e estmulo inovao , alis, um
trao caracterstico do Marco Civil da Internet58 ao qual se sujeita
a atividade da Consulente, cujo negcio se d no mbito digital. Nesse
sentido, o art. 2, inciso IV, da Lei 12.965/2014 estabelece como
fundamento do marco civil a livre iniciativa e livre concorrncia; o
seu art. 3, inciso VIII, fixa como princpio a liberdade de modelos
de negcios promovidos na internet; e o art. 4, inciso III, define
como objetivo a promoo da inovao e do fomento ampla difuso de novas
tecnologias e novos modelos de uso e acesso. Ora, condicionar a
possibilidade do particular de inovar existncia de prvia
regulamentao estatal da sua atividade no apenas inconstitucional.59
tambm desastroso, sob a perspectiva do desenvolvimento
55
Na contemporaneidade, a vinculao estatal ordem jurdica melhor
captada pela ideia de juridicidade do que pela de legalidade, pois
o primeiro termo expressa melhor a noo de que os poderes pblicos so
vinculados positivamente no apenas s leis formais, como tambm ao
ordenamento jurdico como um todo, especialmente Constituio e a seus
princpios. Veja-se, a propsito, Gustavo Binenbojm. Uma Teoria do
Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 137 ss.
56
clssica, nessa matria, a citao de Guido Zanobini: o indivduo
pode fazer tudo o que no lhe expressamente vedado, ao passo que a
Administrao pode fazer apenas o que a lei expressamente lhe
consente (LAttivit Legislativa e la Legge. In: Scritti Vari di
Diritto Pubblico. Milano: Giuffr, 1955, pp. 206-207) 57
Cf. Richard Stewart. Regulation, Innovation and Administrated
Law: A Conceptual Framework. California Law Review, v. 69, 1981,
pp. 1256 ss; Robert Cooter. Direito, Desenvolvimento: inovao,
informao e pobreza das naes. In: Luciano Bennetti Timm e Pedro
Paranagu (Orgs.). Propriedade intelectual, antitruste e
desenvolvimento. Rio de Janeiro: FGV, 2009, pp. 9- 34. 58
Ronaldo Lemos. O Marco Civil como smbolo do desejo por inovao no
Brasil. In: George Salomo Leite e Ronaldo Lemos (Orgs.). Marco
Civil da Internet. So Paulo: Atlas, 2014, pp. 3-11.
59 Ressalte-se, porm, que em certas atividades especialmente
lesivas ao meio ambiente e sade humana
certamente no esse o caso da Consulente os princpios ambientais
da preveno e da precauo impem matizaes e temperamentos em relao ao
princpio da livre empresa.
-
24
social, por asfixiar de modo intolervel a capacidade de inovao
dos agentes econmicos, em detrimento de toda a sociedade.
certo que a lei pode impor limitaes ao exerccio da atividade
empresarial, desde que sejam proporcionais e no restrinjam em
demasia a livre iniciativa e a livre concorrncia. Tais normas
restritivas devem se voltar proteo de objetivos legtimos - dentre
os quais certamente no figura a defesa corporativa de segmentos
econmicos prejudicados pela concorrncia. Ademais, para que qualquer
medida cerceadora da atuao da iniciativa privada na ordem econmica
seja vlida, ela tem de ser editada pelo ente federativo competente,
e se mostrar compatvel com o princpio da proporcionalidade,60 na
sua trplice dimenso61: deve ser adequada para os fins a que se
destina; necessria para o atingimento dos referidos fins, o que
decorre da inexistncia de mecanismos mais brandos para que sejam
alcanados os resultados pretendidos; e proporcional em sentido
estrito, por propiciar benefcios que superem, sob o ngulo dos
valores constitucionais em jogo, os nus impostos aos agentes
econmicos e sociedade, que sofrero os efeitos da restrio
imposta.
Assentada mais essa premissa, passa-se, finalmente, anlise da
legislao sobre transporte individual de passageiros.
4. Transporte individual de passageiros como atividade econmica
stricto sensu: interpretao da legislao vigente, restries
regulatrias e competncia legislativa
4.1 A interpretao constitucionalmente adequada da Lei n
12.587/2012
60
Sobre a aplicao do princpio da proporcionalidade na anlise de
normas restritivas livre concorrncia, veja-se Eduardo Ferreira
Jordo. Restries Regulatrias Concorrncia. Op. cit, pp. 63-80 61
Sobre o princpio da proporcionalidade e os subprincpios em que
se desdobra, veja-se Gilmar Ferreira Mendes. A proporcionalidade na
jurisprudncia do STF. In: Direitos Fundamentais e Controle de
Constitucionalidade. So Paulo: Celso Bastos, 1998, pp. 67-84;
Suzana Toledo de Barros. O Princpio da Proporcionalidade e o
Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos
Fundamentais. Braslia: Braslia Jurdica, 1996; Jane Reis Gonalves
Pereira. Interpretao Constitucional e Direitos Fundamentais. Rio de
Janeiro: Renovar, 2006, pp. 324-383.
-
25
A norma bsica de regncia de transportes urbanos no pas a Lei n
12.587/2012, que instituiu as diretrizes da Poltica Nacional de
Mobilidade Urbana. A referida lei, ao tratar dos transportes
urbanos no seu art. 3, 2, assim disps:
2. Os servios de transporte urbano so classificados: I- quanto
ao objeto: a) de passageiros; b) de cargas; II- quanto
caracterstica do servio:
a) coletivo b) individual; III- quanto natureza do servio:
a) pblico b) privado.
Portanto, a mencionada lei, alm de aludir ao servio de
transporte individual de passageiros de natureza pblica (art. 3, 2,
inciso I, a, c/c incisos II, b, e III, a) tambm contm referncia
expressa ao servio de transporte individual de passageiros de
natureza privada (art. 3, 2, inciso I, a, c/c incisos II, b, e III,
b).
verdade que o art. 4 da Lei n 12.587/2012 aludiu ao transporte
pblico individual de passageiros (inciso VIII)62, mas no contm
referncia sua modalidade privada.63 Isso, porm, no significa que o
legislador tenha deixado de reconhecer essa ltima modalidade. que o
artigo 4, como consta no seu caput, estabelece definies para os
fins da aplicao da Lei n 12.587/2012. Como a referida lei apenas
previu o
62
O referido preceito define o transporte pblico individual de
passageiros como servio remunerado de transporte de passageiro
aberto ao pblico, por intermdio de veculo de aluguel, para a
realizao de viagens individualizadas. O conceito no se estende ao
servio prestado pelos motoristas credenciados pela UBER, pois no
pode ser considerado aberto ao pblico o transporte que s possa ser
realizado para consumidores previamente cadastrados junto a uma
empresa privada.
63 H, porm, aluso na lei ao transporte motorizado privado (art.
4, inciso X), em que o servio de
transporte individual privado de passageiros se enquadra. O
instituto assim definido pelo legislador: meio motorizado de
transporte de passageiros utilizado para a realizao de viagens
individualizadas por intermdio de veculos particulares.
-
26
transporte privado individual de passageiros, mas no o regulou
ao contrrio do que fez com o pblico o legislador deve ter
considerado desnecessrio definir o primeiro.
certo que o transporte pblico individual de passageiros
atividade privativa dos taxistas, nos termos do art. 2 da Lei n
12.468, que regulamentou a profisso de taxista, e que reza:
Art. 2. atividade privativa dos profissionais taxistas a
utilizao de veculo automotor, prprio ou de terceiros, para o
transporte pblico individual remunerado de passageiros, cuja
capacidade ser, no mximo, de 7 (sete) passageiros. (grifei)
Contudo, no se concedeu aos taxistas o monoplio no exerccio de
toda a atividade de transporte individual de passageiros que
compreende as modalidades pblica e privada. O transporte individual
privado de passageiros, previsto na Lei n 12.587 atividade
desempenhada pelos motoristas parceiros da UBER no foi, nem poderia
ter sido, retirado pelo legislador do mbito da livre iniciativa e
livre concorrncia.
A Lei n 12.587 no um primor de clareza e de tcnica legislativa.
Mas do seu art. 12 se infere claramente que o transporte pblico
individual de passageiros a atividade desempenhada pelos taxistas.
Quando a lei foi editada, o referido preceito tinha a seguinte
redao:
Art. 12. Os servios pblicos de transporte individual de
passageiros, prestados sob permisso, devero ser organizados,
disciplinados e fiscalizados pelo poder pblico municipal, com base
nos requisitos mnimos de segurana, de higiene, de qualidade dos
servios e de fixao prvia dos valores mximos das tarifas a serem
cobradas.
Dito preceito legal foi alterado pela Lei n 12.865/2013, que
tambm acrescentou o art. 12-A, e respectivos pargrafos, Lei n
12.587/2012. Confira-se a redao dos mencionados dispositivos:
-
27
Art. 12. Os servios de utilidade pblica de transporte individual
de passageiros devero ser organizados, disciplinados e fiscalizados
pelo poder pblico municipal, com base nos requisitos mnimos de
segurana, de conforto, de higiene, de qualidade, de qualidade de
servios, de fixao prvia dos valores mximos das tarifas a serem
cobradas.
12-A. O direito explorao de servios de txi poder ser outorgado a
qualquer interessado que satisfaa os requisitos exigidos pelo poder
pblico local.
1. permitida a transferncia da outorga a terceiros que atendam
aos requisitos exigidos pelo poder pblico local.
2. Em caso de falecimento do outorgado, o direito explorao do
servio ser transferido a seus sucessores legtimos, nos termos dos
arts. 1.829 e seguintes do Ttulo II do Livro V da Parte Especial da
Lei n 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Cdigo Civil). 3. As
transferncias de que tratam os 1 e 2 dar-se-o pelo prazo de outorga
e so condicionadas prvia anuncia do poder pblico municipal e ao
atendimento dos requisitos fixados para a outorga.
A evoluo legislativa evidencia que, ao tratar do transporte
pblico individual de passageiros, o legislador mirou os servios de
txi. Mas demonstra, tambm, que, at pela nova tica do legislador, o
servio de txi no configura propriamente servio pblico, mas sim de
servio de utilidade pblica, que so institutos diferentes. O servio
pblico, como visto, titularizado pelo Estado, mas pode ser
eventualmente prestado por particulares, mediante concesso ou
permisso, sempre precedidas de licitao pblica, nos termos do art.
175 da Constituio. J o servio de utilidade pblica se enquadra no
campo da atividade econmica, mas se sujeita a intensa regulao e
fiscalizao estatal, em razo do interesse pblico inerente sua
prestao. Os servios de utilidade pblica, nas palavras de Alexandre
dos Santos Arago, so atividades da iniciativa privada para as quais
a lei, face sua relao com o bem-estar da coletividade e/ou por
gerarem desigualdades ou assimetrias informativas para os usurios,
exige autorizao prvia para que possam ser exercidas, impondo ainda
a sua contnua sujeio regulao do poder pblico autorizante, atravs de
um ordenamento jurdico setorial.64
64
Alexandre dos Santos Arago. Direito dos Servios Pblicos. Op.
cit., pp. 191-192.
-
28
Vale destacar que, muito antes da inovao legislativa, Celso
Antnio Bandeira de Mello j ressaltara que no h servio pblico
prestado pelos txis, mas servio de utilidade pblica, inserido no
mbito da iniciativa privada:
(...) os servios prestados pelos txis e quanto a isto nada
importa que o sejam por autnomos ou por empresas possuem especial
relevo para toda a coletividade, tal como se passa, alis, com
inmeras outras atividades privadas, devendo por isso ser objeto de
regulamentao pelo Poder Pblico, como de fato ocorre, mas obviamente
isto no significa que sejam categorizveis como servios
pblicos.(...) Nem a Constituio, nem a Lei Orgnica dos Municpios,
nem a lei municipal regente da matria qualificam os servios de txi
como servios pblicos. Contudo, a Constituio foi expressa em
qualificar como servio pblico o servio municipal de transporte
coletivo local de passageiros (art. 30, V), no se podendo, como
bvio, considerar casual a explcita meno a coletivo. Nisso, a toda
evidncia, ficou implcito, mas transparente, o propsito de excluir o
transporte individual de passageiros da categorizao de servio
pblico.65
A concluso no poderia ser diferente. que, como se demonstrou no
item 3.2 deste Parecer, h dois critrios relevantes para a
caracterizao do servio pblico: o regime jurdico e a natureza da
atividade. Nenhum dos dois compatvel com o enquadramento da
atividade de transporte individual de passageiros como servio
pblico.
Quanto ao regime jurdico, no h prvia licitao, seguida de
concesso ou permisso aos taxistas, como impe a Constituio para os
servios pblicos (art. 175, CF). No bastasse, o ttulo que enseja o
exerccio da atividade em questo pode ser alienado ou transmitido
causa mortis (art. 12-A, 1 e 2 da Lei n 12.587/2012), o que
absolutamente inconcilivel com a lgica do servio pblico. O
prestador do servio o taxista no obrigado a assegurar a sua
continuidade: nada o impede de deixar o seu txi parado, por longos
perodos, se assim preferir. No h, por outro lado, o inescusvel
dever do Estado de prest-lo (o servio de transporte individual de
passageiros) ou
65
Celso Antnio Bandeira de Mello. Servios Pblicos e Servio de
Utilidade Pblica Caracterizao dos Servios de Txi Ausncia de
Precariedade na Titulao para prest-los Desvio de Poder Legislativo.
In: Pareceres de Direito Administrativo. So Paulo: Malheiro, 2011,
pp. 216-217.
-
29
promover-lhe a prestao66 fator que o STF reputou essencial para
a caracterizao do servio pblico no julgamento do RE 220.999-7, no
trecho acima reproduzido.
No aspecto material, evidente que que o transporte individual de
passageiros seja o pblico, seja o privado no tem a nota da
essencialidade, que o STF reputou essencial na deciso proferida no
RE 220.999-7. fundamental assegurar a todos o acesso ao transporte,
mas a universalizao almejada do transporte coletivo, e no do
individual. Este ltimo consiste em atividade que, pelo seu custo,
tem como pblico alvo a parcela mais bem aquinhoada da populao. Como
observou ironicamente Floriano de Azevedo Marques Neto, seria
risvel um programa taxi para todos ou o subsdio nas tarifas do
transporte individual.67
Portanto, conclui-se que no h, na legislao de regncia, a
publicizao do transporte individual de passageiro, que permanece,
na sua totalidade, no mbito da atividade econmica em sentido
estrito. O transporte individual de passageiros compe-se, de todo
modo, de duas modalidades: a pblica, que configura servio de
utilidade pblica, sujeita assim a intensa regulao estatal, e que
prestada de modo privativo pelos txis; e a privada, prevista na
lei, que no foi ainda regulamentada o que, pelo princpio da livre
empresa (art. 170, Pargrafo nico) no impede a sua prestao pelos
particulares interessados em faz-lo.
Porm, ainda que se entenda que o transporte pblico individual de
passageiros prestado pelos txis corresponde a um autntico servio
pblico, isso no impede que se reconhea a sua coexistncia com a
atividade econmica, ainda no regulamentada, de transporte privado
individual de passageiros. Num ou noutro caso, tem-se um cenrio de
assimetria regulatria, fenmeno comum no Direito Econmico
contemporneo, que ocorre no pas em diversas outras reas, como a dos
portos, telefonia e energia eltrica, em que h regimes jurdicos
distintos aplicveis aos prestadores de setores diferentes de
determinada atividade econmica em sentido amplo.68
66
A expresso de Celso Antnio Bandeira de Mello. Curso de Direito
Administrativo. Op. cit., p. 601. 67
Floriano de Azevedo Marques Neto. O Estado contra o mercado:
Uber e o consumidor, publicado em 11/06/2015, disponvel em
www.migalhas.com.br/dePeso/16.MI221670,91041-Estado+contra+mercado+uber+e+o+consumidor.
68
Cf. Vitor Rhein Schirato. Livre Iniciativa nos Servios Pblicos.
Op. cit., pp. 288-293; Alexandre dos Santos Arago. Direito dos
Servios Pblicos. Op. cit., pp. 434-435.
-
30
Pode-se at entender que os preceitos da Lei n 12.587/2012
comportam outra exegese, diferente da que foi acima sustentada, que
no abre espao para o exerccio da atividade de transporte individual
privado de passageiros. Nesse caso, porm, ser necessrio recordar e
aplicar espcie o que foi exaustivamente discutido no incio deste
parecer: os princpios da livre iniciativa e da livre concorrncia so
vetores fundamentais de interpretao das normas que disciplinam as
atividades econmicas seja as que definem o seu regime, seja as que
demarcam as fronteiras entre atividades econmicas em sentido
estrito e os servios pblicos.
Ora, uma interpretao da Lei n 12.587/2012 que no reconhecesse
iniciativa privada a faculdade de levar aos consumidores
alternativas para o transporte individual de passageiros se
afastaria das referidas diretrizes hermenuticas vinculantes,
violando gravemente os princpios da livre iniciativa e da livre
concorrncia. Portanto, impe-se, at por fora do princpio da
interpretao conforme Constituio, a adoo da exegese da Lei n
12.587/2012 acima sustentada, que preserva a possibilidade do
exerccio de atividades econmicas como a da UBER e dos seus
motoristas parceiros. Isso ficar ainda mais claro aps a leitura do
prximo item.
4.2. A debilidade dos argumentos em favor da proibio dos servios
da Uber e de seus motoristas parceiros
As atividades da Consulente e de seus motoristas credenciados se
sujeitam regulao estatal, como todas as demais atividades econmicas
desenvolvidas no pas. Como j se demonstrou, antes que advenha essa
eventual disciplina, o exerccio das atividades plenamente lcito,
luz do princpio da livre empresa (art. 170, Pargrafo nico) e
independe de qualquer autorizao ou licena estatal. Neste item,
pretendo demostrar como so frgeis os argumentos substantivos
contrrios ao funcionamento das atividades de transporte individual
privado de passageiros relacionadas a UBER.
No h dvida de que as atividades em questo podem causar impactos
econmicos negativos sobre os prestadores de servio de txi, que, por
fora da legtima competio pelo mercado consumidor, podem vir a
perder parte da sua clientela. Ocorre que, como j ressaltado, a
ampliao da concorrncia tende a ser benfica ao consumidor,
-
31
e a tentativa de criao de reserva de mercado para os taxistas
que lembra a lgica pr-moderna das corporaes de ofcio, abolidas com
a Revoluo Francesa no se afigura fundamento legtimo para a restrio
concorrncia e livre iniciativa.
importante ressaltar este ponto, pelo elevado risco de captura69
do legislador e das autoridades pblicas pelos interesses dos donos
de frotas de txis e taxistas, que tm grande poder de mobilizao e de
presso poltica, e tm conseguido empreg-los contra o interesse de
toda a sociedade, que milita em favor da existncia de maior
concorrncia no setor de transporte individual de passageiros.
Registre-se que o STF j assentou que interesses meramente
corporativos no justificam a imposio de restries liberdade
profissional tambm em jogo no presente caso, no que concerne aos
motoristas parceiros da UBER em raciocnio que igualmente aplicvel
liberdade de iniciativa econmica. Em deciso proferida ainda em
1970, o STF invalidou a regulamentao do exerccio da profisso de
corretor de imveis, sob o fundamento de que o seu objetivo no era
proteger o interesse pblico, mas to somente beneficiar os
corretores j registrados, o que chegou a ser comparado a uma
tentativa de ressurreio das corporaes de ofcio
pr-revolucionrias:
No se justifica, assim que, com fundamento em que a atividade se
acha regulamentada em lei (...), possa o art. 7 referido permitir
que, realizado o servio lcito, comum, o beneficirio desse servio
esteja livre de pagar remunerao, porque esta se reserva aos membros
de um determinado grupo de pessoas. Admitir a legitimidade dessas
regulamentaes seria destruir a liberdade profissional no Brasil.
Toda e qualquer profisso, por vulgar que fosse, poderia ser
regulamentada, para que a exercessem somente os que obtivessem
atestao de rgos da mesma classe. E ressuscitadas, sombra dessas
69
Eduardo Ferreira Jordo assim resumiu as causas do sucesso das
presses lobistas dos agentes econmicos sobre os entes reguladores,
que explicariam a criao e implementao de muitas restries
concorrncia francamente contrrias ao interesse pblico: Em primeiro
lugar, interesses compactos e organizados tendem a prevalecer sobre
interesses difusos, tendo em vista o menor custo da sua mobilizao.
Isto importa uma tendncia a que os interesses das empresas
reguladas prevaleam sobre aqueles dos consumidores na competio pela
regulao. Em segundo lugar, tomada a regulao como um bem adquirvel
no mercado poltico, h uma tendncia a que ela seja obtida pelo grupo
que a valorar mais intensamente e este o caso das empresas
reguladas, afetadas de modo geralmente mais intenso e concentrado
pelas polticas regulatrias do que a massa dos consumidores
(Restries Regulatrias Concorrncia. Op. cit., pp. 84-85). O texto
clssico sobre esta matria da captura dos reguladores de George J.
Stigler. The Theory of Economic Regulation. The Bell Journal of
Economics and Management Science, v. 2, n 1, 1971, pp. 2-21).
-
32
regulamentaes, estariam as corporaes de ofcio, nulificando
inteiramente o princpio da liberdade profissional.70
Mais recentemente, em deciso que afastou a exigncia legal de
inscrio dos msicos na Ordem dos Msicos do Brasil, a Suprema Corte
reiterou o ponto:
que as exigncias de cunho formal no podem servir a um grupo, no
podem se prestar reserva de mercado, s se justificando a imposio de
inscrio em conselho de fiscalizao profissional, mediante a
comprovao da realizao de formao especfica e especializada, nos
casos em que a atividade, por suas caractersticas, demande
conhecimentos aprofundados de carter tcnico ou cientfico,
envolvendo algum risco social.71 (grifei)
Por outro lado, alguns dos argumentos muitas vezes empregados
para justificar as chamadas regulaes de entrada72 so absolutamente
impertinentes ao caso Uber. A hiptese no , evidentemente, de
monoplio natural73, pois o mercado de transporte individual de
passageiros comporta facilmente a atuao de muitos agentes, de
maneira competitiva.
No se trata, tampouco, de situao em que a limitao concorrncia
possa ser justificada pelo objetivo de promoo da universalizao do
servio, pela via de subsdios cruzados.74 Nesses casos, restries
concorrenciais podem ser legtimas, visando a evitar
70
STF, Pleno, RE 65.968, Rel. Min. Amaral Santos, julgado em
04/03/1970. 71
STF, Pleno, RE 414.426, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe 10/10/2011.
72
Nas palavras de Carlos Emmanuel Jopert Ragazzo, a regulao de
entrada consiste alternativa ou cumulativamente em limites com
relao ao nmero de agentes econmicos em determinado mercado, bem
como em requisitos mnimos para a respectiva entrada e permanncia
(Regulao Jurdica, Racionalidade Econmica e Saneamento Bsico. Rio de
Janeiro: Renovar, 2011, p. 150). 73
O monoplio natural no uma criao legal, nem o resultado de uma
prtica lesiva concorrncia, mas um conceito econmico, que pode ter
utilidade jurdica. Ele ocorre quando o custo da atividade econmica
se torna muito maior quando se busca promover a concorrncia, o que
a torna economicamente invivel. Nesse cenrio, no se justifica a
instaurao da competio no mercado, pois ela pode gerar aumento nos
preos e se revelar prejudicial ao prprio consumidor. Um exemplo
tradicional o do transporte ferrovirio, em que a duplicao das
ferrovias tende a acarretar custos exorbitantes e injustificveis
para os prestadores, que acabam sendo repassados aos consumidores.
Veja-se, a propsito, Paul Wonnacott e Ronald Wonnacott. Economia.
Trad. Celso Seji Gondo et alli. 2 ed. So Paulo: Pearson, 2004, pp.
584-600. 74
Veja-se, a propsito, Carlos Carlos Emmanuel Jopert Ragazzo.
Regulao Jurdica, Racionalidade Econmica e Saneamento Bsico. Op.
cit., p.152; Diogo R. Coutinho. A universalizao do servio
-
33
que novos competidores, atuando apenas na parte economicamente
mais atrativa do setor o que comumente designado como cream
skimming , acabem comprometendo a equao econmica que permite ao
prestador original o oferecimento de subsdios cruzados aos mais
desfavorecidos, ou aos setores deficitrios da atividade, visando
universalizao do servio. Porm, a hiptese claramente inaplicvel, j
que no se pretende universalizar o transporte individual de
passageiros, nem tampouco se exige que taxistas cobrem menos dos
passageiros mais carentes ou que recebam valores menores por
corridas durante a madrugada, ou em regies mais longnquas ou
inspitas.
Outra justificativa para a regulao a assimetria de informaes.75
O consumidor, com muita frequncia, no tem acesso s informaes
necessrias para fazer as suas escolhas conscientes sobre servios e
produtos, o que justifica a regulao estatal para exigir a
disponibilizao dessas informaes ou para suprir a sua falta de outro
modo. As licenas concedidas a motoristas de taxi, historicamente,
serviram tambm a esse fim: os passageiros no conheciam os
motoristas, mas supunha-se que poderiam confiar nos que detivessem
a autorizao estatal, pois estes, hipoteticamente, reuniriam os
requisitos para prestao do servio a contento. Porm, a inovao
tecnolgica trazida pela UBER propiciou a criao de mecanismo muito
mais eficaz para a superao da assimetria de informaes do que os
mecanismos vigentes da burocracia estatal, que vm se revelando cada
vez mais falhos.
No modelo UBER, o passageiro tem acesso de antemo ao nome e foto
do motorista, sabe o modelo e a placa do carro que o transportar, e
pode visualizar as avaliaes do condutor realizadas pelos
passageiros anteriores, que so disponibilizadas no aplicativo. Tem
conhecimento tambm da rota que ser seguida, alm de estimativas do
preo do servio, do tempo de espera para a chegada do veculo e da
durao da viagem. Portanto, o consumidor tem acesso a uma gama muito
mais completa e confivel de informaes do que a propiciada pelos
mecanismos regulatrios hoje vigentes para o servio de txi. O ponto
foi destacado, com propriedade, pela Comisin Federal de
pblico para o desenvolvimento como uma tarefa para a regulao.
In: Calixto Salomo Filho (Coord.). Regulao e Desenvolvimento. So
Paulo: Malheiros, 2002, p. 76. 75
Cf. Cass Sunstein. After the Rights Revolution. Reconceiving the
Regulatory State. Cambridge: Harvard University Press, 1990, pp.
52-53.
-
34
Competncia Econmica do Mxico rgo que atua na defesa da
concorrncia daquele pas, que assinalou:
El uso de esta tecnologia se h constitudo como una herramienta
efectiva para resolver de una forma eficaz los problemas de
informacin assimtrica (...) entre conductores y pasajeros (...)
Estas nuevas plataformas construyen un nuevo producto en el
mercado, ya que ofrecen al pasajero, adems de movilidad, atributos
nuevos y diferenciados en cuanto a: (i) confiabilidade y seguridade
personal, (ii) certidumbre en cuanto al cobro que se va a realizar
y el mtodo de pago (iii) confort y convenincia, (iv) bsqueda y
tempos de espera e (v) informacin sole el traslado.76
Finalmente, cabe refutar o argumento de que os motoristas
credenciados pela Consulente violariam a legislao ou praticariam
concorrncia desleal, por no se submeterem aos requisitos impostos
nas normas vigentes aos taxistas e seus veculos. O argumento no se
sustenta. Reitere-se que o servio prestado pelos motoristas
parceiros da UBER no configura transporte individual pblico de
passageiros como so os txis mas modalidade privada de transporte.
Por isso no deve, evidentemente, estar sujeito aos mesmos
regramentos impostos aos txis, que tm natureza jurdica diversa.
A submisso s mesmas regras impostas aos txis desnaturaria a
inovao proporcionada pelo novo servio e frustraria o direito de
escolha dos consumidores. Com efeito, a homogeneizao regulatria
retiraria dos passageiros a possibilidade de optar entre os txis e
outra alternativa de transporte individual, pois a suposta
alternativa tornar-se-ia idntica opo original. Em outras palavras,
para combater uma suposta concorrncia desleal, frustrar-se-ia
exatamente o objetivo principal da proteo concorrncia: a garantia
da liberdade de escolha do cidado.
De resto, comum a disputa por mercado travada por agentes de
natureza diversa, submetidos a regimes jurdicos distintos. A TV por
assinatura compete com a TV aberta e elas esto sujeitas a
regramentos jurdicos diferentes. O nibus disputa com o metr, o
transporte areo com o rodovirio, a venda de CDs compete com os
servios de streaming de msicas. A diversidade favorvel e no
prejudicial concorrncia, na medida que 76
Pleno de la Comisin Federal de Competencia Econmica, Opinin
OPN-008-2015, de 4/06/2015.
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amplia o leque de opes do consumidor, e com isso o empodera no
mercado e na sociedade.
Todas estas consideraes no infirmam a legitimidade da regulao
estatal do servio prestado pela UBER e pelos motoristas que
credencia. Mas demonstram que no h razo substantiva plausvel para
eliminar essa alternativa de transporte do cardpio dos consumidores
brasileiros, pela sua explcita proibio ou por regulao to limitativa
que impea, na prtica, o funcionamento da atividade.
4.3. (In)competncia legislativa dos municpios, estados e
distrito federal
As cidades em que opera a Consulente So Paulo, Rio de Janeiro,
Braslia e Belo Horizonte possuem, todas elas, legislao tratando dos
servios de txi, cuja interpretao, muitas vezes impregnada por uma
viso excessivamente corporativista e distanciada de qualquer
preocupao com os princpios constitucionais da livre iniciativa e da
livre concorrncia, tem dado azo a medidas judiciais e
administrativas contra as atividades da UBER e de seus motoristas
credenciados. Mais do que isso, nessas localidades h forte presso
sobre o Poder Legislativo, exer