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O. BILAC e M. BONFIM Atraves Do Brasil Didatico

Apr 03, 2018

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    Prat ica da Lingua Portugueza

    Atravez do BrazilfNARRATIVAJ

    L i v r o d e l e i t u r a p a r a o c u r s o m d i od a s E s c o l a s P r i m a r i a s

    O. BILAC e M. BOMFIM

    D C I M A E D I O R E V I S T A

    L I V R A R I A F R A N C I S C O A L V E S1 66 , R U A DO OUVIDOR, 166 Rio de Janeiro

    SO PAULO129 , R u a L i b e r o B a d a r BELLO HOBIZONTER u a d a B a h i a , 1 0 5 61 9 2 3

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    Ie ne fay riens a n sGayet(Montaigne, Des livres)

    Ex LibrisJ o s M i n d l i n

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    Atravez do Brazil

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    Pratica da Lingua Portugueza

    Atravez do BrazilfNARRATIVAJ

    L i v r o d e l e i t u r a p a r a o c u r s o m d i od a s E s c o l a s P r i m a r i a s

    O. BILAC e M. BOMFIM

    D C I M A E D I O R E V I 3 T A

    LIVRARIA FRANCISCO ALVES166, R U A D O O U V I D O R , 166 Rio de Jane i roS. PAULO129, Rua Libero Badar B E L L O H O R I Z O N T BRua da Bahia, 10551 9 2 3

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    ADVERTNCIA E EXPLICAO

    Compuzemos este livro de leitura para o cursomdio das Escolas Primarias do Brazil, afim deser elle o nico livro destinado s classes d'essecurso; tal , de facto, a indicao pedaggica aconselhada hoje: s primeiras classes do ensino primrio no deve ser dado outro livro alm do livrode leitura.Acreditamos que o conjunto d'estas paginas Atravez do Brazil corresponde a essa exignciaou formula pedaggica.Entretanto, este l ivro uma simples narrativa,acompanhada dos scenarios e costumes mais dis-tinctivos da vida brazileira; e, em verdade, a Escola Primaria deve ensinar muito mais do queaqui se contm, e muito mais do que se possaconter em qualquer livro de leitura. Quando a Pedagogia recomm enda que as classes pr im aria selementares no tenham outro livro alm do de leitura, no quer dizer com isso que nesse livro nicose incluam todas as noes e conhecimentos que acriana deve adquirir. Fora absurdo e impossivel.Desde a primeira classe elementar, ha-de a crianaaprender, alm da leitura e da escripta, a gramma-tica e a pratica da lingua verncula, noes de

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    VI ATRAVEZ DO BR AZ IL5 " "

    geographia e de historia, calculo, systema dos pesos e m edidas, lies de cousas isto : elementosde sciencias physicas e naturaes, e preceitos de hygiene e instrco civica. Como resumir tudo issoem um pequeno volume, em um simples livro deleitura, que deve ser accessivel intelligencia infantil, e onde, por conseguinte, no ser possivelreduzir os ensinamentos e conhecimentos a simplesformulas syntheticas e abstractas?

    E' um erro compor o livro de leitura o livronico segundo o molde das encyclopedias. Infelizmente, esse erro se tem repetido em diversasproduces destinadas ao ensino e constituidas porverdadeiros amontoados didacticos, sem unidade esem nexo, atravez de cujas paginas insipidas sedesorienta e perde a intelligencia da criana: regra s de gramm atica m isturad as com reg ra s de bemviver e regras de arithmetica, noes de geographia e apontamentos de zootechnia, descripesbotnicas e quadros histricos, formando um tododisparatado, sem plano, sem pensamento director,que sirvam de harmonia e base geral para a universalidade dos conhecimentos que a Escola deveministrar. Como fonte de conhecimentos, a verdadeira encyclopedia do alumno nas classes elementares o professor. E' elle quem ensina, ellequem principalmente deve levar a criana a aprender por si mesma, isto : a pr em contribuiotodas as suas energias e capacidades naturaes, demodo a adquirir os conhecimentos mediante umesforo prprio.Segundo este modo de enten der o ensino, onosso livro de leitura offerece bastantes motivos,ensejo?, opportunidades, convenincias e assum-

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    ADVERTNCIA VIIptos, para que o professor possa dar todas as lies, suggerir todas as noes e desenvolver todosos exercidos escolares, para boa instrco intellectual de seus alumnos do curso mdio, de accrdocom os programmas actuaes e com quaesquer outros que se organizem com a moderna orientaoda Pedagogia .Com pletaremos esta explicao m ostran do comose podem tirar d'estas paginas ensejos e motivospara diversas lies.

    Convm notar, porm, e lealmente o declaramos : se este livro de leitura fosse apenas o desenvolvimento de uma narrativa, offerecendo motivospara differentes lies do programma, elle nopreencheria devidamente os seus fins, e no chegaria a ser um bom livro de classe. Alm de servirde opportunidade para que o professor possa realizar as suas lies, o livro de leitura deve conterem si mesmo uma grande lio. E acreditamos queisso se d com o nosso trabalho. Estamos certosque a criana, com a sua simples leitura, j lucraralguma cousa: aprender a conhecer um pouco oBrazil; ter uma viso, a um tempo geral e concreta, da vida brazileira, as suas gentes, os seuscostumes, as suas paizagens, os seus aspectos dis-tinctivos. E - p o r isso escolhemos como scenarioprincipal as terras do So Francisco, o granderio, essencialmente, unicamente brazileiro.E tambm quizemos que este livro seja umagr an de lio de energia, em gr an de s lances de

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    VII I ATRAVEZ DO BRAZILaffecto. Suscitar a coragem, harmonizar os esforos, e cultivar a bondade, eis a formula da educao humana. Os heroes principaes d'estas simples aventuras, no os apresentamos, est claro,para que sejam imitados em tudo, mas para quesejam amados e admirados no que representam degeneroso e nobre os estimulos que os impelliram,nos diversos transes por que passaram. No sepode influir efficazmente sobre o espirito da criana e captar-lhe a atteno, sem lhe falar ao sentimento. Foi por isso que demos ao nosso livro umcaracter episdico, um tom dramtico para despertar o interesse do alumno e conquistar-lhe ocorao. A Vida aco, movimento, drama.No deviamos apresentar o Brazil aos nossos pequenos leitores, mostrando-lhes aspectos immotos,apagados, mortos.Preferimos destinar os primeiros capitulos dolivro ao desenvolvimento dramtico, deixando maispara o fim a successo dos scenarios; sendo sempre a narrao mais captivante para o espiri toinfantil, a atteno da criana comea desde logoa prender-se leitura, e passa depois a acceitarfacilmente as descripes, e a seguil-as com interesse; ao passo que, se comessemos amontoandodescripes, cansariamos inutilmente o animo dopequeno leitor.

    Justamente porque procurmos apenas um pretexto para apresentar a realidade, preferimosillustrar este livro somente com photographias; se

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    ADVERTNCIA IXha nestas paginas alguma fantasia, ella serve unicamente para harmonizar numa viso geral osaspectos reaes da vida brazileira.Parece-nos ocioso mostrar como, a propsitoda leitura de qualquer texto ou pagina d'este livro,se pode dar qualquer lio de portuguez, theorica?ou pratica. Imagine-se que se trata da primeirapagina, e que o professor quer ensinar as primeiras noes de morphologia: nada mais fcil do que,palavras variveis, distinguindo-as das invariveis: e a observao d'este facto que certas palavras variam de forma, e outras no levarnaturalmente o alumno a comprehender que a razo de taes variaes a modificao da idia correspondente. Desenvolvendo mais a lio, o mestrechegar a ensinar a classificao das palavras, deque a leitura lhe d copiosos exemplos substantivos, adjectivos, artigos, pronomes, verbos, advrbios, etc.; e, como fecho, viro os exercidos de vocabulrio.Vejamos a lio de instrco moral. E' mistercomear o curso fazendo a criana observar a suasituao moral no seio da famlia, os laos edeveres de affecto que ligam as pessoas de um amesma familia. Diz o livro de leitura na primeirapa gi na : " E r a a prim eira vez que se separavados f ilhos depois da m orte da m u l h e r . . . " Ahio professor estudar com a criana as condiesd'essa familia em particular, e as condies de "familia" em geral; mostrar as duas accepesem que o term o usado, p a ra significar oconjunto da s p essoas que vivem na mesma casa,sob um mesmo tecto e sob a direco moral deum chefe, e o conjunto de todos os parentes;

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    X ATRAVEZ DO BRAZILestudar os deveres reciprocos dos diversos membros de uma familia deveres nascidos de sentimentos naturaes, to intensos, que levam muitasvezes os individuos pratica de verdadeiros sacrifcios, como os que os p es fazem com mum mentepelos filhos, e como os que os dois pequenosheroes d'este livro fazem por amor do pae.Agora, uma lio de historia. E' preciso principiar explicando de um modo sensivel as condiesdo Brazil antes da colonizao. Fala por exemploo liv ro de " se r to b ru to , onde h a v ia . . . i n d i o s . . . "E' um excellente pretexto para dizer quem soesses indios, que antigamente aqui viviam ssi-n h o s : os brancos e pretos vieram depois, e comelles veio a colonizao. E ento o professor appel-lar para a observao da criana, para que ellanote a differena entre o estado selvagem e as industrias, instituies, obras e costumes que distinguem a civilizao; mostrar que essas instituies e industr ias faltam ainda em grande parte aalgumas terras do interior, onde a civilizao aindano penetrou. Esta lio, desenvolvida de formaaccessivel mentalidade do alumno, e appellandosempre para o seu prprio raciocinio e para a suaprpria observao, ha-de leval-o facilmente a fazer uma idia do que era o Brazil selvagem.Uma l io de geographia . . . A pr imeira l iodo programma: terras e mares, accidentes geo-graphicos. No segundo capitulo, o livro fala emmar: "o mar f icou l a traz . . . " , ao passo queo trem avana para o interior do continente, entremontanhas, rios, etc. A pro veitan do essas indicaes, o professor ensinar que a superfcie da terracomprehende terras e mares: as linhas de encontro

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    .ADVERTNCIA XIso as costas, os litoraes, l inhas irregulares, formando cabos, bahias, pennsulas, etc; depois, fcil indicar os outros accidentes geographicos:rios, valles, ilhas, lagos, etc.Supponhamos agora que preciso iniciar oensino de "lies de cousas" , noes de cos*mographia e de sciencias physicas e naturaes, odia e a noite, estados dos corpos, seres vivos eseres inertes ou mortos. . . Logo no primeiro capitulo do livro, est: "O sol nascera cercado denuvens de fogo. . . " Essa phrase ser o pre textopara a primeira lio de cosmographia. A propsito das "baforadas de fumaa da machina", viro estudo dos trez estados dos corpos; e, aproveitando os "blocos de pedra", os "campos" e os"bois", de que trata o mesmo capitulo, o mestrelevar a criana a reconhecer que todos os seresse distribuem em duas categorias, perfeitamentedistinctas: seres vivos e seres inertes.D'este modo, sob a suggesto das mesmas paginas, todo o programma pode ser ensinado. Quala vantagem? E' que todo o ensino fica assim harmonizado, como irradiao ou desenvolvimento deuma s leitura; e essa leitura bastante, a todo omomento, p a ra evocar os conhecimentos adquiridos, que d'essa forma se assimilam muito maisfcil e naturalmente.Neste livro existem e entrelaam -se, por meiode mutua suggesto, todas as noes que a crianapode e deve receber na Escola; e, ao mesmo tempo,a sua leitura representa por si mesma uma visogeral do Brazil, um conhecimento concreto do meiono qual vive e se agita a criana; e d'este modo seconsegue isto, que a grande aspirao do ensino

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    X I I ATRAVEZ DO BRAZILp rim r io : que a Escola ensine a conhecer anatureza com a qual a criana est em contacto, ea vida que ella tem de viver e da qual j participa.

    Ju nt am os ao volume um pequeno lxico, em quedamos a significao de alguns termos empregados, dos menos familiares s crianas. Em geral,procurmos dar a estas paginas o tom singelo e alinguagem natural que mais convm intelligenciainfantil; este um dever rigoro so em trab alh od'esta natureza; mas seria impossivel evitar sempre o emprego de uma ou outra palavra menostrivial. Nem tanto se exige dos livros didacticos;se, em suas leituras escolares, a criana somenteencontrar palavras muito conhecidas, como poderella desenvolver o seu vocabulrio? Nos livros declasse podem ser emp regados term os menos u suae s,comtanto que estejam dispostos de modo a poderser facilmente comprehendidos com uma ligeiraexplicao. Essa explicao certamente ser sempre dada pelo professor competente e solicito; mas,como possivel que a criana seja tentada a ler olivro fora da classe, longe da vista e do auxilio doprofessor, o nosso pequeno lxico pode prestar-lhebons servios.Os AUTORES.

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    M NOTICIAEram dois irmos, Carlos e Alfredo, o primeiro de quinze annos de idade, e o segundo cincoannos mais moo. No tinham me. Havia doisannos que a tinham perdidoEstavam ambos em um collegio, no Recife. O

    pae, que era engenheiro, fora obrigado a deixal-os ahi, afim de trabalhar na construco de umaestrada de ferro, no interior do Estado, Era a primeira vez que se separava dos filhos, depois damorte da mulher; sempre fora muito carinhoso em eigo; principalm ente depois de enviuvar, torna ra-se de um a bo ndade excessiva, como querendo compensar com um redobramento de ternura a falta dos cuidados maternos de que via osfilhos privados. Era simples e affectuoso, preferindo ser attendido e amado a ser obedecido etemido. No castigava nunca os filhos: era p a raelles um amigo, um camarada, um companheiro.A separao foi para os trez um golpe doloroso.Mas no era possivel evital-a: e o engenheiro, nomom ento de p ar tir , abraando os dois rapa zes,fez-lhes esta recommendao: "Vocs devem sercoTYi-nrp -muito amieros. muito unidos, tendo um s

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    1 4 ATRAVEZ DO BRAZILcorao e uma s vontade. No temos parentespor aqui. Todos os nossos parentes vivem longe,no Rio Grande do Sul. Se eu morresse, ficariamvocs desam parad os ; e, se n o fossem m uitoamigos e muito unidos, a desgraa seria terrv e l . . . "Havia j dois mezes que o pae partira. Carlose Alfredo, no collegio, estudavam, e tinham umpelo outro uma amizade que nenhuma divergncia alterava. O que era de um era do outro; o queum pensav a, tam bm o outro o pen sav a. Nohav ia en tre elles segredo s, nem desconfianas,nem brigas. Ligados pelos laos do sangue, eramainda mais ligados pelos laos do affecto. Com-prehendiam a responsabilidade da sua condio,e esperavam com confiana um futuro melhor.Em certa manh de domingo, quando iam saira passeio, receberam um telegra m m a. O pa eestava doente. Doente "sem gravidade", diziao telegramm a. Os dois m eninos, porm , numsobresalto, im aginaram logo um a d esg ra a: "Opae estava to longe, num lugar quasi deserto,num serto bruto, onde ainda havia, talvez, indiosferozes, e estava en tre estra nh os, sem uma m i g o ! . . . Que molstia seria a sua? e se o seuestado se aggravasse, se elle morresse, assim,ssinho, abandonado, sem ter o consolo de poderdar a ultima benam aos filhos?"

    Carlos, o mais velho, disse logo, com os olhosrasos de gua: Sabes, Alfredo? no me resigno a esta incerteza ! Vou para junto de papae . . . E vou j ! Nemprevino o directo v *n nniioo-n nnrmifi renain nne

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    M NOTICIA 15no me deixe partir . Tenho ainda algum dinheirodo que papae nos deixou; vou vender o relgio,e sempre hei-de poder pagar a viagem.

    Pateo da lareia o Tero, no Recife.

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    1 6 ATRAVEZ DO BRAZ IL Tambm eu quero ir! exclamou Alfredo1

    leva-me com tigo! Mas tu s pequeno, a viagem longa, odinheiro pouco. . . . Vendere i tambm o meu r e l g io . . .Carlos no teve a coragem necessria para seoppor vontade do irm o. F o ra m logo d 'al l ipreparar a jornada, que era penosa , um diaem caminho de ferro , e ain da m uita s lgu as acavallo.O trem s partia no dia seguinte, s seis horase meia da manh. Para economizar o poucodinheiro que possuiam . os m eninos na da compraram; e, no querendo voltar ao collegio, ondereceavam a. opposio do dire cto r, res olve ramno dorm ir. F or am at Afogados, onde t inha muma familia conhecida, com a qual jantaram:depois vagaram longamente pelas ruas da cidade,cansados, pensando no pae. Alta noite, dirigiram-se para os lados da estao, e ficaram por l, espera da madrugada, encostados s portas, lutando com o somno. A's vezes, Carlos sentava-se,encostava a cabea do irmo nos joelhos. Mas lvinha um vulto, um soldado ou um transeunte, e os dois assustavam-se, temendo ser presos ereconduzidos ao collegio. Levantavam-se e continuavam a sua tr is te peregrinao.Assim passaram a noite, anciosos pelo diaTinham vendido os relgios, e no podiam sabera hora. De instante a instante, Carlos levantava acabea e olhava o co, para ver a altura do Cruzeiro do Sul, ou para verificar se a estrella d'Alva

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    M NOTICIA 1 7P o r fim, depois de um a longa espera torturante, viram o co tingir-se de um ligeiro rubor.

    Comearam a animar-se as ruas. Passaram asprimeiras carroas, levando po, carne e verdur a s pa ra a c ida de . . .Amanheceu.

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    IIN A E S T R A D A D E F E R R O

    A's seis e meia, partiu o trem, e l se foramos dois, num carro de segunda classe, muitojun tos , e aba tidos , n o s pe la afflico quelevavam comsigo, como pela fadiga d'aquella noitede vigilia.Era uma linda manhan de Setembro, fresca eradiante. Alfredo, que ia junto janella, comeoua olhar a paizagem, e entrou em breve, com a suacuriosidade de criana, j um pouco esquecido dodesgosto que o opprimia, a interessar-se poraquelle espectaculo que nunca vira. Nunca viajaraem estrada de ferro, e tudo aquillo era novo paraos seus olhos e para a sua intelligencia. Mudo epasm ado de adm irao, contem plava o sol quenascera, cercado de nuvens de fogo, e o co azule as arvores orvalhadas, e os immensos camposaqui e alli coberto de neblina. O h! C arlo s! que belleza! m as s vejo campos

    e m a t a s . . . Onde est o m ar? O mar f icou l atraz; respondeu o irmo ns nos vamos afastando d'elle. E que aquillo ao longe, aquella altura? E ' uma ser ra .

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    NA ESTRADA DE FERRO 19Alfredo no se cansava de contemplar a montanha, que apenas vagamente se desenhava ao

    longe, com uma cor verde, quasi azul, esfumada.O trem ia devagar, subindo uma rampa. Numavolta, o pequeno olhou para a frente, e viu a_

    Vista do porto do Recife, formado pela muralha natural dosarrecifes, sobre a qual est o forte do Brum.locomotiva que ia bufando, num esforo, expel-lindo pela chamin grossas baforadas de umafumaa muito branca, listada de faixas mais escuras.

    Pobre Alfredo! estava embebido nessa contemplao, quando sentiu dentro de um dos olhosum argueiro, um pedacinho do carvo da machina.Com a dor, o pequeno fechou os olhos, e correunnrn o irmo, oue estava em um dos outros ban-

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    2 0 ATRAVEZ DO BRAZILcos do carro; mas, infeliz, pisou, em cheio sobreum embrulho que estava no cho. Era a matalota-gem de um passageiro que dormia. Com o ruido,o homem acordou, e, vendo o embrulho machucado,levantou-se furioso contra o menino. Alfredo desculpou-se; mas o bruto a nada attendia, nem sexplicaes de Carlos, que, vindo em soccorro doirmo, mostrava a causa de sua queda. O pequeno,de facto, tinha um dos olhos vermelho e lacrime-jante . . . Em vo! o homem esbrave java , e d ispu-nha-se a espancar os meninos, quando um outropassageiro interveio: Hein! bater nestes dois pir ra lhos?! Vocno se envergonha de dizer tal cousa, homem?Voc, um homem forte, a fazer-se de valente paraduas crianas !A esse protesto juntaram-se logo os dos outrosviajantes, e o m alcriado, corrido de vergo nh a,foi outra vez encafuar-se no seu canto.O interessante foi que, com o episdio da alter-cao, Alfredo esqueceu o argueiro, e, quandopensou nelle, j no o sentiu.O trem parou . E r a a hora do almoo. Em qu antoos viajantes saam, e iam ao restaurante da estao, Carlos desembrulhou dois pedaos de po,eom uma fatia de carne cada um, que compraraantes de tomar o trem.Alfredo, sempre curioso, emquanto mordia opo e a carne, no tirava os olhos da casinhola daestao, do movimento da gente, da montanha quej apparecia mais perto, dos grandes blocos depedra que se amontoavam margem da estradado carvo que os carreg ad ores levavam pa ra a

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    NA ESTRADA DE FERRO 2 1machina. Mais longe, estendiam-se valles cobertos de m ato, e campos imm ensos e on deados,tapetados de um curto capim verde-amarello. EAlfredo admirava os bois que pastavam, fartando-se no capim, e com os grossos cachaos reluzindoao sol.Soou o apito , e o tre m poz-se de novo emmovimento.

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    i nA V E L H A A F R I C A N A

    De espao a espao, o trem diminuia a marcha,e parava numa estao onde ficava durante algunsminutos. Havia uma lufa-lufa de passageiros queentravam e saam, despedidas ruidosas entre osque f icavam e os que partiam; carregavam-se edescarregavam-se bagagens; e o comboio seguiade novo, correndo pelo leito da estrada, entre barrancos e matos verdes.Ao meio dia, chegou o tre m a P al m ar es . A hihouve baldeao: os viajantes passaram-se todospara os carros de uma outra estrada de ferro, e aviagem continuou. Agora, ia a linha beirando umrio. Da janella do trem, Alfredo, via-o e admirava-o. Em certos pontos, as guas muito claras,batidas de sol, corriam enc achoeirad as, en trepedras, borborinhnndo e espumando; alm, fluiammansamente, e o leito do rio alargava-se, formando pequenas enseadas; e, de espao em espao, via-se uma ilha coberta de verdura, ou uma ilhotaseca, de pedra, onde a gua batia raivosa. Aquias margens eram altas, cobertas de arvores frondosas ; e Alfredo, de cima, via o rio l em baixonegro e fundo, formando um abysmo temeroso.Mais adiante, as ribas tornavam-se baixas e

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    A VELHA AFRICANA 2 3estendiam-se em frescas vargens cobertas de capim e de junco.Carlos, absorvido na sua idia fixa, a molstiado pae, ia calado e pensativo, com a fronteenrugada, sem olhar os aspectos da natureza;mas Alfredo no se fartava de gozar o especta-#culo. Em certa altura, o trem passou junto, quasirente de um velho casaro em ruinas, com umalpendre na frente e as paredes velhas, esburacadas e negras, quasi caindo. Que isto, Carlos? perg unto u o pequeno. Deve ser um engenho. . . E porque est assim to feio? Porque muito velho. E deve ser realmente muito velho! disseAlfredo. Esta casa deve ter mais de mil annos! Que mil anno s!? Exclamou C arlos,rindo. No tem? Est claro que no! no ha casa no Brazilque tenha mil annos! pois se ha pouco mais dequatrocentos annos que o Brazil foi descoberto. . .

    Ah! sim! no me lembrava!Nesse momento, reinou repentinamente a escurido dentro do carro. Tudo ficou inteiramentenegro. Com um rumor muito mais forte, a ma-china offegava na treva. Alfredo, assombrado,agarrou-se ao brao do irmo: No nada! disse-lhe este. Estamosatravessando um tnel; sairemos j, no te assustes!De facto, instantes depois, o trem libertava-seda escurido; e a luz do dia irradiou outra vez,

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    2 4 ATRAVEZ DO BRAZILilluminando a paizagem. Dentro do carro, aatmosphera estava quasi irrespirvel, carregadade fumaa espessa. Uma pobre preta africana, jmuito velha, sentada a um canto do carro, gemiae arfava, suffocada. Carlos correu para ella, eabriu a portinhola para que ella respirasse umpouco de ar fresco e puro. A velha contemplou-ocom carinho, agradeceu-lhe o servio, e instincti-"vamente, num impulso de gratido, estendeu-lheuma das mos, com um punhado de amendoinstorrad os. Carlos no acceitou o pre sen te, m asAlfredo, com um grito de alegria, deu-se pressaem recebel-o. E' seu irmo, yy? perguntou a preta . EM P a ra onde vo?

    Para Garanhuns . > Ah! a minha terra! Ainda fa l ta muito.Carlos e a velha comearam a conversar. Omenino, sempre pensando no pae, aproveitou oensejo, que se lhe offerecia, de obter algumas informaes. Mas a preta velha pouco sabia. Sabia,apenas que tinham apparecido na cidade uns engenheiros; mas j no estavam l: andavam pelosmatos, construindo uma estrada, a muitas lguasde distancia, no serto bravo. Para chegar l, seriapreciso alugar animaes fortes, que pudessem resistir a cam inhada. Carlos, ouvindo as explicaes da velha, pensava tristemente que s lhe restavam cinco mil ris . . . Era todo o dinheiro quepossua! Como havia de fazer, com to poucodinheiro, to longa viagem? preta falava, sem interrupo, numa tagare-lice infindvel, contando a historia d'aquelles lu-

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    A VELHA AFRICANA 25gares, e d 'aquel las g e n te s . . . V ira nascer quasitodo o povo que alli vivia. . . Mas Carlos no escutava o que ella lhe dizia. Olhava com tristeza oirmozinho, que j devia sentir fome. Como o alimentaria? como o levaria comsigo, por aquellesmatos a fora? e onde iriam dormir, quando che-

    Um cannavial, na poca do corte das cannas, que so transportadas para a usina num pequeno t rem.gassem a Garanhuns?. . . Pensando nisso, quasidesanimava: mas o desejo de ver o pae era tovivo, que lhe restituia a coragem.A africana continuava a fa la r: de vez emquando, metia a mo num pequeno sacco, e davaa Alfredo um punhado de amendoins torrados. Atarde caiu. O crepsculo entristeceu o co. Eramseis e meia.0 trem parou na estao de Garanhuns.

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    IVG A R A N H U N S

    Na estao da modesta cidade, Carlos e Alfredoficaram parados por algum tempo, sem saber oque deviam f a z e r . . . Fo ram depois andand o, aoacaso, pelas ru as q uasi des ertas, adorm ecidas,em silencio, mal illuminadas, marginadas de casinhas pobres e baixas. A'quella hora, quasi ningum estava fora de casa; apenas alguns animaespastavam livremente, catando a herva que cresciaentre as pedras. Carlos voltava-se, ancioso, paraum e outro lado, procurando ver algum, a quempudesse perguntar onde era o escriptorio da Estrada de Ferro de guas Bellas. Emfim, portade uma casa, viu um velho, que lhe deu a informao desejada. No era longe o escriptorio. Osdois meninos, reanimados, estugaram o passo; omais velho ia cheio de esperana, architectandoplanos risonhos: ia saber noticias do pae, eera quasi certo que lhes dariam pousada, poraquella noite, quando soubessem que eram filhosdo engenheiro. Mas quando, ao chegar casa indicada, viu fechada a porta, sentiu frio no corao.Bateu, tornou a bater . . . em vo. Por f im, um vi-sinho, abrindo a jane lla, indago u a causa dorumor.

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    G A R A N H U N S 27 No aqui o escriptorio da Estrada? E \ Mas ahi ningum dorme. E no me sabe dizer onde mora o engenhei-ro-chefe?O homem deu indicaes minuciosas, e osdois seguiram. Mas, na casa do engenheiro-chefe,esperava-os nova decepo. Um criado, hespanhol,disse-lhes que o patro no estava: tinha partido,na vspera, para uma viagem. O pobre Carlos,

    cansado, enfraquecido, tonto de somno, ficou at-tonito e tremulo, no meio da rua, no silencio e natreva, sem uma idia. Que fazer? que havia deser d'elles, e, principalmente, do irmozinho,to criana, sem ter o que comer nem onde dormir? Lembrou-se de procurar um hotel: mas, segastasse o pouco dinheiro que tinha, como poderia alugar os animaes? Pensava tristementenisso, quando deu pela falta do irmo. Procurou-opor todos os lados, afflicto, e ia gritar, chamar

    Menino de tribu Cayap. Ao lado o interior de umahabitao de indios, da mesma tribu.

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    2 8 ATRAVEZ DO BRAZILpor elle, quando o viu sair, correndo de dentrode uma padar ia . Traz ia dois pes . . .

    Onde achaste esses pes? perg un touCarlos. Quando passvamos pela padaria lembrei-me que g u ar d ar a cem ris, e com prei o nossojantar . Toma um po. No! gua rda -o pa ra t i , amanh . . . Amanh, a inda es t longe. . . E como queres que o guarde para mim, quando sei que tambm tens fome?Andaram um pouco mais, comendo os pes;Carlos ia com a morte na alma, vendo que o irmo tropeava nas pedras do caminho, j extenuado. Pararam no extremo da rua em que estavam. J alli rareavam as casas. Viram um casebre humilde, fechado, com uma larga coberturabaixa, de sap. Acolheram-se a esse abrigo providencial, aconchegaram-se, e adormeceram logo.Rompia a manh, quando Carlos ouviu que ochamavam: Yy! yy! . . . Co i tad inhos !Era a velha preta , que j haviam encontradono t rem: Porque no bateram porta? Vamos, vamos para dentro! Coitado do outro! Como estencolhidinho!A boa velha levou-os para o interior do casebre. E ra um a choupana rstica, m as asseada,com paredes de barro preto, e cho duro, batido'de torres. A um canto o fogo, ao centro umamesa de madeira tosca; alguns bancos de pau, eo catre, em que dormia a dona da casa, completavam a moblia. A velha trouxe-lhes logo um

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    GARANHUNS 29grande pedao de cuz-cuz, e um mingau saboroso,espcie de papa molle, feita de milho azedo. Osdois rapazes comeram, com vivo prazer, aquellasboas cousas, que lhes parecia terem cado do co.O pequeno Alfredo, fazendo honra ao banquete,no deixava de olhar tod a a casa, exam inandotudo, a moblia, as cordas onde secava a roupa,e os "registros" de santos pregados s paredes.Mas, o que mais lhe pre nd ia a atteno er a oquintal, entrevisto atravez da porta do fundo.Assim que acabou de comer, correu para l. Deum lado ficava uma pequena horta, onde, em canteiros bem tratados, se alinhavam as couves, osquiabos, as ervilhas; do outro lado ficava o cercado da criao: havia gallinhas, patos, perus,um porco, e uma cabrita. Tudo aquillo revelavaum cuidado constante; tudo estava limpo e varrido ; e, contra o m uro , enfileiravam-se as en xad as,os regadores, as vassouras, as foices. . . Foi Carlos quem foi arrancar o irmo d'alli. O dia ia alto,e era tempo de seguir viagem.Abraaram a boa preta, agradecendo-lhe a hospitalidade gen erosa. Alfredo ainda levou umgrande embrulho com amendoins to rra dos , ultimo presente da caridosa africana. Seguiram,a caminho do escriptorio. Mas, antes de l chegarem, houve um episdio que os interessou. Caram no meio de uma compacta multido, que cercava dois homens em luta. Eram dois homens dopovo, engalfinhados, rolando no p, esmurrando-se. Ouviram-se apitos, e appareceram soldados.Alfredo, atordoado, deixou cair no cho o saccodos amendoins, e poz-se a tremer.

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    3 0 ATRAVEZ DO BRAZIL __ No te assustes! Que isso?! disse-lheo i rmo. No nos vo elles prender, Carlos! Ests louco? Pois no vs que elles no temo direito de prende r-nos ? . . . Po is, se na da fizem o s . . . Deixa-te de tolices, e vamo-nos embora! M as porque foi que pren de ram aquelleshomens ? Porque estavam brigando, e podiam ma

    tar-se ou ferir-se. E quem os mandou prender? As au tor idades , na tu ra lm en te . . .

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    VA CAVALLO

    Quando chegaram ao escriptorio da Estrada deFerro de guas Bellas, Carlos e Alfredo encontraram um moo, engenheiro e desenhista, quesubstitua o engenheiro em viagem. Chamava-seCunha, era amigo do pa e dos dois rap aze s, erecebeu-os com amizade e carinho. E' bem exacta, infelizmente, disse elle aCarlos a noticia que receberam. Seu pae, oDr. Menezes, est doente. Fui eu mesmo quemlhes passou o telegramma.. . Est doente, e bemlonge d'aqui: se no fosse isso, j eu teria idovisital-o, e teria vindo com elle para Garanhuns,onde ha mais conforto. Mas como posso ir atBoa Vista, margem do rio So Francisco, quarenta lguas acima do extremo da Estrada deFerro de Piranhas? To longe assim? perg unto u Carlos,com espanto e magua. Sim. O chefe do servio quiz mandar a BoaVista uma pessoa de confiana, e seu pae foi oescolhido. Assim que chegou,- adoeceu. Commu-nicaram-nos logo a noticia, por carta: e, como.poderia tratar-se de cousa grave, no hesitei emnassar-lhes o telegramma que receberam.

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    3 2 ATRAVEZ DO BRAZIL B em ! disse C arlos, depois de um segundode reflexo. Iremos a Boa Vista! E seu irmozinho? Eu tambm irei! exclamou Alfredo. Impossvel, meu filho! objectou, compadecido, o engenheiro. A viagem longa cpenosa. E ' preciso via jar vin te e cinco lguas acavallo at Piranhas, seguir por estrada de ferroat Jatob, e d'ahi subir, em canoa, quarenta

    lguas at Boa Vista . Essa no viagem para umacriana. Seja como for, quero ir! teimou o menino, j com os olhos cheios de gua.O Dr. Cunha comprehendeu que nada conseguiria insistindo. F oi logo d ar as providen ciaspara a viagem: arranjou dois cavallos mansos,contratou, p a ra acom panh ar os dois viajantes,um homem conhecedor dos caminhos, e entregouao mais velho dos irmos o dinheiro necessriopara as passagens e as despesas midas. Deu-lhesalm disso uma carta de apresentao para omajor Antnio Bento, que em Jatob lhes forneceria os meios de subirem o rio em canoas.Eram duas horas da tarde , quando a pequenacaravana par tiu de G aranh un s. A principio tudocorreu bem. O guia era falador, e tagarelava semcessar, respondendo s perguntas dos meninos.A ta rd e era linda e fresca. Alfredo divertia-sextraordinariamente com aquelle modo, para ellenovo, de viajar: deliciava-se com o balano doand ar do animal, e ia en cantado , fazendo pe rgu ntassobre perguntas. O prprio Carlos parecia menostriste, menos preoccupado com a doena do paeMas, depois de du as ho ra s de viagem Alfredo

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    A CAVALLO 3 3comeou a sentir-se fatigado: doiam-lhe as costase as p er n as ; voltava-se, ora p ar a um, ora p ar aoutro lado, procurando uma posio mais commoda. Carlos com prehendeu o seu soffrimento, etentou distrahil-o: * Sabes para onde vamos? No. Para onde? peguntou o pequeno,j com os olhos accesos de curiosidade., Vamos p ar a o E stad o de Alagoas, e nadireco do Estado da Bahia. No te lembras dacapital da Bahia, por onde passmos ha cincoannos? E' a cidade mais velha do Brazil. Foi naBahia que viveu o Caramur. Que Caramur? Caramur comeou Carlos a narrar foi o nome que os indios deram a um certo DiogoAlvares, portuguez, que naufragou na Bahia allipor volta de 1510. A pris ion ado pelos indio s,Diogo Alvares ia ser por elles comido... Comido? Sim. Os selvagens do Brazil eram anthro-pophagos, isto : comiam os seus prisioneiros.Diogo Alvares ia ser comido, quando teve a felizidia de fazer fogo, com a espingarda que trazia,sobre um pssaro. Ouvindo o estrondo da arma,que no conheciam, vendo o pssaro cair fulminado, e attribuindo tudo isso ao poder sobrehu-mano, os indios prostraram-se por terra, e adoraram o nau frago portugu ez, a quem deram onome de Caramur.. Mas, que quer dizer essa palavra? Dizem uns que, na lingua selvagem, Caramur queria dizer senhor do raio, filho do trovo;e dizem outros que com esse nome designavam os

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    34 ATRAVEZ DO BRAZILindig enas um a espcie de peixe electnco,^ um aenguia, cujo contacto fazia estremecer a mao quea tocava. Seja com fr, Diogo Alvares salvou-se,e viveu muito tempo entre os indios, casando-secom um a rap ar ig a da t r ibu, P ara g ua ss ^ que,depois de baptizada, recebeu o nome christo deC ath arina . Quando, em 1534, M arti m Affonso

    Arcos, f lexas, set tas, harpo e machados, usados pelosindios borors.

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    A CAVALLO 3 5chegou Bahia, ainda encontrou Caramur, queteve muitos filhos, e prestou grandes servios colonizao do norte do Brazil. Que historia inte ress an te! exclamouAlfredo. Houve tambm um portuguez, que naufragou mais para o sul, em 1512, em Suo Vicente,onde hoje a cidade de Santos, no Estado de SoPaulo. Tambm esse, que se chamava Joo.Ramalho, escapou de ser devorado pelos indios,e chegou a dominal-os de tal modo que com ellesviveu at idade avanada, constituindo familiae sendo encarregado m ais tard e, po r M artimAffonso, do governo da colnia ou villa m ili tarde Piratininga, que foi a origem da actual cidadede So Paulo. Mas parece impossvel que os indios pudessem comer carne hum an a! Que cousa ho rrvel,Carlos! Ah! a vida dos selvagens era muito diffe-rente da nossa, em tudo. . . Como viviam elles? perguntou o pequenocada vez mais interessado.Carlos no quiz d eixar de continuar a dis-trahil-o; e, emquanto os animaes trotavam, faloud'este modo:

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    V IA V I D A S E L V A G E M

    Os primitivos habitantes do Brazil formavam m uitas tr ibu s, disseminad as pelo inte rio r epelo lito ral do paiz, e estan do qu asi sem pre emgu erra um as contra as ou tras. V iviam da caa eda pesca. Caavam, s frech adas, os po rco s domato, as pacas, e as aves; para pescar, empregavam tambm as suas frechas certeiras, ou usavam umas redes pequenas a que davam o nomede pus, e uma espcie de cesto afunilado, chamado giqu. Emquanto os homens andavam pescando, caando ou guerreando, as mulheres ficavam nas casas, fabricando uma bebida forte,denominada cauim, tratando das sementeiras e dasplantaes, e preparando a farinha, que era umdos principaes alimentos dos selvagens. E tinham casas, como as que temos?perguntou o pequeno. Tinham casas que no eram to bem feitascomo as nossas, mas serviam perfeitamente paraabrigal-os. As aldeias dos indios chamavam-setabas, e compunham-se de va ria s ocas, ou barracasfeitas de paus e barro, sem divises interiorestendo ape nas esteios, onde se pen du rav am 'asredes. E m torn o da taba, leva nta va m uma r>ali

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    A VIDA SELVAGEM 3 7cada, feita de troncos ou de espiques de palmeira,servindo de defesa.

    E andav am vestidos como ns? Qual! Andavam ns, apenas com algunsornatos feitos de pennas. Na cabea tinham com-mummente uma espcie de diadema, acanguap;em torno dos rins, traziam uma tanga, enduape;e usavam ainda collares e pulseiras, algumasvezes formados por enfiadas dos dentes que arrancavam da bocca dos inimigos mortos na guerra.Homens e mulheres costumavam untar todo ocorpo com um a tin ta oleosa, que ex trah iam decertas plan tas. A lguns usavam furar os beios,as na rinas, as orelhas, encaixando nos furospequenos batoques de madeira. E como eram as guerras?

    A h! eram terrve is! eram v erdadeiras guerras de exterminio. Algumas tribus odiavam-setenazmente, com um rancor que s desappareciaquando uma d'ellas era totalmente destruida pelaoutra. Os prisioneiros eram comidos ou escravizados. As armas eram variadas. Havia os grandesarcos, por meio dos quaes atiravam as longasfrechas, cuja ponta formada por ossos ou dentesafiados era algumas vezes envenenada; havia asgrandes lanas de pau-ferro, que eram arremessadas com uma certeza de pontaria admirvel;havia as tamaranas ou tangapemas, que eram pesadas clavas, ou maas de m ad ei ra ; e havia asesgravatanas, tubos ocos, com os quaes, por meiodo sopro, atiravam-se settas finas a grandes distancias. Essas armas eram todas fabricadas pelosselvagens, cuja industria relativamente adiantadaainda se revelava no fabrico de v rios utensi-

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    38 ATRAVEZ DO BRAZILlios dom sticos, como cestos, red es de pesc a,vasilhas para cozer a mandioca, e talhas ou ga-abas, que serviam para guardar a gua, o cauim,a farinha , o peixe m oido, e de ntro das qu aesalgumas tribus enterravam os seus mortos. Comoinstrumentos de musica, tinham os indios trom-betas, das quaes a mais usada era a inubia ou

    Taba india .bozina de guerra; o memby que era uma gaita feitacom um osso de coxa humana, um femur escavado ; e o marac, espcie de chocalho, consti-tuid o p o r' um a cabea cheia de pequenos ossose pedras .Alfredo ouvia com gr an de atten o o que oirm o lhe dizia. M as no lhe saa da cabea pa rticularm ente, a idia ho rrve l dos b anquetes dec a r n e h u m a n a . . .

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    A VIDA SELVAGEM 39 Que barbaridade! E ainda ha muitos indiosno Brazil? Ha ainda alguns, no interior do Amazonas,do Par , de M atto Grosso, de Goyaz, E sp iri toSanto, So Paulo, P ara n , Sa nta C atharina,Maranho, conservando a sua vida independente

    Mayac espcie de cesta em que as ndias bororscarregam os fi lhos. Chefe boror, armado e ornamentado.

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    4 0 ATRAVEZ DO BRAZILe os seus costumes ferozes. Mas, perto das povpa-es, j todos elles se vo convertendo vidac iv i l i z a da . . . . Patrozinho! disse neste ponto o camarada acho melhor arrancharmos neste lugar .Os trez viajan tes tinham chegado ao p deum crrego. Apearam-se e amarraram as rdeasdos cavallos s arvores. Havia mosquitos, voandoe zumbindo. Bemvindo, o camarada, para afu-gental-os, juntou uns gravetos no cho, deitou-lhes fogo, com o auxilio de um phosphoro;abanou com o chapo a pequena fogueira; e, d'ahia pouco, as chammas crepitaram, vivas e alegres.Sentaram-se, e comearam a jantar .

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    V IIE S T R A D A A F O R A

    Comeram calmamente. O fa m ei , fo rned do pelosub-chefe, con tinha um a excellente galjinha as sada, um pedao de rosbife e po. O camaradaBemvindo trazia uma boa poro de carne secaque os dois rapa zes tambm quizeram prov ar,com aquelle valente apetite que lhes haviam dadoo movimento e o ar do campo. Estavam do ladoda estrada, sombra de uma grande arvore, cujacopa de folhagens abund antes os raios do solno conseguiam atravessar. O cho era batido, liso e limpo como o de uma casa. Via-se bemque aquelle lug ar era um pon to hab itualm enteescolhido para repouso pelos viajantes que poralli jorna dea vam . Um pouco ad iante, corria oriacho, atravessando o caminho. Ouvia-se bem oleve rumor das guas desusando entre as pedras.E s esse rum or e o de algum a folha que caape rturb avam o silencio do sitio qu ieto, a essahora de calor ainda forte.

    Alfredo, quando acabou de comer, correu parao riacho, e foi m ergulhando as mos na gua,para laval-as. Mas exclamou logo, ingenuamente :

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    42 ATRAVEZ DO BRAZIL O h! sujei a g u a ! . . . Como havemos debeber? Ora, pa tro zin ho ! no v que a gua estcorrendo sempre? disse rindo o camarada.

    Uma t ropa de burros, fazendo t ransporte de cargas, nointer ior do Brazi l .A agua suja vae embora, e a que vem est semprel impa!O pequeno riu da sua p r p ria tolice; m as,nisto, ouviu-se o toque, ain da afa stad o e fraco,de uma campainha. Alfredo dirigiu o olhar paratodos os lados, e, no comprehendendo que somera aquelle, voltou-se p a ra o cam ara da , que estava arreando os animaes.Bemvindo era um caboclo reforado, mooainda, peito largo, pescoo musculoso, olhosneg ros e vivos, cabellos luzen tes e anelad oscaindo sobre a testa. Tinha as mangas da camisa

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    ESTRADA A FORA .43

    e as calas arregaadas, e viam-se-lhe, ao sol, osbraos e as pernas de msculos grossos e ten-des rijos e salientes. Era um bello exemplar dorobusto sertanejo nortista. A presteza com quearreava os animaes, e a fora de que dava prova,apertando as correias, attestavam uma longa prartica d'aquelle servio. Que toque este de campainha, seu Bem-vindo?

    Com certeza alguma tropa que vem davilla, patrozinho. No tar d a a ap p a re c e r. . . Olhe!ahi vem ella!Alfredo voltou-se, e viu na es trada, do ou trolado do riacho, um squito de burros, uns atrazdos outros, em fila. O da frente trazia uma campainha no pescoo: todos os * outros o seguiamdocumente, guardando a mesma distancia entresi. Vinham carregados de couros; cada um traziadois rolos enormes, um de cada lado da cangalha;era to pesada a carga, que os animaes tinham olombo de rreado , e caminhavam de vagar, comoapalpando o solo com as patas. Atraz, no couceda tropa, vinham dois homens a p, e um meiiinoa cavallo.Os burros, assim que chegaram ao riacho, correram todos para a agua, sequiosos. Como erammuitos, sujaram logo a agua com as patas. E Alfredo notou, com interesse, que todos, ao mesmotempo, voltavam a cabea para o lado de cima, procu ra do lquido que vinha lim po : v Tambm elles sabem que a agua, que corre,vem sempre limpa.. . disse comsigo mesmo opequeno, sorrindo.

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    4 4 ATRAVEZ DO BRAZ ILMas o Bemvindo, tendo reconhecido os doistropeiros, exclamava: Oh! Jo s ! Oh ! Ju st in o ! vocs de ondevm? como vo vocs? Oh! Bemvindo! por aqui? . . . Ns v imos deAgua Branca. E voc est bom? como est avelha? Boa. Vocs passaram pelo arraial? Passmos. ' E voc pa ra onde v a e ? . . . Vou levar estes moos a Piranhas, e queriasaber se o capi to Paulo es t no "s i t io" . . . Acho que est! disse o mais velho dosdois tropeiros quando passmos por l, estavana varanda uma pessoa: pareceu-me que era elle. . .Apearam-se o Jos e o Justino, e comearam a

    conversar com Bemvindo. Eram amigos do camarada, conhecidos antigos, e davam mostras de es-timal-o muito. O mais velho, de face escura, quasipreta, era mais forte do que o outro, caboclocomo Bemvindo. Ambos tinham physionomiasympathica, e trataram com carinho os irmos quese dirigiam a P ira n h as , desejando-lhes boaviagem. E quem esse menino que vae com vocs? perguntou Bemvindo. E ' meu mano respondeu o Jus t ino: vou leval-o para a cidade; j est com os seusoito annos e vae estudar na escola.A conversa no esfriava. M as C arlos, ven doque se eftava fazendo tarde, chamou a attenode Bemvindo, que se despediu dos amigos, pedindo-lhes que dessem lem bran as sua velhame, em Garanhuns.

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    ESTRADA A FORA 4 5Montaram, e puzeram-se a caminho. Eramcinco horas da tarde. O ar ia refrescando; o solera menos vivo, e podia-se olhar livremente paratodos os lados, sem ser preciso levar a mo aosolhos para abrigal-os do ardor solar. . .

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    ' V I I IN A F A Z E N D A

    A essa hora, j a viagem era mais agradvel.Corria uma virao suave. Animavam-se os campos ; e viam-se, de quando em quando, ao longodo caminho, rebanhos pastando. A cada instante,da relva que atapetaya a senda, ou das arvoresque a bordavam, voava um pssaro, espantadocom a aproximao dos animaes.Agora, os viajantes, depois de subir uma pequena ladeira, chegaram a um taboleiro alto,plano, extenso, por onde a estrada se estendiaquasi em linha recta. A subida fora por um terreno spero, averm elhado, semeado de pe dr in ha sbrancas, alisadas e redondas, como as que forram o leito dos rios. De distancia em distancia,via-se uma moita mais elevada, um capo de mato,algumas arvores secas: tudo mais era capim rasteiro, enfezado, de folhas du ra s e pe lud as. Osanimaes marchavam num passo seguro e igual;e o bater das suas ferraduras no cho duro produzia um ruido cadenciado.Iam calados os trez viajantes. Bemvindo esticava o pescoo, e olha va p a ra a fren te, comoquem quer descobrir alguma cousa. Alfredo, en-

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    NA FAZENDA 4 7nuvens verm elhas. Carlos, pensan do sempre namolstia do pae, ia concentrado e apprehensivo.Foi o camarada quem, de repente, rompeu osilencio: Estamos per to!0 sol acabava de desapparecer no horizonte.Os viajantes acha ram -se defronte de um a cancellaou porteira de bater. Bemvindo adiantou o animal,abriu-a, e ficou a segura l-a, em quanto os doisirmos passavam. Estamos no pasto do capito Paulo, .disseelle. Alli, naquella casa, que vamos pousar.A casa ficava a uns trezentos metros de distancia, bem visivel, ao fundo do terreno chato.Logo ao en tra r, Alfredo assentou -se, e nopde disfarar o susto. O terreno estava cheio debois, uns deitados, outros de p, ruminando. Masos animaes ficaram como estavam, limitando-sea acompanhar os recemchegados com os seusgrandes olhos pensativos e mansos. Dez minutosdepois, os trez viajantes batiam porta da casa.Era um casaro de aspecto feio, largo e baixo,com um telheiro ao lado, e um copiar na frente.Appareceu uma criada, que, reconhecendo Bem-vindo, foi logo chamar o dono da casa, que seno demorou, um homem de physionomiafranca e agradvel, apesar da sua apparente severidade, e ainda robusto , ap esa r dos cincoenta e tan tos annos que devia ter. E nt ro u ,dando as boas noites, e, olhando Carlos, pareceulogo reconhecel-o. O rapaz , por sua vez, assimque o viu, exclamou: Oh! senhor Silveira! o senhor no pae doRamiro e do Affonso?

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    48 ATRAVEZ DO BRAZIL Sim, sim... Agora reconheo que j o vi no*Recife. . . O senhor no um mocinho que o Ra

    miro me apresentou, em Maro, quando estive nocollegio ? Sou eu mesmo. Sou muito amigo do Rarmiro. * E seu irm o , este? E que que fazempor aqui?Carlos contou-lhe ento toda a dolorosa historia da sua viagem. Mas antes que elle acabasse, jo capito Paulo da Silveira tinha mandado recolher os animaes, e dera todas as providenciaspa ra que os rapazes e o cam arada fossem bem hospedados. Mostrando uma verdadeira solicitude, umgrande interesse, chamou a mulher, e a filha jmoa, e apresentou-lhes os rapazes: So collegas e amigos dos m e n in o s . . .Vocs ho-de t er fome, vam os comer algum acousa!Por mais que allegassem falta de apetite, Carlos e Alfredo tiveram de sentar-se mesa farta,onde ficaram conversando. A mulher do capito,assim que soube que elles no traziam bagagem, evinham sem outra qualquer roupa alm da quevestiam, foi pro cu rar, entre os ve stu rios dosfilhos, alguns que lhes pudessem serv ir. Felizmente, Ramiro e Affonso eram quasi da mesmaidade de Carlos e de A lfred o: de m an eira quecada um d'estes recebeu duas mudas de roupa.

    O aspecto seria e tristonho de Carlos inquietav a o capito , que comeou a conversa r comelle, como se conversasse com um homem feito impressionado pelo seu bom senso e pelas suasmaneiras polidas. Pedia-lhe noticias dos filhos

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    NA FAZENDA 49informava-se sobre o seu adiantamento e sobre o seu proceder. Ficava satisfeito com as novasque Carlos lhe dava; via-se bem que tanto elle,como a mulher, estavam cheios de saudade dospequenos. Emquanto conversavam os dois, Alfredo, que nunca at ento se metera em cavalla-rias altas de viagem, j cabeceava, tomado defadiga e somno. Mas, de repente, estremeceu, e

    MACEI. Praa da Matr iz .

    espertou, ouvindo o som de uma viola, e logodepois o ruido de um pandeiro e vozes que cantavam. Que isto? onde ? E' a lgum samba que o Bemvindo j estarranjando l em baixo! disse o capito. O Bemvindo morre por um samba... Querem ve r?vamos at l. Eu confesso que no gosto muitod'isso, porque brincadeira que s vezes acabaem barulho. . . Ainda ha pouco tempo, teve devi r aqui um delegado da Lim eira, p a ra fazer o

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    5 0 ATRAVEZ DO BRAZILcorpo de delido num rapaz que saiu ferido dosamba... Mas, coitados! o nico divertimentoque tm!E levou comsigo os dois meninos.Por traz da casa da fazenda, corria uma fila decasinhas de taipa, com uma s porta. Em frentea ellas, num terreiro batido e limpo, estavam reunidas umas vinte pessoas, quasi todos homens, pretos, caboclos e mulatos. F o rm av am circulo,uns sentados no cho, outros sobre os calcanha res, ou firm ando na te rr a os joelhos e aspontas dos ps. No centro do circulo, o Bemvindosentado sobre uma pedra, empunhava a viola. Aolado, de p, um mulato, talvez de vinte annos deidade, rufava o pandeiro. Os dois cantavam emdesafio. Uma grande fogueira, accesa a pequenadistancia, espancava as trevas, e alumiava a scenapittoresca.O mulato cantou:

    J chegou, j est cantando:Canta no seco e na lama;Caboclo, tome sentido!Quero ver a sua fama!Bemvindo respondeu logo, na mesma toada:

    Quero ver a sua fama,Diz voc; pois ha-de ver:Mulato, chegou seu dia,Voc tem de padecer.E o mulato continuou, torcendo-se todo, caindopa ra um e. ou tro lado, e acom panhando com ocorpo o compasso do pandeiro:Voc tem de padecer...Quem de ns padecer?Caboclo a mim no me espanta,Nem mesmo do Cear!

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    NA FAZENDA 5 1 Oh! Jos! gri tou o capi to. Entovocs no danam? Dancem um pouco, que estes

    moos querem ver! Formem a roda! bradou o Jos formem a roda! Quem tira ? pergun tou um outro. Thereza! Thereza, t ira o samba!Levantaram-se todos. O Bemvindo accommo-dou-se a um lado, com a sua viola. F o rm ar amuma larga roda. No meio, appareceu uma cre-oula, moa e franzina, bonita, e comeou a cantar com'uma vozinha fraca, mas afinada:Eia, negro ateimoso:O boi preto, valeroso, guaim,Fui ao mato, t irei pau fiz um bodoque,Mandei balas a galopeNo pe i to do sab i . . .Todos responderam, em coro, cantando amesma trova . A creoula cantav a e danava, dentro da roda, sapateando, com um passinho mido,acompanhando o rythm o da musica, dando voltase rev irav olta s e castanholando com os dedos.

    Quando ella acabava de cantar uma trova, o coroa repetia. Depois a danarina aproximou-se de umdos parceiros da roda, danando sempre, chamando-o, vindo os dois danar no centro do circulo,um defronte do outro, e retirou-se, cedendo olugar a outra pessoa. B em ! disse C arlos. J vimos bastante.Vam os dorm ir, Alfredo, que devemos pa rt irc e d i n h o . . .Dormiram. E, quando nasceu o sol, j estavampromptos para partir , levando roupas, um fartofarnel, e muitos abraos e desejos de felicidade.

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    I XP I R A N H A S

    Por quatro horas a fio, os nossos trez viajantesseguiram por um caminho seco e ligeiramenteaccidentado, subindo e descendo morros baixos,quasi totalm ente despidos de veg eta o. O solardia e fulgurava, reverberando sobre os calhausda estrada, de onde saltavam faiscas de ouro. Apoeira cegava.A principio, ainda se via uma ou outra casinha,com um a pequena plan tao rod a, favas,mandioca, algodoeiros, ba na ne iras ou c anas.Mas logo depois comeou o campo deserto, duroe seco. Pou cas a rvo res havia, m irr ad as , reto rcendo no ar os galhos desfolhados. Os dois ra pazes soffriam cruelmente. Alfredo, s vezes, olhavao irm o, com os olhos ang ustiado s- M as C arlosfingia no com prehe nde r: era impossivel p a r a ralli, onde no havia agua nem sombra. Arre! patro! exclamou Bemvindo.Felizmente, est acabando este maldito carrascal!Alli em baixo passa uma aguinha, e moram unsconhecidos meus. Vamos descansar um poucoemquanto pas sa o ardo r do meio-dia. E depoispuxaremos pelos animaes, se quizermos ir dormir

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    PIR A N H A S 5 3para l do rio. Vamos ver se chegamos a Piranhas amanh pelas quatro horas da tarde!

    No falharam os planos do cam arada. Depoisde um curto descanso, continuaram a jornada; ea noite, ao cair, apanhou-os junto do rancho deum vaqueiro, duas lguas alm do rio. O homemrecebeu-os bem, como podia. O seu caseb re erato pequeno, que os dois irmos dormiram fora,sob o alpen dre, m etidos ambos nu m a s red e.Carlos lembrou-se da casinha da preta velha, emGaranhuns: era mesma, a pobreza, e era mesma,a boa vontade; e, abenoando a hospitalidade ea bondade da rude gente do norte, o menino adormeceu serenamente, ao lado de Alfredo, que, decansado, dormia to bem como se estivesse deitadonuma cama de pennas.

    Antes da madrugada, beberam uma forte dosedo excellente leite que lhes offereceu o vaqueiro,e puzeram-se a caminho. Quando o sol nasceu,j tinham caminhado m eia lgua. A estrad a,sempre plana, sempre despida de arvo redo , eracastigada barbaramente pelo sol. A's nove horasda manh, j o calor era intolervel. Havia lugaresem que as ferr ad ur as dos animaes batiam emrocha viva, tiran do fagulhas. Cada vez augmen-tava mais o calor. No soprava a mais leve ara-gem; o ar pesava dentro dos pulmes; os animaes arfavam, banhados de suor. Ns hoje temos tempestade, com certeza! disse Bemvindo.

    De facto, s duas horas da tarde, o disco dosol foi adquirindo uma cor avermelhada, e, depoispardacenta; o co nublou-se; para o lado do sul,comeou a fuzilar.

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    5 4 ATRAVEZ DO BRAZIL1 Seremos apanhados pela trovoada? pensavam aterrados os dois meninos.Apressaram o passo dos animaes, e tanto seesforaram, que, antes de desabar a chuva, apea-ram-se porta de um pequeno hotel da cidade deP i r a nha s . Vamos jantar! disse Bemvindo.O hotel era mo desto, m as a m esa era fa rta .Comeram carne de sol assada, e peixes, uns

    excellentes piaus do rio So Francisco. Se fossemos ver o rio? disse Alfredo E' um rio grande, o So Francisco? E' immenso! explicou o i rmo. Atravessa dois Estados do Brazil, servindo de divisaentre trez.Assim que acabaram de jantar , par t i ram para oporto. L est o Estado de Sergipe! exclamouBemvindo. Onde? L, na outra b an da ! E st e r io sep ara Sergipe de Alagoas. E ' exacto! disse Carlos ao irm o . Aquelle j o territrio de Sergipe. Ns, nestesltimos dias, j atravessm os todo o E sta d o deAlagoas. Ah! Era por Alagoas que estvamos viajando? perguntou o pequeno ao camarada. Era. Viemos de Pernambuco, e entrmosem Alagoas quando chegmos fazenda do capito Paulo. A fazenda j fica para o lado de c dadivisa. Alli acaba Pernambuco e comea Alagoas-agora, aqui, acaba Alagoas e comea Sergipe' E vamos para Sergipe?

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    PIR A N H A S 55 No, patrozinho! Ns viemos nesta dire-co, mas agora vamos tomar outro rumo. Vamossubir o rio. Isto . . . vamos, um modo de falar,porque devemos separar-nos aqui. Agora ossenhores vo seguir at Ja to b , e ahi o m ajorAntnio Bento, para quem o Dr. Cunha lhes deuuma carta de apresentao, ha-de indicar-lhes ocaminho at Boa Vista. E ' ve rd ad e! disse Carlos com tristeza.

    J tinha esquecido que nos devemos separar aqui!J estvamos to habituados a viajar juntos!

    SERGIPE. Palcio do Governo, em Aracaju.V olta ram ao hotel, e dorm iram. No d ia seguinte, de m anh, as despedidas foram triste s.Bem vindo, commovido, ao ab ra ar os dois rapazes, quasi se decidiu a acompanhal-os at Jatob. Alfredo desejava ardentemente essa solu

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    5 6 ATRAVEZ DO BRAZILo. Carlos, porm, oppoz-se tenazmente ao sacrifcio do excellente camarada: No, Bemvindo,no! Antes de tudo, o dever: voc tem o seu trabalho em G a ra n h u n s. . . J no foi pequeno oincommodo que lhe demos! D muitas lembranasao Dr. Cunha, ao capito Paulo, e aquella boapreta que to nossa amiga se mostrou.A's sete horas, partiu o trem. Bemvindo acompanhou-o com os olhos at que o viu de sap pa -recer na prim eira curva da es trad a. E os doisrapazes encetaram a nova phase da sua fatiganteviagem, num ca rro de segun da classe, muitoag arra do s um ao outro, e entreg ues ag ora a simesmos.A paizagem era a mesma que tinham visto atento : cho pedregoso, poucas arvores, retorcidas e nodosas, m orros de sp era pe dra neg ra,pastagens raras e fracas.No carro em que viajavam os dois irmos, iaum moo, brazileiro como elles, expansivo, olhan-do-os constantemente, com um manifesto desejode entabolar conversa. Depois de alguma hesitao, no se conteve, e apresentou-se. Era o representante de uma grande casa commercial da Bahia,e tinha uma conversa a gra d ve l e in struc tiva,porque gostava de contar as suas viagens por todos os Estados do Brazil. Os senhores nunca via jaram ? Muito pouco; disse Carlos. E, infelizmente, no uma viagem de recreio, a que fazemos. Pouco importa! disse o moo. Viajar sempre til. Em geral, os brazileiros so sedenta-

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    PIR A N H A S 5 7rios, e no conhecem o seu paiz. Eu viajo ha quasidez annos, e ainda no estou farto.

    Neste ponto da conversa, o trem parou. Tinhachegado estao de Sinimb. Aqui, explicou o am vel viaja nte, descem os que vo visitar a famosa cachoeira dePau lo-Affonso. Nunca vi to bello espectaculo,em toda a minha vida, e no creio que haja, emtoda a terra, mais formosa maravilha da Natureza!

    s

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    A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO Ah! exclamou Carlos, a cachoeira dePaulo-Affonso! Vel-a um dos meus sonhos maisard en tes ! Sei de cr os versos em que C astroAlves a cantou:

    " . . . Mas sbi to da noi te no arrepioUm mugi do so t u rno rompe as t r evas . . .Ti tubantes no alveo do rio Tremem as l apas dos t i t ans coevas! . . .Que gri to este sepulcral , bravio,Que espanta as sombras ululantes, sevas?E ' o brado at roador da catadupa,D o p e n h a s c o b a t e n d o n a g a r u p a ! . . . "

    Mas disse o moo, sorrindo por maistalento que tenha um poeta, por mais que saibaexprimir em seus versos a grandeza de uma scena,no poder jamais descrever o que aquelle assombro! Aquillo indescriptivel! O senhor j viu a cachoeira de perto? perguntou Alfredo. J fiz duas vezes a viagem a cavallo, s paraadmiral-a. E se Deus me der vida e sade, hei-devoltar. Conte! conte o que viu! exclamou o pequeno, batendo palmas.

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    A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO 59

    E ' difficil c o n t a r . . . Imaginem os senhoresque o rio So Francisco se despenha, com toda asua massa formidvel de agua, de uma altura deoitenta e um metros! O salto di-se justamenteuns trezentos e dez kilometros acima da foz do rio. Trezentos e dez kilometros! disse Alfredo. Mas isso deve ser uma distancia enorme! O ra! disse C arlos. O rio So Francisco um dos maiores do globo: o seu percurso avaliado em dois mil e novecentos kilometros!Mas vamos ouvir este senhor que j teve a fortunade ver a cachoeira. Quando o rio chega a esse ponto, continuou a dizer o via jan te, satisfazendo a curiosidade dos dois meninos as suas ondas pa ssamapertadas entre duas alt issimas muralhas derocha. Obrigadas a passar por essa garganta, asguas avolumam-se, esmagam-se, atropelam-se, atiram-se vertiginosamente por uma rampa de gra-nito, e desabam da altura de oitenta e um metros,form ando qu atro canaes, de m uitos m etros del a r g u r a . . . M as, o mais admirvel que, sendocurvos os canaes, as co rren tes de agu a encontram-se em certo ponto, num choque tremendo,cujo barulho se escuta a muitas lguas de distancia. O viajante ainda vem longe, longe.. . e jouve o mugir soturno da cachoeira. Mas quando se est perto que o especta-culo deve ser bello! disse Carlos. No somente bello: am edro ntad or: Todaa terra estremece. . . parece que ha, ao mesmotempo, a erupo de vrios vulces rugindo. Asguas crescem, confundem-se, brigam, separam-se,tornam a chocar-se numa peleja titanica, com um

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    60 ATRAVEZ DO BRAZILfragor que ensurdece. Em torno da cachoeira, todoo espao fica toldado de um nevoeiro denso, formado pelo vapor da agua que espadana em espuma. E imaginem agora o sol atravessando esse

    Cachoeira de Paulo Affonso.vapor, e accendendo nelle vrios arco-iris em quebrilham topasios, rubis , esmeraldas e saphiras!Ah! no se pode dizer o que aquillo!Carlos e Alfredo ouviam extaticos a narraodo seu amvel companheiro de viagem. Mas, nessemomento, o trem, com um estrondo mais forte, deferragens entrechocadas, atravessou uma ponte. E ' a ponte do r io M oxot. Es tam os entran dono Estado de Pernambuco! disse o viajante. M as ento no estamos longe de Ja to b Estamos perto. O Moxot a divisa entreAlagoas e Pernambuco. Mas, quem foi que marcou essas divisas?

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    A CACHOEIRA DE PAULO AFFON SO 6 1interrogou Alfredo, que nunca perdia o costumede mostrar a sua curiosidade.

    Todas essas divisas so antigas, e foramsendo marcadas medida que se foi explorandoo territrio das capitanias em que o rei de Portugal D. Joo III dividiu o Brazil, disse-lheCarlos. O governo portuguez, reconhecendo anecessidade de povoar o Brazil, e receoso do desenvolvimento que o commercio francez ia tendo,resolveu ceder gra nd es pores de te rri t rio aalguns favoritos, encarregados de povoal-as e ad-ministral-as. Essas capitanias eram doze, e jtinham limites vagos, que se foram depois precisando e marcando com segurana. Ainda hoje apreciso no absoluta: ainda ha discusso sobre os verdadeiros limites de alguns Estados, emcertos pontos do seu terr i tr io . . . Jatob! gritou o chefe do trem.

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    X IO R P H O S . . .

    Felizmente o major Antnio Bento estava navilla. Recebeu com carinh o os vi ajan te s, e nomesmo dia forneceu-lhes o que p edia m . A gasa -lhou-os, deu-lhes jantar, e peixou-os s trezhoras da tarde, numa excellente canoa, confiadosa um canoeiro perito, para quem as guas do SoFrancisco j no tinham segredos. Leval-os-ia acanoa at a casa do capito Tavares, um velhoamigo do major, seu antigo companheiro na campanha do Paraguay; e d 'ahi seguir iam na mesmaconduco at Boa Vista.Por sete dias viajaram assim os dois rapazes,rio acima, no fundo da estreita canoa que ora navegava impellida pelos remos e pelas varas, oracorria tangid a pelo ven to, que lhe enfunava opano das pequenas velas. S durante uma noitedo rm iram em te rr a firm e, na caga do amigo docapito An tnio Ben to, um bom velho quecontava historias do Paraguay e fazia a todo oinstante a apologia da vida militar. Mas, nas outras noites, dormiram alli no fundo da canoa, semcommodidade, alimentando-se mal, e contandode minutos em minutos as horas longas e morosas que os separavam do termo da viagem.

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    ORPHOS 63Nos dois primeiros dias, ainda os divertia oespectaculo do rio. Uma viagem fluvial sempre

    interessante para quem a realiza pela primeiravez. A jo rnad a montona, m as tem, a principio, o encanto da novidade pittoresca. Os rapazescontemplavam o curso do rio So Francisco, s vezes manso e largo, espra iado como umm ar, out ra s vezes acachoeirado, dividido emcanaes, forman do ilhas e ilhotas , estas cobertasde vegetao opulenta, aquellas inhospitas e rochosas, oppondo-se s vagas que as batiam emfria. Das ribanceiras ou das pon tas da s ilh aspartiam muitas vezes bancos de areia grossa ebranca, planos, como aterros feitos pela mo dohomem. Em certos pontos, via-se o gado, quevinha nelles po usa r, to serenam ente como seestivesse em terra firme. As margens do rio mostravam-se cobertas de matas: viam-se alli os troncos brancos das embabas, os altos jac ara nd s,as bauh inias espinhosas, as palm eiras tucuman . De onde vem este rio? perguntou umavez Alfredo.

    Vem de M in a s . . . Como grande o Brazil! E como ns j temos andado! accrescen-tou Carlos, com tristeza.Os ltimos dias foram tristes. Aquella uniformeextenso de guas, aquella mesma paizgem selvagem, desdobrando-se sem variedade, davam aosdois m eninos um a neg ra melancolia. P o r fim,numa quinta-feira, s duas horas da tarde, chegaram a Boa Vista. Havia doze dias que tinham partido do Recife! Saltaram da canoa, com uma so-

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    64 ATRAVEZ DO BRAZILfreguido delirante, gozando o prazer de pisar aterra f i rme, e anciando por abraar /o pae . . .

    Aqui no ha hotel disse o canoeiro. Com certeza, o pae de vosmecs est hospedado

    O vapor Joazeiro, da Empreza "Viao do S. Francisco".na casa do escrivo, que onde pra toda a genteboa que passa aqui.Correram casa indicada, e tiveram uma decepo : Seu pae j no est em Boa Vista disseram-lhes. Esteve aqui oito dias, doente; e, comono melhorasse , seguiu p ar a P e tr o l i n a . . . Seguiuha uns dez dias.

    Os dois meninos entreolharam-se, com lagrim as . . . Co ntavam abr aa r o pae, e ape nas ficavamsabendo que elle estava peor!D uran te meia ho ra, Carlos permaneceu num

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    0 R P H A 0 S 65tr is te abatimento, sem idias. . . Mas a sua energia n o esta va exgotada . Contou o dinheiro quelhe restava, e verificou que apenas tinha no bolsotrez mil ris . . . Mas narrou a sua angustia ao escrivo, e pediu-lhe que o aconselhasse. Se o senhor quer ir a Petrolina, disse-lheo homem, depois de uma curta reflexo, o queposso fazer arra nja r-lh e um a boa emb arcao.E' uma lancha a vapor, que navega de Joazeiropara cama, e veio at aqui; deve partir hojemesmo. Podem ir de graa at Petrolina.Partiram. A lancha navegou todo o dia, mas aocair da tarde parou: era arriscado viajar, com aescurido da noite, por entre as pedras do rio.Mais essa demora!. . . Na manh seguinte, a viagem continuou. A's dez horas estaremos em Joazeiro, que o mesmo porto de Petrolina; disse o comman-dante .Petrolina e Joazeiro defrontam-se, nasduas margens do So Francisco.O pequeno vapor, arfando, vencia a correnteza,ora tom ando o meio d'ella, ora desviando-se p ar auma e outra margem, fazendo voltas, fugindo daspedras, evitando as corredeiras. Seriam nove horas da manh. Carlos e Alfredo, sentados sobreuns saccos, proa da lancha, estavam to desanimados que no trocavam uma s palavra. Quevia ge m ! j lhes pa recia que estavam no fim domundo, que tinham percorrido toda a terra de uma ou tro extrem o. Quando find aria aquella angu stia ?!De repente, em uma das voltas do rio, avistaram uma canoa, que vinha em sentido contrario.

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    6 6 ATRAVEZ DO BRAZILQuando enfrentou com a lancha, a peqa e n a e m ~barcao aproximou-se um pouco, e parou.

    Voc vem do Joazeiro? perguntou o com-mandante . Venho, sim. Que ha de novo por l? N a d a . . . A h ! verdade! conheceu umdoutor, um engenheiro que estava doente em .Petrolina ?Ouvindo isso, Carlos e Alfredo puzeram-se dep, a nc iosos . . . No. . . disse o commandante . Porquepergun ta ? Esse engenheiro m orreu , co itado ! En terrou-se hontem em Joaze i ro . . .Ouv iram-se dois gr ito s, e depo is um soluaragoniado. Os dois meninos choravam abraados,confundindo as suas lagrimas. O commandantee os tripulantes da lancha, comprehendendo tudo,olhavam commovidos aquella scena horrvel . . .E o resto da viagem foi triste, to triste como sealli fosse realmente um cadver.Duas horas depois, a lancha aportava em Joazeiro. To ntos, sem saber pa ra onde iriam toallucinados de dor que nem podiam ter uma idiaCarlos e Alfredo desembarcaram como dois autm a t o s . . . A nda ram sem destino, mudos, a ter

    rados, e foram ter ao cemitrio. Pediram que lhesmostrassem a cova em que o engenheiro fora navspera enterrado, e ficaram ajoelhados juntod 'e l la , chorando longamente . . .

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    X I ISS. . .

    Alli ficaram longas horas, e ficariam todo o dia,se o porteiro do cemitrio no tivesse ido pro-cural-os.Ergu eram -se ainda chorando, e sairam . P a r aonde iriam agora? Carlos tinha no bolso trez milris: era essa toda a sua fortuna. Pensando nisso,mediu toda a misria da sua situao. Eram trezhoras da ta rd e; e a inda no haviam alm o ad o. . .Carlos viu que o irmozinho, abalado pela desgraa ter rv el, e debilitado pela viagem e pelo je-.jum, mal se podia ter em p.Compraram a uma quitandeira ambulante umpouco de peixe assado. Emquanto comiam, omais velho dos dois irmos, com a energia moralque felizmente no o abandonava nunca, encaroude frente o futuro, e procurou o meio mais fcilde sair de to critica situao.' Lem brou-se logo de rec or rer aos seus pa ren tesdo Rio Grande do Sul, communicando-lhes pelotelegrapho a morte do pae, e pedindo-lhe algumauxilio. Eram as nicas pessoas que ainda podiam interessar-se pela sorte dos dois orpos.Mas aquelle minguado dinheiro, que lhes restava,mal b as ta ri a p ar a cobrir a despesa com o tele-

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    6 8 ATRAVEZ DO BRAZILgramma. . . Como viver iam, emquanto esperassemuma resposta? que seria d'elles, naquella cidadedesconhecida, no meio de gente estranha?N o ! o melhor seria guardar esse poucodinheiro com que sempre poderiam alimentar-se,ainda que mal, du ran te alguns dias, e tr a ta r desair de Joazeiro quanto antes. Havia dois partidos a esco lher: ou vo ltar p a ra o Recife, oudescer p ar a a capital da B ah ia ; em qualquerd'essas cidades encontrariam conhecidos e amigosdo pae, que os socco rreriam, facultando -lhes omeio melhor de se communicarem com os parentes do Rio Grande do Sul, e dando-lhes quemsabe? algum dinheiro com que para l pudessem imm ediatamen te seguir, se n o p referissemficar espera da resposta. Voltar ao Recife seriaquasi uma loucura: no poderiam fazer frente sdespesas de to longa e penosa viagem. Para aBahia, a viagem era mais fcil. Se tivessem dinhe i ro bas tante , tomar iam a es t rada de fe r ro . . .Mas, sem dinheiro, era preciso vencer a p vintee cinco lguas at V illa Nova da Ra in ha, ondemais facilmente arranjariam passagem at aBahia...Carlos no hesitou mais. Decidiu partir , e partir sem dem ora, sem qu ere r perder tempo empensar no immenso sacrifcio d'essa jornada ap, por um serto bravio, sem pouso certo sem*auxilio de qualquer espcie. E, s quatro horasestavam a cam inho. O m ais velho car reg av a o'embrulho das roupas, e o mais moo conduziapequeno farnel, adquirido com uma rigorosaeconomia, e constituido por bolachas, biscoutos eum pouco de carne seca.

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    ss 69 Tudo prefervel disse Carlos a Alfredo indeciso. No nos deixemos abater pela des

    graa, e procuremos salvar-nos do apuro em quenos vemos.Alfredo g anhou cora gem : e os dois orph osen trara m a cam inhar com resoluo, confiandono acaso. Mas, ao cabo de dois kilometros, o pequeno foi obrigado a parar, extenuado de fadigae de sede.O lugar era deserto e seco: nem sombra, nemagua. Alfredo no se pde con ter, e desa tou achorar. Carlos sentou-o ao seu lado, tomado deuma afflico terrvel: parecia-lhe que o irmo-zinho ia morrer al l i , ao desamparo. . .Mas uma voz cantou ao longe:

    Foram-se os tempos felizes,Mas out ros dias vi ro;E eu cantarei mais alegre,Ao l embra r o meu se r t o . . .

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    x i nU M N O V O C O M P A N H E I R O

    Carlos re an im o u -s e. . . Ho uve um silencio, e,depois, a voz, j mais perto, repetiu a copia. D'ahia pouco, assomou na estrada um viajante.Era um rapazinho de dezeseis ou dezesete annos, vestido moda do serto: camisa de algodogrosso branco, palet e calas de algodo riscado,sapatos e chapo de couro vermelho. O typo erasympathico, moreno, entre caboclo e mulato, de rosto largo, bocca rasgada, olhos vivos e intel-ligentes. Alfredo quasi ficou assustado, quandoo viu perto de si; mas o tom de voz do viajantelogo dissipou todos os receios: Que isso? o menino est doente? perguntou elle a Carlos. No. Est muito cansado, e com muita sede.No haver aqui perto uma casa, um abrigo qualquer, ou ao menos um a fonte ? A falar verdade, no sei, porque no conheo estas paragens, e nunca por aqui me perd i : mas impossivel que no more algum porahi f o r a . . . Quanto a agua, ainda tenho um bocadot\ c a b a a . . .E, tirando a cabaa, que trazia ao hombropresa extremidade de um cacete, entregou-a aCarlos. E continuou, indicando o sul:

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    DM NOVO COMPANHEIRO 7 1 Olhe! alli para aquelle lado ha uma quebrada coberta de mato. . . no v? pois, alli deve ha

    ver agua. . . Vosmecs para onde vo ? Para Villa Nova da Rainha. A h ! ento, vamos fazer jun tos a viagem,porque eu tambm vou para l. Ns no conhecemos o caminho. . . Isso no importa! "Quem tem bocca vae aRoma. . ." Agora , precisamos sa ir d 'aqui , porqueeste sol que est fazendo mal ao seu irmozi-nho. Vamos andando para a frente, a ver se encontramos alguma moradia por aquelles lados! Mas, senhor. . . disse Carlos, hesitando,por no saber o nome do novo companheiro. Chamo-me Juvenc io . . . Mas, Sr. Juvencio, se as casas no estiverem beira do caminho, passaremos por ella sema s v e r . . . Isso no! Se houver casas, ha-de haver algum caminho que venha ter estrada, disse onovo companheiro.E, voltando-se para Alfredo: D-me o seu em bru lho ; vosmec est tocansadinho que mal pode aguentar-se.Tomou o embrulho, e suspendeu-o ao pau,que levava ao hombro, juntamente com umatrouxa e a cabaa de agua. E puzeram-se a caminho. Vosmecs no so d'aqui? No. Somos do Recife. E que que andam fazendo por aqui?Carlos hesitou um momento sobre se deviacontar ou no a sua historia aquelle desconhecido.Mas a physionomia d'este era to franca, e o seu

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    7 2 ATRAVEZ DO BRAZILolhar denotava uma to rude e boa sinceridade,que o menino no se conteve, e narrou-lhe. osacontecimentos que o tinh am traz ido at alli.Juven cio ouvia-o com inte resse e com pa ix o; e,emquanto o ouvia, ia exam inando a estra da , deum lado e de outro. Em certa altura, exclamou: Olhem! aqui est um a ba tida que desce.Quem sabe se alli em baixo ha uma casa?

    Carlos e Alfredo attentaram, e viram que o queelle chamava "uma batida" era um trilho estrei-tissimo, quasi invisivel, como um cam inho deformigas. Dirigia-se para a esquerda, e ia ter aum capo de mato. Seguiram por elle, esperanados. O terreno era mais fresco, a vegetao viosa. Pouco adiante, o trilho enveredou pordentro do mato, entre arvores grossas e altas, detroncos direitos.Iam a um de fundo. O rapaz seguia na frente,muito animado e communicativo, conversandosempre. De repente, estacou, pousou no cho osembrulhos e a cabaa de agua, e desfechou com opau uma forte pancada no solo. Que ? gritou Alfredo.

    Um a co b ra . . . um a cascavel disse o rapaz ,com naturalidade.O pequeno recuou assustado. No nada! Isto aqui pelo mato assim.Quem anda pelo mato encontra c o b r a s . . . ]\fagquem est acostumado j no se espanta. Tudoest em ter a gente m uito cuidado, e ver ondepisa. O perigo est em bater em uma d'ellas como p: estas cobras geralmente s atacam a gentequando so tocadas . . .

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    X IVO R A N C H O

    Logo adiante, acharam uma casinha.Em frente, havia um curral, j meio arruinado ; do outro lado, uma roa inculta.A casa era verdadeiramente uma choa miservel, um rancho de sap, com paredes de paua pique, esburacadas. A porta estava aberta, maso mato crescido que por alli se via, o silencio quereinava, o ar de abandono que se notava tudoindicava que no morava viva alma naquella palhoa. Em todo o caso, quando chegaram porta,os trez viajan tes grita ram , b at er am ; como ningum apparecesse, foram entrando sem ceremonia.D entro do rancho , o abandono era o mesmo.Havia dois compartimentos, communicando por

    uma porta, rasgada a um lado da parede divisria: ambos estavam desertos. Eh! exclamou Juvencio aqui ningummora. . . Mas, j agora, pousaremos aqui mesmo;d'aqui no saio, nem por ordem do rei!Alfredo, j mais animado com a perspectiva dodescanso que ia gozar, no pde deixar de rir: Qual rei! no ha mais rei no Brazil! agoraquem pode dar ordens o presidente da Republica ! Pois seja l quem fr! disse, rindo tambm, o rap az . No saio d'aqu i ho je!

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    7 4 . ATRAVEZ DO BRAZIL E se v ie r o dono? objec tou Car los . Qua l dono! I s to com ce r teza o rancho de

    a lgum vaque i ro , que anda agora po r longe , e sop o u s a a q u i q u a n d o t r a z o g a d o p a r a e s t e s l a d o s :quando o gado muda de comedia, e l l e mu d a t a mbm de rancho . No vem vosmec como es ttudo i s to? aqu i no en t ra gen te ha ma is de do i sme z e s . . .D izendo i s so , o rapaz pe rco r r ia todo o rancho ,que es ta va , de fac to , de se r to . E m u m dos compa r t imen tos , v ia - se um cepo de made i ra , e , a umcanto , u ma fo rq u i lh a d e t r e z r a mo s ; n o o u t ro , h a v ia um couro seco penden te da pa rede . Be m! a r r a n j e mo s a n o s s a v id a ! d i s s e ocaboclo.Poz sobre a forqui lha a t rouxa e a cabaa , e ,s a in d o p a r a o m a to , c o r to u tr e z o u q u a t r o r a m o sd e u m a h e r v a r a s t e i r a , f o r m a n d o u m a v a s s o u r a ,com que l impou o cho do rancho . A g o r a , v a m o s a r r a n j a r u m f o gu i nh o , p a r aespan ta r o s b ichos .C ar los e A l f redo sa i ra m p ro cu ra de l enha , e

    vo l ta ram logo com uma boa po ro de g rave tos .Juvenc io t i rou do bo l so uma ca ixa de phosphoros ,r i scou um d ' e l l e s com cu idado , e a b r ig an do ac h a mma c o m a m o e s p a lma d a , p a ra l i v r a l - a d oven to que en t rava pe la po r ta do rancho , accendeuum molho de pa lhas secas , e meteu-o por ba ixo dalenha : d ' ah i a pouco a fogue i ra c rep i tava .Agora , o que nos fa l ta agua , disse orap az . A da cabaa e s t qua s i acab ada . M asaqu i pe r to ha agua , com ce r teza . Ningum sel e m b ra r i a d e c o n s t ru i r u m ra n c h o e m lu g a r p r i vad o de ag ua . A l l i em ba ixo , bem pe r to , deve

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    O RANCHO 7 5br ot ar algum a fonte, ou p as sa r algum crrego.Vosmecs esperem por mim, que vou ver. . .

    Mas como ha-de voc acertar com o riachoou com a fonte, agora, se nunca andou por aqui? Oh! muito simples! perto da fonte, devehaver no mato a vereda que l vae ter, caminhode gen te, e caminho de bich o: tudo est emprestar a t teno ao terreno e saber ver . . .D'ahi a pouco, Alfredo e Carlos ouviam Juvencio gritar, a uns vinte passos de distancia dorancho, escondido pelas hervas: Eu no disse ? C est o caminho!Alfredo, apesar de mais animado, estava encolhido num canto da choa, denotando no abatimento da physionom ia o cansao que o pro s-trava .

    Bom rapazinho, este, hein? perguntou-lhe Carlos. E ' v erdad e. Quem ser elle? Havemos de sabel-o. O que certo quefoi p a ra ns um a gra nd e felicidade o encon tro.No sei como nos arr an jar am os sem elle, ignorantes do caminho e de tudo, perdidos nestasolido.Ouviu-se uma voz, que se aproximava cantando. Ahi vem e l le . . .E r a de facto Juv encio que cantava alegremente,como se estivesse na situao mais feliz da vida.Mas a melopea da toada era to lugubre, a horaera to melanclica, que a cantiga, ouvida pelosrapazes, ainda abalados pela sua grande desgraa,entristeceu -os, enchendo-lhes de lag rim as osolhos.

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    X VO S E R T O

    P ro m p to ! aqui est a ag ua ! disse Juvencio entrando, lpido e alegre.Trazia o rosto, as mos e os ps lavados. . .Vendo Carlos e A lfredo naq uella / att i tude desanimada e lacrimosa, condoeu-se d'elles: No chorem! vamos comer a lguma cousa . . .Depois, hei-de contar-lhes a. hi sto ria da m inh avida, e vosmecs ho-de vr que eu tambm tenhomuitas razes para ser tr is te , apesar d 'este meuar a legre . . . Vamos comer.Tirou da trouxa um naco de carne-de-sol, umpeixe assado, e um pouco de farin ha . A ssou a

    carne ao calor da fogueira, aqueceu o peixe, e feza distribuio. A refeio foi completada com osbiscoutos que os meninos traziam. Carlos eAlfredo, sentados no cho, e o rapaz, de ccoras,ao p do fogo, comeram com apetite. Emquantocomiam, conversavam: Ningum no mund o disse Juv encio das pessoas que conhecem vosmecs, capaz deimaginar que vosmecs estejam no sitio em quee s t o . . . Quem im agin aria que haviam de an da r /por este serto, a p, comendo no cho, bebendo

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    O SERTO 7 7agua em cabala, dorm indo assim sem commo-didade, num ermo como este, de ntro de um ran cho to pobre? Tudo, no mundo, para o bem dagente.. . Vosmecs ficam conhecendo a sua terra.. .Eu , po r mim, gosto m uito d 'est as cousas, e jno estranho os incommodos da s viag ens . E r acapaz de ir de um polo ao out ro como dizia omeu mestre! Ui! gritou Alfredo.Ouviu-se de repente um1 ruido rpido e surdoe viu-se um vulto atravessar o espao, cortando oar, e sumindo-se pela porta do rancho. Dir-se-ia,pelo tamanho, uma pomba-rla. E' um morcego que estava dormindo ahi! disse Juvencio.

    Um morcego! exclamou Alfredo Dizemque esse bicho chupa o sangue da gente. . . E' muito raro. E as feridas que resultam dasua picada nunca so perigosas: somente nascrianas recemnascidas que podem apresentaralguma gravidade. Os morcegos atacam de preferencia os animaes. E os animaes no se defendem? No, porque so atacados durante o somno;e, alm d'isso, quasi no sentem a dentada,porque o morcego, quando morde, abana as azase faz com a lingua sobre a pelle, uma cocega ligeira , que disfara a dor. . . Ento o morcego tem dentes, para morder? Tem. O morcego voa, mas no pssaro.E ' um anim al como o rato , com o corpo cobertode plos; tem focinho e cauda, bocca e dentes.

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    7 8 ATRAVEZ DO BRAZIL Como que voc sabe tudo isso? insistiu Alfredo, com a sua eterna curiosidade. Porqu e j v i! vi m orto, um dia, um morcego,e examinei-o bem.A conversa continuou. Juvencio comeou afalar das cousas e das gentes do serto, dos animaes, da s pesso as que nelle vivem. Co ntou oscostumes dos sertanejos, que vivem custa das

    roas que cultivam e do gado que criam: A te rra m uito rica, e nun ca nega o susten toa quem sabe tratal-a: d o milho, o feijo, a mandioca, o algod o, o fumo, a cana ; e, alm dealim en tar os hom ens, ain da alim