- 1 - O CABOCLO BOIADEIRO: o Ser dos pastos sujos Itamar Pereira de Aguiar 1 Parte da região compreendida como Sudoeste da Bahia (ou, mais especificamente, como Planalto da Conquista) foi, no passado, chamada de Sertão da Ressaca. Por sua situação privilegiada, a meio caminho entre o litoral (à altura da cidade de Ilhéus) e o rio São Francisco (à altura de Bom Jesus da Lapa), Conquista constituiu-se, desde o início, em uma cidade encruzilhada, por onde passavam boiadas e onde os vaqueiros pousavam para descansar das longas viagens pelo sertão, na condução dos bois para venda em Salvador e Recôncavo da Bahia; pelos caminhos do passado que a interligavam: a leste, com Ilhéus; ao sul, com a região de mineração do estado de Minas Gerais; a oeste, com o rio São Francisco e a Chapada Diamantina; a nordeste, com Cachoeira, Nazaré das Farinhas e Salvador. Região que sofreu influência da cultura do Boi proveniente da bacia do rio São Francisco e bacias adjacentes ao longo do Norte de Minas Gerais, Sudoeste e Oeste da Bahia, literalizada por João Guimarães Rosa, sob a narração do personagem Riobaldo, o jagunço Tatarana, falando de paisagens compostas por veredas e buritis, gerais e pastos mansos, planaltos, montanhas e rios, matas fechadas e onças, caatingas e espinhos, homens cavalos e Bois, mansos, selvagens, encantados. Coronéis, Vaqueiros, jagunços, jagunços-vaqueiros, tropeiros, boiadeiros, padres, pregadores, videntes, benzedeiras e feiticeiros, negros, indígenas, brancos e mestiços de vários matizes. Tudo isso e muito mais compondo a imensidão sem fim, o Sertão. O sertão está em toda parte [...]. O diabo na rua no meio do redemunho [...]: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. [...]. Sertão é isso, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo. Dia da lua. O luar que põe a noite inchada [...]. Sertão é isso: o senhor empurra pra trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera; [...]. O sertão é bom. Tudo aqui é perdido, tudo aqui é achado [...]. O sertão é confusão em grande demasiado sossego [...]. Sertão foi feito é pra ser sempre assim: alegrias! E fornos. Terras muito deserdadas, desdoadas de donos, avermelhadas campinas. Lá tinha um 1 Itamar Pereira de Águiar, Doutor em Antropologia pela PUC/SP, vinculado à Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, lotado no Departamento de Filosofia e Ciências Humanas – DFCH.
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O Caboclo Boiadeiro: O Ser dos pastos sujos por Itamar Pereira de Aguiar
Artigo do Prof. Dr. Itamar Pereira de Aguiar/UESB. Apresentado no XI Congresso Latino Americano Sobre Religião e Etinicidade - 2006.
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O CABOCLO BOIADEIRO: o Ser dos pastos sujos
Itamar Pereira de Aguiar1
Parte da região compreendida como Sudoeste da Bahia (ou, mais especificamente,
como Planalto da Conquista) foi, no passado, chamada de Sertão da Ressaca. Por sua situação
privilegiada, a meio caminho entre o litoral (à altura da cidade de Ilhéus) e o rio São
Francisco (à altura de Bom Jesus da Lapa), Conquista constituiu-se, desde o início, em uma
cidade encruzilhada, por onde passavam boiadas e onde os vaqueiros pousavam para
descansar das longas viagens pelo sertão, na condução dos bois para venda em Salvador e
Recôncavo da Bahia; pelos caminhos do passado que a interligavam: a leste, com Ilhéus; ao
sul, com a região de mineração do estado de Minas Gerais; a oeste, com o rio São Francisco e
a Chapada Diamantina; a nordeste, com Cachoeira, Nazaré das Farinhas e Salvador.
Região que sofreu influência da cultura do Boi proveniente da bacia do rio São
Francisco e bacias adjacentes ao longo do Norte de Minas Gerais, Sudoeste e Oeste da Bahia,
literalizada por João Guimarães Rosa, sob a narração do personagem Riobaldo, o jagunço
Tatarana, falando de paisagens compostas por veredas e buritis, gerais e pastos mansos,
planaltos, montanhas e rios, matas fechadas e onças, caatingas e espinhos, homens cavalos e
tropeiros, boiadeiros, padres, pregadores, videntes, benzedeiras e feiticeiros, negros,
indígenas, brancos e mestiços de vários matizes. Tudo isso e muito mais compondo a
imensidão sem fim, o Sertão.
O sertão está em toda parte [...]. O diabo na rua no meio do redemunho [...]: sertão é
onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. [...].
Sertão é isso, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo. Dia da lua. O luar que põe a
noite inchada [...]. Sertão é isso: o senhor empurra pra trás, mas de repente ele volta
a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera; [...]. O sertão é bom.
Tudo aqui é perdido, tudo aqui é achado [...]. O sertão é confusão em grande
demasiado sossego [...]. Sertão foi feito é pra ser sempre assim: alegrias! E fornos.
Terras muito deserdadas, desdoadas de donos, avermelhadas campinas. Lá tinha um
1 Itamar Pereira de Águiar, Doutor em Antropologia pela PUC/SP, vinculado à Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, lotado no Departamento de Filosofia e Ciências Humanas – DFCH.
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caminho novo. Caminho de gado. Sertão é uma espera enorme [...]. Satanão! Sujo!
[...] e dele disse somente – S... – Sertão... Sertão... (ROSA, 1979, p. 9- 11- 22-121-
218-343, 380-436-448).
Ouvi de um pai-de-santo conquistense que, “O CABOCLO BOIADEIRO é o Ser dos
pastos sujos”. Os pastos sujos são lugares de diversidade da flora e fauna do Sertão, onde
depois de aberta uma clareira na mata, na mata-de-cipó e na caatinga, brotam diversas plantas,
algumas rasteiras como as gramíneas, a malícia, as malvas, os velames e muitas leguminosas,
outras arbustivas como o espinheiro preto, as unhas-de-gato, a mãe-ingraça, outras ainda,
árvores frondosas como a imburana, a baraúna, o canela-de-vei, o Pau-d’arco, o sete casca, a
madeira-nova, a aroeira, o juazeiro, o umbuzeiro, as palmeiras e muitas outras, lugares
apropriados para o gado pastar, como as veredas.
A Vereda recruza, reparte o plaino, de esguelha, da cabeceira-do-mato da Mata-
Pequena para a casa-de-fazenda, e é alegrante verde, mas em curtas curvas, como no
sucinto caminhar qualquer cobra faz. E tudo. O resto, céu e campo. Tão grandes,
como quando vi, quando no fim: que ouvi só, no estardalhal, gritos e os relinchos: a
muita poeira, de fugida, e os cavalos azulados... (ROSA, 1979, p. 414.)
No Sertão de Guimarães, imensas extensões de terras nas quais os bois, muitas vezes
de mansos ficavam bravos, quase selvagens, soltos sem donos, nas matas, caatingas, gerais,
planaltos, serras, e boqueirões. Lugares onde bois, cavalos, vaqueiros, jagunços, boiadeiros,
se tornam barbatões, mandingueiros, encantados. Uma complexa imensidão.
Arte que espiei arriba, levei os olhos. Aquelas estrelas sem cair. As Três-Marias, o
Carretão, o Cruzeiro, o rabo-de-tatú, o Carreiro-de-São-Tiago. Aquilo me criou
desejos. Eu tinha de ficar acordado firme. Depois, daí, vi o escuro tapar de nuvens.
Eu ia esperar, fazendo uma coisa ou outra, até o definitivo do amanhecer, para o sol
de todos. Ao menos achei de tirar, do tom da noite, esse de fim, canto de cantiga:
Remanso de rio largo. Deus ou o demo no sertão... (ROSA, 1979, p. 424).
Sabe-se que o boi chegou ao Brasil ainda no Período Colonial, durante o governo de
Tomé de Souza (1549-1552), através das capitanias da Bahia, de Pernambuco e de São
Vicente. Do recôncavo da Bahia nas terras da família Garcia de Ávila, conhecidos como da
casa da Torre, adentrou os Sertões: do norte da Bahia a Sergipe, ao vale do rio São Francisco
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e daí aos vários Estados do Nordeste até alcançar o Piauí e o Maranhão, terras dos “pastos
bons” (JÚNIOR, 1992, p.192-193).
Na transição para o século XVIII, haveria nos sertões da Bahia mais de 500
criatórios. Somente na borda direita do São Francisco encontravam-se 106 fazendas
de gado estabelecidas por Antônio Guedes de Brito e arrendatários de suas terras. Na
margem esquerda haveria muito mais, dos descendentes de Garcia d’Ávila e seus
rendeiros. Em toda a Bahia os rebanhos superavam a meio milhão de reses e em
Pernambuco, que nessa época incorporava o oeste da Bahia e os atuais estados de
Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte, a mais de 800 mil cabeças de gado
(NEVES, no prelo).
A criação do boi exerceu grande importância no povoamento de toda essa área, através
da implantação de fazendas, na realização das feiras de venda do gado “como a de Capoame,
entre os atuais municípios de Camaçari e Dias d’Ávila, nos séculos XVII e XVIII, e a de
Santana dos Olhos d’Água, hoje Feira de Santana, no XIX e no XX” (NEVES, no prelo). Na
construção de povoados que com o passar dos anos constituíram-se em cidades e, também na
abertura de caminhos que as interligavam ao recôncavo e à capital da colônia:
[...] entre 1612 a 1891, quando os colonizadores [...] abriram a estrada das boiadas,
ligando a capital da colônia ao alto sertão do São Francisco até o Piauí surgiu a
Fazenda Serrinha na Capitania da Bahia, como local de criação de gado e rancho
para descanso de homens e animais. Depois tornou-se centro comercial e
agropecuário, recebendo foros de cidade por ato assinado pelo governador José
Gonçalves da Silva, em 30 de junho de 1891 (FRANCO, 1996, p. 11).
Continuando a jornada o boi alcançou ainda pelas margens do São Francisco, parte do
que é hoje o Oeste da Bahia e o Norte de Minas Gerais, de onde em meados do século XVIII,
chega ao Sertão da Ressaca, fazendo surgir em torno do Arraial da Conquista grandes
fazendas de gado que se constituíram em principal atividade econômica, meio de vida dos que
habitavam o lugar, tornando-se o boi importante ícone da cultura local.
Estudos de corografia registram atos a partir dos quais, na primeira metade do século
XVIII, teve início a ocupação do Sertão da Ressaca e as origens da colonização da região, na
qual Vitória da Conquista encontra-se inserida, afinal,
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Para a conquista da região vizinha, Pedro Leolino Mariz, Superintendente das
Minas, formou uma bandeira, entregando a direção a André da Rocha Pinto, em 25
de junho de 1727, ao qual conferiu um ‘Regimento’ de caráter extremamente militar.
O objetivo da bandeira era explícito naquele regimento: conquistar o sertão entre os
rios de Contas, Pardo e São Mateus, encontrar metais preciosos, estabelecer
fazendas de gado, matar índios que se opusessem à conquista, estabelecer aldeias e
destruir quilombos que fossem encontrados (MEDEIROS; FONSECA, 1996, p. 90).
Não se sabe ao certo, qual foi a primeira fazenda de gado estabelecida no Médio São
Francisco, mas, segundo Neves “parece ter sido a Brejo Grande, latifúndio de Antônio
Gonçalves Figueira, na última década do século XVII”. Dai Figueira mudou-se para a região
dos vales do rio Pardo e Verde Grande, onde possuía as fazendas Itaquí, Olho d’Água e
Montes Claros, essas foram vendidas a Pedro Leolino Mariz que, por sua vez, as vendeu a
Matias João da Costa. Tudo indica que delas tenham chegado à Região de Vitória da
Conquista as primeiras cabeças de gado, pois, Matias João da Costa, tido por sogro de João
Gonçalves de Costa, possuiu também fazendas nessa área.
Natural do norte de Portugal, Matias João da Costa morreu com avançada idade em
Brejo das Carnaíbas, fazenda da qual pagava rendas a Joana da Silva Guedes de
Brito. [...]. Na fazenda Ressaca, borda do rio Gavião, criava 300 cabeças de gado, na
fazenda Conquista 300 reses e 42 éguas. Possuía ainda a fazenda Olho d’Água e os
sítios: Barra, Nossa Senhora da Vitória, Catolés, Espírito Santo, Santo Antônio e um
“na outra banda do rio Pardo”, “infestado de gentio”. Em todos criava muito gado
(NEVES, no prelo).
Além de Matias João da Costa, tem-se notícia de diversos outros fazendeiros e
pequenos proprietários de terra que, ocupavam as margens do rio Gavião, plantando algodão,
cultivando lavoura de subsistência e criando gado:
Em Candeal no rio Gavião, Francisco José Ribeiro, [...], pagava renda da terra onde
vivia, em 1789, numa casa coberta de palha, plantava roças e criava 17 eqüinos e 72
cabeças de gado. [...], Crispim da Rocha Pinto possuía, em 1792, casa, roça de
mandioca e de algodão, produto do qual armazenava duas cargas (12 arrobas)2, 30
eqüinos e gado3, [...]. Criadores do rio Gavião comercializavam muito gado.
Modesto Vaz da Costa, por exemplo, vendeu ao capitão Estevão Inácio da Costa
com suas posses de terras em Gavião e Santa Cruz da Canabrava, 100 reses, em
1799 (NEVES, no prelo).
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O naturalista Maximiliano Príncipe de Wied Neuwied, em sua obra Viagem ao Brasil,
descreve paginas magistrais sobre suas andanças, da Vila dos Ilhéus aos confins da Capitania
de Minas Gerais e, das fronteiras de Minas ao Arraial da Conquista, nas quais narra sobre
tudo que vê e sente: os climas, as doenças, as serras, os vales, os rios, os planaltos, as matas,
os Campos Gerais as Caatingas as tribos indígenas, os povoados, o Porto aduaneiro de Minas,
os tropeiros, os caminhos, as fazendas, a criação do gado no sertão, os cavalos os bois e os
vaqueiros. Dentre eles fala do vale de Barra da Vareda, cortado pelo rio Pardo no ponto em
que se encontra com o afluente ribeiro da Vareda que dá nome ao lugar.
O Sr. capitão Ferreira Campos, nascido na Europa, mandou abater as florestas do
local e fazer plantações em que cultiva mandioca, milho, algodão, arroz, café e todos
os demais produtos do país. [...]. A riqueza de um lavrador brasileiro consiste em
seus escravos, e as quantias que retira do produto de suas colheitas são logo
empregadas na compra de mais escravos. Êsses são tratados geralmente com doçura
e, em Barra-da-Vareda são muito bem alimentados. Na hora do maior calor do dia,
levam-lhes nas roças em que trabalham, grandes vasilhas do melhor leite, e dão-lhes
em abundância excelentes “melancias”, muito refrescantes. Nestas regiões, os
proprietários que possuem cento e vinte escravos, ou mais, moram comumente em
casas de barro, e, como as pessoas pobres, vivem de farinha, feijão preto e carne
sêca. Raramente pensam em melhorar o seu modo de vida, que os bens de fortuna
não tornam mais alegres (WIED NEUWIED, 1940, p. 375).
Figura 14 Figura 25
Além da agricultura movida a braço escravo, o proprietário da Fazenda Vareda,
segundo Maximiliano, criava considerável quantidade de bois e cavalos, cuidados por
“rapazotes pretos” que no final da tarde os levavam para um grande curral, quando então,
ordenham as vacas e diz mais:
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Já aqui pude também travar conhecimento com [...] os “vaqueiros” [...], vestidos de
couro de veado da cabeça aos pés. [...]. A sua vestimenta consta de sete peças. [...]; o
“chapéu”, pequeno e arredondado com as abas estreitas, que se alarga e se alonga
para trás para formar uma pala que abriga o pescoço; o “gibão” ou jaqueta, aberto na
frente, por baixo do qual está o “guarda-peito”, [...]; as “perneiras” ou calções, por
debaixo das quais estão as botas munidas de esporas. [...]. O “vaqueiro”, montado
num bom cavalo sobre uma cela acolchoada, leva na mão uma longa vara cuja
extremidade é guarnecida por uma ponta de ferro rombuda, [...]; às vêzes leva
também um “laço” para pegar os animais mais bravios. [...]. Cada fazenda de gado
tem um número suficiente de vaqueiros, entre os quais vêem-se negros, mulatos,
brancos e algumas vezes índios. São geralmente bons caçadores, exercitados em
perseguir e combater, com grandes cães educados para isso, as onças, ou os grandes
felinos [...]. O proprietário da fazenda envia, [...] os seus vaqueiros aos diferentes
pontos de seus domínios onde [...] vivem separados do mundo, levando uma
verdadeira existência de solitários (WIED NEUWIED, 1940, p. 376).
Ao adentrar os Sertões pode-se dizer que o boi levou o negro pendurado no rabo e o
índio na ponta do chifre, seguidos pelo branco como dono da fazenda, montado a cavalo.
Vetor de relações entre raças e culturas.
As nações indígenas que ocupavam o território compreendido entre os rios de Contas
e Pardo naquele período eram os Aimorés, os Pataxós e os Mongoiós. Para ilustrar esta
afirmação, recorremos à classificação elaborada pelo pesquisador Ruy Medeiros, que se
baseia nas informações do lingüista Aryon Dall’lgna Rodrigues para os indígenas que
habitavam o Planalto da Conquista:
INDÍGENAS DO PLANALTO DA CONQUISTA
Tronco Macro – Jê
FAMÍLIA LÍNGUA DIALETO
Kamakã Kamakã Mongoyó
Aymoré Aymoré -
Maxacali Pataxó -
Fonte: Torres (1996:94)
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Figura 36 Figura 47
Também os viajantes Spix, Martius e como vimos o príncipe Maximiliano Wied-
Neuwied, visitaram a região no início do século XIX, registraram informações importantes
sobre os indígenas. Informa Maximiliano, que visitou a Imperial Vila da Vitória em 1817,
quando os Mongoiós se encontravam em situação de organização sócio-econômica distinta
dos Pataxós, estes vivendo de caça e coleta, dificilmente se fixando em algum lugar. Segundo
ele, eram os Mongoiós, entre os aborígenes, “os mais desconfiados e discretos”. Descreveu
muito dos seus hábitos e costumes após visita feita a uma de suas aldeias no lugar
denominado Jibóia.
Tendo avistado, na minha viagem através da floresta virgem, ‘Camacans’
completamente selvagens, tinha eu desejo de visitar a aldeia desses situada a um dia
de viagem do Arraial, nas grandes matas da Serra do Mundo Novo e que é
conhecida pelo nome de Jibóia. [...]. As choças dos índios são feitas de madeira e
barro e cobertas de cascas de árvores. Seus moradores são, alguns, mais ou menos
vestidos, outros ainda completamente nus; cultivam milho, banana, um pouco de
algodão e muita batata; contentes com os produtos que lhes dá a natureza, vão,
todavia, até hoje, buscar fora a farinha de que necessitam (WIED NEUWIED, 1940
p 411-412).
Figura 58 Figura 69
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Fez ainda referência a uma tribo de descendentes dos Camacãns, provavelmente já
miscigenados com negros, declarando que:
Tinha nas margens do Rio Grande de Belmonte o resto de uma tribo de índios que a
si mesmos dão o nome de Camacãns; os portugueses denominam-nos ‘Menian’.
Segundo aprendi, esses ‘Menians’ constituem realmente um ramo dos Camacãns,
porém degenerados; não são mais da raça indígena pura, tendo a maioria deles o
cabelo encarapinhado dos negros e também a cor escura, e com exceção de dois
velhos, não sabem mais a sua língua (VIANA, 1982, v.1, p. 26).
Os negros trazidos como escravos para a região eram oriundos de diversos lugares da
África e pertencentes a distintas etnias: Angolas, Minas, Benguelas, Hauçás, Nagôs, Congos,
Rebolos e outros de origem étnica não identificada, conforme mostram os dados apurados por
Neves em uma tabela da qual extraímos as informações (NEVES, 1994, p. 85-86) de que
existiam 64 africanos, 396 brasileiros e 63 sem identificação. No que diz respeito aos
AFRICANOS, apuramos que o maior contingente de escravos era de bantos (30),
contribuindo com o percentual de 46,88% do total e que dentre estes, predominavam os
angolanos (24), com 80% dos bantos e, 37,88% dos africanos. Os sudaneses (11),
representando apenas 17,19% do total.
No item, BRASILEIROS foram relacionados: os crioulos com 54,94%; os cabras com
27,34%; os mulatos com 10,13% e os pardos com 7,34%. Segundo a professora Josildeth
Gomes Consorte, que há muitos anos vem desenvolvendo pesquisa na cidade de Rio de
Contas, localizada na Chapada Diamantina, região vizinha a Vitória da Conquista, os mestiços
foram classificados num primeiro momento de acordo com os cruzamentos de que resultaram
segundo ela,
do cruzamento de africano com africano, resultou o crioulo; do cruzamento de
branco com africano, surgiu o mulato. De branco com índio, o caboclo ou
mameluco: Do cruzamento de índio com africano, resultou o cafuzo ou caboré; do
cruzamento de mulato com crioulo ou com africano, resultou o cabra. A
denominação mulato desapareceu dos registros oficiais no século XIX, dando lugar
ao termo genérico ‘pardo’; até hoje em vigor10.
Os SEM IDENTIFICAÇÃO foram divididos entre: não declarados, com 79,37% e
pretos, com 20,63%.
Frente ao exposto, necessário se faz apontar as marcas principais das culturas destes
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povos, para tanto, recorremos a abordagens ainda que genéricas sobre a sua vida na África,
entendendo que não obstante estas considerações são necessárias para compreender a natureza
das relações estabelecidas entre estes e os outros povos na construção de uma nova cultura.
Para uma visão de conjunto das áreas ocupadas pelos povos e culturas na África, vejamos o
que diz Gilberto Freyre, através das pesquisas de Melville J. Herskovits:
Por esse critério, deparamo-nos com as seguintes áreas principais: [...]; c) a área de
gado da África Oriental (Banto), caracterizada pela agricultura, com a indústria
pastoril superimposta; tanto que a posse de gado numeroso e não de terras extensas é
que dá ao indivíduo prestígio social; trabalhos em ferro e madeira; poligamia;
fetichismo; d) área do Congo (também de língua banto, ainda que na fronteira
ocidental se fale ibo, fanti, etc.) [...], traços que Herskovits acrescenta outros: a
economia agrícola, além da caça e da pesca; a domesticação da cabra, do porco, da
galinha e do cachorro; [...], etc.; a posse da terra em comum; fetichismo, [...]; e)
Ciganos e Médicos (NEGRÃO. 1996, p. 237-239). Aqui o Caboclo Boiadeiro é apresentando
como qualquer das outras entidades, sem destaque especial.
Maria Helena Vilas Boas Concone, ao falar de qualidades e gestuais de baianos e
boiadeiros, assim se expressou:
Pensando primeiro nas qualidades e depois nos gestos, podemos montar as
oposições seguintes: Quanto às Qualidades: [...] boiadeiros Sisudez; Trabalho;
Braveza; Seriedade, Homens. Quanto ao gestual [...] boiadeiros. Postura ereta, tensa,
não falam, emite chamados de boiadeiros: É boi! Movimentos mais rígidos,
semelhantes aos dos caboclos; fazem movimentos com um laço imaginário. Usa um
chapéu de couro (independentemente do sexo do cavalo, a entidade é sempre
masculina). Fisionomia tensa, carregada, “boca para baixo” como caboclo. Não
fuma. Só dançam os pontos cantados, fazendo movimentos com o laço imaginário e
emitindo chamados. Não usam bebidas (i) (CONCONE. 2001, p. 289-290).
Francelino de Shapanan, assim se referiu aos “Boiadeiros: Para a mina, os boiadeiros
formam uma linhagem de caboclos, com maior presença nas casas de candomblé angola, onde
se identificam como brasileiros e dizem ser originários da Hungria, talvez uma Hungria
perdida na memória dos tempos. Assemelham-se a alguns encantados de mina da família de
Codó, também conhecida como família de Seu Légua Boji Buá ou família de Mata do Codó, e
misturam-se com os vaqueiros. Estes três grupos – boiadeiros, vaqueiros e codoenses –
estariam muito próximos entre si. A maioria dos terreiros de umbanda moderna já tem
boiadeiros, mas transformados. Têm poucas cantigas próprias e já usam botas em vez de ficar
descalços, como na angola. Aliás, a família do Codó não tolera ficar calçada. Boiadeiro é o
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caboclo chefe dos vaqueiros, é o fazendeiro. Usa roupa de couro, fuma cigarro de palha ou
charuto. É um aliado de índios e caboclos.
A umbanda também confunde os mestres da jurema (entendidas do catimbó),
chamando-os de boiadeiros e até mesmo de exus. E aí surge a figura conhecidíssima e
polêmica de Seu Zé Pilintra, que tem uma biografia real, verídica, é um grande mestre de
jurema pernambucana e aqui em São Paulo transformou-se algumas vezes em baiano e outras
em exu.
Vemos então a grande mistura do que seria o baiano e o caboclo, o caboclo e o
marinheiro, o caboclo e o cigano, o caboclo e o exu, o caboclo e o boiadeiro. ( SHAPANAN,
2001, p.324-325).
Ronaldo Senna ao estudar o Jarê na cidade de Lençóis descreve uma festa pública
dessa tradição e no que diz respeito ao Caboclo Boiadeiro diz: “Sai a linhagem dos Velhos e
entra a de Boiadeiro que aparece quase com o clarear do dia”. Boiadeiro ou Vaqueiro, como é
chamado, é, na realidade, o “espírito encantado” de todo guia de boiada que ao morrer se
transforma em guia espiritual dos mortais. Por isso, existem vários boiadeiros. Boiadeiro
manifesta-se ao ritmo dos cânticos seguintes:
Primeiro Canto (Boiadeiro)
Meu vaqueirinho do norte
Eu vim boiar
Eu vim boiar meu gado
Eu vim boiar
Segundo Canto
O dia já amanheceu
Está na hora
Está na hora do gado chegar
Está na hora
Iansã mais uma vez mostra a sua força e importância ao marcar presença em qualquer
linhagem, como esta do Boiadeiro, no cântico que veremos em seguida, onde este encantado
transmuda-se em guerreiro por amor, respeito e defesa de Oiá.
Terceiro Canto
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Há de selar meu cavalo
Oiá de Deus e minha lança
Quarto Canto
Vamos arrudiar vaqueiro
O vosso santo cruzeiro
Vamos arrudiar vaqueiro
O vosso santo cruzeiro
Quinto Canto
Meu boiadeiro, meu catendeiro
Não deixe o gado passar
Sou filho de Mamãe da Lua
Sou neto de Oxalá
Sexto Canto
Vocês me chamaram boiadeiro
Não sou boiadeiro não
Eu sou tocador de gado
Boiadeiro é meu patrão
Fechando a ordem de linhagem, surgem os cânticos-despedidas dos caboclos
Boiadeiros. São os últimos que se manifestam no ritual de jarê (como é comum, aliás, entre os
candomblés de caboclo que cultuam este encantado), [...] ”(SENNA, 1998, p.154-155).
Ao observarmos o quanto foi apresentado pelos pesquisadores citados, percebe-se a
importância de estudos das tradições locais, cada vez mais acurados para entender a teia de
relações e as especificidades que marcam a cultura brasileira.
Francelino de Shapanan, que trata de caboclos e encantados passando por diversas
tradições religiosas, principalmente da Casa da Mina, da família do Codó, da jurema, do
candomblé de caboclo e de angola, fala das características do boiadeiro que, a nosso ver, mais
se aproximam das características do boiadeiro que se manifesta nos terreiros de tradição local
em Vitória da Conquista. Talvez isso se deva ao fato, dentre outros, de o boi que saiu do
recôncavo da Bahia e passou pelos demais estados do Nordeste ter alcançado o Maranhão,
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passado pelo norte de Minas e chegado ao Planalto da Conquista, trazendo no seu entorno os
elementos dessas tradições que foram re-significados.
Ronaldo Senna, ao estudar o Jarê, na Cidade de Lençóis nas Lavras Diamantinas, cuja
economia predominante foi a garimpagem de diamantes e carbonatos e, a agropecuária
insignificante, mas que se vincula à lugares vizinhos que plantam e criam gado, elementos
importantes na dieta dos garimpeiros, informa que o caboclo boiadeiro manifesta-se nos
terreiros de Jarê, não como dono da boiada, mas como vaqueiro, tipo social que algumas
vezes, temporariamente, também garimpa, principalmente os que moram mais próximo das
terás diamantíferas, na caatinga, onde plantam e criam gado que durante os períodos de secas
anuais, mês de julho a outubro, são levados a pastar nas terras úmidas e frescas das Lavas
Diamantinas.
Já em Vitória da Conquista, no Sertão da Ressaca, onde a pecuária foi desde a sua
origem a atividade econômica mais importante, onde as diversas etnias de indígenas,
africanos e europeus viveram nessas tradições, percebe-se que o arquétipo do caboclo
boiadeiro se apresenta de forma ampla, envolvendo as várias dimensões dessa atividade, da
cultura do boi, com toda força, com prestigio, parecendo ter sido ali inventado, se tal não
aconteceu, percebe-se que se apresenta com fortes marcas das tradições religiosas afro-
indígenas praticadas no local.
2 Uma arroba no Alto Sertão da Bahia correspondia a 16 quilogramas. 3 APEB, 03.1216.1685.07, inventário de Crispim da Rocha Pinto, São Bento, 22 set. 1792. 4 WIED NEUWIED. A caça da Onça (gravado por C. Rahl), 1940, p.21 5 WIED NEUWIED. Boi perseguido pelos vaqueiros (gravado por F. Meyer, Berlin), 1940, p.401. 6 WIED NEUWIED. Família de Botocudos em viagem (gravado por Seyffer e Kruger, Stuttgardt), 1940, p. 294. 7. WIED NEUWIED. Patachós do Rio Pardo (gravado por Rist Munich), 1940, p. 208. 8WIED NEUWIED. Festa dansante dos Camacãns (gravado por J. Lips, Zurich), 1940, p. 368. 9 WIED NEUWIED. Grupo de Camacãns na mata (panorama de Seyffer de Stuttgardt e figuras de Bitthauser de Wurzburg), 1940, p. 352. 10 Notas de aula de Antropologia ministrada pela Profa. Dra. Josildete Gomes Consorte, no Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais da PUC-SP. 11 Cópia da Carta do Desembargador e Ouvidor de Ilhéus Francisco Nunes da Costa para o governo interino da Bahia. Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Brasil - Avulsos. (Cairu, 23 de fevereiro de 1782), p.
163. 12 Cópia da Carta do Desembargador e Ouvidor de Ilhéus aos Governadores. Arquivo Nacional da Torre do
Tombo. Brasil - Avulsos. (seis de agosto de 1783), p. 160/161. 13 Cópia da Carta do Desembargador e Ouvidor de Ilhéus aos Governadores. Arquivo Nacional da Torre do
Tombo. Brasil - Avulsos. (6 de agosto de 1783), p. 161. 14 Correspondência recebida pelo Governo da Bahia, Intendência do Ouro (1782). ASPEB. Seção de Arquivo
Colonial e Provincial. Março nº. 201/234. 15Pai Cely, jogo de búzios (fotografado por Itamar pereira de Aguiar, 1996). 16 Altar do terreiro “Ogum Megê” Pai Cely (fotografado por Itamar Pereira de Aguiar, 1996). 17 SARAVÁ (kwa) (LS) – v. Ver savalu. SAVALU (kwa) (LS) – v. prestar homenagem, saudar as divindades. Var. savará, savalu. CF. axé, sarava, tibuco. Fon savalu. In CASTRO, Yeda Pessoa de. FLARES AFRICANOS NA BAHIA: Um Vocábulo Afro-Brasileiro. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2001. p. 336. 18 Caboclo Boiadeiro terreiro “Ogum Megê” Pai Cely (fotografado por Itamar Pereira de Aguiar, 1996).
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