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NOVOS ESTUDOS 89 yy MARO 2011 17
RESUMO
Contra as previses de que a China substituir em breve os
eua como a principal potncia econmica mundial, o autor argumenta
que o modelo de crescimento chins, voltado
exportao e lastreado por enormes reservas em dlares, confinou o
pas asitico a um papel subordinado, ao qual boa
parte de sua elite se mantm comprometida.
PALAVRAS-CHAVE: Economias do Leste Asitico; Repblica Popular
da
China; modelo de crescimento voltado exportao; relaes
econmicas
entre China-EUA.
ABSTRACT
Against predictions that China will soon replace the us as
the
worlds dominant economic power, the author argues that the prcs
exportation-oriented growth and vast dollar reser-
ves have trapped it in a subordinate role to which much of its
elite remains committed.
KEYWORDS: East Asian economies; Peoples Republic of China;
export-oriented growth; China-US economic relations.
O BRAO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS?
Hung Ho-Fung
traduo de Fernando Rugitsky**
DOSSI CHINA
A crise das hipotecas subprime e o declnio global re-sultante
levaram muitos a especular que algum desafiante poderia emergir
para substituir os Estados Unidos como ator dominante na economia
mundial capitalista1. Como a crise financeira nos Estados Unidos e
no Norte global2 originou-se do elevado endividamento, da baixa
produtividade e do consumo excessivo, parecia natural olhar para os
seus opostos a imensa acumulao de dvida americana pe-los
exportadores do Leste Asitico, sua capacidade produtiva e suas
elevadas taxas de poupana a fim de identificar candidatos
pro-vveis. Imediatamente depois de o colapso do Lehman Brothers em
2008 ter revelado o incio da recesso global, proclamou-se o triunfo
final do modelo de desenvolvimento do Leste Asitico, sobretudo
o
[*] Publicado originariamente em
New Left Review, n 60, nov.-dez.
2009, pp. 5-25.
[**] Agradeo s sugestes tradu-
o feitas por Raphael Neves e Lucia
Del Picchia. [n. t.]
[1] Uma verso anterior deste en-
saio foi apresentada na conferncia
em homenagem a Giovanni Arrighi,
promovida pela Universidad Nma-
da e pelo Museo Nacional Centro de
Arte Reina Sofa (Madri), entre 25 e
29 de maio de 2009. Agradeo aos
comentrios dos participantes pre-
sentes na ocasio.
[2] A distino entre global North
[Norte global] e global South [Sul
global] comum na literatura ligada
s teorias do sistema-mundo, qual
este artigo se filia. Por esse motivo,
optou-se por traduzir essas expres-
ses de forma literal, ainda que resul-
tem incomuns em portugus. [n. t.]
O dilema da Repblica Popular da China na crise global*
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18 O BRAO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS? yy Hung Ho-Fung
[3] Ver Altman, Roger. The great
crash, 2008: a geopolitical setback
for the West. Foreign Affairs, jan.-fev.
2009.
chins. Comentadores do establishment americano concluram que a
grande crise de 2008 seria o catalisador para um deslocamento do
centro do capitalismo global dos Estados Unidos para a China3.
Mas na primavera de 2009 muitos j haviam se dado conta de que as
economias do Leste Asitico no eram to formidveis quanto as
aparncias sugeriam. Enquanto a contrao brusca da demanda por
importaes do Norte global levou os exportadores asiticos a
aterris-sagens foradas, a perspectiva de tanto o mercado de ttulos
do tesouro americano quanto o dlar atingirem nveis muito baixos
colocou-os diante do difcil dilema de se livrar dos ativos
americanos, e assim pre-cipitar um colapso do dlar, ou comprar
mais, evitando uma queda imediata mas aumentando a sua exposio a um
colapso no futuro. O investimento coordenado pelo Estado, que se
estendeu at o fim de 2008 sob o megaprograma de estmulo da Repblica
Popular da China (RPC), encorajou uma recuperao significativa da
economia chinesa, assim como dos seus parceiros comerciais
asiticos, mas o crescimento gerado provavelmente no se sustentar
sozinho. Econo-mistas e assessores chineses tm se preocupado com a
possibilidade de a RPC titubear mais uma vez quando o efeito do
estmulo enfraque-cer, visto que improvvel que os consumidores
americanos voltem a assumir essa conta em um futuro prximo. Apesar
de toda a discusso acerca da capacidade da China de destruir o
status de moeda-reserva do dlar e de construir uma nova ordem
financeira global, a RPC e seus vizinhos tm poucas alternativas no
curto prazo, a no ser sustentar o domnio econmico americano por
meio da ampliao do crdito.
Neste artigo, trao as origens histricas e sociais da dependncia
crescente da China e do Leste Asitico em relao aos mercados de
consumo do Norte global, como fonte do seu crescimento, e aos
ins-trumentos financeiros dos Estados Unidos, como reserva de valor
de suas poupanas. Em seguida, avalio as possibilidades de superao
dessa dependncia em longo prazo, argumentando que, para criar uma
ordem econmica mais autnoma na sia, a China teria que transfor-mar
um modelo de crescimento orientado para as exportaes que tem
beneficiado principalmente os setores exportadores da regio
costeira, que o perpetuam em um modelo impulsionado pelo con-sumo
domstico, por meio de uma ampla redistribuio de renda para o setor
rural-agrcola. Isso no ser possvel, contudo, sem romper o predomnio
poltico da elite urbana costeira.
TIGRES E GANSOS
A histria da rpida ascenso do Japo e dos quatro tigres asi-ticos
Coreia do Sul, Taiwan, Hong Kong e Cingapura , no ps-guerra,
conhecida e no preciso repeti-la aqui. Mas, se sua es-
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19NOVOS ESTUDOS 89 yy MARO 2011
calada dinmica pode ser atribuda ao direcionamento de recursos
preciosos para setores industriais estratgicos pelas autoridades
centralizadas, igualmente importante reconhecer que foi a
geopo-ltica da Guerra Fria no Leste Asitico, em primeiro lugar, que
tornou possvel o surgimento de estados desenvolvimentistas na
regio. Na verdade, durante esse perodo esteve em curso no Leste
Asitico uma guerra quente. O apoio da China comunista s guerrilhas
e seu envolvimento nas guerras da Coreia e do Vietn levaram a regio
a um estado de emergncia permanente, e Washington julgava o Leste
Asitico o elo mais vulnervel na sua estratgia para conter o
co-munismo. Considerando que seus principais aliados asi ticos o
Japo e os quatro tigres eram importantes demais para fracas-sarem,
o governo americano lhes forneceu apoio financeiro e mili-tar
abundantes para disparar e dirigir o crescimento industrial, ao
mesmo tempo que mantinha o mercado americano e o europeu
es-cancarados para os produtos manufaturados asiticos. Esse acesso
aos mercados ocidentais constituiu uma vantagem adicional de que
outros pases em desenvolvimento no desfrutavam, sem a qual
inimaginvel que as economias asiticas tivessem tido tanto suces-so.
Visto sob essa tica, o rpido crescimento econmico do Leste Asitico
est longe de ser um milagre. Os Estados Unidos o proje-taram como
parte de um esforo para criar baluartes subordinados e prsperos
contra o comunismo na regio da sia e do Pacfico. Essas economias
nunca se destinaram a desafiar os interesses geo-polticos e
geoeconmicos americanos. Em vez disso, eram clientes subservientes
que auxiliavam Washington a realizar seus planos para a regio.
Organizados em redes produtivas de subcontratao de mlti-plas
camadas centradas no Japo, os exportadores asiticos ocupa-vam
diferentes elos da cadeia de valor, cada um se especializando em
produtos com determinado nvel de lucratividade e sofisticao
tecnolgica. O Japo focou-se nos itens com maior valor agregado; os
quatro tigres, em produtos de nvel intermedirio; os tigres
emer-gentes do Sudeste Asitico, em produtos de baixo custo,
intensivos em trabalho. Esse famoso padro de gansos voadores formou
uma rede de fornecedores confiveis de uma ampla gama de bens de
con-sumo para o Primeiro Mundo.
Quando as tenses da Guerra Fria comearam a arrefecer nos anos
1980, os dficits de transaes correntes e fiscais dos Estados Unidos
aumentaram, como resultado de cortes de impostos neoliberais e do
crescimento dos gastos militares relacionados s fases finais da
Guer-ra Fria. Em vez de sair da rbita da hegemonia americana, no
entanto, as economias asiticas estreitaram seus laos com os Estados
Unidos, financiando os seus dficits gmeos em franca ascenso. A
industria-
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20 O BRAO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS? yy Hung Ho-Fung
lizao orientada para as exportaes do Leste Asitico estivera
ligada a nveis baixos de consumo domstico. Os subsequentes
supervits comerciais e altas taxas de poupana permitiram que esses
estados acumulassem poder financeiro substancial na forma de
grandes reser-vas cambiais. Considerando os ttulos do tesouro
americano o inves-timento mais seguro das finanas globais, a
maioria dos exportadores do Leste Asitico despejou voluntariamente
seu dinheiro acumulado em ttulos de baixo retorno, tornando-se os
principais credores dos Estados Unidos. Esse financiamento do
dficit de transaes corren-tes americano estimulou, ento, o apetite
dos Estados Unidos pelas importaes asiticas, e o crescimento
adicional dos supervits co-merciais asiticos ainda aumentou as
compras de ttulos do tesouro. Esses processos que se alimentavam
mutuamente ampliaram de for-ma contnua a dependncia econmica e
financeira do Leste Asiti-co em relao aos Estados Unidos,
colaborando para prolongar a sua frgil prosperidade enquanto a
hegemonia americana se consolidava.
A partir do anos 1980 e de forma mais acelerada nos anos 1990,
as reformas de mercado da rpc transformaram-na em um tigre asitico
retardatrio. Muitos previram que esse pas seria singularmente capaz
de romper com as dependncias gmeas da sia em relao aos Esta-dos
Unidos, em decorrncia de sua autonomia geopoltica e de sua
magnitude demogrfica e econmica excepcional. Mas no foi dessa vez
que a China se libertou da servido de fornecer aos Estados Unidos
crdito barato e importaes de baixo custo. Pior, a intensidade de
seu modelo de crescimento impulsionado pelas exportaes e baseado na
represso do consumo privado fez com que sua dependncia econ-mica e
financeira em relao aos Estados Unidos fosse ainda maior do que a
de seus antecessores. Se compararmos os aspectos mais impor-tantes
da economia poltica da China com os de seus vizinhos em um estgio
similar de desenvolvimento, conclumos que o modelo chins , em
grande medida, uma rplica levada ao extremo do crescimento inicial
do Leste Asitico. O Grfico 1 mostra que a dependncia comer-cial da
economia chinesa, medida pelo valor total de suas exportaes como
percentual do produto interno bruto (pib), tem crescido
conti-nuamente, atingindo um nvel jamais alcanado pelas outras
econo-mias do Leste Asitico. Por outro lado, a participao
percentual do consumo privado chins no PIB tem diminudo, caindo bem
abaixo da participao dos outros pases durante a decolagem de suas
econo-mias (Grfico 2). Conforme indica a Tabela 1, os Estados
Unidos so, sozinhos, o mercado de exportao mais importante para a
China como foram antes para o Japo e os tigres asiticos , tendo
sido ape-nas ultrapassados recentemente pela Unio Europeia,
considerada em sua totalidade. A China j se tornou o principal
fornecedor asitico dos Estados Unidos.
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21NOVOS ESTUDOS 89 yy MARO 2011
A drstica expanso dos setores exportadores da China no ape-nas a
razo por trs de seu impressionante crescimento econmico, mas tambm,
por meio de um supervit comercial crescente, de seu po-der
financeiro global. Como indicado no Grfico 3, as reservas
cambiais
GRFICO 1
Exportaes como percentual do PIB nas economias do Leste Asitico,
1965-2004
* Outras economias do Leste Asitico representa a mdia de Japo,
Coria do Sul e Taiwan. Exclui Hong Kong
e Cingapura em decorrncia do alto percentual de comrcio de
entreposto nessas economias.
Fonte: Banco Mundial e Centro de Dados Econmicos de Taiwan,
banco de dados Aremos.
40
30
20
10
01970 1980 1990 2000
China
Outras economias do Leste Asitico*
GRFICO 2
Consumo privado como percentual do PIB nas economias do Leste
Asitico
* Outras economias do Leste Asitico representa a mdia de Japo,
Coria do Sul, Taiwan, Cingapura e Hong Kong.
Fonte: Banco Mundial e Centro de Dados Econmicos de Taiwan,
banco de dados Aremos.
80
70
60
50
40
1960 1970 1980 1990 2000
China
Outras economias do Leste Asitico*
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22 O BRAO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS? yy Hung Ho-Fung
da China atualmente excedem bastante as de seus vizinhos do
Leste Asitico. At agora, a China, como os outros exportadores, tem
inves-tido a maior parte de sua poupana em ttulos do tesouro dos
Estados Unidos. s vsperas da crise das hipotecas subprime, a China
emergira como o maior exportador para os Estados Unidos e, ao mesmo
tempo, o seu maior credor, financiando o dficit de transaes
correntes ame-ricano e sustentando sua capacidade de absorver
importaes (Grfico 4). Enquanto as exportaes de baixo custo da China
ajudaram a baixar a inflao nos Estados Unidos, sua compra
espetacular de ttulos do tesouro contribuiu para reduzir seu
retorno e, assim, tambm as taxas de juros nos Estados Unidos. Dessa
maneira, a China emergiu nos lti-mos anos como o principal suporte
da vitalidade econmica americana.
CRISE AGRRIA
A habilidade da China de instituir uma verso extrema do modelo
do Leste Asitico de crescimento impulsionado pelas exportaes ao
longo das ltimas trs dcadas dependeu tanto da conjuntura global
quanto da sua economia poltica interna. Em primeiro lugar, a
deco-lagem com desenvolvimento intensivo em trabalho coincidiu com
o incio de uma expanso sem precedentes do livre-comrcio global, a
partir da dcada de 1980. No fosse pela deslocalizao [outsourcing]
da indstria do Norte global e pelo crescente apetite deste para
im-portar produtos manufaturados de baixo custo, teria sido
impossvel para a RPC prosperar por meio das exportaes. Mas,
essencialmente, a competitividade excepcional da China , em grande
parte, baseada na prolongada estagnao dos salrios industriais em
comparao com outros pases asiticos em estgios equivalentes de
desenvolvimento.
TABELA 1
Exportaes do Leste Asitico para os Estados Unidos e para o mundo
(em trilhes de dlares, US$)
Fonte: Estatsticas de Direo do Comrcio do fmi e Centro de Dados
Econmicos de Taiwan, banco de dados
Aremos.
China
Japo
Coria do Sul
Taiwan
Hong Kong
Cingapura
2,3
66,7
10,8
14,8
9,3
4,8
27,3
177,3
30,3
30,7
30,2
23
24,7
122
24,3
26,4
37,9
21,6
EUA EUAMundo
1985
Mundo EUA Mundo
149
443,3
131,3
113
173,6
118,2
163,3
136
41,5
29,1
46,5
23,9
762,3
594,9
284,3
198
289,5
207,3
1995 2005
Pas
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23NOVOS ESTUDOS 89 yy MARO 2011
Muitos argumentam que a competitividade salarial da China
origina-se de seu regime de cmbio fixo, que subvaloriza sua moeda
consideravelmente. Outros afirmam que o imenso excedente de mo de
obra rural do pas permitiu seu desenvolvimento, com uma oferta
ilimitada de trabalho, por muito mais tempo que outras economias
asiticas. Mas um exame mais prximo revela que ambas as explica-es
so inadequadas. Em primeiro lugar, conforme indica o Grfico 5, a
diferena entre os nveis de salrio da China e os de seus vizinhos
mui-to maior do que a que um cmbio subvalorizado poderia explicar.
Mes-mo que se estimasse o iuane entre 20% e 30% em relao ao dlar
como defendem muitos crticos americanos da manipulao cam-bial
chinesa , os salrios chineses ainda seriam significativamente
menores. Em segundo lugar, uma oferta ilimitada de trabalho no um
fenmeno natural resultante da estrutura populacional da China, como
com frequncia se supe. Na realidade, uma consequncia das polticas
rurais-agrcolas do governo, que, intencionalmente ou no, faliram o
campo e geraram um contnuo xodo rural.
A relao entre essas polticas e os baixos nveis salariais pode
ser ilustrada comparando-se o desenvolvimento rural da China com o
do Japo, da Coreia do Sul e de Taiwan, que tambm dispunham de
grandes populaes rurais e setores agrrios no incio de sua decolagem
econmica. No Japo do ps-guerra, o Partido Liberal Democrata, ento
no poder, direcionou ativamente recursos para o campo, por meio de
gastos com infraestrutura rural, financiamento do desenvolvimento
agrrio, subsdios s propriedades rurais e ta-
GRFICO 3
Reservas cambiais como percentual do PIB no Leste Asitico
* Outras economias do Leste Asitico representa a mdia de Japo,
Coria do Sul, Taiwan, Cingapura e Hong Kong.
Fonte: Banco Mundial e Centro de Dados Econmicos de Taiwan,
banco de dados Aremos.
50
40
30
20
10
01970 1980 1990 2000
China
Outras economias do Leste Asitico*
-
24 O BRAO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS? yy Hung Ho-Fung
rifas sobre a produo estrangeira. Na Coreia do Sul, o regime
Park lanou o Saemaul Undong [Movimento Novas Vilas] no incio dos
anos 1970, deslocando recursos fiscais significativos para melhorar
a infraestrutura rural, financiar a mecanizao agrcola e instalar
ins-tituies e cooperativas educacionais rurais. Essa iniciativa foi
um sucesso notvel: aumentou a renda das famlias rurais de 67%
da
GRFICO 4
Percentuais da dvida pblica de longo prazo dos Estados Unidos
detidos pela China e pelo Leste Asitico (%)
Fonte: Tesouro dos Estados Unidos.
40
30
20
10
01978 1984 1994 2000 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008
Outras economias do Leste Asitico*China
GRFICO 5
Salrio industrial no Leste Asitico como percentual do salrio nos
Estados Unidos
Fonte: Agncia de Estatsticas do Trabalho dos Estados Unidos,
Estatsticas de Trabalho Estrangeiro (Japo e
Tigres Asiticos); Anurio Estatstico da China.
1950 1960 1970 1980 1990 2000
60
50
40
30
20
10
Coria do Sul
Japo
Taiwan
China
-
25NOVOS ESTUDOS 89 yy MARO 2011
[4] Lie, John. The State, industria-
lization and agricultural sufficiency:
the case of South Korea. Develop-
ment Policy Review, vol. 9, n 1, 1991,
pp. 37-51.
renda urbana, em 1970, para 95%, em 1974, eliminando
virtualmen-te a disparidade de renda rural-urbana4. Em Taiwan, o
governo do Kuomintang adotou polticas similares nos anos 1960 e
1970, pa-ralelamente a esforos conscientes para promover a
industrializao rural. A estrutura descentralizada resultante da
indstria taiwanesa permitiu aos agricultores trabalharem de forma
sazonal nas fbri-cas das proximidades sem abandonar completamente a
agricultura ou migrar para as grandes cidades. Isso ajudou a reter
uma parcela considervel da mo de obra nas vilas, encorajando um
crescimento rural-urbano mais equilibrado. Ao longo dos anos 1960 e
1970, a renda rural per capita se manteve acima de 60% do nvel
urbano. Sob tais polticas, no surpreendente que o excedente de mo
de obra rural tenha secado rapidamente e que os salrios industriais
tenham se elevado nesses pases.
As razes para a adoo dessas trajetrias diferentes variaram. No
Japo, a importncia dos votos rurais para o sucesso eleitoral do
Partido Liberal Democrata explica sua ateno ao desenvolvimento
rural. Para os regimes autoritrios de direita da Coreia do Sul e de
Taiwan, a promoo do desenvolvimento rural-agrcola foi uma ma-neira
de minimizar o deslocamento social que usualmente acompa-nha a
industrializao e de se antecipar ao crescimento da influncia da
esquerda no campo. Foi tambm uma forma crucial de garantir a
segurana alimentar no contexto das tenses da Guerra Fria. Em
contraste, o desenvolvimento industrial da China desde meados dos
anos 1980 tem sido muito mais desequilibrado do que o do Japo, o da
Coreia do Sul e o de Taiwan. Ao longo dos ltimos vinte anos, o
governo chins tem concentrado grande parte dos investimentos no
setor urbano-industrial, particularmente nas reas costeiras,
deixando defasado o investimento rural e agrcola. Bancos pblicos
tambm focaram os seus esforos no financiamento do desenvolvi-mento
urbano-industrial, enquanto o financiamento rural e agrcola foi
negligenciado. Nas ltimas duas dcadas, a renda rural per capita
nunca excedeu 40% do nvel urbano.
Esse vis urbano emergiu, ao menos parcialmente, devido ao
predomnio de uma poderosa elite urbano-industrial das regies
costeiras do sul um segmento que germinou aps a integrao inicial da
China na economia global, que expandiu seus recursos financeiros e
sua influncia poltica com o boom das exportaes e que se tornou
crescentemente adepto da prtica de moldar a poltica do governo
central a seu favor. De acordo com uma avaliao recente, a faco
elitista do Partido Comunista Chins (pcc) composta de lderes
antigos que construram suas carreiras nas regies costei-ras e na
administrao financeira e do comrcio controla mais as-sentos no
politburo do que a faco populista rival, que tem laos
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26 O BRAO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS? yy Hung Ho-Fung
[5] Li, Cheng. One party, two coa-
litions in Chinas politics. Brookings
Institute, 16/08/2009.
[6] Jikun, Huang, Rozelle, Scott e
Honglin, Wang. Fostering or stri-
pping rural China: modernizing
agriculture and rural to urban capital
flows. The Developing Economies, vol.
44, n 1, 2006, pp. 1-26.
mais estreitos com as provncias do interior. Embora Hu Jintao, o
atual chefe de Estado, seja um lder da faco populista, Xi Jinping
escolhido pelo partido para suceder Hu em 2012, em detrimento do
prprio favorito de Hu foi governador das provncias litorneas de
Fujian e Zhejiang e um dos principais membros da faco eli-tista5. A
crescente influncia dessa faco assegurou que fosse dada mais ateno
ao aumento da competitividade das exportaes chi-nesas e da
atratividade ao investimento estrangeiro em detrimento do
desenvolvimento agrrio. As revoltas urbanas de 1989, provocadas
pela hiperinflao e pela deteriorao do padro de vida nas grandes
cidades, apenas tornaram o partido estatal mais determinado a
garantir nos anos 1990 a prosperidade econmica das reas
metropolitanas custa do campo.
O resultado desse vis urbano tem sido uma relativa estagnao
econmica no campo e um concomitante rigor fiscal empreendido pelos
governos locais rurais. A partir dos anos 1990, a deteriorao das
rendas rurais e o declnio das indstrias coletivas rurais em-presas
das vilas e dos municpios que costumavam ser vibrantes geradoras de
empregos nos estgios iniciais das reformas de mer-cado foraram a
maior parte dos jovens trabalhadores do campo a migrar para a
cidade, criando um crculo vicioso que precipitou uma crise social
rural. O setor agrrio da China no s foi apenas ne-gligenciado, como
tambm explorado em benefcio do crescimento urbano. Um estudo
recente concluiu que houve uma transferncia l-quida contnua e
crescente de recursos do setor rural-agrcola para o
urbano-industrial, entre 1978 e 2000, tanto por meio de poltica
fiscal (impostos e gastos do governo) quanto por meio do sistema
finan-ceiro (depsitos de poupanas e emprstimos)6. As excees a essa
tendncia foram os anos em que a economia urbana passou por um
declnio temporrio, como ocorreu aps a crise financeira asitica de
1997-1998 (ver Grfico 6).
Esse modelo que favorece o desenvolvimento urbano em detrimen-to
do desenvolvimento rural da rpc , portanto, fonte da prolongada
oferta ilimitada de trabalho chins e, assim, da estagnao salarial
que caracterizou o seu milagre econmico. Esse padro tambm
res-ponsvel pelo ascendente supervit comercial da China, a fonte de
seu crescente poder financeiro global. No entanto, os baixos
salrios e o baixo padro de vida no campo, que resultaram dessa
estratgia de de-senvolvimento, limitaram o mercado de consumo
domstico chins e aprofundaram sua dependncia em relao demanda por
consumo do Norte global, a qual se sustenta cada vez mais por
emprstimos substanciais da China e de outros exportadores asiticos.
Como esses outros exportadores foram integrados no motor de
exportao chins, por meio da regionalizao de redes produtivas
industriais, as vulne-
-
27NOVOS ESTUDOS 89 yy MARO 2011
[7] A panda breaks the formation.
Economist, 25/08/2001.
rabilidades da economia chinesa tornaram-se fragilidades do
Leste Asitico como um todo.
DEPENDNCIA SINOCNTRICA
Nos anos 1990, a China se estabeleceu de forma gradual como o
mais competitivo exportador asitico em vrios nveis de sofisticao
tecnolgica. Como resultado, os outros pases incluindo o Japo e os
quatro tigres originais, alm de um grupo de tigres emergentes do
Sudeste Asitico, como a Malsia e a Tailndia foram colocados sob
intensa presso para se ajustar. A competitividade da RPC induziu
muitos exportadores de produtos manufaturados, vindos de outros
lugares da sia, a se mudarem para l. Uma reportagem da Economist de
2001 notou o temor e desespero com o qual os vizinhos da China
reagiram a sua ascenso:
O Japo, a Coreia do Sul e Taiwan temem um esvaziamento das suas
indstrias, enquanto fbricas mudam-se para a China devido aos seus
baixos custos. O Sudeste Asitico preocupa-se com o deslocamento dos
fluxos co-merciais e de investimento. [] A China no um ganso
[voador] [] porque fabrica tanto produtos simples quanto
sofisticados, fraldas descartveis e mi-crochips [] Ela fabrica
produtos ao longo de toda a cadeia de valor, em uma escala
determinante dos preos mundiais. Da a ansiedade do Leste Asitico.
Se a China mais eficiente em tudo, o que resta para os seus
vizinhos produzirem?7
GRFICO 6
Transferncia monetria total do campo para as cidades (bilhes de
yuan em preos constantes)
Fonte: Huang, Rozelle e Wang, Fostering or stripping rural
China.
400
300
200
100
1980 1985 1990 1995 2000
Agricultura para indstria
reas rurais para reas urbanas
-
28 O BRAO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS? yy Hung Ho-Fung
Decerto, os vizinhos da China reestruturam meticulosamente os
seus setores exportadores a fim de minimizar a competio frontal com
a economia chinesa e de lucrar com a sua ascenso. Sob a antiga
ordem in-dustrial do Leste Asitico, cada economia exportava grupos
especficos de bens de consumo acabados. Agora, esses pases comearam
a aumen-tar a proporo de componentes de alto valor agregado (Coreia
do Sul e Taiwan) e de bens de capital (Japo) nas suas exportaes
para a China.
Conforme a Tabela 2 indica, as exportaes da Coreia do Sul, de
Hong Kong e de Taiwan para a China ultrapassaram suas exportaes
para os Estados Unidos ao longo da ltima dcada, enquanto as do Japo
e de Cin-gapura para a China aproximaram-se rapidamente de suas
exportaes para os Estados Unidos. At 2005, o modelo de regionalismo
asitico de gansos voadores centrado no Japo foi substitudo por uma
rede pro-dutiva sinocntrica na qual a China exportava a maior parte
dos bens de consumo para o Norte global em nome dos seus vizinhos
asiticos, que a proviam com componentes e mquinas necessrios para
mont-los. Essa estrutura pode ser vista como um time de
funcionrios, tendo a China como chefe, liderando os demais no
fornecimento de exportaes baratas para os Estados Unidos e na
utilizao de suas poupanas conquistadas arduamente para financiar as
compras americanas dessas exportaes.
A integrao regional no Leste Asitico reflete-se claramente na
correlao entre os altos e baixos dos dados de exportao da China e
seus vizinhos. Por exemplo, a recuperao da sia da crise financeira
de 1997-1998 e o crescimento renovado do Japo aps 2000 podem ser
atribudos, ao menos em parte, absoro de seus componentes
manufaturados e de seus bens de capital pelo boom econmico chins.
Quando a atual crise global comeou a se delinear e a demanda dos
con-sumidores dos Estados Unidos passou a se contrair de forma
abrupta no outono de 2008, as exportaes asiticas despencaram
imediata-mente, enquanto as da rpc encolheram na mesma proporo
apenas trs meses depois. A causa dessa disparidade temporal foi o
fato de que a queda nas exportaes asiticas deveu-se em grande parte
a um de-clnio das encomendas de componentes e de bens de capital
realizadas pela China, antecipando a queda violenta nas encomendas
por pro-dutos acabados realizadas pelos Estados Unidos e por outros
pases, que ocorreria nos meses seguintes. Os limites do modelo de
desen-volvimento chins excessiva dependncia no consumo do Ocidente
e crescimento letrgico do mercado domstico traduzem-se
inevi-tavelmente em vulnerabilidades de seus parceiros asiticos,
deixando todas essas economias expostas a qualquer contrao da
demanda por consumo do Norte global. Reequilibrar o desenvolvimento
da China, portanto, no necessrio apenas para a sustentabilidade de
seu cres-cimento econmico, mas tambm para o futuro coletivo do
Leste Asi-tico como um bloco econmico integrado.
-
29NOVOS ESTUDOS 89 yy MARO 2011
OBSTCULOS PARA O REEQUILBRIO
Os governos da China e do Leste Asitico utilizaram suas reservas
internacionais para comprar ttulos da dvida americana no apenas em
busca de retornos presumivelmente estveis e seguros, mas tam-bm
como parte de um esforo deliberado de financiar o crescente d-ficit
em transaes correntes dos Estados Unidos e, assim, assegurar um
aumento contnuo da demanda americana por suas prprias ex-portaes.
Mas o dficit no se expande indefinidamente, o que pode s vezes
resultar em um colapso do dlar ou do mercado de ttulos do tesouro e
em um salto das taxas de juros, colocando um fim farra de consumo
americana. Isso no seria somente um golpe mortal para o motor
exportador da China, como tambm dizimaria seu poder finan-ceiro
global por meio de uma drstica desvalorizao de seus investi-mentos
preexistentes.
Antes da crise atual, o governo chins experimentou diferentes
maneiras de diversificar e ampliar os retornos sobre suas reservas
internacionais. Tentou investir em aes estrangeiras e financiar a
aquisio de corporaes transnacionais pelas companhias estatais, mas
quase todas as tentativas terminaram como fracassos
cons-trangedores. Isso foi menos o resultado de ms decises de
inves-timento do que dos limites impostos pela magnitude
excepcional das reservas internacionais da China, tornando difcil
para Pequim entrar e sair livremente de certos ativos financeiros
sem desorga-nizar os mercados globais. Ao mesmo tempo, as compras
de im-portantes companhias estrangeiras pelos chineses tinham
grande probabilidade de incentivar reaes protecionistas ou
nacionalis-tas. Como resultado, as aquisies estrangeiras da China
foram, em sua maioria, de empresas em declnio que procuravam
compradores
TABELA 2
Exportaes para a China e para os Estados Unidos como percentual
das exportaes totais
Fonte: Estatsticas de Direo do Comrcio do fmi e Centro de Dados
Econmicos de Taiwan, banco de dados
Aremos.
Japo
Coria do Sul
Taiwan
Hong Kong
Cingapura
7,1
0
0
26
1,5
37,6
35,6
18,1
30,8
21
5
7
0,3
33,3
2,3
China ChinaEUA
1985
EUA China EUA
27,5
18,5
23,3
21,8
18,3
13,5
21,8
22
45
9,5
22,9
14,6
14,7
16,1
11,5
1995 2005
Pas
-
30 O BRAO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS? yy Hung Ho-Fung
desesperadamente. Esses obstculos para diversificar seus
inves-timentos ficaram evidentes na compra desvantajosa, em 2005,
do setor de computadores pessoais da ibm pela Lenovo, uma
impor-tante corporao de informtica ligada ao governo chins; na
perda substancial incorrida no investimento de 2007 da Corporao de
Investimento da China, o fundo soberano chins, na Blackstone; e no
crescimento do sentimento anti-China na Austrlia, em 2009,
desencadeado pela tentativa da Chinalco, uma companhia estatal
gigante de recursos minerais, de ampliar significativamente sua
par-ticipao na Rio Tinto, a maior companhia mineradora da Austrlia.
A acumulao pela China de estoques de petrleo importado e de outras
mercadorias, para se proteger contra o aumento dos preos das
matrias-primas, tambm levou a perdas substanciais quando os preos
despencaram no rastro do declnio global.
Alm de expor o pas s vicissitudes dos mercados globais, o
mo-delo chins, orientado para a exportao, restringiu drasticamente
o consumo. Conforme sugerido anteriormente, a competitividade das
exportaes chinesas foi construda sobre uma estagnao salarial de
longo prazo, a qual, por sua vez, originou-se de uma crise agrria
sob um regime de polticas de vis urbano. Em vez de compartilhar uma
parte maior dos lucros com os empregados e melhorar seu padro de
vida, o prspero setor exportador transformou a maior parte de seu
excedente em poupana corporativa, que hoje constitui uma grande
proporo da poupana agregada nacional. Como indica o Grfico 7, a
partir do final dos anos 1990, o total dos salrios como percentual
do PIB declinou, em conjunto com a queda no consumo privado. Essas
duas tendncias decrescentes contrastam de forma marcante com o
volume crescente dos lucros corporativos. Embora o consumo esteja
aumentando em termos absolutos, ele tem crescido muito mais
vaga-rosamente do que o investimento (ver Grfico 8).
A restrio do consumo privado no apenas dificultou que as
empresas orientadas para o mercado domstico reduzissem os seus
estoques, como tambm trouxe frustraes para muitas empresas
es-trangeiras que tinham expectativas elevadas em relao ao mercado
supostamente gigante da China. Embora j consolidada como
com-pradora importante de bens de capital, componentes
manufaturados e recursos naturais do Japo, do Sudeste Asitico, do
Brasil e de outros lugares, a China ainda precisa realizar seu
potencial de grande impor-tador de bens de consumo tanto do mundo
desenvolvido quanto do mundo em desenvolvimento. A revista
Economist tomou as dores des-ses desalentados investidores
estrangeiros, dizendo que o mercado se revelar menor do que o
esperado e demorar mais para se desen-volver. E, como tantas
empresas estrangeiras esto se acumulando, a competio dever ser
intensa []. Como as empresas estrangeiras
-
31NOVOS ESTUDOS 89 yy MARO 2011
[8] A billion three, but not for me.
Economist, 18/03/2004.
[9] Speed bumps for automakers in
China, India. Forbes, 26/03/2007.
podero gerar retornos aceitveis na China?8. No mesmo esprito,
quando ficou claro que a demanda chinesa por automveis crescera
muito mais vagarosamente do que a capacidade produtiva do setor, a
revista Forbes reconheceu que a competio crescente na China levou
sobrecapacidade industrial e ao rpido declnio das margens de lucro
dos fabricantes de carros para um nvel em grande parte alinhado com
o resto do mundo, entre 4% e 6%9.
Na tentativa de reequilibrar o desenvolvimento da China,
carac-terizado pelo premi Wen Jiabao em 2007 como instvel,
desequi-librado, descoordenado e insustentvel, o governo central
sob Hu Jintao e seu aliados populistas buscou, a partir de 2005,
estimular o consumo domstico aumentando a renda disponvel de
camponeses e trabalhadores urbanos. A primeira onda de tais
iniciativas incluiu a abolio de impostos agrcolas e um aumento dos
preos de aquisio de produtos agrcolas pelo governo. Embora essas
medidas para me-lhorar o padro de vida rural tenham sido apenas um
pequeno passo na direo correta, seu efeito foi instantneo. Condies
levemente superiores no setor rural-agrcola diminuram o fluxo
migratrio para as cidades e seguiram-se uma repentina escassez de
trabalho e um salto salarial nas zonas costeiras de processamento
de exportaes,
GRFICO 7
Salrios, lucros e consumo privado como percentual do PIB
Escala da esquerda: nveis dos salrios e do consumo; escala da
direita: nveis dos lucros.
Fonte: Anurio Estatstico da China.
55
53
51
49
47
45
43
41
39
37
32
30
28
26
24
22
20
18 1995 2000 2005
Salrios
Consumo privado
Lucros
-
32 O BRAO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS? yy Hung Ho-Fung
Fonte: Centro de Dados da China.
GRFICO 8
ndices de crescimento do investimento e do consumo,
1980-2008
180
160
140
120
100
80
60
40
20
0
1980 1985 1990 1995 2000 2005
Consumo das famlias
Investimento em ativos fixos
1980 = 1
Fonte: Centro de Dados da China.
GRFICO 9
Crescimento percentual anual real das vendas do varejo,
1986-2008
20
15
10
5
0
-5
-10
1990 1995 2000 2005
-
33NOVOS ESTUDOS 89 yy MARO 2011
[10] Refere-se a Arthur Lewis (1915-
1991), economista que formulou
um influente modelo de desenvol-
vimento econmico caracterizado
por uma oferta ilimitada de traba-
lho. Esse modelo foi muito utilizado
para interpretar o desenvolvimento
de economias subdesenvolvidas e,
graas a ele, Lewis ganhou o Prmio
Nobel de economia em 1979. [n. t.]
[11] Fang, Cai e Yang, Du (orgs.). The
China Population and Labor Yearbook.
Leiden: Brill, 2009, vol. 1.
[12] Siwanyi neiwai [Por dentro e
por fora dos quatro trilhes]. Caijing,
16/03/2009.
[13] Ver Jiuye xingshi yanjun lao-
dong hetong fa chujing ganga [Gra-
ve desemprego ameaa lei do contrato
de trabalho]. Caijing, 04/01/2009.
induzindo muitos economistas a declararem que o ponto de virada
lewisiano10 quando esgota o excedente de mo de obra rural ha-via
sido finalmente atingido11.
Assim como a oferta ilimitada de trabalho na China era mais uma
consequncia de polticas do que uma precondio natural de seu
de-senvolvimento, a chegada do ponto de virada lewisiano foi, na
verdade, o resultado de tentativas estatais de reverter o vis
urbano precedente, e no um processo guiado pela mo invisvel do
mercado. Concomi-tantemente elevao da renda dos camponeses e dos
salrios indus-triais, ocorreu um crescimento sem precedentes das
vendas do varejo, mesmo descontando-se a inflao (ver Grfico 9).
Mas, logo aps o governo dar o primeiro passo em direo ao
crescimento impulsiona-do pelo consumo domstico, os interesses
ligados ao setor exportador passaram a reclamar ruidosamente da
deteriorao de suas perspec-tivas. Reivindicaram-se polticas
compensatrias para assegurar sua competitividade e tentou-se
sabotar iniciativas adicionais para elevar o padro de vida das
classes trabalhadoras, tais como a Nova Lei do Contrato de
Trabalho, que aumentaria a remunerao dos trabalha-dores e
dificultaria sua demisso, e a apreciao controlada do iuane.
Quando a crise global estourou, emperrando o motor exportador da
China, o governo lanou imediatamente, em novembro de 2008, um
megapacote de estmulo fiscal somando US$ 570 bilhes (incluindo
gastos do governo e emprstimos direcionados dos bancos pblicos). De
incio, muitos comemoraram essa interveno substancial como uma
oportunidade preciosa para acelerar o reequilbrio da economia
chinesa em direo ao consumo domstico e torceram para que o est-mulo
consistisse sobretudo em gastos sociais, como financiamento de
seguro de sade e seguridade social, que poderiam elevar ainda mais
a renda disponvel e, assim, o poder de compra das classes
trabalhadoras. No entanto, no mais do que 20% do pacote de estmulo
foi alocado para despesas sociais. A grande maioria destinou-se a
investimento em ativos fixos em setores j minados por
sobrecapacidade, tais como ao e cimento, e na construo do maior
sistema ferrovirio de alta velocidade do mundo, cuja lucratividade
e utilidade so incertas12. Sem fornecer muito auxlio para as
instituies de bem-estar social ou para as pequenas e mdias empresas
de trabalho intensivo, o pacote de es-tmulo gerou apenas uma
melhora limitada da renda disponvel e do emprego. Pior, o governo
central, aparentemente horrorizado com o co-lapso repentino do
setor exportador, recuou dos seus esforos reequi-libradores e
retomou inmeras medidas de promoo de exportaes, como abatimentos em
impostos sobre o valor adicionado das exporta-es e a interrupo da
apreciao do iuane. Industriais desses setores valeram-se da crise
para demandar, como questo de sobrevivncia, uma suspenso da Nova
Lei do Contrato de Trabalho, de 200713.
-
34 O BRAO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS? yy Hung Ho-Fung
[14] Zhongguo GDP zengzhang
jin 90% you touzi ladong [Aproxi-
madamente 90% do crescimento do
PIB da China foi impulsionado pelo
investimento]. Caijing, 16/07/2009.
A despeito de seu tamanho impressionante, o estmulo fiscal fez
pouco para promover o consumo domstico e, assim, reduzir a
de-pendncia da China em relao s exportaes. Ainda que uma gran-de
quantidade de recursos tenha sido direcionada para as provncias
ocidentais, para aliviar a disparidade de desenvolvimento entre o
lito-ral e o interior, o crescimento promovido pelo estmulo,
majoritaria-mente intensivo em capital e orientado para as cidades,
na realidade agravou a polarizao rural-urbana (ver Tabela 3).
Enquanto o grande vis urbano do investimento em ativos fixos
prosseguiu, a disparida-de rural-urbana no crescimento da renda,
que se reduzira aps 2005, ampliou-se novamente sob esse estmulo,
freando a melhora relativa do padro de vida rural, que havia
ajudado a estimular um crescimento modesto no consumo domstico.
Os gastos substanciais na realidade logram manter a economia
aquecida graas a um surto de curto prazo de investimento
impul-sionado pelo Estado, enquanto se aguarda mercado para as
expor-taes melhorarem. At o vero de 2009, os dados mostravam que o
estmulo interrompera de forma bem-sucedida a queda livre da
economia chinesa e encorajara uma modesta recuperao. Mas, ao mesmo
tempo, quase 90% do crescimento do pib nos primeiros sete meses de
2009 foi impulsionado somente por investimen-tos em ativos fixos
estimulados por uma exploso de crdito e um aumento do gasto do
governo14. Muitos desses investimentos so ineficientes e, em geral,
no so lucrativos (ver Tabela 3). Se a recu-perao do mercado para a
exportao no ocorrer a tempo, o dficit fiscal, emprstimos no
executveis e uma exacerbao da sobreca-
TABELA 3
Vis urbano persistente e lucratividade em queda sob o pacote de
estmulo
* Valor baseado nos seis primeiros meses de 2009.
** Valor representa variao nos oito primeiros meses sobre o
mesmo perodo do ano anterior.
Fonte: Agncia Nacional de Estatsticas da China.
Ano
Proporo urbano-rural nos
investimentos em ativos fixos
Disparidade urbano-rural
no crescimento da renda
per capita real (%)1998
Crescimento dos lucros nos
estabelecimentos industriais
5,6
3,4
17,4
5,7
3
31
20062005
Partido
2007 2008 2009
5,9
2,7
36,7
6,1
0,4
4,9
5,9*
3,1*
-10,6**
-
35NOVOS ESTUDOS 89 yy MARO 2011
[15] Xu Xiaonian, da Escola Interna-
cional de Negcios China-Europa,
em Xangai, citado em China stimu-
lus plan comes under attack at Sum-
mer Davos. China Post, 13/07/2009.
pacidade vo gerar um declnio mais profundo no mdio prazo. Nas
palavras de um eminente economista chins, esse megaprograma de
estmulo como beber veneno para matar a sede15.
PERSPECTIVAS
Nas ltimas duas dcadas, a China emergiu como montadora final e
plataforma de exportao da rede produtiva do Leste Asitico. Ela
tambm obteve o status de maior credor dos Estados Unidos e maior
portador de reservas internacionais, e demonstrou potencial tanto
para ser a fbrica do mundo como para se tornar seu maior mercado. A
China est, pois, preparada para estabelecer uma nova ordem
eco-nmica regional e global, auxiliando a sia e o Sul global a sair
de suas posies de dependncia econmica e financeira em relao ao
Norte em geral e aos Estados Unidos em particular.
O potencial de liderana da China, contudo, est longe de ser
realizado. At agora, a estratgia chinesa de emprestar para os
Esta-dos Unidos a fim de facilitar suas compras de exportaes
chinesas apenas aprofundou a dependncia do pas, assim como de seus
for-necedores, em relao aos consumidores americanos e ao mercado de
ttulos dos Estados Unidos. A competitividade de longo prazo das
exportaes da RPC est enraizada em uma abordagem desen-volvimentista
que arruna o campo e prolonga a oferta ilimitada de mo de obra
migrante de baixo custo para os setores exportadores do litoral. O
supervit comercial resultante, em permanente cresci-mento, pode
inflar o poder financeiro global da China, na forma de acumulao
ampliada de dvida americana, mas a represso salarial de longo prazo
limita o crescimento de seu poder de consumo. A crise financeira
atual, que dizimou a demanda por consumo do Nor-te global e
aumentou a probabilidade de um colapso do mercado de ttulos dos
Estados Unidos e do dlar, um alerta tardio para a urgncia de uma
mudana de rumo.
Pequim sabe muito bem que a acumulao contnua de reser-vas
internacionais contraprodutiva, uma vez que elevaria o ris-co
associado aos ativos que a China j detm ou ento induziria um
deslocamento para outros ainda mais arriscados. O governo tambm
sabe da necessidade de reduzir a dependncia do pas em relao s
exportaes e de estimular o crescimento da demanda domstica por meio
do aumento da renda disponvel das classes trabalhadoras. Tal
redirecionamento de prioridades deve envolver o afastamento dos
recursos e das preferncias polticas das cidades litorneas para o
interior rural, onde a prolongada marginalizao social e o
subconsumo abriram um amplo espao para melhorias. Mas os interesses
que se enraizaram ao longo de vrias dcadas
-
36 O BRAO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS? yy Hung Ho-Fung
de desenvolvimento impulsionado pelas exportaes tornam essa
tarefa intimidadora. Oficiais e empresrios das provncias
litor-neas, que se tornaram um grupo poderoso capaz de moldar a
for-mao e a implementao das polticas do governo central, esto at
agora inflexveis em sua resistncia a tal reorientao. Essa fac-o
dominante da elite chinesa, como exportadores e credores da
economia mundial, estabeleceu uma relao simbitica com a clas-se
dominante americana, que tem se empenhado em manter sua hegemonia
domstica assegurando o padro de vida dos cidados dos Estados
Unidos, como consumidores e devedores do mundo. A despeito de
rusgas ocasionais, os dois grupos da elite de ambos os lados do
Pacfico compartilham um interesse em perpetuar os seus respectivos
status quo domstico, assim como o atual desequilbrio da economia
global.
A no ser que haja um realinhamento poltico fundamental que
desloque o equilbrio de foras da elite urbana litornea para as
for-as que representam os interesses populares rurais, a China deve
continuar liderando os outros exportadores asiticos na tarefa de
servir diligentemente os Estados Unidos mantendo-se refm de-les. O
establishment anglo-saxo tornou-se recentemente mais res-peitoso em
relao aos seus parceiros asiticos, convidando a China a se tornar
uma parte interessada na ordem global ChiAmerica-na, ou G2. O que
eles pretendem que a China no complique a situao, mas continue
contribuindo para manter a dominncia econmica americana (em
retorno, talvez, de mais considerao em relao s preocupaes de Pequim
no que diz respeito ao Tibet e a Taiwan). Isso permitiria a
Washington ganhar um tempo precioso para assegurar o seu comando
sobre setores emergentes da econo-mia mundial por meio de
investimentos do governo, financiados com emisso de dvida, em
tecnologia verde e outras inovaes, transformando, assim, sua
combalida supremacia em hegemonia verde. Isso parece ser exatamente
aquilo em que o governo Obama est apostando como resposta de longo
prazo para a crise global e o poder americano declinante.
Se a China reorientasse o seu modelo de desenvolvimento e
al-canasse um equilbrio maior entre consumo domstico e expor-taes,
poderia no apenas se livrar da dependncia em relao ao mercado de
consumo em queda dos Estados Unidos e do vcio em relao arriscada
dvida americana, mas tambm beneficiar em outras economias asiticas
industriais igualmente ansiosos para escapar desses perigos. Mais
essencialmente, se outras economias emergentes adotassem uma
reorientao similar e o comrcio Sul-Sul se aprofundasse, elas
poderiam, ento, tornar-se consumi-doras umas das outras,
prenunciando uma nova fase de crescimen-
-
37NOVOS ESTUDOS 89 yy MARO 2011
to autnomo e justo no Sul global. At isso ocorrer, no entanto,
uma recentralizao do capitalismo global do Ocidente para o Oriente
e do Norte para o Sul, na sequncia da crise global, pouco mais do
que uma iluso.
Hung Ho-Fung professor de Sociologia na Universidade de Indiana,
Bloomington. Organizou
recentemente o livro China and the transformation of global
capitalism (Baltimore: Johns Hopkins Univer-
sity Press, 2009).
Rece bido para publi ca o em 20 de agosto de 2010.
NOVOS ESTUDOS
CEBRAP
89, maro 2011pp. 17-37