2021 Número 16
ReitorRicardoMarceloFonseca
Vice-ReitoraGrazielaBolzóndeMuniz
RevistaVersaletePublicaçãoSemestraldoCursodeLetrasedaPósGraduaçãoemLetrasdaUFPR
humanas.ufpr.br/portal/letrasgraduacao/prppg.ufpr.br/site/ppgletras/pb/www.revistaversalete.ufpr.br
Editoras
JaniceI.NodarieSandraM.Stroparo
CorpoEditorial
AliceLeal(UniversidadedeViena),ÁngelPérezMartínez(UniversidaddelPacífico),BernardoG.L.Brandão(UFPR),CaetanoW.Galindo(UFPR),CláudiaH.Daher(UFPR),DirceWaltrickdoAmarante(UFSC),HelenaMartins(PUC-RJ),IsabelC.Jasinski(UFPR),JaniceI.Nodari(UFPR),JenifferI.A.deAlbuquerque(UTFPR),JonathanDegenève(UniversitéParisIII),LuizE.Fritoli(UFPR),LuizM.S.Gardenal(UFPR),MarceloC.
Sandmann(UFPR),MaríaBeatrizTaboada(UniversidadAutónomadeEntreRíos),MarinaLegroski(UEPG),MartínRamosDíaz(UniversidaddeQuintanaRoo),NairadeAlmeidaNascimento(UTFPR),PatríciadeAraújoRodrigues(UFPR),PauloHenriquesBritto(PUC),PiotrKilanowski(UFPR),RenataP.deS.Telles(UFPR),
RossanaA.Finau(UTFPR),ThiagoV.Mariano(UFPR).
Pareceristasadhoc
AdilsonC.Batista,AlencarGuth,AlexandreGilFrança,AnaB.Braun,AnaCarolinaTorquato,AnaKarlaCanarinos,AndréT.Pelinser,AndréXavier,AndressaL.M.Medeiros,AnnalicedelVecchiodeLima,AnnyC.deA.Moreira,AntonieledeC.Luciano,AntonioGubert,AracyBonfim,AristeuMazuroskiJr.,ArthurArohaK.daSilva,ÁureoL.GueriosNeto,BárbaradelR.Araújo,BárbaraTanaka,BeatrizC.Souza,BrunaKindinger,BrunoVieira,CaetanoW.Galindo,CamilaD.M.Crestani,CleberA.Cabral,DaianeRodrigues,DanielF.Ribeiro,DanieleSantos,DankarB.G.de
Souza,DankarB.G.deSouza,DiogoSimão,DioneiMathias,EduardaR.D.daMatta,ElianneV.M.Izquierdo,EmanuelaSiqueira,FrancineF.Osaki,FranciscoB.dosSantos,GabrielCaesarSantos,GiovaniT.Kurz,Guida
Bittencourt,GustavoVazquez,HugoSimões,IamniR.Bezerra,IlsenM.C.Gareca,IsabelaCimF.deMelo,JaniceInêsNodari,JaninaRodas,JeanineJavarez,JoãoPaulodaSilva,JosuéB.deA.Godinho,KaioC.Carmona,KellyC.Miranda,KleberKurowski,LetíciaP.daSilva,LídiadaSilva,LielsonZeni,LohannaMachado,LucianeC.F.N.
Moreira,LuisHenriqueG.Ferreira,LuizGuilhermedeOliveira,MárciaBecker,MariadeFátimaO.Bezerra,MariaFernandadosSantos,MariaIsabelBordini,MarianaC.PintoMarino,MarinaXavierFerreira,MatheusBarbosaMoraisdeBrito,MaurícioResende,NádiaZiroldo,PâmellaP.Negreli,PaolettaSantoro,PatríciaS.Guibes,PhelipeCerdeira,RaphaelP.Lautenschlager,RebecaP.Queluz,RobertoB.deMenezes,RicardoPeixotoPinto,RodrigoPereiradosAnjos,RondinellyG.Medeiros,SandraM.Stroparo,SelmoFigueiredo,SérgioFreitas,SuelenA.C.
Trevizan,ThaisCons,ThiagoSteven,TiagoRibeiro,UmbertoMiele,VanessaM.P.daSilva.
RevistaVersaleteR.GeneralCarneiro,460,11ºandar,sala1117
tel./fax(41)3360-5097Curitiba-Paraná-Brasil
Volume9,Número16,jan.-jun.2021
RevisãoeformataçãodostextosAlitonDimasPereiraGomes,AnaJuliaPradoAntunes,CarolineRodriguesDolinskiAntunes,GiulianaBorges
Roballo,GlóriaLetíciaWenceslauBarãoMarques,IsabellaBoddydaSilva,LucasV.VebberCardenas,LuizFernandoHufdeCarvalho.
Revisãodostextosem:Inglês:JaniceI.Nodari
EditoraçãoEletrônicaRodrigoMadalozzoBordini(SCH)
DesignFrancisHaisi
UNIVERSIDADEFEDERALDOPARANÁ.SISTEMADEBIBLIOTECAS.BIBLIOTECADECIÊNCIASHUMANASEEDUCAÇÃO_____________________________________________________________________________REVISTAVersalete/CursodeLetrasdaUniversidadeFederaldoParaná;editoração:JaniceI.Nodari,SandraM.Stroparo,v.9,n.16(2020).Curitiba,PR:UFPR,2021.Periódicoeletrônico:http://www.revistaversalete.ufpr.brSemestralISSN:2318-10281.Linguística–Periódicoseletrônicos.2.Literatura–Periódicoseletrônicos.3.Traduçãoeinterpretação–Periódicoseletrônicos.I.UniversidadeFederaldoParaná.CursodeLetras.II.Nodari,JaniceI.;III.Stroparo,SandraM.CDD20.ed.400_____________________________________________________________________________SirleidoRocioGdullaCRB-9ª/985
APRESENTAÇÃO
Vamosrepetiraqui,emparte,nossaúltimaapresentação:desdeon.15ascoisas
pioraram muito em nosso país e não podemos fechar os olhos para o que está
acontecendo.
NossaUniversidadeestáfechadahá16meses.Continuamostrabalhando,dando
aulas,orientando,masasrevistasforamabandonadaspelaCapesepeloCNPq:nãohá
maiseditaisdeapoioapublicaçõesnoBrasil,eissonomomentoemqueseexige,mais
quenunca,queosprofessorespubliquemeconsigamprojeçãointernacionalapartir
dadivulgaçãodeseustrabalhosedesuaspublicações.
Aindaassim,apresentamosaquiumbeloconjuntodetextos,cobrindotodasas
áreastemáticasdarevista.Alémdisso,nossoprofessorconvidado,GuilhermeGontijo
Flores,professor, tradutor,poeta,escreveuumtextocurioso,múltiplo,emqueética,
poesia e tradução se misturam. Já o nosso autor convidado é ninguém menos que
Ricardo“Chacal”deCarvalhoDuarte,poetaquejáfezmuitodesdeotempoemquefoi
chamadodepoetaMarginal.
E,novamente,nãopodemosdeixardechorarnossosmortos.Nomomentoem
quefechamosestarevista,asituaçãoéaseguinte:
549.501pessoasmortasnoBrasil.
4.172.497pessoasmortasnomundo.
Chorar esses números não é anulá-los: é lamentar o negacionismo, a
incompetência e a corrupção, que colaboraram tanto para a existência de tantas
mortes.
Boaleitura.Boasorteparatodosnós.
JaniceI.NodarieSandraM.Stroparo
Editoras
SUMÁRIO
SUMMARY ESTUDOSLINGUÍSTICOS LINGUISTICSTUDIESDispositivoetecnologia:umaanálisedosQuadrinhosdosanos10deAndréDahmer.Dispositiveandtechnology:ananalysesofQuadrinhosdosanos10deAndréDahmer.10 VivianeLisMarianoMendesDeslizedesentidoerelaçõesdepoderedeverdade:dizeresemalusãoao31demarçode1964.Slideofmeaningandrelationsofpowerandtruth:sayingsinallusiontoMarch31,1964.26 MaruanaKássiaTischerSeraglioDiversidadelinguísticaeensinodeinglês:consideraçõessobreoinglêsafro-americanoeoRapeoHip-hop.LinguisticdiversityandEnglishlanguageteaching:remarksonAfricanAmericanEnglishandRapandHip-hop.44 ElisaMattos
ESTUDOSLITERÁRIOS LITERARYSTUDIESAreterritorializaçãodosujeitoemOinvasor,deMarçalAquino.ThereterritorialisationofthesubjectinOinvasor,byMarçalAquino.64 NatáliaSaffirydeOliveiradosSantos RosanaCristinaZanelattoSantosAspectosdanarraçãonoscontosdeBernardoKucinski:otestemunhodaditaduramilitarbrasileira.NarrationaspectsinBernardoKucinski’stales:thetestimonyoftheBrazilianmilitarydictatorship.83 AlexandreHenriqueSilveira
Águasquedesenhamahistória:umaperspectivasobreoolhardeJoãoMiguelFernandesJorgeeMiaCouto.Watersthatdesignhistory:aperspectiveontheviewofJoãoMiguelFernandesJorgeandMiaCouto.98 AnaCarolinadosSantosLinharesAjagunçagememalgumasobrasregionalistas.Jagunçageminsomeregionalistworks.115 DenisedeFátimaLessaAlvesRepensarheróis:arepresentaçãodasdisputaspelapossedeterrasnoParanáemOdramadaFazendaFortaleza(1941),deDavidCarneiro.Rethinkingheroes:therepresentationofdisputesoverParana’slandinOdramadaFazendaFortaleza(1941),byDavidCarneiro.133 JorgeAntonioBerndt ThianaNunesCellaAcondiçãodaclassetrabalhadoranoteatrodeJoeOrton.Theworking-classconditioninthetheatreofJoeOrton.152 JonathanRenandaSilvaSouzaCândido,deVoltaire,esuasaproximaçõespossíveiscomasEtiópicasdeHeliodoroecomoromancegregoantigo.Voltaire’sCandideanditspossiblesimilaritieswithHeliodorus’sAethiopicaandancientGreeknovels.172 FranceliseMárciaRompkovskiAbuscadeumasociedadeafricanatradicionaleafigurafemininanaobrapoéticadePaulaTavares.ThesearchforatraditionalAfricansocietyandthefemalefigureinthepoeticworkofPaulaTavares.190 PaulaEsterApolôniaUmacríticaàsvítimasdeviolênciaurbananoconto“Zaítaesqueceudeguardarosbrinquedos”.Acriticismofvictimsofurbanviolenceinthetale“Zaítaesqueceudeguardarosbrinquedos”.205 JúliaSilveiraSoares ESTUDOSDATRADUÇÃO TRANSLATIONSTUDIES
Imprensa&tradução:jornaisinternacionaisenacionaisnoticiandootestepositivodeBolsonaroparaaCovid-19.Journalistictranslation:nationalandinternationalperspectiveswhenBolsonarotestedpositivetoCovid-19.224 ElisaHeiermannQuadros LuizaBenettideLemosCordeiro SabrinaCostadaSilva SilvanaAyubPolchlopek
Oparatextoprefacialdetraduçãoliterária:ocasodosHamletsbrasileiros.Theprefatoryparatextofliterarytranslation:thecaseoftheBrazilianHamlets.244 PedroLuísSalaVieiraOcaçadordepipascomoromancemultilíngue:observaçõessobreatraduçãobrasileira.Thekiterunnerasamultilingualnovel:observationsontheBraziliantranslation.265 JuliaPinheroJudiceMenezes RESENHA REVIEWOcultivodememóriasancestraisemBaarazKawau,deGustavoCaboco.ThecultivationofancestralmemoriesinBaarazKawau,byGustavoCaboco.285 ThiagoAlexandreCorrea
PROFESSORCONVIDADO GUESTPROFESSORÉtica.Ethics.293 GuilhermeGontijoFlores AUTORCONVIDADO GUESTAUTHORQuestionárioProustProustQuestionnaire300 Chacal
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DISPOSITIVOETECNOLOGIA:UMAANÁLISEDOSQUADRINHOSDOS
ANOS10DEANDRÉDAHMER
DISPOSITIVEANDTECHNOLOGY:ANANALYSISOFQUADRINHOSDOS
ANOS10BYANDREDAHMER
VivianeLisMarianoMendes1
RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar, pela perspectiva da Análise do DiscursoFoucaultiana,algumastirasdaobraQuadrinhosdosAnos10 (2016),doquadrinistaAndréDahmer.Escolhemosanalisarcomoosobjetostecnológicos,emespecialosaparelhoscelulares,figuramnaobraequaisasrelaçõesqueossujeitosestabelecemcomeles.Paratanto,utilizamosasnoçõesdediscursoedispositivodeMichelFoucaulteaanálisedasubjetividadeneoliberaldePierreDardoteChristianLaval.Palavras-chave:dispositivo;neoliberalismo;Dahmer.ABSTRACT:Thisstudyanalyzes,fromthetheoreticalpointofviewofFoucaultianDiscourseAnalysis,some comics from Quadrinhos dos Anos 10 (2016), written by the comics writer André Dahmer.Technologicalobjects,especiallymobilephones,werechosentobeourfocusasforhowtheyfigureinthe comics andwhat relationships the subjects establishwith them.Michel Foucault’s conceptsofdiscourseanddispositiveandtheDardotandLaval’sanalysisofneoliberalsubjectivityarebroughtuptounderstandthoserelationships.Keywords:dispositive;neoliberalism;Dahmer.
1. INTRODUÇÃO
Em “A Fábrica do SujeitoNeoliberal”, nono capítulo da obraANovaRazão do
Mundo,ofilósofofrancêsPierreDardoteosociólogodemesmanacionalidadeChristian
1Mestranda,UFG.
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Lavalsededicamaanalisarcomoonovoordenamentoeconômicomundial,advindodo
neoliberalismo, acarretoumudanças sociais que geraram também um novo tipo de
sujeito, denominado pelos autores, em sua análise, de sujeito neoliberal. Esse novo
sujeitoestáinscritonalógicaempresarialneoliberalelevaasrelaçõeshumanasauma
reproduçãodasrelaçõesprodutivas,fazendocomqueossujeitosimplementememsuas
vidaspessoaisamesmalógicadomercado,dasfábricasedasempresas,conformese
verificanoexcertoaseguir:
Diversastécnicascontribuemparaa fabricaçãodessenovosujeitounitário,quechamaremos indiferentemente de “sujeito empresarial”, “sujeito neoliberal” ou,simplesmente,neossujeito.Nãoestamosmaisfalandodasantigasdisciplinasquese destinavam, pela coerção, a adestrar os corpos e a dobrar os espíritos paratorná-losmais dóceis― metodologia institucional que se encontrava em crisehaviamuito tempo.Trata-se agorade governarum ser cuja subjetividadedeveestarinteiramenteenvolvidanaatividadequeseexigequeelecumpra.(DARDOT;LAVAL,2016,p.327).
Conformeatesedefendidapelosautores,osmodosdeproduçãoedeconsumo
influenciaramnomodocomosedãoosprocessosdeconstituiçãodassubjetividades.
Dessaforma,umadasagênciasdoneoliberalismofoioperarareorganizaçãopsíquica
dossujeitos.Nessecontexto,o trabalho jánãotemseusentidoontológico,ouseja,o
trabalho não produz a existência do homem, mas ganha um sentido instrumental,
servindoapenasparaaproduçãodemercadoria.Essaalienaçãodo trabalhoproduz
sujeitoscujosdesejossãoosdomercado:
As novas técnicas da “empresa pessoal” chegam ao cúmulo da alienação aopretendersuprimirqualquersentimentodealienação:obedeceraoprópriodesejoouaoOutroquefalaemvozbaixadentrodenósdánomesmo.Nessesentido,agestãomodernaéumgoverno“lacaniano”:odesejodosujeitoéodesejodoOutro.DesdequeopodermodernosetorneoOutrodosujeito.(DARDOT;LAVAL,2016,p.327).
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Esse novo ordenamento psíquico dos sujeitos altera também as relações de
consumoeascolocacadavezmaisditadaspelasregrasdomercadoedomarketing.Os
sujeitospassamaterdesejosquenãodizemrespeitoaoqueelesdefatonecessitam,
mas,certamente,aoqueomercadodesejaqueestesdesejem.Odesejodesipassaaser
o desejo do outro, sendo este outro omercado. Essa é uma relação de poder, e de
dominação:
A subjetivação neoliberal institui cada vezmais explicitamente uma relação degozoobrigatóriocomtodooutroindivíduo,umarelaçãoquepoderíamoschamartambémde relação de objetalização. Nesse caso, não se trata simplesmente detransformar o outro em coisa― segundo um mecanismo de “reificação” ou“coisificação”,para retomarmosum tema recorrentedaEscoladeFrankfurt―,masdenãopodermaisconcederaooutro,nemasimesmoenquantooutro,nadaalém de seu valor de gozo, isto é sua capacidade de “render” um plus. Assimdefinida, a objetalização apresenta-se sob um triplo registro: os sujeitos, porintermédiodastécnicasgerenciais,provamseuserenquanto“recursohumano”consumido pelas empresas para a produção de lucro; submetidos à norma dodesempenho,tomamunsaosoutros,nadiversidadedesuasrelações,porobjetosquedevemserpossuídos,moldadose transformadosparamelhor alcançar suaprópriasatisfação;alvodastécnicasdemarketing,ossujeitosbuscamnoconsumodasmercadorias um gozo último que se afasta enquanto eles se esfalfam paraalcançá-lo.(DARDOT;LAVAL,2016,p.321).
Énessemesmocontextodasubjetividadeneoliberaledosdesejosdomercado
queestãoinscritososindivíduosexpostosnaobradoquadrinistaAndréDahmer,em
especialemseulivroQuadrinhosdosAnos10,lançadoem2016,equeficouem3ºlugar
na categoria quadrinhos do Prêmio Jabuti de 2017. Ao longo das 320 páginas de
QuadrinhosdosAnos10,dedicadascadaumaaumatirinha,Dahmerbuscasintetizarum
poucodavidamoderna,daprimeiradécadadoséculoemquevivemos.Oautortenta
destrincharascomplexidadescontemporâneassurgidasdasnovastecnologias,redes
sociais, internet e aparelhos eletrônicos, bem como as novas formas de relações
derivadasdessesnovoselementos,cadavezmaispresentesnasociedademoderna.
Nestetrabalho,escolhemosanalisararelaçãodessassubjetividadespresentesna
obra de Dahmer (2016) com os objetos, mais especificamente com a figuração dos
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aparelhoscelularesecomoelesse tornamumdispositivoaodeixaremdepertencer
somenteaumcampoobjetivoepassivo,parasetornaremcatalisadoresdeumaredede
elementosheterogêneos,quetemcomoumdeseusefeitosasprópriassubjetividades,
produzidas a partir dessas conexões do dispositivo, transformando-se em novos
agentes, por sua vez, de ampliação da proliferação das relações de poder e saber
instituídaspelodispositivo.
Buscamosentender,comoauxíliodométodofoucaultianodeanálise,comoesse
novo sujeito supramencionado interage com esses objetos, ou ainda, verificar a
recíproca dessa relação: como esses objetos interagem com esses sujeitos e se os
própriosobjetosnãopassamaterelesmesmosumacertaagência,subtraindotambém
a localidade agencial costumeiramente atribuída à posição sujeito. Para tratar das
relaçõesentredispositivo,subjetividadeeaobradeDahmer,faremosumbreveresumo
dasnoçõesdedispositivoemFoucault―noçõesessasquesãodedecisivaimportância
paranossosargumentos.
2. ANOÇÃODEDISPOSITIVO
“OjogodeMichelFoucault”éotítulodeumaentrevistaconcedidaporFoucaulta
umgrupodepsicanalistasequefoipublicadaem1977noboletimperiódicodocampo
freudianofrancês(FOUCAULT,2014b).Nela,dentreoutrosassuntos,Foucaultéinstado
a esclarecer sua concepção de dispositivo. A resposta é tripartida e contém termos
importantesparaanossadiscussão:
i) Um dispositivo é uma reunião (ensemble) de elementos heterogêneos, que
compreendem discursos, instituições, arranjos arquitetônicos, leis, decisões
regulatórias,declaraçõescientíficas,proposições filosóficas,morais, filantrópicasetc.
Umdispositivoreúne,portanto,elementosdiscursivosenãodiscursivos; formauma
rede(réseau)entreesseselementosecompõe,comeles,umtodoheterogêneo;
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ii) Foucault afirma pretender analisar a natureza do liame que o dispositivo
estabeleceentreesseselementosheterogêneos.Tratardessaquestãoéimportante,pois
permite notar os múltiplos jogos que dispositivos variados interpõem entre seus
elementos, que podem, por sua vez, participar de diferentes dispositivos: “[s]endo
assim,taldiscursopodeaparecercomoprogramadeumainstituição,ou,aocontrário,
comoelementoquepermite justificaremascararumapráticaquepermanecemuda;
podeaindafuncionarcomoreinterpretaçãodestaprática.”(FOUCAULT,2010,p.244).
iii) Dispositivo é uma espécie de formação (formation) que responde a uma
urgência em um dado momento histórico. Nesse sentido, um dispositivo tem um
processodegênesequerespondeaum“imperativoestratégico”,quefuncionacomosua
matriz(FOUCAULT,2010,p.244).
Desse modo, um dispositivo se define como uma rede (réseau) de elementos
heterogêneos,cujagênesesedáapartirdeumaurgência,umimperativo,deumdado
momento histórico. “Rede” e “Gênese” são, portanto, dois termos medulares na
concepçãodedispositivoapresentadaporFoucaultnessaentrevista.Oqueessasduas
expressõespodemapontarparaoentendimentodanoçãodedispositivo?
Porumlado,ofatodeumdispositivocolocaremredeelementosheterogêneos
implica a possibilidade de que esses elementos não constituam, necessariamente,
relações entre si. Desse modo, uma rede é sempre a instituição de relações não
necessárias,dopontodevistadaconstituiçãodosobjetos.Ouseja,aexistênciadeuma
rede,seuestatutoontológico,éumacontingência:nadaseinscrevenoâmagodeseus
elementosconstituintesparaqueadefinam,demodonecessário,detaloutalmaneira.
Namesma entrevista, Foucault afirma que umdispositivo se constitui e perdura na
medida em que é a ligação de dois processos: o processo de sobredeterminação
funcionaleoprocessodepreenchimentoestratégicoperpétuo.Oprimeirodizrespeito
àsrelaçõesinternasdeumdispositivo:omodocomoseuselementosentramemcontato
e,emmovimentosderessonânciaecontradição,replicam-se,ajustam-se,emergemou
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se invisibilizam. O segundo trata da reutilização (réutilisation) que o dispositivo
promovedoselementosquesurgemdasnovascondiçõesdeemergênciaqueeleinstitui.
Foucaultcitacomoexemplooambientedelinquentequeasprisõescriaramcomoefeito
cego, não previsto. Um espaço de filtragem, concentração e profissionalização de
práticasilegaisbastantediferentedoquehavianoséculoXVIII.Todoosistemaprisional
epenal,então,rearranja-seestrategicamenteparapreencheresseespaço,otimizá-loe
compô-loparaaperpetuaçãododispositivo.
Por outro lado, a responsividade que também caracteriza o dispositivo é uma
condiçãonecessáriaparasuaexistência.Comovimosanteriormente,noexemplodas
prisões,mesmooselementosouespaçosemergentesapartirdasrelaçõesinstituídas
pelos dispositivos têm de receber uma réplica, precisam sofrer um processo de
adaptação, conformação, invisibilização, para se religarem ao plano estratégico do
dispositivo. Esse aspecto é de grande importância porque, a partir dele, podemos
afirmar que não são determinadas relações que necessariamente constituem um
dispositivo,masaatividademesmadeinterporrelações.Umdispositivonãoéarelação;
é a atividade de fazer relacionar. Nesse sentido, se as relações que um dispositivo
instauranãosãonecessárias,masaprópriaatividadedecolocaremrelaçãoéqueé
necessária,entãoqualquerrelaçãopodedaracessoaumnovodispositivo(FOUCAULT,
2010).Issonosleva,paratratarmosdodispositivo,adesviarofocodasrelaçõesqueele
estabelece,paratratardoselementosqueoconstituem.Porqueumdispositivooperou
com um elemento e não outro? Por que, no dispositivo da sexualidade, a genitália
recebeu tanta atenção e não outra instância corporal?2 O foco nos elementos não
oblitera as relações. Ao contrário, permite entrever as fissuras dos dispositivos: os
ligames,asjunções,osnós,asmarcasdecostura,quesulcamasrelações.Asrelações
sãoasconexõesentreoselementos,masondeessasconexõesseinstalam?Nospróprios
2VeroscomentáriosdeFoucault,noprimeirovolumedaHistóriadaSexualidade,sobreareabsorçãodos "prazeres sem fruto" à sexualidade centrada na genitalidade (FOUCAULT, 2014a, p. 40). Vertambém:RabinaweDreyfus(1995,p.186).
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elementos, dobrando-os, desarticulando, desfiando; mas também reconstruindo-os,
religando,redesenhando.
Uma outra especificidade se adiciona a nossa problemática: vivemos — nós
ocidentaisdoséculoXXI—emumasociedademarcadapelasredes.Amaioriadenós
sempreestáenvolvidacomalgumaespéciedeconexão,onlineouoffline,demaneira
que, atualmente, as relações não sãomais construídas apenas por redes de escalas
espaciaise temporaishistóricasoumulti-elementais.Qualquer indivíduoquepossua
umúnico aparelho celular smartphone e acesso à internet consegue constituirmais
relações que qualquer dispositivo instituído no mundo analógico. O saber sobre a
sexualidade,surgidodaproliferaçãodosdiscursosatravésdastécnicasdeconfissão,é,
hoje,infinitamentemaiorecomplexo,dadaapulverizaçãoeadifusãodosinstrumentos
decapturaecooptaçãodaspráticasedosdizeres.Peloavançotecnológico,mediçõesde
comportamento ficaram mais refinadas e micrológicas: composição química das
emoções,circulaçãopadronizadanacidade,nosespaçospúblicoseprivados;hábitos
pessoais mínimos: tempo de permanência, de alimentação, de trabalho; relações
interpessoais: possíveis amigos, conhecidos; possíveis interesses, necessidades. A
massadedadoséenorme,comcadaindivíduo,ouusuário,produzindovoluntariamente
uma quantidade inimaginável de informações sobre si mesmo e seus próximos, e
divulgando-osabertaegratuitamenteoneoffline.Tudoissoderivado,principalmente,
dapossedeumúnicoobjeto.
Essasnovasformasdecapturasãoacompanhadastambémdenovasformasde
subjetivação. Como afirma Gilles Deleuze (2016, p. 365-366), “pertencemos a tais
dispositivoseagimosneles”,demaneiraque“[e]mtododispositivo,éprecisodistinguir
o que somos (o que já nem somos mais) e o que estamos em vias de devir”. A
subjetividadeéumdosresíduosproduzidospelaaçãodosdispositivos.Osprocessosde
subjetivação ou assujeitamento ocorrem justamente durante a atividade criativa e
inovadora dos dispositivos que marcam “sua capacidade de transformar-se, ou de
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fissurar-sejáemproveitodeumdispositivodoporvir.”(DELEUZE,2016,p.365).Os
movimentosdesobredeterminaçãofuncionalepreenchimentoestratégicosedimentam
adispersãodosenunciados,criandoaredecapazdeproduzirosregimesdeverdade,as
técnicas de si, o uso dos espaços e dos corpos, curvas de tensão entre saberes,
bifurcaçõeseoposições.Sendoassim,umdispositivonuncaéumatotalizaçãounitária
do campo de forças, mas uma malha momentaneamente conflitiva e incoerente,
coordenadaecoesa,fissuradaelisa.Essedesequilíbrioconstantedodispositivoéoque
permiteaemergênciadevariadasformasdesubjetividadeederesistêncianasrelações
depoder.
Tomando esses dois últimos aspectos — o enredamento característico das
sociedadesocidentaiscontemporâneaseaproduçãodesubjetividadeoriundadessas
conexões—épossívelafirmarqueumdispositivopodeseconstituir,porexemplo,em
escalas muito menores do que os dispositivos que foram analisados por Michel
Foucault.Énessesentidoquepretendemosanalisarafiguraçãodosobjetosnastirasde
Dahmer:elesparecemintroduzireconformar,frequentemente,novasformasdeser-
no-mundo, outras formas de subjetividade, estreitamente atreladas e encadeadas a
redes mais amplas, que transpassam instituições governamentais, conglomerados
empresariais, campos de administração política, comunicação pública e privada,
mercadosprodutivoseassimpordiante.Equetambématravessamcorpos,formasde
visibilidade dos indivíduos, micro organizações, locais de resistência, relações
familiaresetc.
3. ANÁLISE
Nastirasaquiestudadas,asimagenssãotãoimportantesquantootextoemsi.
Pormeiodetrêsaquatroquadros,àsvezesatémenos,elassãocapazesdeproduzir
críticasecrônicasdascomplexidadesdavidacontemporânea.Frequentemente,lançam
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mãodohumorpormeiodaquebradeexpectativa,subentendidose intertextospara
lhesagregarsentido.
PodemosobservarcomoDahmertêmretratadoosaparelhoscelulares.Emsuas
tiras, os aparelhos não exercem apenas suas funções precípuas, ou seja, suas
funcionalidadesobjetaisdestinadasarealizar ligações,acessarà internet,produzire
trocarmensagenseinteragircomaplicativos.Osaparelhospassamaafetarosujeitoe
omodomesmocomoesteproduzasimesmo.Dessaforma,osobjetostornam-seuma
instância de subjetivação: não mais um mero ser-aí passivo, que suporta as ações
arbitrárias e livres de um sujeito. Essa divisão, sujeito e objeto, é oriunda de uma
determinadagradefilosóficaquecompreendeosujeitocomoalgoanterioraocampode
relações que chamamos demundo. Para o idealismo alemão, de Kant a Hegel, mas
também,guardadasasdevidasdiferenças,paraaschamadasfilosofiasdaconsciência,
de Husserl a Sartre, o sujeito é algo prévio às relações que, porventura, possa
estabelecer. Como se sabe, as filosofias advindas do estruturalismo e da crítica da
metafísica feita por Nietzsche se opuseram veementemente à naturalização e
anterioridade da noção de consciência e de sujeito (HABERMAS, 2000). Foucault é
herdeiro dessas últimas correntes, posicionando o sujeito como o substrato de um
processoqueoperaemescalasdepoderesaber,àreveliadosindivíduos.
Nesse sentido, ao modificarmos nossa compreensão para nos adaptarmos às
novasformasde“objetalização”,seguindoaexpressãodeDardoteLaval(2016,p.321),
podemospercebercomoocaráterobjetualdosaparelhoscelularesatuaisnãoimplica
em tomá-los como simples matéria inerte à espera de um sentido mobilizado pelo
indivíduo.Aocontrário,eles,oscelulares,operamformasdesubjetivaçãoqueatépouco
tempo eram inimagináveis pelo pensamento tradicional da tecnologia: a tecnologia
apenas como organização progressiva da instrumentália passiva através da qual os
humanos modificavam seu ambiente. É por isso que é possível arriscar uma nova
interpretação e qualificar tais objetos como uma forma de materialização
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contemporâneadosdispositivos,namedidaemqueelessetornamaparatodeumarede
derelações,provocandomutaçõesecriaçõesdesubjetividade.Osaparelhosdecelular
alteramarelaçãosujeito-objetoemodificamosujeito,transformandonãosomenteo
sentidodostermossujeitoeobjeto,masprincipalmentealterandoasrelaçõespossíveis
entreeles.
FIGURA1—(DAHMER,2016,p.141).
Natirinha,ocelularépersonificadocomosefosseumfilhoquerequercuidados
eatenção.Asrelaçõesquetradicionalmenteeramtomadascomotipicamentehumanas,
agorasãoreinseridaseminstânciasdiferenciaisdatecnologia,umavezqueocelular
nãoconfigura,comodissemosanteriormente,meramenteumobjetoinerteepassivo.
Aotratardocelularcomoumhumano,opersonagemdatiratalvezreconheça,defato,
a radicalidadedas transformaçõesporquepassoua tecnologia, deixandode serum
meiodeacessoaumdeterminadofim,conteúdoousentido,paraseroprópriosentido,
fim e conteúdo. Não se trata mais de lidar com funcionalidades discretas, com
instrumentospassivos,comtécnicasdefazeracontecereproduzir,masdeproduzira
partirdascondicionalidadesdisponibilizadaspelaquantidade,qualidadeeintensidade
dasrelaçõesquetalobjetoécapazdefazer.Issoalteratudo:nãomaisosujeitocujas
estruturas transcendentais condicionam o que é possível e impossível de conhecer,
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como na filosofia de Kant e de seus pósteros; mas o próprio objeto, cujas
funcionalidadesconstringemoqueépossíveldizerefazer.
FIGURA2—(DAHMER,2016,p.64).
É justamente essa constriçãododizer e fazerque aparecena segunda tirinha.
Nela,emumúnicoquadroequatropalavras,oautorconseguefazerumasignificativa
críticasocial,quandosugereacontradiçãodeumapessoaimersanousogeneralizado
e naturalizado do celular alertando outra, por meio do próprio celular, acerca da
existência de vício associado à maconha. Tal contradição destaca a ausência de
autopercepçãocaracterísticadacompreensãocontemporâneadevíciocomoatrelado
principalmenteasubstânciasfarmacológicas,negligenciandoqueovícioéummodode
relação que pode ser estabelecido com quaisquer atividades, objetos ou práticas.
Legalmente,ovícioétidocomoumfatordeincapacidadedapessoa,sendo,porvezes,
atenuadoremcasosdeinfraçãooucrime,oumesmoindicadordenecessidadedetutela
jurídica.Nessesentido,ovícioéumaformadedebilitaçãodosujeito,nosentidodeque
restringe ou inviabiliza o exercício saudável das faculdades racionais que lhe foram
atribuídaspelasnoçõesdesubjetividadeepessoalidadeadvindasdoIluminismoedo
kantismo. Se na primeira tirinha há uma subjetivação do objeto, na segunda o
personagem enunciador oblitera as formas de cerceamento injungidas pela
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endemicidade da tecnologia, e, sobretudo, naturaliza a condição de constante
conectividadedesuasociedade.Alémdisso,aevidênciadanormalidade,daquiloque
passa desapercebido como o resultado de construções, atravessamentos e
recalcamentos do contato entre elementos discursivos e não discursivos, torna-se o
centrodoenunciado:oqueéconsideradorelaçãoviciosaourelaçãosaudávelemuma
sociedadedependenteedefinidapelaimpossibilidadeefetivadeumavidaanalógica?O
que torna a relaçãode abusode consumodeum fármacomais perniciosadoque o
consumo abusivo de dados? Essa distinção depende de umaquantidade dilatada de
ditosenãoditosparasustentá-la,paratorná-laoverdadeiro,oóbvio.Contudo,apartir
de uma pergunta tipicamente foucaultiana, é possível apontar para o início de uma
desconstrução arqueogenealógica que nos provoca a remontar aos processos de
construçãodovíciocomoumaformadedebilidadesubjetivae,maisamplamente,como
foirealizadaarestriçãodeseusentidoparaocampodosquímicosedassubstâncias.
FIGURA3—(DAHMER,2016,p.248).
Aqui, o aparelho celular aparece no lugar do fruto proibido, em referência
alegóricaaomitobíblicodopecadooriginal,queconformariaodestinodahumanidade
ejustificariaseussofrimentoseinjustiças.Nessaanalogia,ocelularseriaummarcoe
motedapassagemdeumavidaplenaedeharmoniaparaumaposterior,depecadoe
desarranjo,assimcomoofrutoproibidooénatradiçãocristã.Dessamaneira,ocelular
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aparece—talvezatécomometonímiadatecnologia—comooelementodedesviodo
percurso estável e plácido da humanidade. Contudo, note-se: essa forma de
representaçãodoaparelhoeda tecnologiadáalcancesnãosomentehistóricosàsua
ação, mas, sobretudo, ontológicos. Isso no sentido de que o significado do fruto na
tradição cristã se dá pelamudança ocorrida no estatuto do humanoquando o casal
primitivoocomeu.A ingestãodo frutoprovocouumaalteraçãona formamesmade
existênciadohumano,demodoaserpossívelsegmentartantoahistóriaquantoaforma
deexistênciahumanaemduaseras:umaanterioreoutraposterioraopecadodecomer
ofrutoproibido.Umdossentidosdocelularnabocadaserpente,noquartoquadro,é,
então,apossibilidadedesesegmentaranarrativadahistóriahumanaeaqualificação
desuasatribuiçõestradicionaisemumanteseumdepoisdoadventodossmartphones.
Oquetornaesseobjeto,maisumavez,nãoapenassuportedepráticas,masinstituidor
deações,configuradordeagências,produtordesubjetividades.Éimportantenotar,no
entanto, queo celularnão é considerado comoumaorigemúnica e fundamental da
subjetividade moderna neoliberal. Ela é apenas o catalisador de um processo que,
devidoaumasériedeoutrosprocessos, tensões, jogos, relaçõesdepoderetc., pode
emergir como possível em um determinado momento histórico. O celular não é,
portanto,afontedefinitivadosimpassesdasociedadeneoliberal,maséumaimportante
instânciadealteração,dedesvio,delírio,bifurcação,daspráticasconformadassobo
signodatecnologia.
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FIGURA4—(DAHMER,2016,p.160).
Por fim, na última tirinha por nós selecionada para tratar das relações entre
subjetividade,neoliberalismo, sobo fio condutordanoçãodedispositivo, temosum
diálogo entre pai e filho, em que há, de modo mais incisivo e veemente, uma das
múltiplas formas de compreensão do humano produzida contemporaneamente: a
transformaçãodohumanoemumdadoinformacional.Essanovacompreensãoécada
vez mais relevante devido à crescente massa de informações que os indivíduos
contemporâneosproduzemnãoapenasnasredessociais,masemquaisquerrelações
que tenham com o mundo online. Em uma transação bancária, ou na simples
visualização ou pesquisa de um determinado produto de consumo, no tempo de
permanência em um estabelecimento, uma quantidade cada vez mais ampla de
informações é capturada pelos aparelhos celulares e disposta a um sem-número de
empresas e multiplicadores que as maximizam e monetarizam. O próprio humano
passa,assim,aserequalizadocomasdemaisformasdeinformação,passandoaserum
dadoentreoutrosnomercadodobigdata.
Um caso notório foi o escândalo envolvendo a eleição do ex-presidente dos
Estados Unidos, Donald Trump, e a campanha pela saída do Reino Unido da União
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Europeia, o Brexit, em que uma empresa chamada Cambridge Analytica utilizou de
dadoseperfisdoFacebookparamanipularosufrágio(KAISER,2019;EMPOLI,2019).
Usuários que não tinham um perfil político definido passaram a ter suas timelines
saturadasporvídeosdecampanhaafavordocandidatoedaopçãopelasaídadaUnião
Europeia.OresultadofoiaeleiçãodeTrumpàpresidênciaeasaídadoReinoUnidoda
Confederação Europeia. Esse caso é emblemático sobre como a tecnologia ajudou
decisivamenteaproduzirnovassubjetividadeserelaçõesemumcampoemque,até
então,acreditava-sequeomaisimportanteeramasrelaçõesestabelecidaspornoções
comoliberdadedeexpressão,votolivre,livreparticipação,democraciaetc.
4. CONSIDERAÇÕESFINAIS
As alterações que osmodos de produção e de consumo sofreram ao longo da
históriahumanaprovocam,emconsequência,mudanças tambémnomodoemquea
subjetividade humana se dá: o advento do neoliberalismo, nas últimas décadas,
provocouumareorganizaçãopsíquicadossujeitos,oqueosfrancesesLaval,sociólogo
eDardot,filósofo,emsuaobraAFábricadosujeitoneoliberaldenominaramdeSujeito
Neoliberal. Essanova forma subjetiva surgiu a partir dodispositivoda eficácia e da
eficiência na utilização dos recursos (inclusive recursos humanos), da lógica
empresarial,domodelodeautogestãoempresarial,edetodaumasériedecondiçõesde
emergênciaquelevaramàexistênciadessessujeitos,enãodeoutrosemseulugar.Essa
mudança tem reverberações também nas relações de poder, nos discursos e na
economia.Essenovohomemnoslevaaremontaraquaisprocessosdiscursivosenão
discursivos o constituíram e quais as transformações e modificações ainda estão
ocorrendoaoredordeste.
Ashistóriasemquadrinhossemostramcomoumgêneroquepermitevisualizar
o campo de tensões, lutas, readaptações, retornos, dispersões que atravessam as
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subjetividadesemergentesdasrelaçõesmodernasdeproduçãodeexistência.Pormeio
de poucas tiras e palavras,Dahmer (2016) consegue tratar temas fortes, polêmicos,
angustiantes, com a simplicidade complexa que os desenhos e a arte permitem
congraçar.
REFERÊNCIAS
DAHMER,André.QuadrinhosdosAnos10.SãoPaulo:CiadasLetras,2016.DARDOT,Pierre;LAVAL,Christian.“Afábricadosujeitoneoliberal”.InDARDOT,P.;LAVAL,C.ANovaRazãoDoMundo:EnsaiosSobreASociedadeNeoliberal.Trad.MarianaEchalar.SãoPaulo:Boitempo,2016.p.321-376.DELEUZE,Gilles.“Oqueéumdispositivo?”InDELEUZE,G.DoisRegimesdeLoucos:textoseentrevistas(1975-1995).Trad.GuilhermeIvo.SãoPaulo:Editora34,2016.p.359-369.EMPOLI,Giulianoda.OsEngenheirosdoCaos.Trad.ArnaldoBloch.BeloHorizonte:Vestígio,2019.FOUCAULT,Michel.Microfísica do poder. Trad. e org. RobertoMachado. 3ª ed. Rio de Janeiro/SãoPaulo:Paz&Terra,2010._____.HistóriadaSexualidade:avontadedesaber.Trad.MariaTherezadaCostaAlbuquerqueeJ.A.GuilhonAlbuquerque.RiodeJaneiro/SãoPaulo:Paz&Terra,2014a._____. “O Jogo de Michel Foucault”. InFOUCAULT, M. Ditos & Escritos IX: Genealogia da ética,SubjetividadeeSexualidade.OrganizaçãodeManoelBarrosdaMota.Trad.AbnerChiquieri.RiodeJaneiro:ForenseUniversitária,2014b.p.44-77.HABERMAS,Jürgen.Odiscursofilosóficodamodernidade.Trad.LuizSérgioRepaeRodneiNascimento.SãoPaulo:MartinsFontes,2000.KAISER,Brittany.Manipulados:comoaCambridgeAnalyticaeoFacebookinvadiramaprivacidadedemilhões e botaram a democracia em xeque. Trad. Roberta Karr e Bruno Fiuza. São Paulo: HarperCollins,2019.RABINAW, Paul.; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Trad. Vera PortoCarrero.RiodeJaneiro:ForenseUniversitária,1995.Recebidoem:22/09/2020Aceitoem:29/03/2021
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DESLIZEDESENTIDOERELAÇÕESDEPODEREDEVERDADE:DIZERES
EMALUSÃOAO31DEMARÇODE1964
SLIDEOFMEANINGANDRELATIONSOFPOWERANDTRUTH:SAYINGSIN
ALLUSIONTOMARCH31,1964
MaruanaKássiaTischerSeraglio1
RESUMO: Este artigo analisa efeitos de sentido produzidos pela substituição de comemorar porrememorar no pronunciamento do presidente JairMessias Bolsonaro em 2019, e que se refere àOrdemAlusiva doDia 31 demarço de 1964. As análises têm ancoragem teórico-metodológica naAnálise de Discurso francesa. Os resultados indicam que a troca de palavras produz o efeito desentidodesaudadeedeadmiraçãodoPresidentesobreoperíodo.Ademais,ocorredisputaporumanarrativaqueobtenhaodiscursodaverdadesobreo temaeque,para isso, relaçõesdepodersãomobilizadas.Palavras-chave:ordemalusiva;efeitodesentido;poder;verdade.ABSTRACT: This article analyzes the effect of meaning produced by the replacement ofcommemorating by remembering in the speech of the President Jair Messias Bolsonaro in 2019,whichreferstotheAllusiveOrderofMarch31,1964.Theanalysesareanchoredtheoreticallyandmethodologically in theFrenchDiscourseAnalysis.Theresults indicate that theexchangeof thesewordsproducestheeffectofmeaningofthePresident’slongingandadmirationovertheperiod.Inaddition, there is a dispute for a narrative that obtains the discourse of truth on the subject and,therefore,powerrelationsaremobilized.Keywords:allusiveorder;effectofmeaning;power;truth.
1COMEÇANDOACONVERSA
Discutiroperíodoemqueosmilitaresestiveramnopoderentre1964e1985no
Brasilpodesetornarconflituoso,principalmenteporhaverduasnarrativasprincipais
1Mestranda,UFFS,BolsistaCAPES.
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disputando o status de verdade. Uma dessas narrativas é a de que o país, naquele
período,enfrentavaumaameaçacomunistaquefoieliminadaporintervençãodeum
regimemilitar e que, após o período necessário, devolveu o poder para os civis. A
outranarrativaéadequeocorreuumgolpeparaquedeterminadogrupotomasseo
podernopaís,promovendoodesenvolvimentodeumaditaduramilitarqueviolouem
diversos aspectos os direitos humanos. Por consequência, qualquer discurso que
envolvaumaououtranarrativaabrangemovimentosdeanálise.
O dia 31 demarço de 2019marcou 55 anos do início do período em que os
militares assumiram os maiores cargos políticos no país durante 21 anos. Com a
eleiçãodireta,em2018,deumrepresentantemilitarna funçãomais importanteem
uma democracia, a de presidente, houve questionamentos sobre a possibilidade da
voltadeumperíodomilitardecunhosimilarcomoaoqueocorreuhámaisdecinco
décadas.
Em seu primeiro ano demandato e com quantidade significativa demilitares
ocupandocargosnogoverno,veioàtona,emmeadosdemarçode2019,qualseriao
posicionamento do presidente Jair Messias Bolsonaro na data já mencionada.
Respondendo a isso, o porta-voz da Presidência, Otávio Rêgo Barros, afirmou, dias
antesdadata,queoPresidentenãoconsideravaaqueleperíodocomoumaditadura
militar (defesa da primeira narrativa) e que ele havia autorizado a realização de
comemoraçõesdevidas, incluindoumaOrdemdoDia(ANEXOI,ao finaldeste texto)
quedeveriaserlidanosquartéis.
Contudo,oatodeoPresidentepermitircomemoraçõesemrelaçãoaoperíodo
militar provocou diversas manifestações contrárias por parte da população, órgãos
federais e jurídicos, meios de comunicação em massa e políticos, questionando,
principalmente,acoerênciaemsecomemorarumperíodoemquecivisforampresos,
torturadoseatémortospormilitares (defesada segundanarrativa).Emresposta,o
presidenteBolsonaro,diasantesdadataeemeventoquevisavaacomemoraçãode
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211 anos da Justiça Militar, negou ter determinado a comemoração da data, pois
segundoele“não foicomemorar, foirememorar,reveroqueestáerrado,oqueestá
certoeusarissoparaobemdoBrasilnofuturo.”(BOLSONARO,2019,s/p).
Com base nesse pronunciamento do Presidente e na substituição do termo
comemorar por rememorar, propõe-se um ensaio que analise os efeitos de sentido
produzidos por essa escolha, por meio do conceito de deslize de sentido, pois o
sentidonãoestáligadoàpalavraemsi,àsualiteralidade.Éapartirdatransferência
de sentidos “que elementos significantes passam a se confrontar, de modo que se
revestemdeumsentido”(ORLANDI,2015,p.42).Assim,esteestudotemorientação
teórico-metodológica na Análise de Discurso — doravante AD — ligada à escola
francesa com o autor Michel Foucault. Ademais, a pesquisa faz um movimento
metodológicoconstanteentre teoriaseanálises,apartirdoqueVerliPetri (2013,p.
42)definecomomovimentopendular,poisé“nomovimentodeirevir(dateoriapara
análise e/ou vice-versa) que o pêndulo agita os processos de produção de sentidos
sobre o corpus, movimentando a contemplação que estagnaria o analista e,
consequentemente, o movimento de análise”. Desse modo, a produção de sentidos
sobreomaterialqueseanalisaéestimuladaapartirdessedeslocamento, logo,cada
análise é singular e contempla a incompletude e a contradição que o movimento
constanteprovoca.
Nocampodosestudosdiscursivos, trabalha-secomaseleçãodeumcorpus—
oumaisdoqueum—para focalizarosobjetivosdapesquisa.Assim,os corporade
análisedestapesquisasão:(a)opronunciamentodoPresidentesobreasubstituição
dos termos anteriormentemencionados; e (b) aOrdemdoDia alusiva ao dia 31 de
março de 1964. Após a análise do pronunciamento, são investigadas sequências
discursivas — doravante SD — da Ordem Alusiva, nas quais identifica-se uma
tentativa de fortalecer o posicionamento do Presidente. Assim, propõe-se pensar os
corporaenquantodiscursos,comonosentidoutilizadoporDominiqueMaingueneau
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(2015, p. 36), pois “as pessoas produzem textos para fazer passar umamensagem,
para exprimir ideias e crenças, para explicar algo, para levar outras pessoas a fazer
certascoisasouapensardecertamaneira,eassimpordiante”.Dessemodo,osentido
éconstruídodentrodasfronteirasdodiscurso,masmobilizaelementosexteriores,os
quaisinfluenciamemostram-senodiscurso.
Nessepercursoanalítico,émobilizadooconceitodedeslizedesentido,noqual
os textos se remetem uns aos outros, bem como a disputa pela narrativa e pela
verdade. Por fim, pensa-se as relações de poder envolvidas e que provocaram a
substituição de termos no pronunciamento do Presidente, uma vez que se entende
essasubstituiçãonãocomoumameratrocadetermos,mascomoumaaçãoprovocada
pormovimentosdepoderadvindosdeesferasdasociedadeexigindomudançassobre
otema.Dessaforma,oscorporadapesquisapartemdadeclaraçãodeBolsonarosobre
adataedaOrdemAlusivadoDia,aprovadapeloPresidente.
Com fundamento nos recortes teóricos e metodológicos previamente
apresentados, se objetiva esgotar o objeto de análise a partir da cisão teórico-
metodológica adotada, visto que “ametodologia da Análise de Discurso existe, mas
não para, está em suspenso, em movimento, (de)pendendo como o pêndulo,
relativizandoosolharessobreomesmoobjeto” (PETRI,2013,p.41-42).Ressalta-se
ainda que as investigações realizadas nesta pesquisa acontecem sob um recorte
específico e, portanto, promovem um gesto de leitura sobre o objeto de estudo,
abrindonovasefuturaspossibilidadesdeanálisesparaoutrospesquisadores.
2EFEITOSSOBRECOMEMORAREREMEMORAR
Paraauxiliarnaanálisedosefeitosdesentidoprovocadospelasubstituiçãoda
palavracomemorarporrememorar,buscou-seosentidodeambasemumdicionário.
Essemovimento contribui para que, em seguida, seja contraposto como sentidode
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deslize e, mais adiante, com a seleção de palavras utilizadas na Ordem do Dia,
documentoaprovadopeloPresidente.
DeacordocomEniOrlandi(2015),ametáforaéfundamentalnaAD,poisnessa
áreaametáforanãoévistacomofiguradelinguagem,mascomoumapalavratomada
poroutra.Portanto,ametáforatemaessênciadetransferirsentidos,determinandoa
maneiracomoaspalavrassignificam,caracterizandoodeslizedesentido.
O significado da palavra comemorar corresponde a lembrar de um fato para
festejá-lo. Contudo, é interessante notar que, quando se comemora, geralmente se
comemorasobreoacontecimentoousobreoindivíduopeloqualsesentecarinhoou
admiração, pois, ao se comemorar, se festeja, e festa é sinônimo de alegria, de
felicidade, de celebração. Portanto, comemorar diz respeito a pensar sobre algo (do
passado)queseadmirae/oudequesesentefalta.Comoexemplo,pode-sedizerque
celebraroaniversáriodealguémsignificacomemoraronascimento, fatodopassado
deumindivíduoporquemsesentecarinho.
Jáasegundapalavraaquianalisada,rememorar,correspondeaosentimentode
recordar comnostalgia, escrever ou pensar algo do passadodemaneira terna. Esse
sentido é sutilmente desigual ao sentido de relembrar, que possui significado de
lembrar novamente, trazer novamente à memória, sem a necessidade de haver
ternura nesse movimento de pensar sobre o passado. Isso posto, entende-se que,
quando alguém diz que lembra de onde morava na infância, pode haver ou não
saudadeeboasmemóriasdolocal.Oqueédiferentededizerqueserememoraacasa
dainfância,poisessemovimentodemonstraasaudadeeaternurapelolocalepelas
memóriasdopassado.
Partimosdanoçãofoucaultianasobrediscurso,naqualdiscursoé“umconjunto
deenunciadosqueseapoiaemummesmosistemadeformação”(FOUCAULT,2017,p.
131).Assim,odiscursonãopodeserpensadocomoalgoinéditododizer,mascomo
um discurso que faz parte de uma teia de dizeres, que se repetem e que se
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transformampormeio do interdiscurso e damemória. Com base nisso, os sentidos
podem iralémdaquelesqueestão sendoapresentados,poisos sentidosderivamde
outrassignificações,caracterizandoodeslocamento,odeslizedesentido.
ParaMichelFoucault(2017,p.146),aanálisediscursivatemcomoprincípioa
noçãodeque tudonemsempreéditoeassim, “estudam-seosenunciadosno limite
que os separa do que não está dito, na instância que os faz surgirem à exclusão de
todos os outros”. Ainda de acordo com o autor francês, devemos perguntar como
determinadoenunciadoapareceuenãooutro.Assim, éprecisodescobrironãodito
dentrodessediscurso,ouseja,setrata
[d]ecompreenderoenunciadonaestreitezaesingularidadedesuasituação,dedeterminar as condições de sua existência, de fixar seus limites da formamaisjusta,deestabelecersuascorrelaçõescomosoutrosenunciados,aquepodeestarligado,demonstrarqueoutrasformasdeenunciaçãoexcluem.(FOUCAULT,2017,p.34).
Desse modo, o sentido necessita desse deslize, desse não dito, pois não está
ligadoàpalavraemsi,àsualiteralidade.Éapartirdatransferênciadesentidosqueos
elementos se contrastame se revestemdesentido (ORLANDI,2015).Logo,palavras
iguais podem significar de modos diferentes, porque estão inscritas em formações
discursivasdiferentes.DeacordocomFoucault(2017,p.142),“aformaçãodiscursiva
éosistemaenunciativogeralaoqualobedeceumgrupodeperformancesverbais[...].
Um enunciado pertence a uma formação discursiva como uma frase pertence a um
texto,eumaproposiçãoaumconjuntodedutivo”.Assim,aFDnãoéformadaporum
conjuntoparticulardevocabulário,maspelomodooupelaposiçãoideológicaqueessa
escolha de vocabulário indica, ou seja, que efeitos de sentido essa escolha de
vocabulárioprovoca.Alémdisso,onãoditocontribuiparaodito,poisdealgummodo,
se acrescentam. Sempre há no dito um não dito que se faz necessário. (ORLANDI,
2015).
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Aanálisediscursiva,segundoFoucault(2017,p.34),tratade“estabelecersuas
correlaçõescomosoutrosenunciadosaquepodeestarligado,demostrarqueoutras
formas de enunciação exclui”. Assim, o deslize é visto por Foucault (2017) como
acontecimento que não pode ser esgotado inteiramente, visto que está articulado à
memóriaeaoacontecimento,eporestaramarradoadiscursosanterioreseseguintes.
Pensandonessedeslizedesentido,noqualosentidopodeseroutro,asubstituiçãodo
termocomemorarpor rememorar carrega sentidos similares,pois ambosos termos
fazemreferênciaadeterminadoperíododopassadoadicionandocarinho,admiração,
afeto e saudade. Esse movimento de análise mostra que o sujeito que produz
rememorartemnonãoditoosentidodecomemorar,poisapresentaafetoesaudade
doperíododequefala.Issoposto,opronunciamentodoPresidente,enquantodeslize
desentido,demonstraosentimentoeodesejoocultoem(re)memorarumperíododa
históriadopaís.
Aescolhadostermosexpõeavisãodosujeitosobreoperíodoqueseiniciouem
31demarçode1964.Nessapercepção,oPresidenteacredita ter sidoummomento
que não caracteriza ditadura, mas regime militar, reafirmando seu posicionamento
sobreaprimeiranarrativaeexcluindoasegundaqueenxergaessemesmomomento
como ditadura militar. Foucault (2017, p. 30) afirma que “tudo o que o discurso
formula já se encontra articulado nessemeio-silêncio que lhe é prévio”. Portanto, é
interessante notar que se buscou amenizar os efeitos produzidos pela utilização da
palavracomemorar,utilizandorememorar,masodizeréinscritoemoutrosdizerese,
nodeslize,seretomanovamenteosentidodecomemorar.
3(RE)TOMANDOAORDEMALUSIVA
A AD, de acordo com Foucault (2017), mostra como os diferentes textos se
remetem uns aos outros, pois, entre outros motivos, estão ligados a enunciados
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anteriores e posteriores e, ao mesmo tempo, a situações e a consequências que
provocamalteraçõesnoprópriotexto.Assimposto,opronunciamentodoPresidente
sobreo31demarçopodeservisto comodizer ligadoàOrdemAlusivadoDia,pois
ambos os discursos se remetem ao mesmo acontecimento. Com base nisso, em
seguida, são analisadas duas SD da Ordem Alusiva e que fortalecem o discurso do
Presidente,sendoodocumentotambémaprovadoporele.
Aoretomarseupronunciamentosobreasubstituiçãodotermocomemorarpor
rememorar,oPresidenteafirmaqueomovimentode rememoraraqueleperíododo
passadoénecessáriopara“reveroqueestáerrado,oqueestácertoeusarissoparao
bemdoBrasilnofuturo”(BOLSONARO,2019,s/p).AoobservarmosaSD1,retiradada
OrdemAlusiva,percebemosqueomovimentoderefletirsobreotemaparaauxiliarno
futurodopaís,destacadopeloPresidente,tambéméencontradonodocumento.
SD1— Em 1979, um pacto de pacificação foi configurado na Lei da Anistia eviabilizou a transição para uma democracia que se estabeleceu definitiva eenriquecidacomosaprendizadosdaquelestemposdifíceis.Asliçõesaprendidascom aHistória foram transformadas em ensinamentos para as novas gerações.Como todo processo histórico, o período que se seguiu experimentou avanços.(BRASIL,2019,s/p).
É interessante notar que, no pronunciamento do Presidente, são usados os
termoserradoecerto,jánaOrdemencontra-seotermolições.Existerelaçãoentreos
termos,poisas lições ficamapósoaprendizadodoserrosedosacertosdopassado.
Portanto, as lições, os erros e os acertos são modificados de modo a tornarem-se
ensinamentos para o futuro. Logo, há a presença de um acontecimento carregado
tantodeacertosquantodeerros,masquenãoosesquecererememorá-loscontribuirá
paraqueanaçãotenhaumfuturomaisprósperonasgeraçõesqueestãoporvir.
Comoditonoiníciodestetexto,operíodode21anos,ainiciarem31demarço
de 1964, possui duas narrativas que disputam o status de verdade. A ação do
Presidente, aodeterminara comemoraçãooua rememoraçãodadata, foi entendida
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pormuitoscomodiscursodedefesadaprimeiranarrativa—adequeopaíspassou
porumperíododifícil,emqueasoluçãofoiainstalaçãodeumregimemilitarenãode
uma ditadura, buscando defender a democracia do país. Esse discurso da busca da
verdadeseencontranaOrdemAlusiva,comomostraaSD2.
SD2—O 31 deMarço de 1964 foi um episódio simbólico dessa identificação,dando ensejo ao cumprimento da Constituição Federal de 1946, quando oCongressoNacional,em2deabril,declarouavacânciadocargodePresidentedaRepúblicaerealizou,nodia11,aeleiçãoindiretadoPresidenteCastelloBranco,que tomou posse no dia 15. Enxergar o Brasil daquela época em perspectivahistóricanosofereceaoportunidadedeconstataraverdadee,principalmente,deexercitar o maior ativo humano— a capacidade de aprender. (BRASIL, 2019,s/p).
Ao tratarmos sobre a noção de verdade, precisamos visitar Foucault (2018a)
paraentenderseuposicionamentosobreo tema.Aorealizarumcortemetodológico
—nãoutilizarasnoçõesmobilizadaspelotermoideologia—,oautorpropõeaanálise
darelaçãoentreverdadeepoderenãoentreciênciaeideologia(FOUCAULT,2018a).
Segundooautor,énecessárioentenderoconceitodeverdadecomo“umconjuntode
procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o
funcionamento de enunciados” (FOUCAULT, 2018b, p. 54). Assim, a verdade é o
própriopodereesteocorresobreocorpodossujeitosenãopeloplanodaconsciência.
Com base nesses argumentos, o autor propõe a análise da relação entre verdade e
poder,logo,aprópriaverdadenãoexisteforaousemopoder,elaéoprópriopoder.
Além disso, a partir de seus estudos, Foucault (2014) identifica um
fortalecimento na sociedade por uma vontade de verdade, a começar no século VII,
produzindo uma dicotomia entre discursos verdadeiros e discursos falsos. Essa
vontade passa por campos como o sistema penal, a medicina, a psiquiatria, a
psicologiaeasociologia, fazendocomqueaprópria leisópudesseserautorizadase
embasadaemumdiscursodeverdade.Dessemodo,aoelegeraverdadeeopoder,o
autor gera o desenvolvimento e a análise do funcionamento de um dispositivo, o
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dispositivo da verdade. Isso porque, a ilusão, a alienação ou a ideologia não dizem
respeito à questão política que interessa Foucault (2018b), mas a própria verdade.
Assim, não se investiga o discurso para ultrapassá-lo buscando a verdade, mas se
analisaosprocedimentosdeproduçãodeverdadenointeriordodiscurso.
Com suporte nessa discussão, entende-se que a Ordem Alusiva (re)afirma o
discurso do Presidente como verdade sobre o acontecimento em questão. Foucault
(2014)percebeavontadedeverdadecomosistemadeexclusão.Nessesentido,quem
detém o discurso possui a narrativa e a vontade da verdade, excluindo outros
discursos, desclassificando-os como discursos verdadeiros. A partir disso, a Ordem
Alusiva,por serumdocumentoaprovadopeloPresidente, reforçaoposicionamento
do governante sobre o acontecimento e sobre a substituição da palavra comemorar
porrememorar.Apresenta-se,naOrdem,umdiscursoquedefendeanecessidadede
(re)lembrarcomternuraumperíododopassadoembuscadoestabelecimentodeum
discursodaverdadeedoqualemanapoder,pois,comoafirmaFoucault(2014,p.10),
“o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nós queremos
apoderar”.
Essa busca pelo discurso da verdade também implica a memória. Após o
pronunciamentodoPresidente,aDefensoriaPúblicadaUniãoalegouqueaordemde
celebraçãodadatasecaracterizavacomoriscodeafrontaàmemóriaeàverdade.Esse
episódio ilustra como o discurso emana poder para conduzir uma narrativa e
estabelecê-lacomoverdade.Foucault(2017,p.33-34)argumentaque,paraentender
como apareceu determinado enunciado e não outro, é preciso “descobrir a palavra
muda murmurante, inesgotável, que anima do interior a voz que escutamos [...]”.
Assim,acomeçarpelopronunciamentodoPresidenteedoporta-vozemrememorar
determinadoperíododahistóriadopaís—promovendotantosdebatesedisputas—
e, em seguida, ao aprovar umdocumento que reafirma seu posicionamento sobre o
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momento,contribui-separaadivulgaçãoeatentativadeestabelecercomoverdadea
narrativa de que aquele momento é importante para aprender e contribuir para o
futuro do país, além de mostrar qual deve ser a verdadeira história divulgada e
acreditadapelapopulação.
4RELAÇÕESDEPODEREPERIGOSDODISCURSO
O discurso do Presidente pode ser visto pelo viés das relações de poder
abordadas por Foucault em A Ordem do Discurso (2014). O autor inicia essa aula
inauguralinformandoquenãogostariadeentrarnaarriscadaordemdodiscurso.De
acordocomele,“aproduçãododiscursoéaomesmotempocontrolada,selecionada,
organizada e redistribuída por certo númerode procedimentos que têmpor função
conjurar seus poderes e perigos.” (FOUCAULT, 2014, p. 08).Dessemodo, é possível
pensarcomoopronunciamentodoPresidente,aosubstituirotermocomemorarpor
rememorar, busca amenizar os impactos de sua declaração, entrando na ordem do
discurso. Quando o porta-voz da presidência informou que Bolsonaro havia
determinadocomemoraçõesdevidassobreadata,alémdaleituradaOrdemAlusiva,
ocorrerammovimentosafavorecontraesseposicionamentodoEstado.
Paramuitos,esseatofoivistocomoperigoso,sendoque,inclusive,adecisãofoi
derrubada pela juíza Ivani Silva da Luz, da 6ª Vara da Justiça Federal do Distrito
Federal. Contudo, essa decisão foi cassada pela desembargadora Maria do Carmo
Cardoso,corregedoradoTribunalRegionalFederalda1ªRegião,liberandoasForças
Armadaspara realizaremoseventosprevistos,provocandodisputadediscursos,de
poderedeverdadesobreoacontecimento.
Todos esses acontecimentos geraram muita polêmica, e acarretaram a
necessidadedeumpronunciamentodoPresidente.Essemovimentoserelacionacom
ainterdiçãoquefazpartedosprocedimentosdeexclusãotrazidosporFoucault(2014,
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p.09),pois“sabe-sebemquenãosetemodireitodedizertudo,quenãosepodefalar
de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de
qualquercoisa”.Afinal, segundooautor,apolíticaéoprincipalespaço,entre tantos
outros,queestálongedesertransparenteouneutro.Essainterdiçãoapresentadapor
Foucault(2014)representaaforçaeopoderquesedesenvolvesobreoPresidente,e
ocasionaanecessidadedesubstituirumtermoespecíficoporoutroparasuavizaros
impactos.Assim,nãoépermitidofalarqualquercoisaemqualquersituação.
Nessesentido,odiscursodoPresidentesobreoperíododoregimeoudogolpe
militarenvolveumaquestãohistóricamalresolvidanoBrasil.Foucault(2014)afirma
quealguémsóentraránaordemdodiscursoaosatisfazercertasexigências,poisnem
todososespaços—oautorintitulacomoregiões—dosdiscursossãotransitáveise
acessíveis. Logo, o Presidente, ao determinar comemorações, se viu frente a essa
ordem, na qual os discursos são controlados e selecionados. Ademais, para poder
entrar nessa ordem, ele modificou sua declaração, que, mesmo assim, a partir do
deslize,sereportaaomesmosentido.
Foucault (2014, p. 25) relata que “o novo não está no do que é dito, mas no
acontecimentoda sua volta”. Trazendo essa reflexãoparao texto, é possível refletir
queopronunciamentodoPresidente,adeterminaçãoemcomemorarourememorar,
nãoéalgonovoparamuitosquartéisbrasileiros,vistoquejásefaziaisso,mesmocom
proibições, como as da presidenteDilmaRousseff durante seumandato. Contudo, o
quesecolocacomonovoéoacontecimentoemvoltadesseepisódioespecífico,pois,
pela primeira vez, desde o fim do regime/ditadura militar, um (ex)militar ocupa o
cargodapresidência.Diantedisso,onovoéoacontecimentoeaspossíveismudanças
quepodemocorrercomasequênciadesseato.
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5CONSIDERAÇÕES
Considerando o objetivo de analisar efeitos de sentido produzidos a partir da
substituição de palavras — comemorar e rememorar — no pronunciamento do
PresidenteBolsonaro, foramabordadas trêsprincipaisconcepçõesquecontribuíram
para entender como as relações de poder e de verdade e deslize de sentido se
encontramnessediscurso.
Pormeiodafundamentaçãonaanálisedesignificadodaspalavrascomemorare
rememorar em conjunto com a noção de deslize de sentido de Foucault (2017),
observou-se que ambas se conectam, uma vez que essas palavras se referem ao
passado com sentido de ternura, saudade e felicidade. Logo, o movimento do
Presidentedesubstituiro termocomemorarporoutro,rememorar,buscousuavizar
os efeitos de sua declaração. Contudo, os sentidos se encontram em redes de
significações,queseinterligam.Portanto,aindaépossívelperceberqueosentidode
umtermodeslizouparaooutro,caracterizandoopontodevistadosujeitoenunciador
sobreoperíodo.
CombasenaidentificaçãoenaanálisededuasSDretiradasdaOrdemAlusiva,
foi possível identificar os sentidos que se amarram e que fortalecem o
pronunciamentodoPresidente.Comotratadonoiníciodestetexto,operíodode1964
até1985possuiduasnarrativasemconflito.OsdizeresdoPresidenteeodocumento
oficial defendem uma narrativa sobre o período, buscando estabelecê-la como a
narrativaverdadeirasobreosfatos,afinal,essediscursoeopoderqueemanadissoé
peloqueseluta(FOUCAULT,2014).
No terceiro movimento de análise, procurou-se entender os mecanismos de
poder envolvidos e quemotivaram o Presidente a tentar suavizar os efeitos de sua
declaração.Aosepronunciarsobreeelegerumanarrativacomoverdade,eleentrou
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emumaordemdodiscurso,que,comoafirmaFoucault(2014),controlaeselecionaos
discursos. Logo, o dizer do Presidente, para entrar nessa ordem, precisou atender
algumas condições e rituais, e pretendeu amenizar a repercussão. Além disso, foi
observadoqueessediscursonãoé algonovo,mas simoacontecimentoa suavolta,
comaeleiçãodeumpresidentemilitar.
Isso posto, bebendodas noções de Foucault (2014, 2017, 2018a, 2018b), este
texto buscoumostrar quemesmo uma aparente simples troca de palavras abrange
questõesmuitocomplexasrelacionadasàdisputaporpodereporverdade.Combase
na AD, entende-se que cada palavra produz significações que se relacionam com o
sujeito de modo muito particular e profundo, mas que são sempre possíveis de se
trazeràsuperfícieparaanálise,reflexãoebuscapormudança.
AGRADECIMENTOS
Opresente trabalho foirealizadocomapoiodaCoordenaçãodeAperfeiçoamentode
PessoaldeNívelSuperior—Brasil(CAPES)—CódigodeFinanciamento001.
REFERÊNCIAS
BOLSONARO, JairMessias. “Bolsonaromuda tom e diz que ideia é rememorar, e não comemorar,golpede1964.”FolhadeSãoPaulo.MatériaescritaporTalitaFernandes.FolhadeSãoPaulo,Brasília,28 demarço de 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/03/bolsonaro-muda-tom-e-diz-que-ideia-e-rememorar-e-nao-comemorar-golpe-de-1964.shtml.Acessoem:13jun.2019.BRASIL.OrdemdoDiaAlusivaao31deMarçode1964.MinistériodaDefesa,2019.Disponívelem:https://www.eb.mil.br/web/noticias/alusivos-e-ordem-do-dia/-/asset_publisher/QKzf8DsobUm1/content/31-de-marco-de-1964-ordem-do-d-1.Acessoem:21mai.2021.
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DICIONÁRIO Informal. Diferença entre Rememorar e Comemorar. 2019. Disponível em:https://www.dicionarioinformal.com.br/diferenca-entre/rememorar/comemorar/. Acesso em: 13jun.2019.FOUCAULT,Michel.Aordemdodiscurso:aulainauguralnoCollègedeFrance,pronunciadaem2dedezembrode1970.Trad.LauraFragadeAlmeidaSampaio. 24ªed.SãoPaulo:EdiçõesLoyola,2014._____. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 8ª ed. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária,2017._____. História da Sexualidade 1: a vontade de saber (1926-1984). Trad. Maria Thereza da CostaAlbuquerqueeJ.A.GuilhonAlbuquerque.7ªed.RiodeJaneiro/SãoPaulo:PazeTerra,2018a._____.Microfísica do Poder. Curso no Cóllege de France (1978). Org., intr,. e rev. técnica RobertoMachado.8ªed.RiodeJaneiro/SãoPaulo:PazeTerra,2018b.MAINGUENAU, Dominique. Discurso e análise do discurso. Trad. Sírio Possenti. 1ª ed. São Paulo:ParábolaEditorial,2015.ORLANDI, Eni P. Análise do Discurso: princípios e procedimentos. 12ª ed. Campinas, SP: PontesEditores,2015.PETRI, Verli. “O funcionamento do movimento pendular próprio às análises discursivas naconstruçãodo‘dispositivoexperimental’daanálisedediscurso.”In_____,V.;DIAS,C.(Orgs.).AnálisedeDiscursoemPerspectiva:teoria,métodoeanálise.SantaMaria:UFSM,2013,p.39-48.Recebidoem:26/11/2021Aceitoem:16/03/2021
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ANEXOI—ORDEMDODIA
MINISTÉRIODADEFESA
OrdemdoDiaAlusivaao31deMarçode1964
Brasília,DF,31demarçode2019
AsForçasArmadasparticipamdahistóriadanossagente,semprealinhadascomassuas legítimas
aspirações.O31deMarçode1964foiumepisódiosimbólicodessa identificação,dandoensejoao
cumprimentodaConstituiçãoFederalde1946,quandooCongressoNacional,em2deabril,declarou
avacânciadocargodePresidentedaRepúblicaerealizou,nodia11,aeleiçãoindiretadoPresidente
CastelloBranco,quetomoupossenodia15.
EnxergaroBrasildaquelaépocaemperspectivahistóricanosofereceaoportunidadedeconstatara
verdadee,principalmente,deexercitaromaiorativohumano—acapacidadedeaprender.
Desdeoiníciodaformaçãodanacionalidade,aindanoperíodocolonial,passandopelosprocessosde
independência, de afirmação da soberania e de consolidação territorial, até a adoção do modelo
republicano, oPaís vivenciou, commaioroumenornível de conflitos, evolução civilizatóriaqueo
trouxeatéoalvorecerdoSéculoXX.
Oiníciodoséculopassadorepresentouparaasociedadebrasileiraodespertarparaosfenômenosda
industrialização,daurbanizaçãoedamodernização,quehaviamproduzidodesequilíbriosdepoder,
notadamentenocontinenteeuropeu.
Comoresultadodoimpactopolítico,econômicoesocial,ahumanidadeseviuenvolvidanaPrimeira
GuerraMundialeassistiuaoavançode ideologias totalitárias, emambososextremosdoespectro
ideológico.Comofacesdeumamesmamoeda,tantoocomunismoquantoonazifascismopassarama
constituirasprincipaisameaçasàliberdadeeàdemocracia.
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Contra esses radicalismos, o povo brasileiro teve que defender a democracia com seus cidadãos
fardados.Em1935,foramdesarticuladososamotinadosdaIntentonaComunista.NaSegundaGuerra
Mundial, foram derrotadas as forças do Eixo, com a participação da Marinha do Brasil, no
patrulhamento do Atlântico Sul e Caribe; do Exército Brasileiro, com a Força Expedicionária
Brasileira,noscamposdebatalhadaItália;edaForçaAéreaBrasileira,noscéuseuropeus.
A geração que empreendeu essa defesa dos ideais de liberdade, com o sacrifício de muitos
brasileiros,voltariaasertestadanopós-guerra.ApolarizaçãoprovocadapelaGuerraFria,entreas
democraciaseoblococomunista,afetoutodasasregiõesdoglobo,provocandoconflitosdenatureza
revolucionárianocontinenteamericano,apartirdadécadade1950.
O31demarçode1964estava inseridonoambientedaGuerraFria,que se refletiapelomundoe
penetravanoPaís.AsfamíliasnoBrasilestavamalarmadasecolocaram-seemmarcha.Diantedeum
cenário de graves convulsões, foi interrompida a escalada em direção ao totalitarismo. As Forças
Armadas,atendendoaoclamordaamplamaioriadapopulaçãoedaimprensabrasileira,assumiram
opapeldeestabilizaçãodaqueleprocesso.
Em1979,umpactodepacificaçãofoiconfiguradonaLeidaAnistiaeviabilizouatransiçãoparauma
democracia que se estabeleceu definitiva e enriquecida com os aprendizados daqueles tempos
difíceis.As liçõesaprendidascomaHistória foramtransformadasemensinamentosparaasnovas
gerações.Comotodoprocessohistórico,operíodoqueseseguiuexperimentouavanços.
As Forças Armadas, como instituições brasileiras, acompanharam essas mudanças. Em estrita
observância ao regramento democrático, vêm mantendo o foco na sua missão constitucional e
subordinadasaopoderconstitucional,comopropósitodemanterapazeaestabilidade,paraqueas
pessoaspossamconstruirsuasvidas.
Cinquenta e cinco anos passados, a Marinha, o Exército e a Aeronáutica reconhecem o papel
desempenhado por aqueles que, ao se depararem com os desafios próprios da época, agiram
conformeosanseiosdaNaçãoBrasileira.Maisqueisso,reafirmamocompromissocomaliberdadee
ademocracia,pelasquaistêmlutadoaolongodaHistória.
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FERNANDOAZEVEDOESILVA
MinistrodeEstadodaDefesa
ILQUESBARBOSAJUNIOR
AlmirantedeEsquadra
ComandantedaMarinha
GenExEDSONLEALPUJOL
ComandantedoExército
TenBrigArANTONIOC.M.BERMUDEZ
ComandantedaAeronáutica
Fonte:MinistériodaDefesa(2019).
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DIVERSIDADELINGUÍSTICAEENSINODEINGLÊS:CONSIDERAÇÕES
SOBREOINGLÊSAFRO-AMERICANOEORAPEOHIP-HOP1
LINGUISTICDIVERSITYANDENGLISHLANGUAGETEACHING:REMARKSON
AFRICANAMERICANENGLISHANDRAPANDHIP-HOP
ElisaMattos2
RESUMO: Este trabalho reflete sobre o African American English (AAE) como manifestação dediversidade linguística, associando-o ao rap e aohip-hop. Após retomar fatores externos ecaracterísticasinternasdoAAEetemáticasdorapedohip-hop,salientandoaproximações,otrabalhoposicionaamboscomopossibilidadesdeensinocríticodeinglês,considerandoasletrasdemúsicascomoregistrodeusodoAAEecomoinsumoparaletramentocrítico(MORGAN,2001;ALIM,2007).Palavras-chave:AfricanAmericanEnglish;RapeHip-Hop;EnsinodeInglês.ABSTRACT: This paper reflects upon African American English (AAE) as linguistic diversity,associatingitwithrapandhip-hop.FollowingabriefreviewofAAE’sexternal factorsandinternalfeaturesandrapandhip-hopthemes,byhighlightingpointsofconvergence,thispaperplacesbothaspossibilitiesforcriticalEnglishlanguageteaching,consideringsonglyricsasrecordsofAAEusageandassourcematerialforcriticalliteracy(MORGAN,2001;ALIM,2007).Keywords:AfricanAmericanEnglish;RapandHip-Hop;EnglishLanguageTeaching.
1Hip-hoperapsãocomumenteusadosparasereferiraomesmotipodemúsica,posiçãoadotadanestetrabalho.Noentanto,ressalta-sequeohip-hopéummovimentomusicalecultural,queabrangeorap,fornecendotemasparaasmúsicasderap,frequentementeinspiradasemaspectosdaculturahip-hop(KLATSKIN,2018,p.33).2Doutoranda,UFMG.
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MATTOS,E.Diversidadelinguísticae... 45
1.INTRODUÇÃO
Como toda língua natural, o inglês apresenta diversidade léxico-gramatical,
fonético-fonológicaepragmática-discursiva,organizadanasvariaçõesdiacrônica (ao
longodotempo),diatópica(entreosespaçosgeográficos),diafásica(entreassituações
decomunicação),diastrática(entreosgrupossociais)ediamésica(entreosmeiosde
comunicação). Como resultado de processos sócio-históricos e culturais, essas
variaçõespodemserobservadasna interaçãoentre falantes edevem fazerpartedo
ensinodelínguas,comosugereMarcosBagno(2007).
No ensino de inglês, no entanto, a diversidade linguística tem sido pouco
abordadadeformasistemáticaecrítica3,oquepodeserindicativodeumaformação
docentesuperficial(RAJAGOPALAN,2005)edepolíticaslinguísticashegemônicasque
visam a atender a interesses neoliberais e neocoloniais de grupos economicamente
dominantes, indiretamente se concretizando através de agentes de planejamento
linguísticocomoomaterialdidáticoouareproduçãodediscursosemitosreferentesa
umasupostasuperioridadedoinglêspadrãoamericanooubritânico(SIQUEIRA,2012).
Umapossibilidadeconcretadevalorizaradiversidadelinguísticadoinglês—e
de não perpetuar políticas linguísticas discriminatórias — é rever as bases sócio-
históricasdeusoslinguísticosnãopadrãocomumentemarginalizados.Paraavariedade
afrodescendente do inglês americano, foco deste artigo, esse exame envolve um
processo crítico e decolonizador, já que as realidades que geraram o inglês afro-
americanoestãoancoradasnaexploraçãodeindivíduose/ougruposescravizados,até
hojemarginalizadosprecisamenteporprocessos(neo)coloniais.
3Emestudoexploratório(SÁ,2017),identificamosausênciadediversidadelinguísticanaspráticasdeensinodeinglêsenaformaçãodocentede40professoresentrevistadosemMinasGeraiseSãoPaulo:87,5%ensinamexclusivamenteavarianteamericanapadrão,57,5%dosquaisjustificamtalescolhacombaseemexposiçãoefamiliaridadecomessavariante,30%condicionamaescolhaaomaterialdidáticousadoe55%afirmamnãosesentirempreparadosparaensinarqualqueroutravariante.
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MATTOS,E.Diversidadelinguísticae... 46
Desse modo, o ensino crítico e decolonizador passa pelo entendimento de
tensões,opressõeseprivilégiosqueserefletemnaspráticasdelíngua(gem).ParaJosé
Romão (2014, p. 53), esse ato de decolonizar não se concretiza na "libertação das
colônias para criar um estado-nação independente, mas sim [em] um processo de
reconhecimento de várias ciências e epistemologias", necessariamente incluindo as
práticas e os conhecimentos de grupos minoritarizados, como os indígenas e
quilombolasnoBrasileoslatinos,afrodescendenteseindígenasnosEstadosUnidos.
Trata-se,portanto,deconhecerelegitimarsaberesepráticashistoricamentedeixadas
àsmargensdasociedadepormeiodeprocessosdeapagamentoedesvalorização.
Paradiscutiradiversidadelinguísticaporumaperspectivacrítica,estetrabalho
seconcentranavariedadeafrodescendentedoinglês,referindo-seaorapeaohip-hop
comoferramentaspossíveisparaoensinodeinglês,considerandosuascaracterísticas
eassociaçõescomessavariedadedareferidalíngua.Napróximaseção,oinglêsafro-
americanoéabordado,edepois,naterceiraseção,orapeohip-hopsãoaprofundados.
Aquarta seção apontaparapossibilidadesdeusodo rapedohip-hop no ensinode
inglês.Porfim,sãotecidasalgumasconsideraçõesacercadotemaaquitratado.
2.OINGLÊSAFRO-AMERICANO
OAfricanAmericanEnglish(AAE)podelevarmuitosnomes,desdeBlackEnglish
aAfrican-AmericanVernacularEnglish(AAVE).SonjaLaneharteAyeshaMalik(2015)
discutem os muitos nomes que essa variedade pode apresentar, elegendo a forma
AfricanAmericanLanguage (AAL)porentenderemqueessetermoengloba"todasas
variaçõesdousolinguísticonascomunidadesafro-americanas,reconhecendoasmuitas
variedadesnotermogenérico”(LANEHART;MALIK,2015,p.03,traduçãonossa)4.No
4Original:"allvariationsoflanguageuseinAfricanAmericancommunities,recognizingthattherearemanyvariationswithintheumbrellaterm."LANEHART;MALIK,2015,p.03).
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MATTOS,E.Diversidadelinguísticae... 47
presentetrabalho,optou-seporAfricanAmericanEnglish(AAE)5,poisofocoéoensino
de inglês, reconhecendo a diversidade que esse idioma apresenta na história e
atualmente.
Apesardeindicativadostatusdoinglêsafro-americano,anomenclaturadiversa
éapenasapontadoicebergquandosepensaemusoslinguísticos.Paracompreender
melhoressesusos,sejaparafinsdeanáliseoudescriçãolinguísticaouparaoensinode
línguas,épreciso“mergulhar”nacultura-históriadeseusfalantes,buscandoentender
aforçamotrizeosprocessossócio-históricosqueculminaramnasatuaispropriedades
linguísticas de um idioma ou variedade, neste caso o AAE, considerando aspectos
externose internosà língua.Assim,épreciso"tino investigativo"porpartedequem
estudaalíngua,visandoaexaminaressesusoseessaspropriedadesalémdasuperfície.
Pormuitotempo,acreditou-sequeaescravizaçãohaviaapagadotodosostraços
daslínguaseculturasafricanasnofalardosnegrosescravizadoseasdiferençasdeuso
da língua nadamais eram do que "imitações imperfeitas e inadequadas da língua e
culturaeuropeiaseamericanas",segundoGenevaSmitherman(1994,p.04,tradução
nossa)6. Tal crença assimilacionista e etnocêntrica pode explicar o baixo prestígio
tradicionalmenteassociadoaessavariedade,aoposicionarasculturaselínguaanglo-
americanas como superiores, apagando/estigmatizandomanifestações linguísticas e
culturaisquenãoseencaixamnessepadrão.
No entanto, oAAEnão é linguisticamente inferior a qualquer outra variedade
inglesae,demodogeral,traçoslinguístico-culturaisnãosãosimplesmenteapagados,
mastendemaseenraizarpormeiodecontatoe/ouassimilação(THOMASON,2020).
Dessemodo,ecomoqualqueroutralínguanatural,oAAEapresentaregularidadesque
podem ser explicadas por contato linguístico entre línguas africanas faladas por
5Ressalta-sequeoAAEnãoéfaladoexclusivamenteporafro-americanos(ADGERetal.,2007),enemtodososafro-americanosfalamAAE(TICCO,2015).Mufwene(2001)ofereceumadiscussãosobreanomenclatura.6 No original: "imperfect and inadequate imitations of European-American language and culture."(SMITHERMAN,1994,p.04).
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escravizados e/ou variedades do inglês falado pelos colonos anglo-americanos7. A
supostainferioridadedoAAEnadamaisédoqueumconstrutosocialquerefleteuma
visãopreconceituosa,nãoestandorelacionadacomsuascaracterísticascomosistema
linguístico(PULLUM,1999).
Entre os fatores externos de contato linguístico, pode-se verificar que o AAE
tambémfoiinfluenciadopelocontextoeporinteraçõesdos/entreosescravizadosno
ambienteondepassaramacoexistir forçadamente, impactadoporquestõescomo"o
tamanho da plantação, a variedade de contatos dos escravos com os brancos, sua
ocupação, suaautoimagem,aorigemgeográficadoscolonoseuropeusetc." (EWERS,
1995, p. 02, tradução nossa)8 nos séculos XVII e XVIII, principalmente nas atuais
Carolina do Sul e Geórgia (MUFWENE, 2001). Segundo SalikokoMufwene (2001), a
quantidade de negros escravizados, compondo a maioria da população de várias
colônias do Sul, é mais um fator de influência, além da fase pré-segregação entre
brancosenegros,noséculoXVII.
2.1Característicaslexicais
O léxicodoAAEorganiza-seemdoisgrandesgrupos: i) expressõesepalavras
usadasporfalantesdetodasasfaixasetárias;eii)expressõesepalavrasprivilegiadas
porumafaixaetáriaespecífica,geralmenteadolescentesejovensadultos,comogírias
7 Duas hipóteses buscam explicar a gênese do AAE: a) trata-se de um crioulo norte-americanodesenvolvidoporescravos,queseespalhoupelascolôniaseáreasdeexploração(RICKFORD,2015)eb) refere-se a um dialeto inglês derivado da "fala dos brancos do sul [dos EUA] e de variedadeslinguísticasbritânicas"(EWERS,1995,p.01).AperspectivacrioulatemsidodefendidaporJoeyDillard(1972),JohnRickford(2015),Smitherman(1977,2000),JoahnRickfordeRussellRickford(2000)eTraceyWeldon (2003).Aperspectivadialetal é sustentadaporWilliamLabovetal. (1968),EdgarSchneider(2015),ShanaPoplack(2000)eShanaPoplackeSaliTagliamonte(2001).Ressalta-se,noentanto,queessasabordagenspodemsecomplementar,comoobservamRickford(2015)eGerardVanHerk(2015).8Nooriginal:"thesizeoftheplantation,theslaves'rangeofcontactwithwhites,theiroccupation,theirself-image,thegeographicaloriginoftheEuropeancolonistsetc."(EWERS,1995,p.02).
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associadas à cultura popular (RICKFORD; RICKFORD, 2000; GREEN, 2002). Sobre o
primeirogrupo,JohnRickfordeRussellRickford(2000)explicamque"muitasdessas
palavras historicamente ‘negras’ referem-se a aspectos únicos da experiência negra,
incluindoatributosfísicos,distinçõessociaisepráticasculturaisetradiçõesdosafro-
americanos"(RICKFORD;RICKFORD,2000,p.94,traduçãonossa)9.
Um exemplo é a palavra ashy, que se refere à aparência esbranquiçada ou
acinzentadadapeledevidoàexposiçãoaoventoe/ouaofrio,eémaisevidenteemafro-
americanosdevidoàpigmentaçãomaisescuradapeledaspessoasnegras,comocitado
emSmitherman(1994).DeacordocomRickfordeRickford(2000)eLisaGreen(2002),
essaacepçãonãoéconhecidaforadoscírculos interacionaisafro-americanoseatéo
iníciodoséculoXXIessesentidodotermoaindanãohaviasidodicionarizado10.
Uma das principais características lexicais do AAE é o uso diferenciado de
palavrasjáexistentesnoinglês,istoé,oAAEsubvertepropriedadessemânticaspara
darnovossentidosaitenslexicaisdalínguainglesa(GREEN,2002).Ademais,oAAE,
especialmente nas letras de rap e hip-hop, é empregado como uma força criativa,
extremamente suscetível a inovações (MORGAN, 2001). A palavra haterade, por
exemplo,éumamescladeGatoradecomoitemlexicalhate,usadaemHere,getsome
haterade,getyathirstquenched,namúsicaChun-Li,deNickiMinaj(MARAJ,2018),ejá
seencontradicionarizada.
2.2Característicasmorfossintáticas
Em relação a aspectos sintático-morfológicos, o AAE apresenta regularidades
como a chamada zero copula, ou a ausência do verbo be após pronomes
9Original:"manyofthesehistorically‘black’wordsrefertouniqueaspectsoftheblackexperience,includingthephysicalattributes,socialdistinctions,andculturalpracticesandtraditionsofAfricanAmericans."(RICKFORD;RICKFORD,2000,p.94).10Atéadatadesubmissãodopresentetrabalho,apenasodicionárioCambridgeonlinelistavaessaacepçãodotermo.
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pessoais/sintagmasnominaisnopresente,comoem(1),(2)e(3),aseguir,indicadapor
∅,alémdanãoconcordânciaverbo-nominaldopresentebe (PULLUM,1999;GREEN,
2002),comonoexemplo(4),emnegrito.Apesardecontroversa,aausênciadebenãoé
meroacaso,assimcomonãoéilógicaafaltadeconcordância.Hávárioselementosque
condicionamanãorealizaçãoouanãoconcordânciadebeemAAE,entreelesrestrições
fonológicas(LABOVetal.,1968),afunçãoeotipodopronomeeocontextoimediato
(EWERS,1995).
(1)Somewan'playyoungLaurynlikeshe∅dumb(Lostones,LaurynHill)(HILL,
1998);
(2) You∅ just a Black man in this world (This is America, Childish Gambino)
(GLOVER,2018);
(3)Oh,Igetit,huh,they∅paintin'meouttobethebadguy(Chun-Li,NickiMinaj)
(MARAJ,2018);
(4)Wewaspoorerthantheotherlittlekids…Youjustworkingwiththescrapsyou
wasgiven(DearMama,TupacShakur)(SHAKUR,1994).
Adicionalmente, o AAE apresenta particularidades no uso de marcadores de
tempoeaspecto.Porexemplo,done,"queenfatizaacompletudedeumaaçãoe/ousua
relevânciaparaopresente"(RICKFORD;RICKFORD,2000,p.120, traduçãonossa)11,
umdosmarcadoresmaisconhecidosnoAAE,funcionadeformasimilaraosauxiliares
have/has,comovistoem(5).Note-se,noentanto,quedonenãoocorreemnegativas,ao
contráriodehave/has,eRickfordeRickford(2000)explicamqueosefeitosdesentido
associados a done diferenciam-se daqueles de have/has;done parece indicar
intensidade,segundoosautores.
11Nooriginal:"[Done,]whichemphasizesthecompletednatureofanaction,and/oritsrelevancetothepresent."(RICKFORD;RICKFORD,2000,p.120).
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(5) I done put a hundred bands on Zimmerman, shit(The Box, Roddy Ricch)
(MOOREJR.,2020).
OAAEtambémfazusodoverbobeemformainvarianteparaindicarqueuma
açãoéhabitual(6)eintensificabeen,soletradoBIN,parasereferiraumaaçãoiniciada
eaindaemandamento(RICKFORD;RICKFORD,2000).Beentambéméusadodeforma
semelhanteahave/hasbeen.OutrapropriedadedoAAEéaausênciadeconcordância
morfossintática na realização verbal da terceira pessoa do singular (7), e o uso
recorrentedeain’tparasubstituirbe+not,have+notedid+not(WOLFRAM;SCHILLING-
ESTES,2001),indicadoem(8).
(6)Buthomicidebelookingatyoufromthefacedown(Alright,KendrickLamar)
(DUCKWORTH,2015);
(7)Myemancipationdon'tfityourequation(Lostones,LaurynHill)(HILL,1998);
(8)Weain'tgotnotimetowaste(LOVE,KendrickLamar)(DUCKWORTH,2017);
(9)Iwon’tneversellmysoul,andIcanbackthat(TheBox,RoddyRicch)(MOORE
JR.,2020).
Como Gerard Van Herk (2015) explica, o inglês americano padrão tem sido
equivocadamente usado como ponto de comparação para o AAE. A comparação é
entendida comoequivocadaporqueoAAEretevepropriedades compartilhadas com
outras variedades da língua inglesa, as quais não eram consideradas não padrãona
época/local de uso, segundo o autor. Como exemplo, temos a dupla negação. Hoje
demonizada,essaestruturaerarecorrentenoinglêsdosséculosXVIIeXVIII12efoino
12Comoexplica IngridvanOstade(1982,p.279),oséculoXVIII trouxeuma fortenecessidadedepadronizaroinglêse"asregraserammuitasvezesconstruídascombasenarazão,poisentendia-se
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finaldoséculoXVIIIquecomeçouaserquestionada,combaseemprincípiosdalógica
e damatemática, nas iniciativasdepadronizaçãodo inglêsmoderno.O exemplo (9)
apresentadoacimailustraaduplanegaçãoemumamúsicaderapehip-hop.
2.3Característicasfonético-fonológicas
Noquedizrespeitoaosaspectosfonético-fonológicosdoAAE,praticamentetodas
aspalavrasqueapresentamduassílabase terminamnosufixo–er sãovocalizadase
soletradas–a,–uh,ou–ah,comoembrothahparabrother(MORGAN,2001).Deacordo
comGunnelTottie(2002),noAAEasprimeirassílabasnãotônicastendemanãoser
realizadas,comoindicadoem(10)e(11),emdestaque,e/r/nãoépronunciadonofinal
depalavras(car=/ka/),entrevogais(sure=/ʃɜ:/)eantesdegruposdeconsoantes
(dark=/dak/).
(10)Weain'teven'posedtobehere(NiggasinParis,Jay-ZeKanyeWest)(WEST;
CARTER,2011);
(11)Skinsprotected'gainsttheozonelayers(FearofaBlackPlanet,PublicEnemy)
(RIDENHOUR,1990).
Adicionalmente,avelarfinal/ng/podesetransformaremalveolar/n/eosfinais
–ing e –ink frequentemente viram –ang e –ank (TOTTIE, 2002). O fonema /ð/ é
realizadocomo[d]quandoemposiçãoinicial,fazendothisserpronunciadodis,oucomo
[v]emposiçãointervocálica(brotherépronunciado/bəvə/)emAAE(TOTTIE,2002).O
fonema/θ/transforma-seem[f]eo/l/finalé frequentementeapagado,mesmoem
quetudodeveriaserlogicamenteexplicadoejustificado."Aduplanegação,atéentãonãoentendidacomoincorreta,passouaservistacomoerro.
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formascontraídas,oquelevaapronúnciadetoldaserrealizadacomotoe,porexemplo,
eI’lldoitcomo"aduit”(TOTTIE,2002).
A compreensão de questões sociolinguísticas como as discutidas nesta seção
deveriafazerpartedaformaçãodocentepermanente.Essasinformaçõesserviriampara
explicaremsaladeaulaqueoqueseentendecomolinguisticamentecorreto/incorreto
podevariarcomotempoetemmotivaçõesextra-linguísticas.Alémdisso,comoexplica
Pullum (1999), o AAE apresenta regularidades linguísticas e os supostos usos não
padrãoseguemregrasdessavariedadequeestãocondicionadasarestriçõeslinguísticas
eapresentamcaracterísticasinternasidentificadasemoutrossistemaslinguísticos.
3.RAPEHIP-HOP
Datados do final dos anos 1970 e início dos anos 1980 e primeiramente
concebidoscomomovimentocultural,orapeohip-hop foramcriadoseinicialmente
consumidospelasenascomunidadesafrodescendentesemgrandescentrosurbanos
norte-americanos,comorespostadajuventudepara"aideologiapolíticadaeraReagan-
Busheoabandonosistemáticodasociedadeeeducaçãodascomunidadesurbanasnos
EUA”(MORGAN,2001,p.187),comfoconousodeAAE.ComoexplicaMatthewFeldman
(2002),oAAEtambémpodeserencaradocomomeiodeexpressãoeregistroartístico-
cultural, jáqueasletrasdasmúsicasfuncionamigualmentecomoregistrodeuso,de
acordocomSamyAlim(2007).
Alémdoaltograude liberdade linguísticaparacriarassociaçõesdepalavrase
rimas,orapeohip-hoptêmcomoprincipaistemasquestõescotidianas.SegundoTricia
Rose(1994,p.02),asprincipaistemáticasdorapehip-hopmasculinovoltam-separao
jovem afrodescendente em busca de status social em sua comunidade, sobre como
evitarapressãodasgangueslocaiseganharrespeito,sobre"comolidarcomaperdade
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amigos em tiroteios e overdoses, além de histórias grandiosas e às vezes violentas
alimentadaspelopodersexualmasculinosobreasmulheres".
As temáticas femininas, por sua vez, voltam-se para a jovem afrodescendente
"cética quanto às investidas românticas dos homens, a perspectiva de uma garota
envolvidacomumtraficantededrogas,quenãoconseguesedesvencilhardesseestilo
de vida perigoso" (ROSE, 1994, p. 02-03, tradução nossa)13. Alguns raps falam do
fracassomasculinoemoferecersegurançaàsmulherese"atacamoshomensondesua
masculinidadeparecemaisvulnerável:obolso"(p.03,traduçãonossa)14.Outrosraps
referem-seahistóriasdeirmãs/amigasmotivandomulheresparaselivraremdoabuso
deseusparceiros.
Ochamadoconsciousrapoupoliticalhip-hop,porsuavez,ganhounotoriedade
nas últimas três décadas, abordando temas como feminismo, nacionalismo negro e
afrocentrismo.Ofeminismoéumpontodedestaque,dadoohistóricodemisoginiado
rappormeiodeletrasquevitimizame/ouobjetificammulheresnegras,evidenciando
práticasmachistas,especificamentenogangstarap(ADAMS;FULLER,2006,p.940).O
afrocentrismo,porsuavez,ganhaênfaseemletrascomoFormation,deBeyoncé(12),
visandoàrepresentaçãoeaoempoderamento,erespondendoacomentáriosracistas
sobreaaparênciadesuafilha.
(12) I likemy baby heirwithbaby hair and afros / I likemynegro nosewith
JacksonFivenostrils(Formation,Beyoncé)(KNOWLES,2016).
Comosepodenotar,orapeohip-hopestãoprofundamente ligadosàhistória,
cultura e língua afro-americanas e essa pode ser uma razão pela qual o AAE é
comumente utilizado nas músicas. O chamado "black speech”, segundo Stephen
13Original:“skepticalofmaleprotestationsofloveoragirlwhohasbeeninvolvedwithadrugdealerandcannotseverherselffromhisdangerouslife-style.”(ROSE,1994,p.02-03).14Original“attackmenwheretheirmanhoodseemsmostvulnerable:thepocket.”(ROSE,1994,p.03).
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Henderson (1973, p. 87), é usado de forma consciente, estratégica, pois os artistas
"sabem que os negros [...] não falam como os brancos [...] há uma complexa e rica
herançalinguística,poderosaesutil”,quedialogacomahistóriadeseusfalantes.
4.POSSIBILIDADESDEENSINOCRÍTICODEINGLÊS
Linguisticamente,háumasériedeaproximaçõesentreoAAEeorapeohip-hop
na literatura especializada. Como vimos na seção 2, as características lexicais,
morfossintáticasefonético-fonológicasdoAAEpodemserabordadasemsaladeaula
pormeio das letras de raps emúsicas dehip-hop, contrastando essas propriedades
linguísticascomaquelasdevariedadesoutras,deformanãoprescritiva,ouatravésda
identificação/descriçãodeusosespecíficos aoAAE,buscandomapear regularidades.
Em última análise, o objetivo desse tipo de exercício é melhor compreender a
diversidadelinguísticadoinglês.
SegundoMarcylienaMorgan(2001),aideologialinguísticadorapedohip-hop
apresentacomoprincipaiseixosaênfasenoAAE,comfoconofalarregionaldasclasses
trabalhadoras, além do caos lexical, em que princípios básicos da língua(gem) são
exploradosesubvertidosparacriarsignificadosepadrõesdeusonovos,colocandoem
destaqueanaturezaideológicadasescolhaslinguísticas.Apalavrabama,porexemplo
(13),usadaparase referira ‘caipiras’daszonas ruraisdosuldosEstadosUnidos,é
específica do AAE, devendo ser contextualizada no ensino, para públicos que a
desconhecem.
(13)MydaddyAlabama,MommaLouisiana/YoumixthatnegrowiththatCreole
makeaTexasbama(Formation,Beyoncé)(KNOWLES,2016).
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Comoobservadonaseçãoanterior,ostemasdasmúsicasdiscutemasrealidades
dosafro-americanos,comletrasquefalam"areal",semenfeites.SegundoLeslieAshe
WalterEdwards(2004,p.166),a franquezadasletrasé"ummantranacomunidade
afro-americananegra,naclassetrabalhadora",tantonatemáticaquantonasescolhas
linguísticasdasmúsicas.Oconsciousrap,emespecífico,oferececríticascontundentesa
problemasenfrentadospelapopulaçãonegra,evidenciandoaltaconscientizaçãosocial,
como em (14) e (15), em que a violência urbana e o encarceramento maciço da
juventude negra masculina são abordados, com o AAE sendo usado como meio de
expressãoartístico-cultural.
(14)See,onceuponatimeinsidetheNickersonGardenprojects/Theobjectwas
toprocessanddigestpoverty'sdialect/Adaptationinevitable:gunviolence,crackspot
/Federalpolicies raidbuildingsanddrugprofessionals (Duckworth,KendrickLamar)
(DUCKWORTH,2017);
(15)Power-liftthepowerlessupoutofthistoweringinferno/Myinksohotitburn
throughthejournal/Hip-Hoppassedallyourtallsocialhurdles/Likethenationwide
projects-prison-industrycomplex(Mathematics,YasiinBey[MosDef])(BEY,1999).
Assim,músicascomoGlory,deCommon(LYNN;LEGEND,2014),Mathematics,de
YasiinBey(BEY,1999)eFearofaBlackPlanet,dePublicEnemy(RIDENHOUR,1990),
entre outras, podem ser usadas no ensino de inglês como textos-base para discutir
questõeseeventossócio-históricosrelevantesapósumtrabalhodedesenvolvimento
de habilidades de leitura, oferecendo possibilidades de reflexão crítica pós-leitura.
Nesse sentido, o rap e o hip-hop criam pontes entre interesses e objetivos de
aprendizado como alternativa para desenvolver o letramento crítico e habilidades
acadêmicas,"cidadania,autoestimaeoutrashabilidadestransferíveis”,comosugerem
NatTurnereTysonRose(2015,p.603-604).
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Aindaemrelaçãoaodesenvolvimentodehabilidadesdeleitura,deacordocom
CrystalBelle(2016),orapeohip-hopajudamnoaprimoramentolexicalpormeiodo
AAE, e oferecem ao professor insumos autênticos para a compreensão e prática
narrativa, emque elementos como enredo, voz do narrador, espaço etc., podem ser
analisados.Essetipodeexercício,segundoaautora,écapazdelevarosalunosauma
melhorcompreensãotextualeliterária,seconsiderarmosquemúsicasderapehip-hop
estruturam-senanarrativamusical(KLATSKIN,2018),especialmenteoconsciousrap.
Alémdetrabalharatextualidadeeacompreensãoleitora,asnarrativasdemúsicasde
rap e hip-hop, imbuídas de conscientização política, certamente funcionarão como
inspiração para a produção escrita em língua inglesa, incentivando os alunos a
narraremsuasprópriashistórias(BELLE,2016).
Alémdeutilizarasletrascomoinsumoparaoensinocríticodeinglês,épossível
usarosvídeosdasmúsicasparacontextualizare/ouilustrartemasecríticaslevantados
nasletras,enfatizandoarelaçãosimbióticaentreoAAEeaidentidadeerealidadeafro-
americanas. Por exemplo, nos vídeos musicais15 Formation, de Beyoncé, e This is
America,deChildishGambino,temascomooorgulhoeaidentidadenegraecríticasa
acontecimentos que afetammais a população negra nos Estados Unidos (o furacão
Katrina em Formation e a violência policial em This is America) são apresentados
visualmente,acompanhandoasletras.
5.CONSIDERAÇÕESFINAIS
A diversidade linguística da língua inglesa (por exemplo, variação diatópica e
diastrática) tem raízes históricas profundas, em grande parte ligadas a políticas de
15Porrestriçõesdedireitosautorais,nãoépossívelreproduzirnestetrabalhoascenasdosclipesdessasmúsicas. Assim, remeto o leitor aos vídeos oficiais, que se encontram disponibilizados emhttps://www.youtube.com/watch?v=WDZJPJV__bQ&ab_channel=Beyonc%C3%A9VEVO e emhttps://www.youtube.com/watch?v=VYOjWnS4cMY&ab_channel=ChildishGambinoVEVO.
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discriminação e exploração de grupos minoritarizados (RAJAGOPALAN, 2005), que,
infelizmente, ainda estão vivas nas sociedades pós-modernas demodo geral. Como
parte integral das sociedades, a educação não está alheia a essas políticas
discriminantes. Ao contrário, é muitas vezes por meio dela que as políticas se
concretizam ou se mantêm vivas. O professor de línguas, como um estudioso da
língua(gem),podeedevequestionararbitrariedadesediscriminaçõesemseuobjetode
ensino(BAGNO,2007).
Noensinodeinglês,políticaslinguísticasdegruposdominantescumpremesse
papel de discriminação tambémpormeio da artificialização e do "amaciamento” da
realidade, criando um mundo "plastificado” (SIQUEIRA, 2012, p. 319), com a
diversidadelinguísticareduzidaamerasdiferençasfonético-fonológicase/oulexicais
entreasvariantespadrãoamericanaebritânica.Essamaneirarasaereducionistade
encararadiversidadenãoaconteceporacasoe,entreoutrasrazões,elaservecomo
forma de deslegitimar ou apagar usos linguísticos outros. Um desses usos, como
argumentadonestetrabalho,éoinglêsamericanoafrodescendente.
Muitolongedeserumasimplesgíriaouinglês"quebrado",oAAEéumavariedade
linguísticaderesistênciaecomunhãocultural(SMITHERMAN,1997),quesemanifesta
e se renova em diversos espaços, entre eles o rap e o hip-hop, e que apresenta
regularidades como qualquer outra língua natural. É dessemodo que o inglês afro-
americanoéabordadonopresentetrabalho:comoumavariedadelinguísticalegítima,
cujasregularidadesrefletemprofundasmarcassócio-históricasquenãodeveriamser
apagadasouignoradasemqualquertratamentolinguístico/educacional.Aocontrário,
deveriamsercontextualizadastantonopresentequantoemrelaçãoasuasorigens.
Nessesentido,abordaroAAEpormeiodamúsicaétambémumaformade"fazer
comqueaspessoasnegrasconscientementecelebremasinovaçõesdeseusancestrais
no inglês — a evidência viva de um encontro africano com uma sociedade
linguisticamentehostil noNovoMundo”, conformeargumentamRickfordeRickford
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(2000, p. 75, tradução nossa, itálico no original)16: uma experiência certamente tão
significativa"quantofazercomqueaspessoasnegrasenfrentemolegadodaprópria
escravidão" (idem, tradução nossa)17. Essa abordagem pode ganhar contornos
interdisciplinares,comasmúsicasutilizadastambémnoensinodeoutrasdisciplinas,
emassociaçãocomoinglês.
Um ensino de línguas verdadeiramente crítico pressupõe uma análise (mais)
criteriosaequestionadoradoqueseensina,edequaisvozessãoouvidasesilenciadas
nesse percurso, considerando desde os materiais didáticos até as variedades
linguísticasprivilegiadas,ignoradasourechaçadasnoensinodeidiomas.Espera-seque
asconsideraçõesdiscorridasnopresentetrabalhosejammaisumpassoemdireçãoa
uma formação docentemais crítica e reflexiva, que contemple e busque entender a
diversidade linguística, de modo geral, e a história-cultura por trás do inglês afro-
americano,especificamente.
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16Original:“gettingtingfolksconsciouslytocelebratetheirancestors’innovationsonEnglish—theliving evidence of an African encounter with a socially and linguistically hostile New World”(RICKFORD;RICKFORD,2000,p.75).17Original:“asexacerbatingasgettingthemtoconfrontthelegacyofslaveryitself.”(idem).
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ARETERRITORIALIZAÇÃODOSUJEITOEMOINVASOR,DEMARÇAL
AQUINO
THERETERRITORIALISATIONOFTHESUBJECTINOINVASOR,BY
MARÇALAQUINO
NatáliaSaffirydeOliveiradosSantos1
RosanaCristinaZanelattoSantos2
RESUMO: Este trabalho visa a investigar o processo de desterritorialização de sujeitosmarginalizados,bemcomoosefeitosda reterritorializaçãodaviolênciadiantedasmovimentaçõesespaciais ou simbólicas,manifestas e causadas pormeio das ações desses sujeitos, tomando paraanáliseanovelaOInvasor,deMarçalAquino(2011).UtilizamoscomosuporteteóricoasproposiçõesdeGillesDeleuzeeFélixGuattari(2014;2010;1995)sobreorizoma,soboaspectodamultiplicidadeeaplicadosaosprocessosdedesterritorializaçãoedereterritorialização.Alémdisso,sãousadososapontamentosdeRogérioHaesbaert (2006)sobreosmesmos temase comoesses transcorremnaconstituiçãodeobjetosartísticos,especialmentenaliteraturabrasileiracontemporânea.Palavras-chave: literatura brasileira contemporânea; violência; desterritorialização;reterritorialização;MarçalAquino.ABSTRACT: This paper aims to investigate the process of deterritorialisation of marginalisedsubjects, as well as the effects of the reterritorialisation of violence concerning spatial/symbolicmovements,whosemanifestationsandcausesarerelatedtotheactionsofthesubjects,basedonthenovelOInvasor,byMarçalAquino(2011).Astheoreticalsupport,thepropositionsofGillesDeleuzeand Félix Guattari (2014; 2010; 1995) on the rhizome are used — considering the aspect ofmultiplicity — and applied to the processes of deterritorialisation and reterritorialisation.Furthermore,thenotesofRogérioHaesbaert(2006)onthesamethemesarealsoconsidered,astohowtheytakeplaceinartisticcreation,especiallyincontemporaryBrazilianliterature.Keywords:contemporaryBrazilianliterature;violence;deterritorialization;MarçalAquino.
1Graduanda,UFMS.BolsistadeIniciaçãoCientífica/UFMS.2UFMS.PQ—CNPq.
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1.INTRODUÇÃO
Nestetexto,tomaremoscomocontemporâneaaliteraturaproduzidanoBrasila
partir do início da ditadura militar. Devido à censura imposta pelo regime militar
brasileiro a partir de 1964, os anos subsequentes tornaram-se palco para uma
produçãoque se aproximavada literatura-reportagemeque, talveznas entrelinhas,
buscasserepresentaroqueeravetadonarealidadeempírica.DeacordocomMalcolm
Silverman(2000),aliteraturatorna-semais“jornalística”apósogolpemilitarde1964
ebuscacomunicaradurarealidadequeporanosfoiabafadapelarepressãopolíticada
época.Entretanto,essa"vontade"decomunicaroqueeracensuradonãocorresponde
a uma possível formatação do pensamento popular e, sim, a uma tentativa de
representação, pormeio da ficção, dasmazelas, das injúrias e das violências contra
grupos dissidentes. Esse panorama colaborou para a volta de tendências como: a
ficção regional, a sondagem das relações familiares, a prosa marcada por uma
sexualidade exacerbada e a permanência do realismo, intensificado até atingir um
estilo"brutalista",conformeexpressãodeAlfredoBosinoqueserefereàliteraturade
RubemFonseca,entreoutrosescritoresbrasileiroscontemporâneos.
Silverman (2000) refere-se aos tipos de romances que permearam esse
momento histórico no Brasil. Diante da perspectiva adotada nesta pesquisa e dos
rumos que esta discussão tomará, é válido destacar o romance de massificação, o
romance de costumes urbanos e o romance realista-político. O romance de
massificação procurou representar as causas e principalmente os efeitos do
movimento migratório das zonas rurais para os grandes centros urbanos. Essa
produção ficcional fez notar que, pela falta de infraestrutura e investimentos, os
grandescentrosurbanosbrasileirostornaram-seáreasmetropolitanascommilhares
de famintos, onde a miséria gerou a violência, o crime, a frustração e a morte. O
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romancedecostumesurbanos focounasituaçãodosujeitocomovítimamassificada
pela máquina socioeconômica, expressando temas como as angústias pessoais e a
violênciaencarnadapelaspersonagens.Jáoromancerealista-político,trata-sedaquele
que,alémdeabordar temasdecunhosocial,ocorreunoperíodopós-golpede1964,
possuindo um estilo fragmentado como o trauma que se abateu sobre a sociedade
brasileira.
SegundoAntonioCandido(1989,p.211),a literaturabrasileiradoséculoXXé
uma “literatura do contra” e possui temas como “[...] guerrilha, criminalidade solta,
superpopulação, migração para as cidades, quebra do ritmo estabelecido de vida,
marginalidadeeconômicaesocial”.Essestemasilustramavoltadeumrealismoque,
diferentementedaqueleque floresceunoséculoXIX,dizsobreassuntosreferentesa
grupos sociais que anteriormente não erammencionados como protagonistas ou/e
não possuíam relevância nas tramas/textos literários. Para Candido (1989, p. 208-
209), esse ingrediente trouxe ao texto literário a quebra de fronteiras e teve como
resultadooaparecimentode"textosindefiníveis".
Nãosetratamaisdecoexistênciapacíficadasdiversasmodalidadesderomanceeconto, mas do desdobramento destes gêneros, que na verdade deixam de sergêneros,incorporandotécnicaselinguagensnuncadantesimaginadasdentrodesuas fronteiras. Resultam textos indefiníveis: romances que mais parecemreportagens;contosquenãosedistinguemdepoemasoucrônicas,semeadosdesinais e fotomontagens; autobiografias com tonalidade e técnica de romance;narrativasquesãocenasdeteatro;textosfeitoscomajustaposiçãoderecortes,documentos,lembranças,reflexõesdetodaasorte.Aficçãorecebenacarnemaissensível o impactodoboom jornalísticomoderno, do espantoso incrementoderevistas e pequenos semanários, da propaganda, da televisão, das vanguardaspoéticas que atuam desde o fim dos anos 50, sobretudo o concretismo, stormcenterqueabalouhábitosmentais,inclusiveporqueseapoiouemreflexãoteóricaexigente.(CANDIDO,1989,p.208-209).
Sobre esta mudança, podemos ressaltar duas forças importantes para o seu
desenvolvimento: a globalização, na sua face de expansão tecnológica, e a
incorporaçãodeassuntosreferentesàculturademassapela literatura.Emrelaçãoà
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primeira, o bombardeio dos novos meios de comunicação exerce um papel
significativonaproduçãoliteráriaenoprocessocriativodosescritores,quevivemem
meio a uma pluralidade que acaba implicando em uma crescente fragmentação e
desintegração formal da escrita. A incorporação dos novos códigos de comunicação
trouxe umamodificação significativa nosmodos de escrever. Em relação à segunda
força,a introduçãode temascarosàculturademassacontribuiparaaaproximação
entreaficçãoearealidadeempírica,alémdeaproximarsujeitospostosàmargemdo
centro/do protagonismo. Isso cria novas demandas para o escritor, amplia a
abrangênciadotextoliterárioedifundenovasexpectativasnoleitor.
O advento da tecnologia, segundo Francisco Gomes (2015), expôs aindamais
essa aproximação, pois com leitores mais integrados neste mundo digital tem-se a
motivação para a produção de textos altamente imagéticos, de fácil acesso e que
representamarealidadedequemoslê.Oaumentodeproduçõesfílmicasapartirde
obrasliteráriaséumacontingênciadessaaproximação.Asadaptaçõesoutraduçõesde
obrasliteráriasparaoaudiovisualaproximamopúblicodaliteratura,mesmoqueseja
porintermédiodaimagem,ampliandoaleituradostextosliterários.
Diante desse quadro, pensemos a narrativa literária brasileira contemporânea
demodomaisaprofundado.Essanarrativadialoga, ainda, como realismodoséculo
XIX. Para JacquesRancière (2010, p. 78-79), “[q]uando a divisão [entre as almas da
eliteeasdasclassesbaixas]desaparece,aficçãoseentopedeeventosinsignificantese
de sensações de todas aquelas pessoas comuns que ou não entravam na lógica
representativa, ou entravam nos seus devidos lugares (inferiores) e eram
representadasnosgêneros(inferiores)adequadosàsuacondição.”
Rompe-se, portanto, em certa medida, com um pacto estabelecido por uma
verossimilhançaromântica, controladaporuma lógicahierárquicadopontodevista
social e da ordem das conveniências linguísticas, o que abrirá frentes para que
cheguemosa,e investiguemos,narrativascomoOInvasor,deMarçalAquino(2011),
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tomando os processos de desterritorialização e de reterritorialização como nortes
teóricos.
2.OTERRITÓRIOEOSUJEITODESTERRITORIALIZADO
Aquino (2011),emO Invasor,demaneirabastantesingular,busca representar
os movimentos tanto dos sujeitos como da própria violência urbana. Esses
movimentos, que se traduzem em ações, ocorrem por meio do trânsito entre
territóriosdiferentes.SegundoRancière(2010,p.79),
A ação é uma esfera de existência. Concatenações de ações só poderiam dizerrespeito a indivíduos que viviam na esfera da ação, que eram capazes deconceber grandes planos e de arriscá- los no confronto com outros grandesplanos e comos golpesdodestino.Elasnãopoderiamse referir apessoasqueestavam confinadas à condição da vida nua, devotadas à única tarefa de suareprodução infinita. Verossimilhança não é somente sobre que efeito pode seresperadodeumacausa;ela tambémdiz respeitoaoquepodeseresperadodeum indivíduo vivendo nesta ou naquela situação, que tipo de percepção,sentimentoecomportamentopodeseratribuídoaeleouela.(RANCIÈRE,2010,p.79).
AproposiçãodeRancièreserefereaorealismodoséculoXIX,estabelecendoum
percursoapartirdoqualnãosomenteoqueselêmuda,mastambémapercepçãodo
receptor se altera: o enredo vai sendo criado de tal modo que a verossimilhança
romântica seja sucedida pelo aparente desaparecimento das distinções entre
realidade empírica e representação, o que, por sua vez, trará à tona uma nova
sensibilidade, marcada por traços de uma aparente igualdade social, por exemplo
(RANCIÈRE, 2010). Esse caminho ainda está sendo trilhado, acrescido de outras
nuanças, como as discutidas por Regina Dalcastagnè (2017) no artigo intitulado
“Ruídos, interferências e dissonâncias: o que há de novo na literatura brasileira
contemporânea”:
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Daíaprovocaçãodotítulodestetexto.Oquehádenovonaliteraturabrasileiracontemporâneaé justamenteoquecausadissonâncianessecampoliteráriotãohomogêneo: homens e, especialmente, mulheres, negros/as e periféricos/as,pobrese“malinstruídos/as”entramimediatamenteemdesacordocomoqueseimagina como Literatura Brasileira. O “novo” aqui tem a ver, é claro, com aperspectivasocial,comasescolhasrepertoriais,comaspersonagensquepassama ter voz, mas também com os modos de dizer, com a dicção própria dessesautores e autoras e mesmo com os usos que fazem da língua, que dão outratexturaeoutrosentidoaotexto(DALCASTAGNÈ,2017,p.22).
Astais interferênciasdiscutidasporDalcastagnè(2017)nãosãodaordemdas
coisas negativas, posto que os conflitos são legitimamente humanos, fecundos e
democráticos, sendo "[...] artisticamente originais e relevantes." (DALCASTAGNÈ,
2017, p. 22). Cada detalhe das estruturas da narrativa literária contemporânea
importa para a construção de uma cena em que tudo é dissonância, inclusive os
sujeitos que "[...] têm cara de gente do bem." (AQUINO, 2011, p. 11). Seguindo as
indicaçõesdeAnísio,porenquantoomatadoremfasedecontratação,IvaneAlaor,os
contratantes,chegamàZonaLestedacapitalpaulista,sendoassimrecebidosnoponto
deencontro:“Merecemosumarápidaavaliaçãodosdoissujeitosquebebiamcerveja
debruçados no balcão, conversando com o velho que devia ser o dono do bar. Os
quatro homens que jogavam bilhar tambémnos olharam por um instante, e depois
retornaram a conversa. O rádio sobre o balcão chiava um programa de músicas
antigas.”(AQUINO,2011,p.10).
Valechamaratençãoparaousopelonarradordoverbo"chiar"comrespeitoao
rádio: chiar significa aquilo que tem, que produz um som agudo, continuado e
desagradável, rangente, como se lastimando de algo (GRANDE DICIONÁRIO DA
LÍNGUA PORTUGUESA, 2010, p. 348). É interessante que o rádio é utilizado como
alegoriaporDalcastagnè(2017,p.22)emseutexto:
Para completar a ideia, portanto, junto à imagem da dissonância, as dainterferência e do ruído. Então, basta imaginar uma única onda de rádio,transmitindoummesmoeharmônicodiscursosemparar.Asinterferências,que
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podem se manifestar por ruídos ou por pedaços desarticulados de fala, nãoanulamo discurso,mas incomodame,mais do que isso, chamamatençãoparaoutraspossibilidadesdedizeredeexistir.
O chiadodo rádionaperiferiada capital paulista representanão somenteum
território marcado pela dissonância, mas também marca a representatividade de
sujeitoscujapresençaincomodae,nocasodeOInvasor,deummodoreverso:quando
indagadopelonarradorcomopôdereconhecereleeseusóciologoquechegaramao
bar,Anísio lhe responde: “Dáumaolhadanopovodeste lugar: tudo cara fodido, de
pelemanchada,cabeloruim,faltandodente,unhapreta.Qualquerumécapazdedizer
quevocêsnãosãodaqui.Seeuderamãoparaosujeitoentão,soucapazatédefalarse
elejátrabalhounopesadoalgumdia.Nãotemerro.”(AQUINO,2011,p.11).
O fato é que a presença de Ivan e de Alaor naquele território não passa
despercebida,comoelesaprincípiopensam.Ossujeitosqueestãonobardaperiferia
notam a entrada de ambos não com a verossimilhança na qual se pautava
especialmente uma literatura anterior ao realismo, de modo
normalizado/normatizadopelasconveniênciasliterárias,porémcomainconveniência
geradapelosprocessosdedesterritorializaçãoedereterritorialização.
Partindodeperspectivasgeográficasetomando,numprimeiromomento,como
referência O Mito da Desterritorialização: do “fim dos territórios” à
multiterritorialidade,deRogérioHaesbaert (2006), verificamosque as definições de
territórioforamepodemestarligadasaquestõesdiversas,comoasfísicasoudaterra,
que levam em conta o instinto de proteção de um grupo de animais para com seu
território ou aquelas relacionadas à identidade de determinado grupo, pois seria o
local onde os indivíduos estabelecem laços entre si e despertam um sentimento de
pertencimento.
Duranteumlongoperíodo,pensaroterritóriorelacionava-sediretamentecomo
queeramaterialedelimitadoporfronteirasfísicas.Entretanto,issotemsidoabalado
com as novas noções de território que emergiram após a expansão dos meios
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tecnológicos e da globalização. Uma das perspectivas que levou à formação de um
pensamentomais híbrido é tida comoumavisão "integradora", emque as questões
culturais, políticas e econômicas, em conjunto, conceberiam a noção do que seja o
território.ChristineChivallon (1999), citadaporHaesbaert (2006, p. 78), tratará da
espacialidade como “uma espécie de experiência total” do espaço, que faz conjugar
nummesmolugar"osdiversoscomponentesdavidasocial”.Contudo,deacordocom
Haesbaert(2006,p.79),esta“experiênciatotal”nummesmolocalnãoémaispossível,
pois
[...] a “experiência integrada” do espaço (mas nunca total, como na conjugaçãoíntima entre espaço econômico, político e cultural num espaço contínuo erelativamentebemdelimitado)épossívelsomenteseestivermosarticulados(emrede) [...]. Não há território sem uma estruturação em rede que conectadiferentes pontos ou áreas [...] hoje temos o domínio dos territórios-rede,espacialmentedescontínuosmasintensamenteconectadosearticuladosentresi.
Ou seja, levando em conta essa hibridização, podemos conceber o território a
partir“[...]daimbricaçãodemúltiplasrelaçõesdepoder,dopodermaismaterialdas
relações econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais
estritamente cultural.” (HAESBAERT, 2006, p. 79). Seguindo essa direção, podemos
pensarqueoterritórioétotalmenterelacional,poisneleocorremdiversosprocessos
fluidosentreoqueésocialeoespaçofísicopropriamentedito,oquefazcomqueo
territóriotambémsejafluidoecheiodemovimento.
Tendo em vista esse contexto, precisamos recuperar, ainda que brevemente,
concepções relacionadas ao rizoma e à desterritorialização. Vivemos em uma
sociedade segmentada e fragmentada, na qual quem possui poder, dinheiro e bens
materiais encontra-se no topoda pirâmide da desigualdade social, enquanto os que
nãopossuemnadadissopermanecemnabase.Adinâmicadesse sistemaprezapela
manutençãodosprivilégiosdeclasse,deformaquetodoscontinuememseuslugares
atéofimdesuasvidas.Assim,seufocoéacentralizaçãomáximadepoderempoucas
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mãos, para o controle dos fluxos que movem o mundo. Entretanto, essa noção de
centralidade começa a perder força ao adentrarmos nas teorias a respeito da
convivênciaemrizoma.
De acordo com Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995), estudiosos da
desterritorializaçãoedodeslocamento,ambososconceitosnãoseestruturammaisde
maneirahierarquizada;elesnãopartemdeumpontocentralenãosãoumapossível
referência aos demais. Para ambos, o rizoma funciona por meio de encontros e de
agenciamentos,comoummapademultiplicidadesedepossibilidades.Nestesistema,
ascoisassãoflexíveis,váriosnúcleossãopossíveis,porémnenhumdelesocupauma
posiçãomaiorqueosdemais.Aalegoriadamarionetefuncionacomoumaimagemde
multiplicidadeemDeleuzeeGuattari(1995,p.05):
Osfiosdamarionete,consideradoscomorizomaoumultiplicidade,nãoremetemàvontadesupostaunadeumartistaoudeumoperador,masàmultiplicidadedasfibrasnervosasque formampor sua vezumaoutramarionete seguindooutrasdimensões conectadas às primeiras. “Os fios ou as hastes que movem asmarionetes—chamemo-lasatrama.Poder-se-iaobjetarquesuamultiplicidaderesidenapessoadoatorqueaprojetano texto. Seja,mas suas fibrasnervosasformamporsuavezumatrama.Eelesmergulhamatravésdeumamassacinza,agrade,atéoindiferenciado...Ojogoseaproximadapuraatividadedostecelões,aaqueles que os mitos atribuem às Parcas e às Norns”. Um agenciamento éprecisamente este crescimento das dimensões numa multiplicidade que mudanecessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões. Nãoexistempontosouposiçõesnumrizomacomoseencontranumaestrutura,numaárvore,numaraiz.Existemsomentelinhas.
Nessa perspectiva de "rizoma ou multiplicidade", em O Invasor, temos um
narradoremprimeirapessoa,Ivan,quecontaemretrospectooqueteriaacontecidoa
partir da necessidade do desaparecimento/assassinato de Estevão, seu sócio e de
Alaoremumaempreiteira,eoconhecimentodeAnísio.MesmoadescriçãodeAnísio
é,diríamos,comum,semdemonstraçõesdeseuperigonodecorrerdanarrativa:
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Eraumhomematarracado,debraços, fortesemãosgrandes.Tinhaapelebemmorena, olhos verdes e usava o cabelo crespo penteado para trás. Uma dessasmisturasqueoNordestebrasileiroproduzcomcertafrequência.Aocontráriodoqueeuimaginava,elenãopareciaameaçador—emborahouvessedurezaemseujeitodeolhar.”(AQUINO,2011,p.10).
Ainda que o foco narrativo esteja atrelado à voz de Ivan, a invasão territorial
começaquandoeleeAlaorpartemparaaZonaLestedacapitalpaulistaembuscade
um matador. Começam aí, pelo menos aparentemente, desde o início da trama de
Aquino (2011), os processos de desterritorialização e de reterritorialização de
sujeitos, sejam eles os "bacanas", sejam eles os "fodidos", que carregam consigo a
violência.
Para explicar os conceitos de desterritorialização e de reterritorialização,
tomamosumaalegoriautilizadaporDeleuzeeGuattari(2010,p.91)equeserefereao
capitalismo:
O comerciante compra num território, mas desterritorializa os produtos emmercadorias,esereterritorializasobreoscircuitoscomerciais.Nocapitalismo,ocapital ou a propriedade se desterritorializam, cessam de ser fundiários e sereterritorializamsobremeiosdeprodução,aopassoqueotrabalho,porsuavez,setornatrabalho“abstrato”reterritorializadonosalário:éporissoqueMarxnãofala somente do capital, do trabalho, mas sente a necessidade de traçarverdadeiros tipos psicossociais, antipáticos ou simpáticos, O capitalista, Oproletário.
Oprimeiromovimentodocomercianteé tomarposse,via investimentodeseu
capitaloudeoutrem,deumdeterminadoterritório,paracomeçaraoperarsobreele,
promovendonovosencontrosenovosembates.Nalógicacapitalista,osprocessosque
se desdobram a partir do ato do comerciante acabam sendo naturalizados por uma
ordemmuitopróximadaquelaqueatribuíaaosreisabsolutistasumpoder investido
diretamenteporumaautoridadedivina.Porqueunstêmdireitoàterraeoutrostêm
quesecontentarcomaocupaçãodeumterritórioquenãoéseu,aindaqueaterrao
seja?
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Ambos tambémse referemàexistênciade tiposdedesterritorialização, sendo
eles a relativa e a absoluta. A relativa refere-se ao abandono de territórios criados
socialmente,eaabsolutarefere-seàdesterritorializaçãodopensamentooudopróprio
pensar, que “desmonta” estruturas antigas e constrói novas, elaborando novos
conceitos,nummovimentodereterritorialização(DELEUZE;GUATARRI,2010,p.91-
92).EmnossainvestigaçãodoromanceOInvasor,afirmamosqueambasocorremcom
Anísio,indodesuaformamaissimplesatéamaiscomplexa.
3.ADESTERRITORIALIZAÇÃOEMOINVASOR
Demodogeral, asnarrativas literáriasdeAquinocaracterizam-sepela intensa
relaçãocomarealidadeempírica,procurandotranspô-laparaa literatura.Elebusca
representar, por meio de uma linguagem enxuta, os modos de vida nas grandes
cidades do Brasil, sobretudo no "submundo" (expressão utilizada pelo narrador da
novelaOInvasor,paracaracterizaroespaçoondesepassaatrama)eentreasclasses
sociaismaisbaixas.
O que é representado logo no início do romanceO Invasor, quando os sócios
(Alaor e Ivan) vão ao encontro do futuro assassino (Anísio) de seu amigo, e sócio
(Estevão),éumlocalquelheséestranho,compessoasestranhas:“[...]demoramosum
bocado para encontrar o bar, numa rua estreita e escura da Zona Leste. Um lugar
medonho”(AQUINO,2011,p.09);“[e]ntãoaliestávamos,naquelelugarsemnenhuma
vocação para cartão-postal” (p. 09); e “[e]stacionei perto do que parecia ser uma
fábricaabandonada,umgalpãoenormeecinzento,comparedespichadasevitrôscom
vidrosquebrados”(p.09).
O “submundo” passa a ser não somente a periferia de São Paulo, ondeAnísio
habita,mastambémoslugaresporondecirculamossóciosdeumaempreiteira,Alaor,
IvaneEstevão.Aspersonagensnãobuscamaglóriaougrandesconquistas,poissuas
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históriassãoconstruídasapartirdeconflitosquesónaaparênciasãomorais,sendo
guiados,emgeral,pelahipocrisiaepelacorrupção.Porexemplo,Alaor,alémdesero
mentordocrimedemorte,tambémpossuienvolvimentocomoutraspráticasilegais,
comomanterapropriedadedeumprostíbulo.Ivan,porsuavez,traiaesposa.Ouseja,
ambosestãoimersosemumquadromovidopelacompetiçãoepelaesquizofreniadas
zonasmetropolitanas,buscandoporpoderepordinheiro.
Em O Invasor, Aquino representa a cultura marginal, a cultura das margens,
trazendo para a cena falas carregadas de gírias, de palavrões e de expressões
singulares,geralmenteassociadasàperiferia.
Aindaassociadaàvidanaperiferia,existeaviolência.EmOInvasor,aviolência
nãoéprivilégiodascamadasmenosabastadasdasociedade;elasedisseminatambém
nas classesmédia e alta, e o cenário urbano funciona como facilitador para que as
relaçõesdeviolênciaeumaaproximaçãoincomodativaocorramentreessasclasses.
Sendo assim, não somente Anísio passa por um processo de
desreterritorialização:aviolênciaqueoacompanhaemsuavidanaperiferiatambém
invadeesetransformanoslugaresporondecirculamossóciosIvaneAlaor.Emcerta
ocasião,Anísiovisitaosdoissóciosrestantes,oquedeixaIvanbastanteincomodado:
“Océueo inferno.LogodepoisquePauladesligou,asecretáriameavisouquehavia
umhomemàminhaesperanarecepção.Onomedele?Anísio.”(AQUINO,2011,p.70).
AviolênciadeAnísiocomeçaasereterritorializarquandoseoferececomosegurança
daempresadeIvanedeAlaor:
Estouoferecendoproteçãoporquegosteidosdois.Vocêsnãoquerem?Esperaaí,Anísio,Alaordisse.Aondevocêquerchegar,afinal?A lugar nenhum, Anísio bateu a cinza do cigarro. Eu venho aqui pra empresa,tomo conta da segurança, não atrapalho ninguém. E, se vocês precisarem dealgumacoisa,ésófalar.Ah,é?Eoqueagentedizparaosoutrosfuncionários,Alaorperguntou.Quevocêénossoguarda-costas?Anísioriu.
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Sabeoqueeuacho?Quevocêeo Ivanaindanãoperceberamqueagorasãoosdonos disto aqui. Desde quando dono precisa dar satisfação pra empregado?Donopodetudo,Alaor.(AQUINO,2011,p.77).
Dematadordealuguelperiférico,Anísiomudaráseustatusparasegurançade
empresários na Zona Sul da capital paulista, o que, para ele, abrirá um canal de
intimidadecomIvaneAlaor:“Vocênãoconfiamesmoemmim,né, Ivan?Eusouseu
amigo,porra.”EIvanrebate:“Eunãoqueroserseuamigo...”(AQUINO,2011,p.77).
Como já anotamos, a linguagem do romance traz uma inflexão coloquial, com
diálogos pontuados por palavrões: “Ele está fodendo a gente, Alaor falou [...]”
(AQUINO, 2011, p. 13), evidenciando a busca de adequação do próprio registro
linguísticoaoutros—nessecaso,nãocultos—eaformasdeexpressãoqueestejam
emsintoniacomoambienteeasituaçãocaóticasobasquaisestãovivendo.
Este tipo de projeto estético de reterritorialização nos remete a parâmetros
referentesàpossibilidadedeexistênciadeumaliteraturamenor.SegundoDeleuzee
Guattari(2014),emKafka:porumaliteraturamenor,estaliteraturanãoseriaaquela
queédeumalínguamenor,massimaqueumaminoriafazemumalínguamaior.Na
literatura menor, tudo é político, pois ela pega para si casos individuais que, em
cenáriosdemarginalidade,setornamrelevanteseoscolocaemfoco,diferentemente
doqueocorreemliteraturasmaiores.SegundoDeleuzeeGuattari(2014,p.26),“[...]O
queno seiodasgrandes literaturasocorreembaixoe constitui comoqueumacave
nãoindispensávelaoedifício,aquiocorreemplenaluz;oqueláprovocaumtumulto
passageiro,aquinãoprovocanadamenosqueumasentençadevidaoudemorte.”
Entretanto, não podemos negar que apesar de trazer à luz casos que são
individuais e que são invisibilizados, a literatura menor continua encarregada de
enunciar a partir de um olhar coletivo, destacando uma certa solidariedade e uma
certa sensibilidade para com esses sujeitos, o que pode ser caracterizado como um
movimentodedesterritorialização.
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Neste sentido, o que podemos dizer é que ao realizar esses movimentos a
própria literatura se desterritorializa, por meio da língua, a fim de dizer o que
usualmentenãopodeounãoquer serditonas literaturas já estabelecidas.O atode
pensaredeescreversobresujeitosqueemgeralnãoeramvistoscomoprotagonistas
fazcomqueencontremosnossasprópriasmazelasrepresentadas,aquiloquesempre
foijogadoparabaixodotapete.ÉoqueocorreemOInvasor.
Dessa forma, é necessário “[...] estar em sua própria língua como um
estrangeiro”(DELEUZE;GUATTARI,2014,p.48),descentralizandopoderesedizendo
o que não pode ser dito, seguindo rotas alternativas, causando, assim,
desterritorializaçõesconstantespormeiodalínguaedaliteratura.
EmOInvasor,Anísio,assassinocontratadoparamatarumdossócios(Estevão)
que, aparentemente, estava atrapalhando a ação dos demais (Ivan eAlaor) emuma
empreiteira,éapersonagemcentraldatrama.MoradordaperiferiadeSãoPaulo,em
um dia comum e movimentado de sua rotina, encontra-se com os sócios da futura
vítima em um bar para fazer a negociação. Nesse primeiro encontro, notamos o
primeiromovimentodentrodaenormeredequeéumamegalópolecomoSãoPaulo.A
propostafeitaaAnísioservecomoumpontodeacessibilidade,umaespéciedebrecha
paraqueumnovo fluxoseja iniciadoequenovas informaçõespercorramessanova
rota.ReiteramosqueossóciosAlaoreIvanpertencemaumaclassesocialdistintada
de Anísio, entretanto, estamos falando de territórios que passam a se conectar de
algumaforma,emrede,e,nessecaso,ossócioseomatadorconectam-seemprolde
ummesmoideal:ocometimentodeumcrimedemorte/violento.
Anísioserátidocomouminvasorecarregaessetítulodeformabastanteforte
durantetodaatrama.Contudo,comojáditoanteriormente,pormorarnaperiferiade
São Paulo e ter sido procurado por Ivan e Alaor, é preciso admitir que a invasão
primeiranão foi feitaporele,mas, concomitantemente,pelas relaçõesdepoderque
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mantémmilhõesdepessoasemzonasdeexclusãosocioeconômicaepelossóciosque
buscavamporseuspréstimos.
Durante toda a narrativa, Anísio é um homem de poucas palavras, sério e
bastantereservadoacercadesuaprópriahistória.Contudo,suasações,pormenores
que sejam, causam desconforto a quem vem de fora. Ele é incisivo, provocador,
silencioso,espertoedesprendido,tendoumaltopoderdepenetraçãosocial,oquefaz
com que os dois ambiciosos sócios, presos aos seus ideais de enriquecimento e ao
próprioterritório,percamocontroledasituação.
Anísio aproveita-se do ponto de acessibilidade, da abertura dada por Alaor e
Ivan,parademonstrarseusmodosdedesterritorialização.Comoelefazisso?Comoé
reterritorializar-se em um ambiente tão diverso e fluido? O que significa a
desterritorializaçãodoinvasor,deAnísio?
AdesterritorializaçãodeAnísiocomeçano instanteemqueeleprecisasairde
seu território nativo (a periferia de São Paulo), para "capturar" sua vítima, que
pertenceaumterritóriodistintoaoseu,ecumprircomocombinadocomIvaneAlaor.
Apósesseprimeiropasso,suareterritorializaçãocomeçaasermaisincisiva,vistoque
Anísio não somente cumpre o combinado, mas também decide adentrar/participar
aindamaisdocotidianodeambos.
Aprimeira atitudemais agressivadeAnísio em relação aodeslocamentopara
umnovoespaçoéainsistênciadoassassinodealuguelembuscaraparterestantede
seupagamentonaempresa,mesmoqueAlaoreIvaninsistamemlevaraquantiaaté
ele. Ele permanece relutante, forjando assim a persistência dos laços, a fimde criar
novosencontros,comolemosaofinaldocapítulo7:
Alaorencostou-senamesaerespiroufundoantesdefalar.Vamos fazeroseguinte:atéamanhãsemfaltaagentearrumaodinheiropratepagar.Anísioesmagouocigarronocinzeiro.Sorriu.Apressaédevocês.Mas,pormim,tudobem.Amanhãeupassoaqui.Alaorbalançouacabeça.
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Não,não,Anísio.Deixaquenóslevamosagranapravocê.Anísio se levantou e ergueu a cinturada calça.OlhouparaAlaor e depois paramim.(AQUINO,2011,p.71-72).
Maisàfrente,lemos:
Esperaaí,Anísio,eudisse.Ébomagentetomarcuidado,nãoé?Vocêéestranhoaquinaempresae...Anísiomeinterrompeu:Eusouamigodevocês.Nuncaprejudiqueinenhumamigomeu.Tábom,tábom,Alaorconsultouorelógio.Sóqueagoravocêmepegounomeiodeumareuniãoimportante...Amanhãagenteteprocuralánobar,levaodinheiroedaíconversamosmelhor,quetal?Eupassoaqui.Anísiodissea fraseolhandodiretonosolhosdeAlaor.Ficamosemsilêncioporalgunssegundos.Alaorabriuosbraços,serendeu:Tácerto.(AQUINO,2011,p.72).
Eesteésóocomeço.Apósorecebimentototaldopagamento,Anísioalegaque
IvaneAlaorpodemprecisardesuaajudanovamenteeseoferececomosegurançados
sócios. A atitude desagrada a Ivan, mas não impede que Alaor aceite a proposta,
mesmoquecomreceio.Podemosclassificaressaaçãocomoasegundamaiorinvestida
deAnísioemsuanovareterritorialização.
A terceira atitude astuta de Anísio diz respeito à filha do sócio morto. Após
estreitaraindamaisseucontatocomosempresários, trabalhandocomosegurançae
estando frequentemente na empresa, o invasor opta por investir na filha da vítima
assassinada.Porvezes,ambosflertam,saemeemumdadomomento,acabamsendo
flagradosporIvannoestacionamento.
Masnamanhãdoterceirodia,aochegaràconstrutora,eudescobriquenãoexistenenhumasituaçãoruimquenãopossapiorar.Eu estava atrasado, tinha passado a noite num motel com Paula. Assim quecheguei, vi um carro deixando um de nossos funcionários mais assíduos emfrenteàconstrutora,paramaisumdiadetrabalho.
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Oscabelosdeleeosdagarotaquedirigiaocarroestavammolhados.Comoseosdoistambémtivessemacabadodesairdeummotel.Elessebeijaram.Eleentrounaconstrutorasemmever.Elaarrancoucomocarro.AnísioeMarina.(AQUINO,2011,p.87).
AmaneiracomoAnísiosereterritorializaébastantepenetrante,deformaqueo
novoterritóriocriadoafetatantoosseusatoscomoosdaspessoasquejáestavampor
lá.Opoder, que antes se encontravanasmãosdos sócios, é descentralizado.Assim,
fazendousodaspalavrasdeHaesbaert(2006,p.301)o“[...]territorializar-sesignifica
também, construir ou controlar fluxos/redes e criar referenciais simbólicos num
espaçoemmovimento,noepelomovimento”,transformandoumúnicoterritórioem
umespaçotransfronteiriço.
4.CONCLUSÃO
Considerandotodonossopercursodeanálise,podemosdizerqueOInvasor,de
maneira incisiva, provoca um sistema já pré-estabelecido e procura inserir sujeitos
culturalmentemarginalizadosemcenáriosque,aprincípio,nãoforampensados,nem
projetadospor eles e para eles. Entretanto, ao avaliarmos anarrativa combasenos
conceitos de desterritorialização e de reterritorialização, notamos que as barreiras
impostasentreessasrealidadesnãoestãotãoafastadas;muitopelocontrário,elasse
ligamporummotivoemcomum.
A violência assume o papel de elo e, por estar fortemente relacionada às
relações de poder, preenche e ajuda a tecer redes que, conectadas, deixam brechas
para que sujeitos como Anísio se movimentem, causem perturbações e,
consequentemente,construamnovasramificaçõesnosistema.
PodemosverificarquenarrativasliteráriascomooromancedeAquino,alémde
mostrarprotagonistasdesterritorializados, tambémdesterritorializa a literaturapor
meio da língua, pois descentraliza poderes, indo contra a ideia da existência de um
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cânone que está, necessariamente, localizado no centro, reterritorializando assim
literaturasvistascomomarginaisoumenores.
REFERÊNCIAS
AQUINO,Marçal.OInvasor:novela.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2011.BOSI, Alfredo. "Situação e forma do conto brasileiro contemporâneo". In _____. O conto brasileirocontemporâneo.SãoPaulo:Cultrix,1975.p.7-22.CANDIDO,Antonio.AEducaçãopelanoite&outrosensaios.SãoPaulo:Ática,1989.(v.1).CHIAR.InGRANDEDICIONÁRIODALÍNGUAPORTUGUESA.Porto:PortoEd.,2010.DALCASTAGNÈ, Regina. “Ruídos, interferências e dissonâncias: o que há de novo na literaturabrasileiracontemporânea.” InPalavra.Literaturaemrevista,SESC,SãoPaulo,ano8,n.7,p.21-30,2016-2017.DELEUZE,Gilles;GUATTARI,Félix.Kafka:porumaliteraturamenor.Trad.CíntiaVieiradaSilva.BeloHorizonte:Autêntica,2014.(ColeçãoFilô)._____.Oque éa filosofia? Trad.BentoPrado Jr. eAlbertoAlonsoMunhoz.3ª ed. SãoPaulo:Ed.34,2010.(ColeçãoTrans)._____.1.“Introdução:rizoma.”.In_____.MilPlatôs:Capitalismoeesquizofrenia—Vol.1.Trad.AurélioGuerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. Disponível em:https://historiacultural.mpbnet.com.br/pos-modernismo/Rizoma-Deleuze_Guattari.pdf. Acesso em:28mar.2021.GOMES,FranciscoWellingtonBorges.“Aliteraturaemproduçõesaudiovisuais:umareflexãosobreadiferença.” In Tradução em Revista, v. 18, n. 1, p. 1-12, 2015. Disponível em:https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/24854/24854.PDF.Acessoem:23mar.2019.HAESBAERT,Rogério.OMitodaDesterritorialização:do“fimdosterritórios”àmultiterritorialidade.2ª.ed.RiodeJaneiro:BertrandBrasil,2006.RANCIÈRE, Jacques. “O efeito de realidade e a política da ficção.” Trad. Carolina Santos. NovosEstudos, CEBRAP, São Paulo, p. 75-90, mar. 2010. Disponível em:https://www.scielo.br/pdf/nec/n86/n86a04.pdf.Acessoem:28mar.2021.
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SANTOS,N.S.deO.dos;SANTOS,R.C.Z..AReterritorializaçãodo... 82
SILVERMAN,Malcolm.Protestoeonovoromancebrasileiro.Trad.CarlosAraújo.2ªed.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2000.Recebidoem:30/11/2020Aceitoem:18/03/2021
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SILVEIRA,A.H..AspectosdaNarração... 83
ASPECTOSDANARRAÇÃONOSCONTOSDEBERNARDOKUCINSKI:O
TESTEMUNHODADITADURAMILITARBRASILEIRA
NARRATIONASPECTSINBERNARDOKUCINSKI’STALES:THETESTIMONY
OFTHEBRAZILIANMILITARYDICTATORSHIP
AlexandreHenriqueSilveira1
RESUMO:Opresente trabalho investigaanarraçãoemdoiscontosdoescritorBernardoKucinski,“Vocêvaivoltarpramim”(2014)e“Ainstalação”(2014).AtravésdadiscussãoacercadoslimitesdarepresentaçãonanarraçãodotraumapropostaporMárcioSeligmann-Silva(2008)eJaimeGinzburg(2012), constata-se que há uma preocupação em inscrever a violência da ditadura de 1964 naescolhapornarradoressolidários,comomododeelaboraroeventotraumático.Palavras-chave:BernardoKucinski;narrador;testemunho.ABSTRACT:ThepresentworkinvestigatesthenarrationintwoshortstoriesbyBernardoKucinski,—“Vocêvaivoltarpramim”(2014)and“Ainstalação”(2014).Throughthediscussiononthelimitsof representation in the trauma narrative proposed byMárcio Seligmann-Silva (2008) and JaimeGinzburg(2012),itappearsthatthereisaconcerntoinscribetheviolenceofthe1964dictatorshipinthechoiceofsolidarynarrators,asawayofelaboratingthetraumaticevent.Keywords:BernardoKucinski;narrator,testimony.
“Caroleitor:Tudonestelivroéinvenção,masquasetudoaconteceu”(KUCINSKI,
2016, p. 11). Com esse aviso, o escritor brasileiro Bernardo Kucinski inicia sua
primeira obra,K.Relato de umabusca, publicada inicialmente em2011. Trata-se de
um romance que tematiza, a partir da ficcionalização de um evento factual, o
desaparecimentodaprópriairmãdeKucinski,AnaRosa,duranteoperíodorepressivo
daditaduracivil-militarde1964,feridanacionalqueaindasangra,semperspectivade
1Mestrando,UFOP.
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SILVEIRA,A.H..AspectosdaNarração... 84
cicatrização, apesar dos esforços de governantes para fazê-la cair no esquecimento.
Temacaroaesseescritor,talpassadoaindaforneceriamaterialparaqueelepudesse
escrever outras obras sobre a violência ditatorial. Uma delas é a coletâneaVocê vai
voltarpramimeoutros contos, publicadaem2014pelaCosacNaify, comnarrativas
curtas que concentram-se em explorar a atmosfera de opressão dos anos 1970 e a
permanênciadador,dolutoedotraumanoperíodopós-ditadura.Emborabaseie-se,
como material para a escrita, em sua maioria, em eventos históricos, Bernardo
Kucinski repete, de modo semelhante, a advertência de seu primeiro romance na
abertura do livro de contos: “Aos leitores familiarizados com aqueles tempos, os
contos podem lembrar episódios de pessoas conhecidas. Mas não passam de
invenções, criações literárias sem nenhuma obrigação de fidelidade a pessoas ou
fatos”(KUCINSKI,2014,p.07).
Por que se dá essa repetição? Direcionando um olhar mais atento para as
narrativasdoescritor,verifica-sequeKucinskiestácolocandoaliteraturaemprimeiro
plano, embora sem deixar de lado a dimensão social. Trata-se de um aviso para
mostrarque,aoficcionalizareventosquefizerampartedahistóriaditatorial,permite-
se, pela obra de arte, “sentir um pouco a atmosfera de então, com nuances e
complexidades que a simples história factual não conseguiria captar” (KUCINSKI,
2014, p. 07). Dessa forma, a literatura, enquanto objeto estético, torna-se um
suplemento à história oficial da ditadura, presente nos arquivos. ConformeEurídice
Figueiredo, nas pegadas de Jacques Derrida, “arquivos, em sentido estrito, são
documentos de leitura árida reservados aos historiadores, enquanto a literatura
atingeumpúblicomaisamplo”(2017,p.46).Comefeito,naadvertênciadeKucinski
precedidaàshistóriasdacoletâneaVocêvaivoltarpramimeoutroscontos,etambém
deseuromancedeestreiaK.,percebe-sequeháumdesejodeexploraraquiloquese
torna possível pela ficção, isto é, elaborar os traumasde umperíodo ainda obscuro
paraahistóriabrasileira.
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SILVEIRA,A.H..AspectosdaNarração... 85
A narração tem uma função primordial nessa escrita da dor. Nos contos da
coletâneadeKucinski,aformacomoosnarradoressecolocamnotexto,muitasvezes
demaneirairônica,marcaumolharcríticosobreopassadoditatorial.Percebe-seque
existe uma relação entre as narrativasdeKucinski e uma tendência encontradanas
obras de ficção brasileira contemporânea, pois a abordagem adotada pelo escritor
enfatiza, de acordo com JaimeGinzburg, em seu estudo sobre o narrador brasileiro
contemporâneo, “elementos narrativos contrários ou alheios à tradição patriarcal
brasileira. [...] Trata-se de um desrecalque histórico, de uma atribuição de voz a
sujeitostradicionalmenteignoradosousilenciados”(2012,p.200).
Para tecer a reflexão apresentada neste texto, partimos dos estudos
relacionados às teorias do narrador e dos estudos sobre o testemunho e suas
especificidades no contexto da ditadura brasileira, além de considerarmos o conto
enquantogêneroliterário.DasvinteeoitonarrativaspresentesemVocêvaivoltarpra
mim e outros contos (2014), duas foram selecionadas para nossa análise: “Você vai
voltar pra mim” e “A instalação”. Elas tratam das violências sofridas pelas vítimas
torturadaspeladitaduracivil-militar,asquaislidamcomeventostraumáticosquenão
podemserdescritosempalavras.Omotivodeescolhermosessescontosrelaciona-se
àspalavrasdeJaimeGinzburgsupracitadas,pois,aotrazeremcomotemaumperíodo
históricoviolentoparaoBrasil,denunciamnãosomentearepressão,mastambémo
esquecimentoinstitucionalperpetradopelasclassesdominantesequeencontraforça
emumdiscursomilitarhegemônico, o qual fica evidentenaobraLugarnenhum, de
LucasFigueiredo (2015). Figueiredodemonstra comoasForçasArmadas agiramde
forma constante para ocultar documentos sobre a ditadura, muitos deles
possivelmente contendo informações sobre desaparecidos políticos. O Poder Civil
também não agiu de maneira devida, mostrando-se, em diversos momentos,
indiferenteàquestão.MesmocomainstauraçãodaComissãoNacionaldaVerdade,em
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2012,osmilitaresseguiramnegandoquemantinhaminformaçõesemseusarquivos,
nãocolaborandocomotrabalhodeescavaçãodopassado.
Quando pensamos nas teorias do narrador, um estudo a que se costuma
recorrer é o de Norman Friedman (2002), que objetiva compreender o conceito de
pontodevistanaficção,tomandocomoparadigmasPlatãoeJamesJoyce.Seuestudo
categorizadiferentesprocedimentosnarrativosencontradosemromanceseuropeus,
principalmenteaquelespublicadosnoséculoXIXenasprimeirasdécadasdoXX.Como
pontua Jaime Ginzburg (2012), Friedman e outros pesquisadores semelhantes
preferemnarrativaslinearesemdetrimentodeoutras,essasfragmentadas,deixando-
asde foradesuasclassificações. Issonosmostrauma insuficiênciadedeterminadas
teoriasnarrativasemlidarcomobrasquefogemdessepadrão,especialmenteaquelas
quelidamcomcatástrofeshistóricas,comoguerras,genocídioseditaduras.
Aquestãodosefeitosdasguerras,eoutras formasdeviolênciaemmassa,nos
leva aWalter Benjamin, a propósito do declínio da narração, e a Theodor Adorno,
sobre a impossibilidade de narrar. Passemos, primeiramente, a Benjamin. Em seu
famosoensaio“Onarrador”,eleelaboraumacomparaçãoentreonarradortradicional,
queestáemviasdeextinção,eodoromance.Onarradortradicionalseriaaquelecuja
origemsedánatradiçãooral,atravésdasexperiênciasqueacumulaaolongodesua
trajetória de vida, enquanto o narrador do romance estaria ligado à ideia de
informação e de novidade. Para Benjamin, “são cada vezmais raras as pessoas que
sabemnarrardevidamente” (BENJAMIN,1985,p.197).Eledefendea ideiadequeo
narradortradicionalsedivideemdoistipos:omarinheiro,istoé,aquelequeviajapara
diversos lugarese acumulanarrativasdasdiferentes culturasaque teveacesso, eo
camponês sedentário, capaz de retratar o cotidiano, correspondente ao lugarejo em
que vive. Todos esses traços que distinguem os narradores tradicionais partem da
noção de sabedoria, pois, segundo Benjamin, “tudo isso esclarece a natureza da
verdadeiranarrativa.Elatemsempreemsi,àsvezesdeformalatente,umadimensão
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utilitária. [...]Onarradoréumhomemquesabedarconselhos”(BENJAMIN,1985,p.
200).Amortedasabedoria,essacapacidadedetransmitirexperiênciasparaaqueles
que ouviam as narrativas, estaria ligada, com efeito, aos avanços tecnológicos e à
PrimeiraGuerraMundial.
Benjamin deixa entrever — no fim de seu ensaio, a partir do narrador do
romance, que se difere do narrador da tradição oral— “uma outra narração, uma
narraçãonasruínasdanarrativa,umatransmissãoentreoscacosdeumatradiçãoem
migalhas” (GAGNEBIN, 2006, p. 53). Essa outra forma de narrar, na leitura desse
ensaio de Benjamin, feita por Jeanne Marie Gagnebin, estaria ligada à figura do
trapeiro,umnarrador/historiadorquenãocoletamaisgrandesaçõeshumanas,mas
queestáatentoaosrastrosdopassado,recolhendo
tudoaquiloqueédeixadodeladocomoalgoquenãotemsignificação,algoqueparecenãoternemimportâncianemsentido,algocomqueahistóriaoficialnãosabe o que fazer. [...] [O] narrador e o historiador deveriam transmitir o que atradição, oficial ou dominante, justamente não recorda. Essa tarefa paradoxalconsiste,então,natransmissãodoinenarrável,numafidelidadeaopassadoeaosmortos, mesmo— principalmente— quando não conhecemos nem seu nomenemseusentido.(GAGNEBIN,2006,p.54).
Conforme aponta Ginzburg (2012), o narrador que Benjamin trata,
prioritariamente, é aqueleda tradiçãooral enãoumdos componentesda estrutura
ficcional. Já Theodor Adorno, em seu “Posição do narrador no romance
contemporâneo”, discorre sobre o paradoxo da narração no romance enquanto
gênero: “não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narração”
(2003,p.55).ParaAdorno,oromanceperdeuseulugardedestaquequeocupavano
mundoburguêsemdetrimentodocinemaedareportagem.Acontemplaçãodavida,
presente na narração de romances do século XVIII, perde lugar para “um sarcasmo
sangrento,porqueapermanenteameaçadacatástrofenãopermitemaisaobservação
imparcial, enemmesmoa imitaçãoestéticadessa situação” (ADORNO,2003,p.61).
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Embora Adorno refira-se ao narrador de romances, percebemos que suas reflexões
são relevantes para a compreensão do procedimento narrativo diante da violência,
pensando também no conto como gênero literário. Tal como o romance, o conto
tambémprecisadanarração.
ComascontribuiçõesdeTheodorAdornoeWalterBenjamin,surgeainevitável
questão que move este artigo: como narrar a experiência de um trauma e, mais
precisamente, de um evento traumático coletivo que ainda permanece, no caso da
ditadura civil-militarbrasileira, semsolução?Não sedeseja aqui formular respostas
categóricas, uma vez que tais problemas não têm aparente solução. Porém, acolher
textosliterárioscontemporâneosconstituiumatarefa,e,noquetangeàliteraturacujo
temaéaditadurabrasileirade1964,trata-sedeumatarefaética.
Márcio Seligmann-Silva trata da narração em seu texto acerca do testemunho
dossobreviventesdoscamposdeconcentraçãonazistas,eapontaparaessaacolhida
de textos que abordam asmemórias traumáticas de quem sobreviveu a catástrofes
históricas. O autor afirma que “a memória do trauma é sempre uma busca de
compromisso entre o trabalho de memória individual e outro construído pela
sociedade” (2008, p. 67). Pensando tambémno conceitode testemunho, Seligmann-
Silva nos mostra, a partir de Primo Levi, conhecido sobrevivente do genocídio dos
judeus,oseucaráteraporético:quempodetestemunhar,comefeito,sãoosmortosou
aquelesqueGiorgioAgamben(2008)denomina“muçulmanos”,sujeitosquechegaram
aofundodohorrordoscamposdeconcentração.RecorrendoaotestemunhodeLevi,o
filósofo italiano discorre sobre uma zona cinzenta, na qual “o oprimido se torna
opressor e o carrasco, por sua vez, aparece como vítima. Trata-se de uma alquimia
cinzenta, incessante, na qual o bem e o mal e, com eles, todos os metais da ética
tradicionalalcançamoseupontodefusão”(AGAMBEN,2008,p.30).Nessesentido,a
zona cinzentamostra a incapacidade de julgamento, de responsabilizar os culpados
peloscrimescometidosnoscampos,dadaaincomensurabilidadedohorror.
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Dada a exceção dos fatos ocorridos nos campos de concentração, percebemos
quenoçõesjurídicastradicionaisnãoconseguemabarcartaisexperiências,inclusivea
própria ideiadetestemunho.Háumalacunanocasodastestemunhassobreviventes
doscampos,poiselasdevemnarraraquiloquesomenteosmortosexperienciaram:
Ossobreviventes,comopseudotestemunhas, falamemseulugar,pordelegação:testemunhamsobreumtestemunhoquefalta.Contudo, falardeumadelegação,no caso, não tem sentido algum: os submersos nada têm a dizer, nem têminstruções ou memórias a transmitir. [...] Quem assume para si o ônus detestemunhar por eles, sabe que deve testemunhar pela impossibilidade detestemunhar(AGAMBEN,2008,p.43).
Aqueles que sobreviveram conseguem apenas testemunhar parcialmente,
embora necessitem absolutamente do testemunho. Resta-lhes a imaginação para
narrar o inenarrável, o que não pode ser descrito pela linguagem. Nas palavras de
Seligmann-Silva, “[o] traumaencontrana imaginaçãoummeiopara suanarração.A
literaturaéchamadadiantedotraumaparaprestar-lheserviço”(2008,p.70).
Cabedestacarquea ideiade testemunhopodeser tanto testis como superstes.
Testis,palavraorigináriadolatim,remeteàesferajurídica,dacenadotestemunhoem
um julgamento, enquanto o superstes está ligado à história oral, ao sujeito
sobrevivente,assombradopeloevento limite.O testemunhorelaciona-seà literatura
justamenteporestarentreahistóriaeamemória,entreverdadefactualenarrativas.
Devemos, para Seligmann-Silva (2005), considerar o não lugar do testemunho,
reconhecendo sua dimensão paradoxal. O pesquisador também compara o
testemunhodaSegundaGuerraMundial,focadonaEuropaenosEstadosUnidos,com
o testimonio latino-americano, o qual é, de fato, um gênero literário, marcado pela
relaçãoentrepolíticaeliteratura.
EnquantoospaísespróximosaoBrasilbuscaram,atravésdemedidaspúblicas,
umareparaçãodeseupassadomarcadopelaviolênciaditatorial,nasegundametade
doséculoXX,nocasodaditaduracivil-militarbrasileira,constata-seumaausênciade
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testemunho, devido a mecanismos institucionais de esquecimento, como a Lei da
Anistia,promulgadaem1979:
Não temos o testemunho como testis, ou seja, o testemunho jurídico, nem otestemunhocomo superstes, o testemunhocomoa faladeumsobreviventequenão consegue dar forma à sua experiência única. Nossos testemunhos estãosufocados pelas amarras de uma “política do esquecimento” que nãoconseguimos até agora desmontar. De certa maneira, podemos dizer que asvítimas e aqueles que lutam pela verdade, pela memória e pela justiça ficamrelegadospelosdonosdopoderaumaposiçãomelancólica,difícildeaceitaredecomelaconviver.Eladestrói.Ograndedesafioquesecolocahoje[...]équebrarasbarreiras que até hoje impediram este trabalho de testemunho de entrar emfuncionamento(SELIGMANN-SILVA,2010,p.14).
Ao se estudar os testemunhos da ditadura civil-militar, a ausência de uma
culturadememórianoBrasildeve ser ressaltada.Nesse caso, asobras ficcionaisde
teor testemunhal que problematizam o período, como as narrativas de Kucinski,
acabampordenunciartaisaparatosdeesquecimentosobreoperíodorepressor.
No contoquedá título à coletânea, “Vocêvai voltarpramim”, anarrativa, em
terceira pessoa, centra-se em uma mulher, presa política, a qual é levada a uma
audiência,devidoànotíciadequehavia sidopresa.Duranteoprocessono tribunal,
apósumquestionamentodojuiz,apersonagemafirmaquefoitorturada,quebrandoa
recomendaçãodadapeloadvogadodocaso,emconluiocomostorturadores,paraque
elanãomencionasse,duranteoprocesso,aviolência infligidaaela.Os responsáveis
pelaaudiêncianegociameordenamqueelasejalevadapara“opresídiofeminino.Não
voltaráparaoDops”(KUCINSKI,2014,p.71).
Nesseconto,onarradorestádistantedoseventosetemacessoaospensamentos
eaossentimentosdaprotagonista.Apesardodistanciamento,essenarradornãopode
ser considerado imparcial e objetivo, pois nota-se a existência de uma empatia pela
presapolítica.Nacenaemqueelaélevadaparaotribunal,talsolidariedadeénotada
pelo fato de o narrador ressaltar a solidão e o desamparo da protagonista, frente à
situaçãodesumanaquelhefoiimposta:“Estavasóelanocamburão.Sóela,detantos
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companheiros, ainda viva e indo para uma audiência na JustiçaMilitar” (KUCINSKI,
2014, p. 69). Tal modo de narrar é pontuado por Ginzburg, ao comentar uma
passagemdeEmcâmaralenta,deRenatoTapajós.Emboranessaobraanarraçãodas
cenas de tortura sejam dadas de forma explícita e detalhada, um ponto em comum
comocontodeKucinskiéjustamenteapresençadessenarradorempático,atravésdo
qual tem-se um “alcance crítico” (2012, p. 207). Por meio dos sentimentos de
desesperoemedodaprotagonista,contadospelonarrador,formula-seumacríticaàs
práticasdetorturadoperíodorepressivo.
A tortura ocupa um lugar importante no conto e o caminho escolhido para
narraro traumasofridopelapersonagemé justamentenãodescrever,comdetalhes,
as sessões de violência sofridas por ela. O primeiro indício de que amulher estava
sendo torturada é dado nas primeiras frases do conto, de maneira sutil: “Era a
primeira audiênciado seuprocesso.Depoisque foimarcada,nãopendurarammais,
deixaramentrarcomida,pomadas,roupa.Hojeestádeblusanova,saiatambém.Todos
a querem bem-apresentada” (KUCINSKI, 2014, p. 69). Nota-se que não há uma
referência direta ao pau de arara, prática de tortura comum na ditadura brasileira,
mas essa relação é feita pelo uso do verbo “pendurar”. A verdade sobre a tortura
ocorre quando temos acesso à fala da protagonista, na forma de discurso direto,
duranteaaudiência,afirmandoquefoipenduradasetevezes.Emseguida,elaexpõeas
sequelas em seu corpo, denunciando a farsa tramada pelos algozes: “Mostrou os
hematomasnosbraçosenostornozelos,faloudaspalmadas,doschoquesnosseiose
navagina,daameaçadeestupro,dasimulaçãodefuzilamento,dosafogamentos,dos
onze dias na solitária” (KUCINSKI, 2014, p. 70). Nessa passagem, os eventos
traumáticosqueapersonagemsofreuestãoexplícitos,masonarradorrefere-seaeles
de formabreve, expondouma sucessãode cenasdeviolência semdescrevê-las com
detalhes.No fimda trama, verifica-seomesmoprocedimentodonarrador, aooptar
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por interromperahistórianomomentoculminantedoconto,quandoaprotagonista
percebequeestásendolevadanovamenteparaoDops/SP2:
Denovoestásónocamburão.Percebequeéomesmoqueatrouxeeseinquieta.Passa a observar o trajeto pela grade de ventilação. Vê, aterrorizada, entrarempelomesmoportãoatravésdoqualhaviamsaídoparaotribunal.Ocamburãopara,aportaseabre.Otorturadordiz,sorrindo:—Eudissequevocêiavoltarpramim,nãodisse?Vem,benzinho,vamosbrincarumpouco.Eleaagarrapelascanelaseaarrastaparafora.Osoutrosemvoltariem(KUCINSKI,2014,p.71).
Afaladotorturador,queiniciaeencerraoconto,correspondeaotítulo,oqual
poderia indicar,emuma leiturapreliminar,umahistóriadeamor,mastrata-se,com
efeito, da falado algozdaprotagonista, encerrando anarrativa com ironia. Leandro
Vasconcelos,emsua interpretaçãosobrea interrupçãodanarraçãonoconto,afirma
que “comoemmuitos casos,não se sabeoquehouveapósaprisãodapersonagem
principal.Ocontoseriaareproduçãododestinodemuitosquepassarampelasprisões
políticasdaditaduraenãovoltarammais”(2018,p.45).
Outropontoimportanteéacenadotribunalqueconstituioconto,remetendoao
testemunho.Se,porum lado,o testemunhodosafetadospeladitadurade1964está
impedido pelas classes dominantes de ocupar um espaço relevante na sociedade
brasileira,poroutro,háumapreocupaçãoemelaborar,atravésdeumnarradorsem
princípiosde imparcialidade,“umanovaculturadotestemunho.Otestemunhotanto
artístico/literáriocomoo jurídicopodeservirparase fazerumnovoespaçopolítico
paraalémdostraumas”(SELIGMANN-SILVA,2010,p.12).
Julio Cortázar, pensando especificamente no conto como gênero literário,
comparaoromanceaumfilmeeocontoaumafotografia.Enquantooselementosde
2ODepartamentodeOrdemPolíticaeSocialdaPolíciaCivildeSãoPaulofoiumdosmaistemidoslocais da repressãomilitar. Os presos políticos erammantidos em celas, submetidos a constantessessõesdetortura.
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composição do romance vão se acumulando de maneira mais lenta, no conto, a
construção ocorre de forma profunda desde as palavras iniciais. O contista, assim
comoofotógrafo,
sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou acontecimento quesejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas também sejamcapazesdeatuarnoespectadorouno leitor comoumaespéciedeabertura,defermentoqueprojete a inteligência e a sensibilidadeemdireçãoa algoquevaimuito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto(CORTÁZAR,2006,p.151-152).
Paraocrítico,nãoháummodoúnicodeconstruircontos.Porém,ummodode
averiguaraqualidadedessetipodetextoéatravésdotrabalholiteráriorealizadopelo
escritor apartirdaquiloqueCortázar chamade intensidadee tensão.A intensidade
ocorre a partir de um afastamento do estilo do romance, sem recheios da trama
principal, enquanto a tensão é a forma pela qual “o autor nos vai aproximando
lentamentedoque conta.Aindaestamosmuito longede saberoquevai ocorrerno
conto,e,entretanto,nãonospodemossubtrairàsuaatmosfera”(CORTÁZAR,2006,p.
158).Assim,nocasode“Vocêvaivoltarpramim”,verifica-sequeatensãoéorecurso
adotado,levandoonarradoracontarapenasoessencial.
Omesmopodeserpercebidoem“Ainstalação”(2014).Esseéoutrocontoque
toca no problema da tortura enquanto evento traumático para o sobrevivente. Na
trama,umamulher, chamadaNair,vítimade torturanaditadura,vaivisitaraprima
que nunca conheceu, filha do irmão de seu pai. Esse seu desconhecimento sobre a
famíliadopaiéoquemoveapersonagemaaceitaroconvitefeitopelaprima,aqual
sóaencontrouapósumapesquisana internet.O conto inicia-se comaprotagonista
subindoaescadariadacasadaprima,“umpalaceteerguidonaparteelevadadeuma
alameda tomada por chácaras. Estava circundado por um muro tão alto que mais
parecia uma fortaleza” (KUCINSKI, 2014, p. 136). Enquanto sobe as escadas, Nair
preocupa-se com as pontadas de dor que sentirá quando tiver de descê-las, pois
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“sentiriaasagulhadasnojoelhodireito.Dezanoshaviampassado.Otiquenervosona
sobrancelhaesquerda, reflexocondicionadodas cacetadas, sumira comdoisanosde
divã, mas a lesão no tendão, de quando a penduraram no pau de arara ficou para
sempre”(KUCINSKI,2014,p.135).
A narração do conto se dá em terceira pessoa, como em “Você vai voltar pra
mim”.Aqui,novamente,onarradorsecolocaemumaposiçãodeproximidadecoma
protagonista.QuandoaprimadeNaircomeçaamostrar-lheacasa,daqual“[p]arecia
seorgulhar”,aprotagonistapercebeummaugostonadecoração:“Nossapersonagem
nuncatinhavistotantokitsch3”(KUCINSKI,2014,p.136).Onarrador,aoreferir-seà
Nair utilizando o pronome possessivo “nossa”, parece estar aproximando a
personagemdoleitor,aomesmotempoemquetambémaconsiderasuapersonagem,
ressaltandosuaficcionalidade,afastando-sedeumanarraçãoobjetiva.
AprotagonistaécuradoradeartenaPinacotecadeSãoPaulo,cidadeemquea
açãodocontoacontece,e issoexplicaseuolharparaosobjetosdecorativosdacasa.
Elavêtudocomoummaugostodaprima,masaochegaraosfundosdocasarão,dando
para um pomar, Nair nota algo como “uma instalação de arte antropofágica.
Finalmenteumaobradebomgosto,pensou”(KUCINSKI,2014,p.137).
Ainstalação,quedátítuloaocontoeprendeaatençãodeNaircomoumaobra
deartedequalidade,éopaudeararaqueomaridodesuaprima,jáfalecido,ostentava
comorgulhodostemposemqueatuavacomopolicial.Eisodesfechodoconto:
Apeçaeracompostadecachosdebananacarnudoseabundantesenvolvendoumlongo vergalhãodemadeira envelhecida, erguido comoum totem.Os bagos debanana iamdoverdeprofundoaodouradovoluptuoso,passandopeloamarelo-ouro,olaranja,omarrom,umcompletoarco-íristropicalista.Curiosa,elaperguntou:—Eessacoisatãobonita,oqueé?—Sãopencasdebananaqueeudeixoaípramadurar.—Eaquelahastenomeio?
3Termoquepodesignificarumaqualidadeinferiornogostoartístico.
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— É lembrança domeumarido; é o pau de arara que o Oswaldo ganhou doscolegasquandoseaposentoudapolícia.Ela sentiu um frio subindo pela barriga e logo o beliscar pesado dos tiques nasobrancelha(KUCINSKI,2014,p.137).
Ostiquesrecuperadosemterapiavoltamquandoaprotagonistapercebequeo
falecidomaridodaprimaeraumtorturador,recordandootrauma,aparentementejá
superado. O narrador destaca as informações acerca do passado traumático da
personagemesuaatuaçãoprofissional,comocuradoradearte,paraconvergiremum
encerramento irônico. A narração causa um efeito crítico ao mostrar que um
instrumento de tortura era preservado com cuidado e deixado à mostra pelo
torturador como algo digno de ser exibido. O caminho escolhido para narrar a
violência comoeventomarcantedaditadurade1964, tantoem“A instalação” como
em “Você vai voltar pramim”, está justamente em não descrevê-la,mas expô-la de
formacrítica,comumtipodesarcasmosemelhanteaodestacadoporAdorno(2003).
AComissãoNacionaldaVerdadefoicriadacomointuitoderestauraramemória
doperíodoquecompreendede1940a1988,estabelecendoumahistóriaoficialdos
eventos ocorridos. De acordo com Leandro Vasconcelos (2018), a publicação dos
contosdeBernardoKucinski expande, pela ficção, os relatosdaComissão acercada
ditaduracivil-militar,vistoqueoautorsebaseouemalgumashistóriascomomaterial
para escrever as narrativas que formariam a coletânea Você vai voltar pra mim e
outroscontos.Assim,anarração,nosdoiscontosdeKucinskianalisados,comfocoem
personagensvítimasdetortura,evidenciaapossibilidadede“interpretaropaís,sem
movimentostotalizantes,semverdadesabsolutas”(GINZBURG,2012,p.219).
Temos também um ponto de contato importante com a forma como Walter
Benjamin (1985)expõeodeclíniodanarraçãooralatentando-separaosilênciodos
sobreviventes da Primeira Guerra Mundial e a dificuldade em narrar os
acontecimentos vividos nas trincheiras, constituindo uma experiência traumática
coletiva.Paraele,anarraçãopermanece,apesardisso,nafiguradotrapeiro,quebusca
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narraroinenarrável.OfocodeBenjaminestavavoltadoaonarradordatradiçãooral,
mas suas contribuições são relevantesparao entendimentodeumaerade traumas
coletivosedaincomunicabilidadedaexperiência.ComAdorno(2003), focalizamosa
narraçãocomoestruturaliterária,nãomaispautadaemprincípiosobjetivos.Procura-
se, por outro lado, destacar a impossibilidade de imitação literária, com uma voz
narrativacrítica.
Osnarradoresdos contosdeKucinski aqui analisadosmostram,pelo trabalho
comalinguagem,umcaminhoparaaelaboraçãodador,levando-nosarefletirsobreo
passadoditatorialbrasileironopresente,consolidandooatodenarrar.Emtemposde
negacionismos,emquepessoasvãoàsruaspedindoavoltadaditaduracivil-militar,
ostestemunhosliteráriossobreoperíodosãocruciaisnalutapelamemória.
REFERÊNCIAS
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ÁGUASQUEDESENHAMAHISTÓRIA:UMAPERSPECTIVASOBREOOLHAR
DEJOÃOMIGUELFERNANDESJORGEEMIACOUTO
WATERSTHATDESIGNHISTORY:APERSPECTIVEONTHEVIEWOFJOÃO
MIGUELFERNANDESJORGEANDMIACOUTO
AnaCarolinadosSantosLinhares1
RESUMO:OpresenteartigotemporobjetivoapresentarumaanálisecomparadaentreasproduçõespoéticasdoautorportuguêsJoãoMiguelFernandesJorge(1943)edoautormoçambicanoMiaCouto(1955).Aoanalisarpoetasdediferentesnacionalidades,podemosentenderseuspaísesdeorigem,que apresentam uma conexão histórica servindo de base para as produções poéticas, bem comoconstatara relaçãodediferentesculturasparacoma imagéticadaágua,maisespecificamente,domar.Ademais,serãotratadasasquestõesdanaturezaepaisagemnaescritadosdoisescritores.Paraestaanálise,serãoutilizadasasobrasBellisAzorica(1999)eObraPoética—1ºVolume(1987),deFernandes Jorge eRaiz de orvalho e outros poemas (2009),Tradutor de chuvas (2011) e Poemasescolhidos(2016),deMiaCouto. Palavras-chave:Memóriaehistória;Poesiaportuguesa;Poesiamoçambicana.ABSTRACT: This article aims to present a comparative analysis between the works of thePortuguesepoetJoãoMiguelFernandesJorge(1943)andtheMozambicanMiaCouto(1955).Whenanalyzingpoetsofdifferentnationalities,wecanunderstandtheircountriesoforigin,whichpresentahistoricalconnectionworkingasbasesfortheirpoeticproductions,aswellasseetherelationshipof different cultureswith the imagery ofwater,more specific, of the sea. In addition, nature andlandscapeissueswillbeaddressedinthewritingofthetwowriters.TheworksBellisAzorica(1999)andObra Poética— 1º Volume (1987), by Fernandes Jorge andRaiz de orvalho e outros poemas(2009),Tradutordechuvas(2011)andPoemasescolhidos(2016),byMiaCoutowillbeusedforsuchanalysis. Keywords:Memoryandhistory;Portuguesepoetry;Mozambicanpoetry.
1Mestranda,UFF.
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“Eupensoqueamemóriaentrapelosolhos”.
HerbertoHelder
1.INTRODUÇÃO
AssimcomoafirmaHerbertoHelder(2006)notexto“Memória,montagem”,de
Photomaton & Vox, a memória está correlacionada a uma questão visual, e é essa
visualidade que estará presente na obra dos dois autores examinados neste estudo.
Essamemória,queéconfiguradaereconfiguradapelotrabalholírico,seráumdoselos
queentrelaçamasobrasdeJoãoMiguelFernandesJorgeeMiaCouto.Umamemória
nãoapenasindividualcomotambémcoletiva,sendoapresentada,inclusive,apartirda
relação com o elemento aquático, sobretudo o mar, visto que é um grande marco
representativo na história, tanto de Portugal quanto deMoçambique. Pormais que
haja um distanciamento cultural e territorial entre tais produções, buscar-se-á
justamente,apartirdessesdistanciamentos,umaaproximação.Pararealizaraanálise,
serãoutilizadasasobrasBellisAzorica(1999)eObraPoética—1ºVolume(1987),de
JorgeeRaizdeorvalhoeoutrospoemas(2009),Tradutordechuvas(2011)ePoemas
escolhidos(2016),deCouto.
JoãoMiguelFernandesJorgenasceuemBombarral,Portugal,1943.Estreouem
1971como livrodepoesiasSobSobreVoz.Asuaobra,degrandefluidezderitmoe
efeitos sonoros, constrói-se a partir de referências narrativas pessoais e evocações
históricas. As imagens contidas em seus poemas libertam-se, muitas das vezes, do
sentidometafóricoatravésdeumadeslocaçãodosignificanteporlugaresetempos,e
emoutrasvezesacentuandoocaráterefêmerodosseresedascoisas.
Oseuinteresseporáreasartísticas,comoapinturaouaescultura,levouaque,
nasuaobra,oexercíciodoolharsobreascoisasseja tambémpontodepartidapara
muitos de seus poemas sobre a presença da arte nos espaços do individual e do
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coletivocontemporâneos.Valeressaltarqueoautorétambémcuradordeartes,sendo
assimjustificadaessaconexão.Esseolharimagéticoquantoaoslocaisérecorrenteem
suaprodução.Há livros emque são apresentados ambientesportugueses, comoé o
casodoBellisAzorica(JORGE,1999),emqueoautor,emalgunspoemascomo“Vilado
topo, Ilhéudotopo”descrevecaracterísticasdesse local:“Ovendedordepeixe;duas
caixascheiasde/chicharrosobrea roda traseiradabicicleta;/ sobea íngremerua
que vai do pequenoporto à / vila. Já é tarde, pescador, para venderes o que veio à
//rede.(...)”(JORGE,1999,p.25).Jáem1992,emTerraNostra,JoãoMiguelFernandes
Jorge tratoupelaprimeiravezdosAçores,oqueremeteàquestãodomar,umtema
que volta emBellis Azorica. Sobre isso, Alexandra Lucas Coelho (1999, s/p) em seu
texto“Oquesomosumdeushá-deampliar”afirmaque“[é]de1992oprimeirolivro
de João Miguel Fernandes Jorge (JMFJ) totalmente dedicado aos Açores, ou seja,
composto por poemas que surgiram do que o poeta viu, ouviu, viveu, pensou no
decorrerdeviagens(intercaladasentre1988e1991)nasnoveilhasdoarquipélago”.
JoaquimManuelMagalhães (1981), emOsDois Crepúsculos, produzumensaio
sobreJorgeesuaproduçãoliterária.MagalhãesafirmaqueapoesiadeJorgeapresenta
umarelaçãocomquestõespolíticas,masdeumaformanadaóbvia.Opoetaconsegue
apresentarumacríticaataisquestões,mas“semdeixarcairnousualmodoemocional
defazerpolíticaempoesia”(MAGALHÃES,1981,p.238).Umpoucoantes,Magalhães
também afirma que: “Esta poesia, que é uma das mais atravessadas de referências
culturais explícitas da nossa poesia depois de Jorge de Sena [...], não se transforma
nunca em poesia de cultura, nem a sua problemática se pode reduzir à da citação,
porquemaisdoqueissoelaproduzinscriçõesdepaixão”(MAGALHÃES,1981,p.237–
238).
Algosemelhante realizaAntônioEmílioLeiteCouto,mais conhecidocomoMia
Couto. Trata-se de um autor que aborda questões políticas, de uma forma bastante
críticaepoética.Coutonasceuem1955,nacidadedaBeira,emMoçambique.Aos14
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anospublicouosseusprimeirospoemasnojornalNotíciasdaBeira,iniciando,assim,
seu percurso literário dentro de uma área específica da literatura — a poesia. É
também biólogo e professor, e atuou como jornalista de 1974 a 1985, ocupando o
cargodediretordaAgênciadeInformaçãodeMoçambique(AIM)em1976.Pormais
quesuaproduçãomaisextensasejaemprosa,opróprioautorafirmaqueaquestãoda
poesianuncasaiudasuaescrita.EmentrevistaaoPortalRaízes,2eleafirma:“Eucreio
quenuncasaídesseuniversodapoesia,souumpoetainfiltradonomundodaprosa,
contandohistóriaspelousodapoesia.Euausonãoapenascomogêneroliterário,mas
comoumcertomododeolhar,umasugestãodeoutralógicaquesópodeservistapor
ela”(COUTO,2016,s/p).
Esse “certo modo de olhar” apresenta não só uma questão individual como
também coletiva. Assim como há em Jorge, é possível perceber que existe muita
memóriaehistórianaslinhastraçadaspeloautormoçambicano.IrinaMigliari(2018),
aoabordaraproduçãodeCouto,apresentaumaquestãorelevantesobreo iníciode
suapoética, sendo assimumadas possíveis justificativas tambémpara a escolhada
poesiapeloautor:
Durante o período colonial (1505-1975) em Moçambique, no âmbito daliteratura, o gêneromais praticado foi a poesia. Diversas razões explicam essatendência; entre elas, e talvez a mais relevante, está o fato de que as raízespopularesdapoesiaabremespaçoparaumgrupodeleitoresdeoutrascamadassociais que não apenas a elite. Ademais, a poesia é um gênero insidioso e,portanto,iludeacensuracommaisfacilidadeeédefácilpublicaçãoemjornaiserevistas(MIGLIARI,2018,p.236).
Migliari(2018,p.237)aindaafirmaqueépossívelidentificarnapoesiadeCouto
uma preocupação em contestar e questionar a realidade deMoçambique. E que ele
consegueresgatarahistória,discutindo,inclusive,apolítica,etestemunhaocotidiano
aomesmotempoquedialogacomasraízesdaculturaafricanaesuaespiritualidade,
2 Disponível em: https://www.portalraizes.com/1mia-couto-guimaraes-rosa/. Acesso em: 28 set.2019.
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servindo como agente transmissor das identidades africanas para o mundo. Vale
lembrarqueCoutoiniciasuaproduçãoanosantesdaIndependênciadeMoçambique3
(1975), sendo esse momento de conflitos usado como plano de fundo para a sua
produção.
Coutoganhoufamanãoapenasemseupaís,eessafamaéjustificada:sãomais
de vinte livros publicados, várias premiações internacionais e uma escrita muito
particularqueéaomesmotempopoéticaesocialmenteengajada.Ele foioprimeiro
autorafricanoaganharoPrêmioUniãoLatinodeLiteraturasRomânicas,em2007.Em
2013,foivencedordoprestigiadoprêmiodalínguaportuguesa,oPrêmioCamõesde
Literatura.Ademais,CoutoécorrespondentedaAcademiaBrasileiradeLetras.
NoprefáciodoseulivroRaizdeorvalhoeoutrospoemas,Couto(2009)nosdiz
que“[o]quemeligaaestelivronãoéapenasmemória.Masoreconhecimentodeque,
sem esta escrita, eu nunca experimentaria outras dimensões da palavra” (COUTO,
2009,p.07).Eéessamemória,essaescritadahistóriaqueseráabordadanesteartigo,
apartir, principalmente,deuma relação coma imagéticadaágua.Águaessaque se
relacionanãosócomaconstruçãodesuapátria,trazendoumametáforadomar,como
tambémserelacionaasuaconstruçãocomoindivíduo.Oautornossugere,naabertura
do livroTradutorde chuvas (COUTO,2011)—em formatodeepígrafe—,que “[o]s
meusprimeirosversosforamescritosparaomeupai/efalavamdarelaçãoqueele,
nasuapoesia,/criavaentreaspalavraseachuva./Aindahojeomeupaicontinua/
chovendodentrodosmeuspoemas”(COUTO,2011,p.04).
EmentrevistacitadanoestudoMiaCouto:espaçosficcionais,realizadoporMaria
CuryeMariaFonseca(2008),Coutorelatacomoapoesiapareciaonipresentenacasa
3AGuerrade IndependênciadeMoçambique, tambémchamadacomoLutaArmadadeLibertaçãoNacional,foiumconflitoarmadoentreasforçasdaguerrilhadaFRELIMO(FrentedeLibertaçãodeMoçambique) e as Forças Armadas de Portugal. Oficialmente, a guerra teve início em 1964 eterminou com um cessar-fogo em 1974, resultando em uma independência negociada em 1975,mesmoanoqueoMPLA(MovimentoPopulardeLibertaçãodeAngola)proclamouaindependênciaemAngola.
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emqueviviacomospaiseirmãos.Filhodeumtambémjornalistaepoetaportuguêse
de uma mulher que, segundo ele, carregava em si a poesia, ele cresceu em um
ambiente no qual a escrita e as histórias faziamparte da vida cotidiana. “Eu estava
cercado:emminhaprópriacasanãosóestavaolivro,masopoemaemcarneealma.E
estava, sobretudo, minha mãe que era, a meus olhos, a própria poesia” (CURY;
FONSECA,2008,p.19).Sendoassim,pormaisquesejatambémumescritordeprosa,
seráenfatizadaeanalisada,nesteartigo,aproduçãopoéticadesteautor.
2.AIMAGEMDAÁGUACOMOCONSTRUÇÃOPOÉTICA
SegundoMariadoCéuFialho(2006,p.397),“[t]odooimaginárioseexpandee
configura sem que dele seja possível alienar a referência original a um espaço e à
vivência humana desse espaço; todo o espaço a que o homem cria elos de ligação
tende a ser transfigurado pelo imaginário humano”. Para países como Portugal e
Moçambique, cujas fronteiras sãopredominantementemarítimas, a vastidãodomar
abre-se,desdesempre,comoespaçodetemores,espaçodeevasãoeliberdade,oude
invasãoeameaça,deinterrogação,mistério,fascínioerebeldia.Aexpansãomarítima
éumgrandemarconãosóparaPortugalcomotambémparaMoçambique,masnãoé
apenasapartirdessemomentoquea imagemdomarse fazpresentenascorrentes
literárias.ComoafirmaLuísMiguelQueirós(2012,s/p),“[a]poesiaportuguesaéuma
praia constantemente batida pelas ondas do mar”. Ou seja, é complexo abordar a
literatura portuguesa, assim como também a africana em geral e, em especial a
moçambicana,semabordaressaimagéticamarítima.AutorescomoCamões,Almeida
Garret,FernandoPessoaeSophiadeMelloBreynerAndersen, sem falardosdemais
nomes representativos dessa extensa lista, como também Agostinho Neto, José
LuandinoVieira,JoséCraveirinhaeJoséEduardoAgualusasãoalgunsdosdetentores
dessavozpoéticaqueapresentaaquestãodomar.
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Ummare,porextensão,todaaágua,tevesempreumsimbolismoambivalente.
Queirós(2012)afirmaqueomarrepresentaaomesmotempoaorigem,fecundidade,
vida,mastambémdistância,desastreemorte.NoromanceARainhaGinga,doautor
angolano José Eduardo Agualusa (2015), há uma das visões perante a imagética do
marquandoavozdarainhaéapresentada:
Nosdiasantigos—acrescentou—,osafricanosolhavamomareoqueviameraofim.Omareraumaparede,nãoumaestrada.Agoraosafricanosolhamparaomareveemumtrilhoabertoaosportugueses,masinterditoparaeles.Nofuturo—assegurou-me—,aqueleseráummarafricano.Ocaminhoapartirdoqualosafricanosinventarãoomundo(AGUALUSA,2015,p.10).
Eéessemar,querepresentaumadiversidadedesensações,queestábastante
presente nas poéticas de Jorge e Couto. Autores que nasceram em países cujas
histórias estão atreladas, interligadas por esse mar. A água, metaforicamente, está
interligadaaumaquestãohistórica,deconstruçãodeumaidentidadedosdoispaíses.
Sobreessa imagética,GastonBachelard(1997),emAáguaeossonhos,propõe
que “[n]o tocante aomeu devaneio, não é o infinito que encontro nas águas,mas a
profundidade”(BACHELARD,1997,p.09).Arespeitodisso,épossívelafirmarquehá
algodemuitoprofundoe,aomesmotempo,infinitonessaságuasqueiremosadentrar.
Assimcomoaquestãodaáguaéperceptívelnasobras,hátambémumlocalque
se relaciona bastante a ela: a questão da ilha. Como foimencionado anteriormente,
Jorgetemalgunsdeseuslivrosdestinadosaambientarlugaresespecíficos,sendoum
deles relacionado aos Açores:Bellis Azorica (1999). Essa conotação da ilha é parte
presentetambémnaproduçãodeCouto,quenopoema“AlágrimaeoBúzio(1)”,do
livroVagaseLumes,exemplificabemisso:
Emtudooquedesponta,/auspiciosoenovo,/perduraovelho,falsomorto./Éisso/quemedizaonda/agasalhandoamaresia./Éessa/aliçãodeinfinito/que recebo das ilhas. / Nada em nós / émais antigo que omar. / Eis porque
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nascemosnumpranto:/—alágrima/éumasementedeoceano(COUTO,2014,p.22).
Há nesse poema uma visão da água como representação de um início e, ao
mesmotempo,deumfim.Alágrimaquerepresentaumador,perda,“pranto”também
é“sementedeoceano”.Háaindaumaondaquepossuioseufim,masévistacomoum
recomeço, “uma lição de infinito”, um ciclo de vida. É aomesmo tempo o velho e o
novo.Uma ideiadequeonascimentorepresentaador,mas tambéma felicidadeda
renovaçãodomundo.Essaágua,representadanopoematranscrito,expõeaconotação
nãosóquantoaomar,mas,comoditoanteriormente,representa,inclusive,aquestão
dalágrima.Essaáguaéfrutodeumchorocoletivoequedetantochorar,cria-seum
oceano, metáfora para o excesso e o infinito. E, parafraseando Bachelard (1997), o
sofrimentodaáguaéinfinito.Ademaisdessaparáfrase,épossívelaindarelacionarmos
esseconceitoaosversosdeFernandoPessoa(1888–1935)nopoema“MarPortuguês”,
publicadonolivroMensagem(1934):“Ómarsalgado,quantodoteusal/Sãolágrimas
de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, / Quantos filhos em vão
rezaram.”4Essadorrepresentativadaperdacoletivaéfrutodeumabuscapelonovoe
desconhecido,nãosomentenopoemadePessoacomotambémdeCouto:“Emtudoo
quedesponta,/auspiciosoenovo,/perduraovelho, falsomorto”(COUTO,2014,p.
22).Umchoroquerepresentaaincerteza,alémdetodapossívelperda.
Assim como a poesia deCouto, a de Jorge é atentamente crítica de si própria,
alémdeseefetivaremconstantediálogocomomundo.SegundoIdaAlves(2012,p.
39), a relação em Jorge, “por exemplo, com a história coletiva e individual é uma
demandacontínua,nuncaignorada.”EmObraPoéticaVol.1,Jorgenosapresentaessa
conexão,como,porexemplo,em:“Naareiaoscaminhossãomuitos./Ospeixesvão
morrendocrianças./Longoéotempodestepoema”(JORGE,1987,p.27).Poemaeste
que está ali para abordar uma realidade a partir de um olhar crítico. “Peixes vão
4 Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/pe000004.pdf Acesso em: 9fev.2020.
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morrendo crianças”. É como se, pela falta de uma preservação ambiental, essas
criançasque representammetaforicamenteum futuro, tambémmorrerão.Ou ainda,
essespeixesquemalsedesenvolveram,morrem,semcondiçõesdeprogredir.Como
ele mesmo afirma “os caminhos são muitos”, demonstrando que o que está sendo
percorridopela sociedadenãoé,possivelmente,o caminhoquedevemosseguir.Em
umoutropoemadestemesmolivro,Jorgeafirma:“Otempoéqualquercoisa/quetem
avercomágua/comdeusdemasiado largo/explodindo” (JORGE,1987,p.14).Há
nesse trecho uma constatação dessa construção histórica perante a imagem desse
mar.Ummarqueestáligadoàexpansãoterritorial,mastambémaconflitospolíticos,
não somente perante os países europeus, como Inglaterra, Holanda e França, como
tambémapovosafricanos,comoadisputapeloReinodoDongo,daRainhaGinga.5Isso
é possível visualizar também na poética de Couto, em um poema presente no livro
VagaseLumes, emqueeleafirma: “Nocaminho/haviaumrio. /Eo rio/ tinhada
navalha/oapurado fio./Ecortouemdoisomundo”(COUTO,2014,p.15).Umrio
quenãoapenasinterligalocaisdistintoscomotambémossepara,poisele“cortouem
doisomundo”.Umaáguavista,maisumavez,comoambivalente,inícioefim,queliga
esepara.Emumoutropoema,presenteemTradutordeChuvas,Coutonosapresenta:
Nemflorinvejei:/oquemaisilumina/vemdeumoceanoescuro./Esperançastive:todasnaufragaram/antecansaçoseremorsos./Procureiilhasemares:/só havia viagens, / travessias de água / nos olhos de quem amei. (...) Meuspequenosdedos/rasgaramcéus,/masoensejoeralargo:/emmimsecaram/lembrançasdeummarantigo(COUTO,2011,p.14–15).
Esse mar que foi, em algum momento, sinônimo de escape, deixa de ser:
“lembranças de ummar antigo” (COUTO, 2011, p. 15). Ummar que representou a
esperança,nãomaisévistoassim:“Esperançastive:todasnaufragaram”(p.14).Sendo
5Utiliza-seaquiagrafiaescolhidapeloautor JoséEduardoAgualusa,oqualescreveuumromanceque tem como base os conflitos entre portugueses e africanos durante o século XVI e que foimencionadonesteartigo(AGUALUSA,2015).
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assim,éindubitávelessarelaçãoentreaimagéticadaáguaemrelaçãoàconstruçãode
umahistóriaquantoaospaísesdessesdoispoetas,históriaessaquenãoestápresente
apenasnasproduçõespoéticasdestesautores,trata-sedeumatradiçãomuitoantiga.
Por mais que em Moçambique a escrita como hoje existe não tenha ocorrido
simultaneamente ao ocorrido em Portugal, essa relação entre mar, construção
histórica e cultural é bastante antiga e está enraizada na produção dos dois países,
refletindo assim na produção tanto de Jorge quanto de Couto e de tantos outros
autoresportuguesesemoçambicanos.
3.ARELAÇÃOENTRENATUREZAEPAISAGEM
Arelaçãoentrepaisagemenaturezaencontra-sebastantepresenteemestudos
nãoapenasliterários.Háatualmentetodaumapreocupaçãoperantearepresentação
dessanatureza,aqualestácadavezmenospresenteemnossasvidas.Faremosaqui
umareflexãodecomoessanaturezaétranspostaparaopoemapormeiodeumolhar
extremamente crítico e subjetivo, transfigurando, assim, essa paisagem como uma
percepção, como dito anteriormente, não só pessoal como também coletiva. Essa
paisagem, representada por tais autores, resulta da junção de um olhar pessoal ao
olharsocialsobreanaturezacircundante.
Assim como dito anteriormente, Jorge é um autor extremamente ligado às
questões imagéticas. Há uma representação assim como uma alusão a questões do
mundoexternoquese fazempresentesemsuaescrita.Alvesafirmaque“Fernandes
Jorgemanifestaumaextremaatençãovisual.Osujeitolíricodetémoseuolharsobre
paisagens externas e internas, sobre as coisas do mundo e sobre as sensações
interiores,vendoemtudoafugacidade,aausênciaeaperda”(ALVES,2012p.42).
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No poema “Entre Fajãs”, presente no livro Bellis Azorica, torna-se possível
observar essa relação não apenas com o mar, mas também com uma paisagem de
“ausência”:
EntreaFajãdosCubreseaCaldeiradeSanto/Cristo ficaumapequenaaldeiaabandonada—/eusei,apalavraaldeianão fazparteda/geografiaaçoreana,mas é uma das palavrasmais / perfeitas do português—Fajã doBelo, / se omapadeS.Jorgequepossuonãoestá/errado.Obasaltodascasassemtelhae/murosderuínafaladoabandonodeséculos.De/muitosanosseráetudoparecesofrer o rescaldo / de um incêndio ateado entre o mar e a escarpa / da ilha.Escombros / e uma sensível flora de naufrágio / guardam a cruz do cemitério(JORGE,1999,p.111).
Essa ausência é representada, por exemplo, a partir da repetição do conceito
“abandonada”,“abandono”.Faltaumdono,nãohápopulação,a“pequenaaldeia”está
vazia. Essa imagem é criada também a partir da relação de contrastes entre locais
planosvazioseumaimensidãoqueérepresentadapelomar.Háumincêndio“entreo
mareaescarpa/da ilha”(JORGE,1999,p.111).Essarecorrênciadosentre-lugares
tambémse fazpresentenopoema.Alémdo trechoanteriormenteapresentado,háa
ideia: “Entre o Fajã dos Cubres e a Caldeira de Santo”, ou seja, há uma lacuna, um
espaço de ausência. Outros vocábulos reforçam essa falta: “sem telhas e muros de
ruína”,“naufrágio”,“cemitério”.
Lidiane Silva (2013, p. 02) afirma que, assim como a ligação com omístico é
relevante aos estudos das construções de identidades nacionais, a relação com o
espaço físico tambémexerceumpapel fundamental.Anatureza seria inserida como
cenário ou ainda como cúmplice de fatos históricos ou pessoais na literatura. Uma
paisagemquepodeserlidacomoamediaçãoentreanaturezaeohumano.Silvaainda
propõeque“[m]uitosautoresutilizamelementosdanaturezacomoformadedialogar
comouniversoíntimoecomomundoexterior.Napoesia,porhaverumalinguagem
mais sintética, é comum que seu apontamento seja revestido de maior simbologia,
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portanto, faz-se necessário recorrer a materiais diversos para que se elabore uma
interpretaçãoacercadetaiselementos”(SILVA,2013,p.02).
Essanatureza,queémediadapelohomeme transpostanapoesia,estánãosó
presenteemJorge,comotambémnaescritadeCouto.Esseolharsobreomarnaobra
doautormoçambicanoéextremamenteíntimoepessoale,aomesmotempo,coletivo.
Épossívelperceberisso,porexemplo,nopoema“Alágrimaeobúzio(2)”,presenteno
livroVagaseLumes.
Todo o nascer é um regresso: / quem nasce apenas renasce. // Em tudo quedesponta/háumrefluirde rio / inundandoumvazio espesso,umcoágulodemar/sobumcéudegesso.//Todooparto/éumdesdobrardeasas,/ terrabrotandodeáguaincerta,/sombrasdeave/sobreamãoaberta.//Tudooquebrota/éumecodoqueaindavainascer/umavozqueemcantosedesfez.//Tudofingeaprimeiravez/Antiga,/emnós,apenasavozdomar./Ealágrimaéumbúzio,/umfiodenada/seausentandodevagar(COUTO,2014,p.22).
Há,logodeinício,umaassociaçãoreligiosaperanteavida[“quemnasceapenas
renasce”(COUTO,2014,p.22)].Ouseja,háassimumavisãoquantoaociclodavida,
emqueháareencarnação.Umavisãonãosomentedoautor,pessoal,comotambém
umaquestãoculturaldeseupaís.Umavidaqueéfeitadeciclos,derenascimentos.Por
issoumrespeitoecarinhotãograndepelosmaisnovosassimcomopelosmaisvelhos.
Afinal, sãoessesqueestãopróximosdo “início” e “fim”davidamundana, tendoum
contatomaior comos seus ancestrais.O fimnãonecessariamente édefinitivo. Pode
serapenasumnovocomeço.“Tudooquebrota/éumecodoqueaindavainascer/
uma voz que em canto se desfez” (p. 22). Essa representação do ciclo está também
presentenametáforado“eco”.Bateevolta,acaba,masnãodefatotermina.Ademais,é
possível perceber a condiçãoque essa águapossui em relação a vidahumana: ela é
necessária: “Em tudo que desponta há um refluir de rio” (p. 22). Ou ainda “terra
brotandodeáguaincerta”(p.22).
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4.ACONSTRUÇÃODAMEMÓRIA
Em um contexto pós-moderno, em que teorias reforçam a ideia de uma
construçãohistóricapautadanaconvergênciacultural,épossívelassociaraprodução
e estruturação da história entre Portugal e Moçambique, sendo transposta pelas
escritas de Jorge e Couto. Parafraseando Martin Heidegger (1954), em Building,
Dwelling, Thinking, (apud BHABHA, 1998, p. 19), uma fronteira não é o ponto onde
algotermina,mas,comoosgregosreconheceram,afronteiraéopontoapartirdoqual
algocomeçaasefazerpresente.
Poéticasque,assimcomofoicolocadoanteriormente,trabalhamcomumolhar
críticoarespeitodeumarelação imagéticadaágua.Pormaisqueestejamos falando
emcontinenteseculturasdiferentes,hámuitodeumaintersecçãoentretaisescritas.
Em nossa contemporaneidade, é complexo tratar de questões pura e simplesmente
internas, sem levar em consideração o total, isto é, não se tem como tratar da
construçãodamemória,nãosóemrelaçãoaumpaíscomoaumescritor,sem levar
emconsideraçãoasquestõesquefogemdessecenáriomaisrestrito.Reforçandooque
foidito,HomiBhabhanosdizqueo “reconhecimentoquea tradiçãooutorgaéuma
forma parcial de identificação. Ao reencenar o passado, esse introduz outras
temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da tradição. Esse processo
afasta qualquer acesso imediato a uma identidade original ou a uma tradição
‘recebida’”(BHABHA,1998,p.21).Assim,arepresentaçãodeumamemóriahistóricae
cultural nada tem de totalmente isolada; há uma possível convergência entre tais
construçõespoéticas.
Couto,emTradutordeChuvas(2011,p.33),nopoema“Dugongues”,mostraessa
relaçãodeumaconstruçãodamemóriaatravésdapráticaescrita.
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Pormaisqueàterra/noscondenemos,/nãoseapagaemnós/alembrançadaágua/dequesomosfeitos.//Sobreapeleaflordesal/emnadanosacrescenta/aooceanoquejáfomos.//Promessa/deeternoretorno,/viagemfeitasóparaganhar saudade, / apenas em nós o mar é infinito. / Para os demais seresmarinhos, / o inteiro oceano / não é mais que um pátio de infância (COUTO,2011,p.33).
Logo no início do poema, fala-se sobre essa “lembrança da água” que “não se
apaga” (COUTO, 2011, p. 33). Assim, há uma imagética da água relacionada a uma
construçãodememóriacoletiva(“nãoseapagaemnós”).Paraoeulíricodestepoema,
esse mar é “infinito”, representando ainda essa questão histórica de um local de
passagem, demudanças. É através dele que viajam, não só osmoçambicanos, como
também os portugueses. Uma questão que reconstrói essa memória, de um fato
histórico que influiu na vida dessas pessoas. Uma “viagem feita só para ganhar
saudade”(p.33),apresentaessarelaçãosocialquantoàimagéticadomar.Alémdisso,
colocaessemarrefletindonavidadetodosaquelessereshumanosquealiestavamou
estão, contrapondo-os aos animaismarinhos, como é o caso do Dugongues, que dá
nomeaopoema.
AssimcomoafirmaAlves(2008,p.2),otratamentodapaisagemcomoestrutura
significativadeinteraçãocultural,permiteaindaumareflexãodebasesociológicaem
torno do conceito de fronteiras, diversidade cultural e entrecruzamento de
perspectivas identitárias. As quais são questões pertinentes para a análise de uma
literatura oriunda de um país periférico ou semiperiférico, com uma história
colonialista ainda em revisão, em confronto permanente com a brasileira e as
africanas.
Jorgenosmostra,emSobSobreVoz,que“[d]ascoisaspróximasdosvivos/ foi
construído este lugar. / Nem sequer imaginomeus joelhos / pousados nesta terra”
(JORGE,1987,p.18).Há,assim,aconstataçãodeumainegávelrelaçãoentrepassadoe
presente. O que há atualmente nadamais é do que o fruto do que foi cultivado no
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passado.Essepresenteérepleto, também,dememórias,memóriasessasquenãose
apagamemnós.Nãohácomoesquecerquemsomos, frutode tudoaquiloque já foi
realizado, construído e vivido. Em outro poema nomesmo livro, afirma-se que “[o]
tempo é qualquer coisa / que tem a ver com água / com deus demasiado largo /
explodindo” (JORGE, 1987, p. 14). Essaquestãoda água e construçãodamemória é
assimmais uma vez apresentada na poética do autor, com a água representando a
história, a memória da construção da nação e da cultura desses indivíduos. Dessa
forma, temosuma relaçãodessemar, dessa águaque vive constante na poética dos
doisautoresaquianalisados.
5.CONSIDERAÇÕESFINAIS
Asescritasdosdoisautores,pormaisquehajadiferençasespaciaiseculturais,
carregam em si afinidades que nos fazem refletir a respeito de questões históricas
fundidasàliteratura.Viajamosporcaminhosqueessaáguanospermitiutrilhar.Nãoé
umcaminhonovoemuitomenosinédito,vistoqueoutrosautoresqueantecederamà
escritadeJorgeeCoutoutilizaramtambémdessaimagéticadaáguapara(re)construir
umahistórialigadaaessemar,apresentarpoeticamenteumamemóriaqueperpassae
mergulhanessaságuas.Háummarquerepresentanãosomenteumaimensidão,como
uma ambivalência: é início, mas também fim; é invasão e liberdade; é mistério e
descobertas.
Por mais que a poética de Fernandes Jorge não seja puramente histórica, é
complexo dissociar sua escrita quanto à formação de seu país. Ainda que Couto
trabalheumpoucomaisdoqueFernandes Jorgeesseolharhistóricoemsuasobras,
tambémnãopodemostaxá-locomosendoumautorqueserestrinjaaesseconceito.
Há,assim,autoresextremamenteengajados,quebuscamapartirdesualíricacriticar
e,decertaforma,conscientizarequefazemistodeformabelaeintensa.Autoresque
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apresentamumariquezadeolhar,umaconstruçãopoéticamuito ligadaà imagética.
Como mote centralizador, tivemos contato com a escrita de um autor europeu em
comparação a um africano. Como já dito, autores com culturas, países e trajetórias
distintas,masquetiveramcomofiocondutorummarquefezcomqueessashistórias
eessasestóriasseinterligassem.
REFERÊNCIAS
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AJAGUNÇAGEMEMALGUMASOBRASREGIONALISTAS
JAGUNÇAGEMINSOMEREGIONALISTWORKS
DenisedeFátimaLessaAlves1
RESUMO: No Regionalismo, a violenta estrutura de poder autoritário dos coronéis é descrita emromancesbrasileiroscomoFogoMorto,deJoséLinsdoRego,OTronco,deBernardoÉlis,eChapadãodo Bugre, deMário Palmério. Todos narram as relações entre governo, coronel e jagunços. Nessaperspectiva, nosso objetivo é analisar as formas de representação da jagunçagem, traçando umparalelodesseaspectonessesromances.Palavras-chave:jagunçagem;representação;regionalismo.ABSTRACT: In Regionalism, the violent structure of the authoritarian power of the colonels isdescribed inBraziliannovelssuchasFogoMortobyJoséLinsdoRego,OTroncobyBernardoÉlis,andChapadãodoBugrebyMárioPalmério.Theyallnarratetherelationshipbetweengovernment,coloneland jagunços. Inthisperspective,ourobjective istoanalyzetheformsofrepresentationofthejagunçagembydrawingaparallelofthisaspectinthesenovels.Keywords:jagunçagem;representation;regionalism.
1. INTRODUÇÃO
Quando pensamos nas diversas formas de poder que circulam entre as obras
querepresentamaLiteraturaRegionalista,umadasquemaissedestacaéofenômeno
da formação e ação de jagunços, descrito em muitos romances brasileiros. Neste
artigo, especificamente, analisaremos as obras: Fogo Morto (1943), de José Lins do
1Mestranda,UFOP.
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Rego; O Tronco (1956), de Bernardo Élis; Chapadão do Bugre (1965), de Mário
Palmério; com o objetivo de entender as relações de similaridade e diferenças na
práticadajagunçagem,incluindonessaesteira,atítulodecomparação,GrandeSertão:
Veredas(1957),deGuimarãesRosa.
Este artigo pretende traçar um paralelo comparativo entre as práticas da
jagunçagem descritas pelos três autores regionalistas, para que, em certa medida,
possa se entender como a República brasileira funcionava em seumomento inicial,
vistoquehaviaumpactopolíticoentreoligarquiascomobaseparaocontrolepolítico
esocial,exercidopelafiguradocoronel,atravésdaaçãodosjagunços.
A intensa presença da violência na história do Brasil está intimamente
articulada com formas, temas, modos de produção, circulação e recepção de obras
literárias, e demonstra como essa sociedade foi construída desde a colonização por
meios violentos, em que a destruição, a barbárie, a escravidão, o autoritarismo e o
mandonismo,constituíramaspectosintrínsecosàformaçãodoBrasil.
A narrativa da violência descrita pelos autores regionalistas é caracterizada
comoparteintegrantedoprocessoqueconstituiaexploraçãocolonial,aorganização
predatóriaimperialista,ogenocídioindígena,aescravidãoaindapresentenoiníciodo
séculoXXemalgumasregiõesbrasileiras,opatriarcado,aspenalizaçõesemutilações,
osestupros,os linchamentos,osabusosdopoder,aexclusãosocial,atruculência,os
massacres,eosdesmandosdosgovernos.Pode,também,emalgunscasos,reverberar
mecanismosdecontrolesocialeeducacionale,porsuavez,osregimesdetransmissão
emqueobraseautorespodemserexpressõesdeinteressesautoritários.Portanto,não
estáausentenessasobrasointeresseemabriradiscussãodedicadaàsrelaçõesentre
literatura, violência e política, visto quemuitos elementos sociais são considerados
decisivosparaacompreensãodetaisobrasliterárias.
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2. OJAGUNÇONALITERATURAREGIONALISTA
Em uma complexa estrutura de poder, composta por bandos de homens
armados, arregimentados para obedecer às ordens dos coronéis locais, a figura do
jagunçoaparecia comoparte imprescindívelparaqueas engrenagensdesse sistema
funcionassem. A ausência de condições de sobrevivência fazia com que o jagunço
obedecesseaquemoconcedesseemprego,proteção,moradiaealimentoaindaquea
preçosaltos.Eraherói/bandido,dois ladoscontraditóriosdeumavisãoambíguaem
meio a um cotidiano absurdamente bruto, pois, apesar da religiosidade e da
supersticiosidade, o bem e o mal, o certo e o errado, o justo e o injusto estavam
misturados na vida de quem, mesmo sem querer, precisava se colocar em um dos
lados.Nestesentido,Hobsbawm(2017)caracterizaobanditismonomeioruralcomo
umaformadeexerceraliberdadeemumasociedadenaqualpoucospodemserlivres,
easpessoasestãopresasaoduplogrilhãodosenhoredotrabalho,umreforçandoo
outro.
A vida do bandido/jagunço era uma existência complexa, visto que matava
quase sempreporvingançae/oua fimdeaumentar a famadevalente edestemido,
escorando as vítimas em tocaias e atalhos. Embora não concordasse com as ordens
quecumpria,equeo faziamtrilharumcaminhoqueconsideravaerrado,cultivavaa
esperançadeumdia,talvez,poderterumavidatranquila,apesardasmásrecordações
edosremorsospelasaçõespraticadas.
O poder dos coronéis era exercido pormeio de seus jagunços. Nosmandos e
desmandospor terras tãoencharcadasde sangueelesassumiamdamesma formao
quemoviaoBrasildenorteasul:aambiguidadedobemedomalencarnadanasmais
variadasmicrorrelaçõesinterpessoaisdasociedadedoséculoXX.
AntonioCandidoforneceumconceitopossívelparaotermojagunço.Paraele,
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[o]termojagunçoestáligadoàideiadeprestaçãodeserviço,demandanteedemandatário, presentes em disputas de famílias e lutas políticas, às ameaças debandos rivais em eleições, ao uso de meios brutais para liquidar ladrões eassassinos,assaltosdefesaserepressões.(CANDIDO,2011,p.106-107).
Especialmenteosertãoestava"infestado"degruposdecangaceirose jagunços
espalhados pelo interior, e era uma estranhapátria semdono, ignoradapelas leis e
instituições.O que restava aos sertanejos era o jugo da servidão e da violência. Era
urgente a necessidade do país de integrá-los à vida nacional, ao invés de enviar
exércitosávidosparadevorá-los,comofoinarradoemOsSertões(1902),deEuclides
daCunha,emqueosertanejoserevoltacontraaopressãodaselites,ecomprovaque
aselitesbrasileirasestavamcompletamentedissociadasdopovo.
Essa separação é amplamente percebida em todo o processo relativo à
proclamaçãoesolidificaçãodaRepública,quefoiconsideradaumavançopelosgrupos
dirigentesqueaencabeçaram,masmostroudurascontradiçõesnarealidade.Porisso,
todo o processo de construção damemória e consequente confecção do imaginário
políticosocialficouacargodestesmesmosgruposqueaidealizaram.Assim,navisão
deCarvalho(1995),emseuestudosobreaimplantaçãodaRepúblicanoBrasil,oque
ocorreufoiamarcadaausênciadapopulaçãoemtodoesseprocessodeconstrução.E
quando o povo aparece, desempenha papéis decorativos ou que legitimam os
interessesdealgumgrupoespecífico.Nessesentido,pode-seafirmarqueaRepública
não foi uma aspiração popular, pois o povo não se constituiu em agente ativo no
processo, especialmenteohomemdo interior, excluídodas “inovações”do litoral.O
sertanejo continuou sendo vítima do atraso e do descaso das autoridades devido à
distânciaexistenteentreoEstadoearealidadedopovo.
EmADialéticadaMalandragem(1970),ensaiocentralparaacríticabrasileira,
Antônio Candidomostra a generalidade e aomesmo tempodelimita, restringindo o
âmbitoespecíficoda(des)ordemnocenáriopolítico-socialbrasileiro.Descreve,entre
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vários arquétipos encontrados na obraMemórias de Sargento deMilícias (1854) de
ManuelAntôniodeAlmeida,umtipoespecíficoquedenotaatípica“malandragem”tão
relatadanasobrasregionalistas,nasquaisamovimentaçãoentreolícitoeoilícito,a
ordemeadesordem,semumaausênciadelimitesclarosentreasduasesferaseque
manifestamconcretamentenasrelaçõesdosistemadepoderdogovernoqueorbitam
entre o público e o privado, aspecto comum da vida brasileira de um modo geral.
Candidoaindadestaca:
[...] mas porque manifesta num plano mais fundo o referido jogo dialético daordemedadesordem, funcionando comocorrelativo aoque semanifestavanasociedade daquele tempo, Ordem dificilmente imposta e mantida, cercada detodososladosporumadesordemviva[...].(CANDIDO,1970,p.80).
Nesse aspecto, as relações entre o jagunço e o bandido, o coronel e o Estado,
foras da lei e defensores da lei, não se definem em sua simetria ambivalente. Na
verdade,não seopõem,masdividemumespaçoonde sepercebeuma região lusco-
fusco,quemanifestaumarelaçãoperigosaearbitráriaentreaordemeadesordeme
constitui a dialética da ordem e da desordem. Pode-se dizer que há dois polos, um
hemisfériopositivodaordemeumhemisférionegativodadesordem.Essadinâmica
pressupõeumagangorradosdoispolos.Demonstraaoscilaçãoconstanteemquenão
hácertaausênciadejuízomoralenaaceitaçãodo“homem”comoeleé,tendoemvista
as circunstâncias que o envolvem em certo poder de negociação e manifesta uma
relaçãoperigosaearbitráriaentreaordemeadesordem,entreoEstadoeoscoronéis,
acoisapública,osinteressesparticulareseogovernosemque,muitasvezes,sepossa
dizeroqueéumeoqueéoutro,porquetodoscirculamdeumparaoutrocomuma
naturalidadequelembraomododeformaçãodasgrandesfamílias,dosprestígios,das
fortunasedasreputaçõesnoBrasilonde,diferentementedassociedadesque,através
dasuaorganizaçãoedasideologiasqueasjustificam,temdificuldadedeestabelecera
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existênciaobjetivaeovalorrealdessesparesantitéticoseafrouxaoschoquesentrea
normadecondutaetornamenosrígidososconflitosdeconsciência.
Na narrativa deO Tronco, publicado em 1956, de Bernardo Élis, PedroMelo,
coroneldaregiãodeSãoJosédoDuro,personagemcentraldeumatramabaseadaem
fatoshistóricos,construiuumgrandepatrimôniopormeiodaapropriaçãodosbensde
seusdevedoreseinimigos,tudosobapressãoeaviolênciadeseusjagunços.Nocaso
do conflito denominado “o massacre do Duro”, ocorrido em 1918, entre as tropas
enviadas pelo governo estadual de Goiás e a família Melo, seus jagunços aliados
formaramumnumerosoexército:
EmArraias,umtropeirovindodaBahiacontaraqueDuroerajagunçosó.TodoopessoalvalentedasfronteirasdeGoiás,Bahia,MaranhãoePiauíestavareunidonoDuro.AliestavamAbílioAraújo,maisconhecidoporAbílioBatata,eRobertoDourado,famososcabos-de-guerraquealgunsanosantesassaltarametomaramacidadedePedroAfonso,reduzindoascasasaummontãoderuínasfumegantes;Calixto Chapadense, tão valente quanto João Dias de Boa Vista, e MiguelUmbuzeiro,ocangaceiroqueatacavarezandoasexcelências.(ÉLIS,2008,p.65).
Apesar do relato da movimentação de jagunços contratados em ocasião ao
conflito,ojagunçonanarrativadeBernardoÉliséaforça,obraçodireitoearmadodo
coronel. No romance O Tronco, esses homens apresentam-se sem voz e quase
anônimos, numa clara sinalização narrativa da sua reificação. Obedientes e
subalternosaos interessesdocoronel,dequemsãoapenasinstrumento,os jagunços
sãoobrigadosasesubmeteremàslutasecolocaremriscoasprópriasvidas,temendo
os castigos praticados pelo coronel, que avisava que o meio singular de saída do
serviçodosMelosseriaunicamenteamorte.
OúnicodiálogoentrejagunçosemtodoromanceéodeBelisárioeCasimiro,em
quepodemos observar a recusa dos vaqueiros emvoltar ao serviço da jagunçagem,
pordesejaremapenascuidardogadoeporseremvaqueirosporofício,empregados
docoronelMelo.Osvaqueiroserammantidoscomoemumcativeirodevidoàsdívidas
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que eram obrigados a contrair para manterem a subsistência, criando assim uma
nítida relação escravocrata entre patrão e empregados. O narrador de O Tronco
destaca:
—Eucánumvou.Numvounessastropeliasdocoronel.Estouaquiparacuidardo gado e não para fazer arrelias. Se eu gostasse de cangaço, estava mais osjagunçosdePernambuco [...],nãovouobedecerde jeitonenhumochamadodocoronelArtur.Bemqueelemandounomeuretiro,faloupramimassimqueeraparacompareceragrota[...].Levarcavaloerepetição[...].Essenegócioderifle,eulogopenseicomigo,épraproeza,comoàqueleataquenoCartório,emquadradeReis[...],naquelaeudesconhecia,masnãomepegammais[...]. Jeitonenhum[...].CasemirotambémtinhasidochamadoparacompareceràGrotaetinhamedodeir.—Eunãogostodebriga,compadre.Nemnumseidartironenhumnada[...].—PoiséquasegritavaBelisário.—Tuvaiémorrerquenempassarinho.Vainãomenino.Largaissopralá!—Odiaboqueagentedeve[...].—Ecomoládiz:quemdeveécativo[...]sósepagar.—Pagar, pagar!Tu tábesta, sô! Sevocênão fizer feitooNorato, tunumpaganuncamais.Quementraparaoserviçodeles,quandosaiéparaacidadedospésjuntos.(ÉLIS,2008,p.44-45).
Dessa forma, Cassimiro e Belisário encontram-se como escravos em cativeiro
dos Melos sem possibilidade de mudança de vida, sendo obrigados a praticarem
crimesparasatisfazeremopatrão,apesardenãodesejarempermanecernessaprática.
Contrastando comesses jagunços locais submissos e amedrontados, aparecem
os jagunços aliados do coronel para o ajudarem no embate. Esses aliados eram
conhecidospelousodeextremaviolênciae impiedade,e foramosquesaquearama
cidadedePedroAfonso,quefoiocupadaporjagunçosecangaceirosvindosdaBahia,
Maranhão e Piauí, chefiados por Abílio Araújo (Abílio Batata). Após três dias dessa
ocupação,PedroAfonsofoitransformadaemummontederuínasfumegantes.
OconflitochamadodeoMassacredoDuroaconteceucomachegadadastropas
do governo, que já eram esperadas na Vila de São José do Duro, local que foi
transformadoemumquartelgeneral,oumesmoumapraçadeguerra.Obatalhãoda
polícia,mesmocomarmasdanificadasemuniçãovelha,marchoudurantemesesaté
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chegaraolocal.Paraoembate,juntaram-seosjagunçosdeArturMelo,filhodePedro,
eosqueforamcontratados,AbílioBatata,RobertoDorado,entreoutros,comoaliados
oriundosdaBahiaedoPiauí,estadosvizinhosdeGoiás.
Ajagunçagemlocal,compostaporhomenssimples,boiadeiroseagricultoresem
suamaioria,foimovidapelasameaçasdocoronelquedesejavaorestabelecimentoda
ordem das coisas. Para isso, lutariam por uma causa que não era própria,mas dos
patrões.Poroutrolado,obandodeAbílioBatataestavadispostoamatareamorrer
paraqueo inimigoemcomumfosseexterminado,porémteriaumaboarecompensa
pelo serviço prestado. A narrativa afirma que foi um grandemassacre, centenas de
soldadosede jagunços forammortos.Oconflitodurouanos,permanecendo,mesmo
depoisdofimdabatalha,ossaquesdebandidosnaspropriedadeslocaiseabuscapor
fugitivos.
Já no relato de Fogo Morto (1978 [1943]), de José Lins do Rego, o líder dos
jagunços, Antônio Silvino, em uma clara manifestação de indignação contra os
desmandosdaselites locais, soltaospresos, cortaos fiosdos telégrafos, importante
meiodecomunicaçãodaépoca,edistribuiosbensdoprefeitoaospobresdacidade.A
narrativa afirma que, como ele não estava na cidade, sua esposa foi coagida pelo
capitãoaentregaraschavesdocofre,masassegurou-lhequeestasestavamempoder
domarido:“Fizesseeleoquebemquisesse.Eficounasaladevisita,tranquila,muda,
enquantooshomensmexiamnosquartos, furavamoscolchõesatrásdodinheirodo
velhoNapoleão.”(REGO,1978,p.205).
O Capitão Antônio, irritado por não poder abrir o cofre que estava na sala,
resolveudescerparaacasadocomérciodoprefeito,abriuasportaslargasemandou
queospobrescuriosos,queobservavamacenadarua,entrassemparaganhar tudo
que tinhano estabelecimento pelasmãos do capitão: peças de fazenda, carretéis de
linhas, chapéus,mantas de carne, sacos de farinha, latas de querosene, entre outras
mercadorias.Eaindaafirmaàpopulação:
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Podem encher a barriga. Este ladrão que fugiu, me mandou denunciar aogoverno. Agora estou dando um ensino a este cachorro. Em seguida mandousacudir os caixões de níqueis na rua. O povo caiu em cima das moedas comogalinhaemmilhodeterreiro.(REGO,1978,p.206).
O bando do capitão Antônio Silvino demonstra a revolta com as oligarquias
locaisqueodenunciaramaogovernoestadual, tomandoosbensdo ricoprefeito e
comercianteda cidadeparadar aospobres, espoliadospelospoderosos.MestreZé
Amaro, que nasceu nas terras do Coronel Lula, dono do Engenho Santa Fé, em
decadência, representa bem o povo ordeiro, trabalhador e esquecido do Nordeste,
que, percebendo a exploração, alia-se a Antônio Silvino e procura ajudá-lo no que
fossepossível.Porisso,quandodescoberto,foiexpulsodaquelasterraspelocoronel
Lula.O jagunçoSilvinoeraconsideradoumheróipelopovoedefensordospobres,
mastambémeraimplacávelcomaquelesqueconsideravaseusinimigos.
Neste sentido, pode-se associar Antonio Silvino ao conceito de bandido social
propostoporHobsbawm(2017),umavezqueesseshomenseramosexcluídosrurais
queolatifundiárioeoEstadoencaravamcomocriminosos,masque:
continuam a fazer parte da sociedade camponesa, que os considera heróis,campeões, vingadores, pessoas que lutam por justiça, talvez até mesmo vistoscomolíderesdalibertaçãoe,sempre,comohomensaseremadmirados,ajudadosesustentados.(HOBSBAWM,2017,p.36).
EmOTronco,osjagunçosestavamfixadosnaterracomovaqueiros,agricultores,
sitiantesqueerameternosdevedoresdocoronelPedro,aquemobedeciam.EmFogo
Morto, Antônio Silvino era reconhecido como aquele quedefendia os interesses dos
maisfracos,especialmentepormuitoscolaboradores,comomestreAmaro,quesupria
atropacomalimentos,remédios,roupaseinformações.Osataqueseramanunciadose
aguardados pelos defensores, que viam o cangaceiro Capitão Silvino como uma
espéciedeRobinHooddosertão,ajustiçaqueogovernoarbitrárionãofazia.
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EmChapadãodoBugre(1965),deMárioPalmério,temosumahistóriadelutas
entrehomensdeumarudezaquaseprimitiva.JosédeArimatéiaéorapazsimples,de
boaíndoleetrabalhador,cheiodeprojetosdevida,quesetransformaemummatador
frio, solitário e silencioso, com um desejo de vingança inextinguível. O narrador do
romanceexplicaqueofatodeocoronellocalnãoterdadoapoiopolíticoaocandidato
vencedor, ou ter demonstrado pouco empenho na campanha eleitoral, redundaria
numa perseguição política. Nessa perseguição, todo pessoal indicado pelo dirigente
local seria tirado do cargo, visto que uma das atribuições do potentado local era
indicarosfuncionáriospúblicosmunicipais.Nessecontexto,todobenefíciofinanceiro
era suspenso, inclusive os favorecimentos advindos dos conchavos políticos e
partidários, podendo acontecer, como ocorreu no romance acima citado e no de
BernardoÉlis,umaintervençãoseveracomoenviodetropasmilitaresparaaregião.
SobreissoCandidodestacaque
ChapadãodoBugrecomeçapelahistóriadeumdestinoindividualparasealargarpoucoapouco,emdecorrênciadasvicissitudesqueoenvolvemeseenquadram,num panorama bem traçado do coronelismomineiro sob as suas formasmaisdrásticas,asquesuscitam,organizamedisciplinamocrimecomoinstrumentodedominaçãopolítica.(CANDIDO,2011,p.109).
OcernedanarrativaseconcentranopersonagemJosédeArimatéia,umdentista
prático,queétraídopelanoivacomofilhodopatrãoeprotetor.Arimatéia,revoltado
com a traição, o mata, foge e se torna jagunço do coronel Americão Barbosa. Os
capangasdocoronelTonhoInácio,paidomorto,seespalhamportodaparteàprocura
dorapazeacabamassassinandoopaiadotivode JosédeArimatéia.Umcrimepuxa
outros crimes e, com isso, são enviados para Santana do Boqueirão um delegado
truculento, policiais e um juiz corrupto, interessado na captura emorte do dentista
para uma missão de extermínio. Essa ação do governo se explica pelo
descontentamentocomocoronelAmericãoBarbosa,devidoaoresultadodaseleições,
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como fica claro no trecho a seguir em que Cloudulfo explica aos chefes locais que,
ainda que o candidato vencedor das últimas eleições tivesse ganhado na região
sudoestedeMinas,aquantidadedevotosobtidospoderiaindicarpoucoempenhopor
partedosaliados:“[...]lhefaleiCoronel,lhefalei...agora,achamquetraímos...quenão
fizemos empenho nenhum, que deixamos o Coronel Eusébio, mas o Dr. Filigônio
trabalharemlivres.”(PALMÉRIO,1965,p.158).
Atraídos pelo convite de uma reunião oficial para esclarecimentos com o
delegado, o sargento, alguns policiais, os líderes e o coronel Americão foram
assassinados sumariamente dentro da sala de audiências, no fórum da cidade. De
todososqueforamconvidadosparaareunião,umdeleschegouatrasadoe,vendoo
movimentosuspeitoeumalinhadesangueescorrerpordebaixodaporta,conseguiu
fugir,pulandoajanela.SeuCloudulfofoipresoetorturadoparafornecerosnomesque
pudesseminteressaràsautoridades.Eleforaescolhidoporseromaisbeminformado
de todososque trabalhavamparao coronel, alémdesaberoparadeirode todosos
jagunços,capatazeseguarda-costas,criminososprotegidospelocoronelAmericão.O
nomedeJosédeArimatéia,quegostavadeagirsozinho,eraoprincipaldentretodos.
AntonioCandidoressaltaque
[a]pesar da narrativa movimentar em torno do drama individual, o contextosocial de Santana do Boqueirão, nome possivelmente fictício de algumalocalidadedoTriânguloMineiro,elaapresentaoscostumessertanejoseapolíticadaviolênciajustificadapelaviolência,numaordemsocialtorcida,tendoporbasea imposição e a exploração do trabalho criminoso do jagunço individual.(CANDIDO,2011,p.112).
Essa característica de Chapadão do Bugre ressalta um princípio necessário
responsávelpelofuncionamentodegruposfamiliaresesuasclientelasnasinstituições
de poder, que se desmembram e organizam-se demodo que, do aspecto individual,
passa a uma ordem em que todos se voltam contra todos. O governo, com seus
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representantes, torna-se o tribunal do crime, conseguindo informações através de
torturaeosnomesdospossíveiscriminosos,assimconsideradospelogoverno,para
então exercer julgamentos, sem direito à defesa, condenando àmorte e executando
penas.Corroborandoessaideia,Candidoressalta:
A segunda reação é do oficial Evaristo Rosa, que, possuído pelo sentido quaseesportivodocaçador,cujafinalidadeéadestruiçãodacaça,terminaelevandoasua brutalidade ao nível dos princípios e nutrindo uma espécie de revolta dehomem justo contra os burladores da lei. No seu espírito bronco, trata-se demostrarquempodemais:mascomoajustificativadosseusatoséainfraçãodoadversário,elemisturaselvageriaesensodejustiça,comumfervorqueopoderálevaradesobedeceraossuperiorescivis.(CANDIDO,2011,p.112).
O jovem trabalhador foi transformado em jagunço pelas circunstâncias que o
envolveram.Aprincípio, sementenderporque suavida teveaquela reviravolta, ele
pode,aospoucos,refletircommaiscuidadoecompreenderque,atéocasamentocom
Maria do Carmo, que o antigo patrão propusera, acompanhado demuitas dádivas e
promessas,faziapartedeumplanoparalivrarofilho,Inacinho,deassumirecriaro
filho que a moça esperava. O patrão viu no novo morador da fazenda, um rapaz
corretoecumpridordeseusdeveres,umasoluçãoparaosproblemascausadospelo
filho. O desfecho da história se deu com amorte de Arimatéia em uma emboscada
realizadapelodelegadoEvaristoRosaesuatropa.
NellyAlmeida (1985) asseveraqueMárioPalmériodestacao tema comouma
grandeforçamotrizqueodirecionaparaarealidade,seprendeaolocal,aotempoeàs
figuras,buscandoarealidadequeobjetivaanarração.Dessaforma,entende-sequese
destacam na obra os traços psicológicos de Arimatéia, marcando-lhes o
comportamento,ocaráter,apontandoassituaçõesdequeparticipoueàsquaisreagiu.
Para efeito de comparação, citamos Guimarães Rosa (1908-1967), outro
romancista mineiro que resgata e reaviva o jagunço, na perspectiva de sua
humanidade, seusmedos, contradições, conflitos, angústias e crises existenciais, nos
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mostrando um jagunço vivo e latente, envolvido por um amor “impossível”, e que,
apesardeviveremguerra,desejavaterumavidatranquilanafazendaqueherdaria,
aoladodoamortranquiloecertodeOtacília.
Noromance,queécompostoporelementoscomoosertão,asdisputasdepoder,
as guerras entre bandos, a jagunçagem, o Diabo, Diadorim, a representação da
sociedade e a invenção de uma linguagem, Riobaldo é o chefe do bando que
enfrentariaHermógeneseseuscapangas.Eleeraaleieninguémousavacontestarpela
ausênciadaordemedapresençamoderadoradogoverno.Assim, ele impunha suas
ordens,comoserepresentasseoprópriogoverno.Sobreessepensamento,WilliBolle
afirma,emOBrasilJagunço;RetóricaePoética(2007),que“[a]encenaçãodebandode
criminososatuandonaregiãocentraldoBrasil,GuimarãesRosanãoretrataumpoder
paralelo,masopoder.GrandeSertão:Veredaséumretratoalegóricodopaís.”(BOLLE,
2007,p.144-145).
SobreGrandeSertão:Veredas,AntônioCandidodeclara:
No entanto, todos nós somos Riobaldo, que transcende o cunho particular dodocumento para encarnar os problemas comuns da nossa humanidade, numsertãoqueétambémonossoespaçodevida.Se“sertãoéomundo”,comodizeleacertaalturado livro,nãoémenoscertoqueo jagunçosomosnós. (CANDIDO,2011,p.117).
Essaafirmaçãotãocontundenteserefereaopensamentoqueocríticoapresenta
aoanalisaraformacomqueGuimarãesRosatrataaquestãodojagunço,vistoquefoi
umamaneiradiferentedasoutrasobrasbrasileiraserepresentaosproblemascomuns
da humanidade, assumindo o rosto de todos nós e conferindo a Riobaldo a
possibilidadedeexpressarsentimentosinerentesaossereshumanos,massilenciados
nosjagunçosdeoutrasnarrativas.
Riobaldo,fazendeiro,ex-jagunço,poetaeretórico,éonarrador-personagemque
apresentaorelatodesuavidaemumaposiçãodequempodecontarahistóriacomo
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distanciamentodotempo,oumelhor,dequematravessouotempoeahistória,como
seavisãodopassadojustificasseopresente,emumdiálogocomalguémaquemelese
refere como “senhor” ou “moço”, possivelmente o leitor, alguém interessado na
históriaequedesconheceosertãoeassuasleis.
ParaGustavoArnt(2013),oautorressaltaqueo“futurochefedobandocomeça
abuscarumnovocomeçoparasuavida,umcomeçoquepudessegovernarenãoser
governado,umcomeçoquefosse,emsuma,proprietárioenãopropriedade.”(ARNT,
2013,p.192).EsseéRiobaldoqueencontramosnaaberturadoromance,ofazendeiro.
Emalgunsmomentosdanarrativa,Riobaldodemonstraodesejodeterumavida
tranquila em um lugar belo e ao lado da futura esposa, longe da vida violenta que
levava.Oquesevêéaconcretizaçãodesseanseioapósaextinçãodajagunçagemdo
sertão pelas mãos do grupo do futuro fazendeiro, nem que para isso o jagunço
precisasserealizarumpactocomodiabo,tãocomumnoimagináriopopular.Opacto
dissipariaapossibilidadedepermanecerreduzidoàcondiçãodejagunçosubserviente
e elevar-se em honra em relação aos demais, além de trazer coragem, esperteza,
inteligência e capacidade para governar o bando e vencer a batalha final contra
Hermógenes.Eleofaz,porém,nãotemcertezaquantoàadesãododiabo.Comoafirma
Candido,“[o]pactodeixaverdemaneiramaisclaraoenxertodeumjagunçosimbólico
nojagunçocomum,easuafunçãotransformadoraenítidanocuidadocomqueoautor
baralhabruscamenteascondiçõesnormaisdoespaço.”(CANDIDO,2011,p.120).
Esse ato representaria um verdadeiro mergulho em sua insegurança e medo,
paraentãocaptar,nomaisprofundodeseuser,asegurançaqueprecisavaparaagir
como um verdadeiro líder. O Robaldo, indeciso e hesitante, passaria a agressivo e
inconsequente. “Agora, era que eume espirava só para arrelias e inconveniências.”
(ROSA, 2006, p. 427). A mudança de atitude foi notória a todos os companheiros,
inclusiveparaDiadorimqueesboçoucertodescontentamentoemalgunsmomentose
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emoutrospercebeuqueaquelasatitudespoderiam levarobandoàvitória contrao
piordetodososinimigos,Hermógenes.Nessesentido,Candidoindicaque
[o]segundotraçodojagunçocomomododeseréaalteraçãodocomportamentodeRiobaldodepoisdopacto.Sóentãopoderealizaroseualvodevingador,masdemaneiraestranha,poisnãoagediretamente,esóesboçaatosnãocumpridos,ordena sem fazer ele próprio e, afinal, apenas presencia. (CANDIDO, 2011, p.120).
Riobaldodeixaclaroquemoderavaaviolênciaporpartedeseuslideradospor
meio de regras claras, como acontecera no caso do sequestro da mulher de
Hermógenespelobando:elaerabemtratadaporordemdochefe,queprocuravaagir
com civilidade, como é descrito nesse trecho: “[e]u tinha era receio de que ela
adoecesse. Dei ordens de bom tratamento. Tanto a tanto, decidi disposto que não
entrasse com bruteza nos povoados, nem amolasse ninguém, sem razoável
necessidade.”(ROSA,2006,p.522).Ogrupoagoratratavaeeratratadocomcivilidade
pelos fazendeiros locais, ganhava presentes e obtinha benefícios. E, quando entrava
nas casas, nem o estupro, nem a violência desmedida eram utilizados ou mesmo
permitidos,paraquepudesseseevidenciarocontroleeoamadurecimentodo líder,
queentravaesaíademonstrandorespeitoatodos.Essasatitudesratificavamatroca
defavoreseinteressesmútuos.Nessesentido,MarcelMauss(2003)afirmaque
[a]s dádivas circulam [...] com a certeza de que serão retribuídas, tendo comogarantiaavirtudedacoisaqueédada...“tempo”énecessárioparaexecutartodaprestação. A noção de termo está, portanto, logicamente implicada quando setrata de retribuir visitas, contrair casamentos, alianças, estabelecer paz,participar de jogos e combates regulamentados, celebrar festas alternativas,retribuir serviços rituais e de honra, “manifestar respeitos” recíprocos, coisasessas que se trocam juntamente com coisas cada vez mais numerosas e maisricas.(MAUSS,2003,p.236-237).
O jagunçoseguesuanarrativaechegaaopontoemquesentequeoconfronto
definitivo com Hermógenes está próximo. Enfim chega o momento do embate.
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Riobaldovisualiza,doaltodosobradodaruaprincipal,olugaremqueseushomense
oshomensdeHermógenesguerreiam.AssisteàmortedeHermógenes,porDiadorim,
quetambéméferidoemortopelooponente.
Na lavação do corpo de Diadorim, colega do bando e amor “impossível” do
jagunço, descobre-se que ele, o homemde confiança do grupo, era na verdade uma
mulher, a única filha de JocaRamiro, que jurou vingá-lo e o fez,matandoo jagunço
responsávelpelamortedopai.Emboravencedordaguerra, caidoenteedeclara ter
acabado ali sua vida de jagunço. A decisão de abandonar a jagunçagem em um
momentodeglóriadobandotornapossíveladúvidasobreseRiobaldosentiu-seum
guerreirovitorioso,ouseconsiderou-selivredeumfardopesadoqueavidaviolenta
dejagunçolheatribuía.Tratava-sedeumamissãoasercumprida,e,aocontráriode
outros jagunços citados neste trabalho que viviam na prática da selvageria e
brutalidadedesmedida,mostravaquenem todosos jagunçoseramregidosporuma
vidaseméticaeausentedepropósitos.
3. CONSIDERAÇÕESFINAIS
Arnt (2013) afirma que seria precipitado afirmar que o romance de Rosa
encerrariaosistemajagunçoeapolíticaoligárquicadaRepúblicaVelha.Talafirmação
poderia, em parte, ser verdadeira, uma vez que, claramente, a ordem social e
econômica estruturada em torno do latifúndio foi de certa forma alterada,mas não
superada.Noentanto,quantoaessesistema,anarrativarosianapressupõeemcerto
sentidoumaespéciededialéticadiferente, jáqueo jagunço, edepois chefe jagunço,
Riobaldo, a despeito de sua ética “quase” cavalheiresca, pervertendo, portanto, o
modelo canônico de jagunço de “pau mandado do coronel”, torna-se ele mesmo
proprietárioelatifundiário,quandoherdaaSãoGregóriodopadrinho.
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Nãopodemosafirmarqueasobrasregionalistaspropiciaramumnovohorizonte
aopanoramadointeriordoBrasileseusproblemasnasociedade,vistoquenãohouve
mudançasradicais,porémprocessouemumlongoperíodoecontinuaaprocessar-se
ainda hoje, lenta e gradativamente. Está claro que ainda há um vasto campo de
manobraspara fugirdasoluçãonecessáriaeefetivaatravésdeumareformaagrária
queliquidecomolatifúndiosemifeudale,consequentemente,essaestruturadepoder.
Nestecenáriocomplexo,aliteraturaexerceueaindaexerceopapeldetrazeràtonaos
problemasdasociedade,mantendo-secomoumverdadeiroinstrumentodedenúncia
damarginalização,daviolência edamisériadas camadasmaispobresda sociedade
que apresenta o Brasil, unificando e revelando um país desconhecido para muitos
brasileiros.
REFERÊNCIAS
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SILVEIRA,A.H.AspectosdaNarração... 132
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 1902. Disponível em:http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000153.pdf.Acessoem17fev.2021.ÉLIS,Bernardo.OTronco.RiodeJaneiro:JoséOlympio,2008[1956].HOBSBAWM,Eric.Bandidos.Trad.DonaldsonM.Garschagen.5ªed.RiodeJaneiro/SãoPaulo.PazeTerra,2017.MAUSS,Marcel.SociologiaeAntropologia.Trad.PauloNeves.SãoPaulo:CosacNaify,2003.PALMÉRIO,Mário.ChapadãodoBugre.RiodeJaneiro:JoséOlympio,1965.REGO,JoséLinsdo.FogoMorto.RiodeJaneiro:JoséOlympio,1978[1943].ROSA,JoãoGuimarães.GrandeSertão:Veredas.RiodeJaneiro:NovaFronteira,2006.Recebidoem:21/01/2021Aceitoem:24/03/2021
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REPENSARHERÓIS:AREPRESENTAÇÃODASDISPUTASPELAPOSSEDE
TERRASNOPARANÁEMODRAMADAFAZENDAFORTALEZA(1941),DE
DAVIDCARNEIRO
RETHINKINGHEROES:THEREPRESENTATIONOFDISPUTESOVER
PARANA’SLANDINODRAMADAFAZENDAFORTALEZA(1941),BYDAVID
CARNEIRO1
JorgeAntonioBerndt2
ThianaNunesCella3
RESUMO:EsteartigoapresentaumaanáliseatualizadadoromancehistóricotradicionalOdramadaFazendaFortaleza(1941),deDavidCarneiro.Consideradooprimeiroromancehistóricoparanaense,apresenta como plano de fundo os controversos episódios desencadeados pela personagem deextraçãohistóricaJoséFélix,famosoeviolentosesmeiroquedominouabaciadoTibaginofinaldoséculo XIX. A narrativa, ainda permeada pelo viés positivista eurocêntrico, configura-se como umespaço emque o passado truculento contra as populações indígenas nos instiga à reflexão críticasobreahistóriatradicional.Palavras-chave:colonizaçãoparanaense;históriadoParaná;romancehistóricotradicional.ABSTRACT:ThisarticlepresentsanupdatedanalysisofthetraditionalhistoricalnovelOdramadaFazenda Fortaleza (1941), by David Carneiro. Regarded as the first Paraná’s historical novel, itpresents the controversial episodes triggered by the historical extraction character José Félix,famous and violent sesmeiro who dominated the Basin of Tibagi at the late 19th century, asbackground.Thenarrative,permeatedbytheEurocentricpositivistbias,configuresaspaceinwhichthe truculent past against indigenous populations instigates a critical reflection on traditionalhistory.Keywords:historyofParaná;Paraná’scolonization;traditionalhistoricalnovel.
1EsteartigoéresultadoparcialdeteseemdesenvolvimentonaUNIOESTE/CNPq.2Mestrando,UNIOESTE.3Doutoranda,IFPR/UNIOESTE.
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BERNDT,J.A.;CELLA,T.N..Repensarheróis... 134
1. INTRODUÇÃO
Repensaropassado— e suasrepresentaçõesdiscursivas— temsidoumadas
práticas constantes da humanidade, seja ela realizada de forma saudosista, seja de
modo questionador, ou ainda em busca de repensar e melhor compreender o
presente. Nesse sentido, tanto a historiografia tradicional quanto as produções
literárias— em especial as narrativas híbridas de história e ficção— têm servido
comofontedeinformaçõesesolofértilàsproblematizaçõesdeeventospretéritos.
Frequentemente,essasnarrativas—sejamelashistoriográficasouliterárias—
apresentam os acontecimentos desde uma visada eurocêntrica, colonizadora e
(pseudo)burguesa. No espaço sociocultural latino-americano, essa tendência foi
replicadapelaselitesindependentistascriollas,neomonarquistaseseusdescendentes
que, no intuito de avalizar o status quo estabelecido, perpetraram as imagens
ficcionais e historiográficas provenientes dametrópole, as quais eram concebidas a
partir de posturas positivistas, centradas na ideia de progresso e na civilização
propiciada pelo homem branco. Em suas narrativas, essa postura causou o
alienamento ou o apagamento de sujeitos marginalizados e excluídos durante o
processo de conquista e dominação do continente, tal como os grupos autóctones
brasileiros.
Com a assinatura da Lei Imperial de número 704, que declarou o
desmembramentodoParanáemrelaçãoàSãoPaulo,encetou-seumprocessoanálogo
ao do continente: por vias oficializadas ou não, romancistas, poetas, historiadores e
jornalistas conceberam um movimento de construção identitária do Estado —
conhecido comomovimento Paranista. Como reflexo, uma imagem da trajetória do
estado é estabelecida, impregnada do sentido de progresso e modernização pela
ciência e condizente aos seus próprios princípios econômicos, sociais, políticos,
étnicos,eassimpordiante.Emtalcenário,autorescomoDavidCarneiro(1904–1990)
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deramespaço,emsuasnarrativashíbridas,àstemáticasdafauna,dafloraedahistória
do território, selecionando certos elementos em detrimento de outros, de modo a
narrativizaros“grandesacontecimentos”dapossedaterradoEstado.
É a partir desse panorama que propomos a análise do primeiro romance
históricoparanaense,OdramadaFazendaFortaleza,deDavidCarneiro,publicadoem
1941, com o intuito de, ao analisarmos sua composição ficcional, os deslindes
históricos,as circunscrições ideológicaseasproblemáticasdesseperíodo,possamos
favoreceracompreensãoeaproblematizaçãodoprocessodecolonizaçãoportuguesa
nointeriordoParaná.
Dessamaneira, buscamospropiciar a valorizaçãoda literaturaparanaense eo
reconhecimento da historiografia do estado, além de oferecer uma perspectiva de
leituraprovocadoradeelaboraçõescoerentessobrenossacompreensão individuale
coletiva do passado, bem como fortalecer os estudos voltados à potencialidade das
releiturasdahistóriapelaficçãocomoumarotacondutoraàdescolonização.
2. DISPUTAS PELA POSSE DA TERRA NO PARANÁ EM O DRAMA DA FAZENDA
FORTALEZA(1941),DEDAVIDCARNEIRO
Opassadoparanaenseépermeadoporepisódioscontroversoseviolentos,dos
quaisseenumeramosdiversosconflitosentreapopulaçãonativaeosbandeirantes
ou sesmeiros de terras que dominaram o território do estado até os anos finais do
séculoXIX.ComodesmembramentodaprovínciadoParaná, assinadaem1853por
DomPedroII,eaposteriorProclamaçãodaRepública,surgiramdiversosmovimentos,
autônomosounão, comoo simbolismoeoparanismo,quebuscaramconceberuma
identidadeculturaldo,agora,estadodoParaná,eaproximá-lodeumidealcivilizatório
e industrial. Nesse movimento, muitos intelectuais, sociólogos e historiadores se
evidenciaram,dentreelesestáDavidCarneiro.
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DavidAntonio da Silva Carneiro (1904–1990) foi um importante fundador da
historiografia paranaense. Descendente de família renomada, filho de coronel e
industrial da erva-mate, ele se destacou como historiador, romancista, poeta,
economista e engenheiro positivista. Escreveudiversos textos sobre a historiografia
doParaná,dentreelesOParanánaGuerradoParaguai (1941),OParanánahistória
militar do Brasil (1942) eO Paraná e a Revolução Federalista (1944), entre outros.
Também constam, entre seus textos não historiográficos, biografias, poemas,
memórias e as narrativas ficcionais Bárbara Heliodora (1945), Veralinda (1948) e
RastrosdeSangue(1971)4.
Representativodaprimeira fasedasnarrativashíbridasdehistória e ficção,O
dramadaFazendaFortaleza (1941)éoprimeiro romancehistóricoparanaenseque
encontramos até o momento. Após essa obra inaugural, David Carneiro publicou,
ainda, outras narrativas híbridas de história e ficção, tal como Rastros de Sangue
(1975), romance histórico tradicional que apresenta as disputas da Revolução
Federalista (1893–1895) como principal motriz da trama ficcional. Há, todavia,
especulaçõesdeoutrosromancesdeextraçãohistóricapublicadospeloautor,mas,até
omomento,nãofoipossívellocalizá-losparaumaclassificaçãoassertiva.
NaprimeiraediçãodeOdramadaFazendaFortaleza(1941),hátrêsparatextos
quecompõemofragmentoinicialdolivro:opanegíricoredigidoporDicesarPlaisant
aoautor,oprefáciodoescritorea introduçãodanarrativa.Noprefáciodoescritor,
após expor as razões biográficas e histórico-políticas que o levaram à escrita do
romance — mesmo sendo “mais como historiador do que como romancista”
(CARNEIRO, 1941, p. 08)—, o autor descreve as características que, segundo a sua
4NadissertaçãoOPercursoIntelectualdeumaPersonalidadeCuritibana:DavidCarneiro,defendidaem 2012, Daiane Vaiz Machado traça a trajetória intelectual de David Carneiro, investiga suanotoriedade e lista 89 obras publicadas de sua autoria, além de outras publicações em revistas,boletins e periódicos. Cf.: MACHADO, Daiane Vaiz. O percurso intelectual de uma personalidadecuritibana: David Carneiro. 2012. 167 f. Dissertação (Mestrado em História)— Setor de CiênciasHumanas,LetraseArtes,UniversidadeFederaldoParaná.Curitiba,2012.
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perspectiva, definiriam o romance histórico e, em um segundo lugar, expõe o seu
projetode figurar o casododramadaFazendaFortaleza, já relatado anteriormente
porAugustedeSaintHilaire (1779–1853),botânicoenaturalista francêsqueesteve
noestadoem1820:
Noromancehistórico,VERDADEEFANTASIAdevemestaremperfeitoequilíbrio,efoioqueprocureiestabelecernadescriçãodestedramasemsabersioconseguicomoesperava.[...]Verdadeiros,aqui,sãooenredo,sãoospersonagens,tantoosprincipaisquantoossecundáriose,bemassim,apsicologiadosatoresdessavidapassada, que foi vivida nos Campos Gerais do Paraná [...]. Imaginados são osvazios preenchidos da forma como fiz, subordinando-me, entretanto, aoscostumes da região, às tradições, colhidas no lugar, em diferentes épocas.(CARNEIRO,1941,p.08).5
Comopodemosabstrairdoexcerto,maisdoqueumainstânciacapazdeintegrar
osdiscursosdeextraçãohistoriográficaeficcionaldemaneirapolissêmica,oromance
históricoé,paraoautor,aharmoniadaverdadeobjetivamentetangíveledojogode
imagenscriadasapartirdocampoda“irrealidade”.Consequentemente,oseuprojeto
setornaumaestruturaestanqueemqueseencontram,nasentrelinhas,asnoçõesde
veracidade—quedevesercomprovadapelohistoriador—edeficcionalidade,cujas
nuancessãoimpostasporCarneiro(1941).
Nessesentido,destacamosqueanoçãodeverdadehistórica,apresentadapelo
autor,éatualmenteentendidacomopassíveldedeslocamentos,àmedidaemquese
modificajuntoàsperspectivasideológicas,lócusdiscursivo,momentohistórico.Além
disso, nossa intenção aqui não é distinguir o factual do ficcional, mas sim verificar
comoajunçãodessesdiscursosécapazdeproporcionarumanovaleituradopassado
ecolaboraremsuacompreensão,umavezque
5 Por incluirmos em nossas análises textos antigos, muitas vezes com linguagem arcaica,frequentementeháexcertoscomvocábulosemdesusooudesatualizados.Pornãoconsiderarmososmesmoscomoerrosortográficos,assimcomopelograndevolumedetermosobsoletos,optamospornãoutilizaratradicionalexpressãosic,masesclarecemosquetodasascitaçõesseguemfielmenteostextosoriginais.
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[a]verdadedahistóriasempremantémumladoescuro,nãoindagado.Aficção,suspendendoaindagaçãodaverdade,seisentadementir.Masnãosuspendesuaindagação da verdade. Mas a verdade agora não se pode entender como“concordância”.Aficçãoprocuraaverdadedemodooblíquo,i.e.,semrespeitaroqueparaohistoriadorsedistinguecomoclaroouescuro(LIMA,2006,p.156).
Com o objetivo de seguir os preceitos de uma história documentalmente
comprovada, cujas lacunas são preenchidas ficcionalmente, a narrativa é construída
por Carneiro (1941) com base na retomada de um cientificismo de teor
fundamentalmente colonial e positivista. Essa é uma característica própria dos
romanceshistóricosdaprimeirafaseestipuladaporGilmeiFranciscoFleck(2017),a
fase acrítica, em que são conservados as perspectivas e preceitos eurocêntricos
coloniais.
De acordo com Fleck (2017), a trajetória das produções literárias híbridas de
história e ficção pode ser dividida em três grandes fases: a primeira é a acrítica,
constituídapelasmodalidadesclássicaetradicional—nasquaisa ficçãosecoaduna
ao discurso historiográfico demaneira laudatória; a segunda émarcada pela crítica
desconstrucionista, formada pelo conjunto dos novos romances históricos latino-
americanos e a metaficção historiográfica — extremamente críticos e
experimentalistas; e, finalmente, a terceira fase, a críticamediadora, é representada
pelamodalidadedoromancehistóricocontemporâneodemediação—caracterizada
porumaconciliaçãoentreasduasfasesanteriores.
Cabe aqui assinalarmos que os exemplares da primeira fase são reconhecidos
por corroborarem com o discurso historiográfico hegemônico euro-branco-
falocêntrico. A modalidade romance histórico scottiano é estabelecida, como a
nomenclaturaprediz,apartirdosromancesdeWalterScott,aindanoiníciodoséculo
XIX,osquaisestabelecemosparadigmasbasilaresdaquiloquesetornariaaprimeira
modalidade do romance histórico: a narrativa apresenta ação em um passado
histórico muito anterior ao presente do escritor, no qual ocorre a inserção de um
relacionamento amoroso problemático na trama fictícia, cujos percalços se
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desenvolvem em uma atmosfera que integra eventos passados oficialmente
registradoseaçõesdepersonagenshistóricasmencionadasem fonteshistóricas.Ou
seja, o tempo, o espaço e a atmosfera dessas narrativas ficcionais são extraídos do
universo historiográfico tradicional e utilizados pela ficção, sem alterações
substanciais nas ações, nos seus agentes, nas causas e consequências, apontadas
anteriormentepelodiscursohistórico.Nessamodalidade, todosesseselementossão
pano de fundo para as ações inventivas em torno da relação amorosa dos
protagonistaspuramenteficcionaisqueocupamoprimeiroplanodadiegese6.
Jáparaamodalidadetradicionaldogênero,conformeFleck(2017),essaúltima
característicaédeterminante,poisnela“osfatoshistóricosnãomaisconstituem‘pano
defundo’,massãoelesoselementosprincipaisdadiegeseromanesca”(FLECK,2017,
p. 47). Logo, nos romances históricos da modalidade tradicional, os eventos e as
personagens de extração histórica passam ao primeiro plano narrativo e ocupam o
espaçodedestaquenouniversodiegético.Oseventosdopassadoeseusagentesnão
maisaparecemcomoconstituintessecundáriosaserviçodacontextualizaçãoparaas
ações de personagens centrais do universo ficcional, mas são narrativizados como
açõesprincipaisdadiegese.
A escritura deO drama da Fazenda Fortaleza (1941) se associa, portanto, ao
romancehistóricodamodalidade tradicional, pois os fatos epersonagenshistóricos
não mais habitam o pano de fundo narrativo. Na diegese, somos apresentados à
personagemdeextraçãohistóricaPadreAntônioPompeu,clérigodeCastro,nosanos
de1820.Oreligiosoéprocuradopelapersonagem,tambémdeextraçãohistórica,José
FelixdaSilvaPassos—eminentefazendeirodasterrasparanaenses—parafazer-lhe
umaconfissão.Nouniversoromanesco,aconfissão,quenãodeviadurarmaisdoque
6 Destacamos que, de acordo com Fleck (2017), apenas uma narrativa histórica na modalidadeclássica foi escritanaAmérica, trata-sedeMercedesOfCastile: or theVoyage toCathay (1840),deJames Fenimore Cooper, quem, ao seguir os parâmetros scottianos, deu início à temática do“descobrimento”daAmérica,iniciadanoromantismodosEstadosUnidos.
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poucashoras,estende-seporsemanas:passaporumvelório,ocorreduranteaviagem
atéaFazendaFortalezaeseprolongapelaestadiadoPadrenaFazenda.
A partir dessa confissão, a trama se desenvolve ancorada na verossimilhança
queoatoconfessionalimprimeàsaçõesrelatadas,aomesmotempoemque,mediante
encaixesnarrativosdeanalepseseprolepses,retomaaspectosdavidadapersonagem
protagônica, José Felix, como o fato de ele ser um reconhecido sesmeiro, Sargento-
mor,políticorígido,temidoerespeitado.
NaurdiduraficcionalnarradaporJoséFélix,esteenfrentaumdramaamoroso:
viveuumahistóriainfelizcomsuaesposa,Onistarda,eéessahistóriaqueoSargento
conta, em confissão, ao Padre Pompeu. É dessemodo que o protagonista inicia seu
relato, com explicações de sua vinda da Europa para o Brasil, como ficou órfão,
dependeu de familiares negligentes e foi salvo por um amigo, Antônio Ribeiro de
Andrade.
AvisãodeJoséFélixsobreopassadocolonialconfere,emumprimeironível,o
modo pelo qual o leitor recepciona as funções das personagens (como mulheres,
escravizados e indígenas), os acontecimentos extraídos da história do Estado e os
espaços e circunstâncias socioculturais figuradas. No romance de Carneiro (1941),
temos, assim,umaalternativaàvidadeuma renomadapersonalidadehistórica cuja
configuração, embora apresente traços ficcionais, não altera os feitos inscritos nos
discursoshistoriográficosapologéticosarespeitodeseuitinerárionoNovoMundo.
Assim,atrajetóriadeJoséFelixeseumalfadadorelacionamentocomOnistarda
—motivodaconfissãodoprotagonista—surgecomomotepararevelarumaespécie
de “retórica da modernidade” (MIGNOLO, 2020). Nessa construção discursiva, a
conquistadasterrasdaAméricaesobretudodoParanápromovidaspelotrabalhodos
europeus donos das sesmarias serve para, mediante a naturalização da relação de
exploração,civilizarosbárbarose incrédulosquehabitamtais localidades.Oprojeto
deCarneiro(1941)dáforma,então,aomitocentraldamodernidade:“omitofáustico,
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doprogressoinfinito,docontroledoplanetaemsuasdimensõesnaturaisehumanas
em favor de quem o controla.”7 (PALERMO, 2014, p. 99, tradução nossa). Posto de
outromodo,noromance,asfiguraçõesdaaçãodocolonizador—representativasdo
sistemacolonial—sãocapturadasemoldadasabalizandoumaimagemquenaturaliza
todo o processo de dominação, sob os termos de uma suposta contribuição à
modernidade.
A narrativização do passado paranaense, realizada em O drama da Fazenda
Fortaleza (1941), portanto, não cede espaço às visões indígenas — ativos
participantesdessepassadodasaçõesempreendidaspeloscolonizadoreseuropeusna
ocupação territorial —, cuja existência foi negligenciada no processo de registro
histórico da ocupação das terras do estado sulista brasileiro. Ao contrário, o
estrangeiroeuropeuéquemganhaavoz:dominadordosistemadelinguagemescrito,
eleinstauraeimpõeasuaversão.
A controversa figura de José Félix também é recuperada por Hellê Vellozo
Fernandes,emMonteAlegre,cidadepapel(1974)—umromancenoqualseefabulam
as atividades dos pioneiros da Indústria Klabin8, nas terras anteriormente
pertencentesaFélixedeixadasaosseusdescendentes.Emseutexto,cujasustentação
seencontranosapontamentosdeSaintHilaire(ocientistaeuropeuqueresidiucomo
exploradorportuguês,emCastro,noanode1820),HellêFernandescorroboracoma
produçãodaimagemapresentadaporCarneiro(1941)esalientaasuarelevânciana
historiografiadoEstado:
ComooSr.JoséFélixeratambémmauparaosescravos,eraporestesdetestadotanto quanto pela mulher e a filha, e várias vezes eles quiserem assassiná-lotambém. Este desgraçado chegou a tal ponto de desconfiança, que tinha sob
7 No original: “el mito fáustico, del progreso infinito, del control del planeta en sus dimensionesnaturalesyhumanasafavordequienesdetentansucontrolomitofáustico,doprogressoinfinito,docontrole do planeta em suas dimensões naturais e humanas em favor de quem o controla.”(PALERMO,2014,p.99).8AinstalaçãodaindústriadepapeleceluloseKlabindoParanáépontofundamentalnoprocessodepovoamentodaantigaregiãodeMonteAlegre,atualterritóriodeTelêmacoBorba.
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chavesuasmenoresprovisõesefazia-lheabarbaoseuneto,deoitooudezanos.[...]NãopartideFortalezasenãoquatrodiasdepoisdeminhachegada;durantetodoesse tempo seuproprietário teve comigo toda sortede gentilezas. [...] Eraumhomemdeespíritoebomsenso;haviaestudadoemSãoPauloeconversavamuitobem;mas,noteiqueevitavafalardesi,deseusnegócios,doquelhediziarespeito e mesmo de tudo o que se relacionava com a região. Falávamos daFrançaedoRiodeJaneiro.(SAINTHILAIREapudFERNANDES,1974,p.19).
A retomada apologética do conquistador português, peculiaridade cara aos
romances históricos da primeira fase, é relevante para a nossa classificação de O
drama da Fazenda Fortaleza (1941) como um romance histórico tradicional: o foco
narrativoestácentradonavidadeumapersonalidadereconhecidapelahistoriografia
eocenárioéelaboradojuntoàmençãodefigurasefatosconsideradosautênticosdo
passado nacional e paranaense, inseridos na ficcionalização de um caso de amor
problemático. Esses elementos de extração histórica colaboram na contextualização
datramaenarepresentaçãoverossímildatrajetóriadeJoséFelix:
Quando me decidi a ir buscar ONISTARDA, já era um homem rico. Foram-meconfirmadasassesmariasdoTIBAGÍedoIAPÓ.BOAVISTAeucompráracomodinheirotrazidodosSANTOS.DepoiscompreimaisPIRAÍ-MIRIMquejustificariameu posto de capitão das ordenanças dos bairros em que está. Tinha 3.000alqueiresdaFAZENDINHA,4.000daFORTALEZA,14.000daTAQUÁRA,6.500deMONTE ALEGRE. Todas elas cheias de bois, dos quais forneci muitas rezes àexpedição de GUARAPUAVA. Já paramim não era necessário que o juiz viessecom sua vara brasonada com escudo das quinas, dar-me posse, repetindo aspalavrassacramentais,emnomedeEl-Rei,porqueD.JOÃOmesmo,confirmavaasminhas sesmarias e me louvava pelo exemplo que dava na entrada e noestabelecimento da minha FORTALEZA. Atrás de mim, fundaram-se logo,GUARTELÁ,afazendadoFUGAÇA,oCARAMBEÍ,oCAXAMBÚ...(CARNEIRO,1941,p.72,destaquedoautor).
Alémdeconferirverossimilhançaàtramaficcional,omodocomqueessesreferentes
históricos são apresentados confere o tom saudosista à narrativa, e servem para
“autentificararealidadedoreferente,paraenraizaraficçãonoreal”(BARTHES,2001,
p. 121), tanto no nível da história quanto do discurso. Essas estratégias também
mantêmaficcionalidadedatramaromanescaemsegundoplano,comoafirmaAlexis
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Márquez Rodríguez sobre essa modalidade, atendendo à veracidade dos fatos e
lugarescontemplados,“[...]semconcederàficçãonadamaisqueonecessárioparaque
seudiscursofosseconsideradoromanescoenãocrônicahistóricaouhistoriografia.”9
(MÁRQUEZRODRÍGUEZ,1996,p.39,traduçãonossa).
Frequentemente,ouniversoromanescosevoltaaopassadodePortugal,ainda
quedemaneirasuperficialesucinta,eabordaelementoslusitanosenvolvendodesdea
suaconstituiçãoatéosanosdogovernodeDomJoãoVI.Assim,quandoretomaosseus
feitosouaquelesdeseusantepassadoseuropeus,JoséFelixreconstróiopretéritode
formapatrióticaelaudatória,comopodemosverificarapartirdapassagememqueo
personagem-narrador começa a relatar o percurso de vida de seu pai e as
consequênciasdasaçõestomadasemsuainfância:“—Quandofoidaguerraentreos
doispaísesirmãosdapenínsula,ESPANHAePORTUGAL,ainvasãopeloladodanossa
província causou pânico em toda a população fronteiriça. Meu pai, JOÃO JOSÉ DA
SILVA, patriota exaltado, ardoroso e valente, partiu com as primeiras forças, como
livreatirador.”(CARNEIRO,1941,p.22,destaquedoautor).
Osexcertosacimacomprovamcomooselementosdahistoriografiaoficial são
inseridosnouniverso ficcionaldeOdramadaFazendaFortaleza(1941)edialogam,
assertivamente, com a perspectiva do discurso histórico hegemônico, voltado ao
enaltecimento dos sujeitos considerados modelos do passado para o presente,
conformeexpressaFleck(2017)seropropósitodosromanceshistóricostradicionais
daprimeirafasedogênero:“aintençãodaconstruçãodeumdiscursoqueexaltae/ou
mitificaoheróidopassado,pela aclamaçãode suasqualidadesepelovalorde suas
ações, revelando-o como modelo de sujeito do passado para o cidadão/leitor do
presente”(FLECK,2017,p.50).
Outra estratégia escritural empregada para garantir essa representação
supostamentefidedignadahistóriaéainserçãodenotasderodapénotranscorrerdo
9 No original: “[...] sin conceder a la ficción mas allá de lo estrictamente necesario para que sudiscursofueranovelísticoynocronísticoohistoriográfico.”(RODRÍGUEZ,1996,p.39).
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romance.Elasindicamfatoshistóricos,explicaçõese/oudocumentosquecomprovam
as informações apresentadas no texto ficcional, tal como “Documentos históricos
textuais, existentes no Museu Cel. DAVÍ CARNEIRO” (CARNEIRO, 1941, p. 48). A
aplicação desse princípio, além de se correlacionar ao princípio construtivo de
obediênciaàverdadeexpostopeloautoremseuprefácio, confereaoromanceoseu
alto grau de verossimilhança e sua disposição didática, próxima ao romance de
formação,aquelequebuscaensinaraoleitoraversãooficialdopassado(FERNÁNDEZ
PRIETO,2003;FLECK,2017).
EssamesmacaracterísticaéapresentadaemRastrosdeSangue(1971),naquala
personagem puramente ficcional Carlos Antonio Balster, conforme vários outros
jovens durante a Revolução Federalista, junta-se aos maragatos, para lutar como
sargento no episódio do Cerco da Lapa. Nesse romance histórico tradicional, o tom
didático é outorgado por meio do narrador em nível extradiegético que, com um
profundoconhecimentodas fontesdocumentais,descrevedetalhadamenteosplanos
de batalha, indica as principais movimentações militares e opina sobre essas,
construindoumquadroverossímildoepisódioedesuaspersonagens.
Em O drama da Fazenda Fortaleza (1941), José Felix é depreendido como o
típicoheróidesuaépoca, capazdearquitetaro seupróprio futuro, talqualumself-
mademanestadunidense:órfãorefugiadoquesetornoupolíticomilitarealcançoua
glória mediante a conquista de terras paranaenses que pertenciam aos povos
autóctones.TalascensãodoprotagonistaéobservávelporintermédiodoqueGérard
Genette (2017) denomina de a estrutura da duração dos grandes movimentos
narrativos da vida da personagem, e sujeita-se à caracterização da escritura
tradicional,comoenunciaCéliaFernándezPrieto(2003):
[…]osromanceshistóricosquecontinuamajornadainiciadaporScottmantêmorespeito pelos dados das versões historiográficas nas quais se baseiam, averossimilhançana configuraçãodadiegesee a intençãodeensinarhistória aoleitor. Mas eles fornecem interessantes inovações formais e temáticas que os
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separamdomodeloclássico,equeseconcretizamnasubjetivaçãodahistóriaenadissoluçãodasfronteirastemporaisentreopassadodahistóriaeopresentedaenunciação.(FERNÁNDEZPRIETO,2003,p.150,traduçãonossa).10
Assim, no relato de Carneiro (1941), a personagemde extração histórica José
FélixexpõeaoPadrePompeuoseudramaamoroso:casou-secomOnistarda,mesmo
acreditandoqueela amavaAntônioRibeirodeAndrade, eque comele jáhavia tido
relaçõessexuais,motivopeloquala julgava,maltratavaesupunhaquesua filhanão
fosselegítima.Onistarda,porsuavez,rebatiasuamaldadeeoinsultava.Ela,conforme
revelaodesenvolvimentodatrama,planejou,pormaisdeumavez,amortedomarido.
RessaltamosqueorelatoéiniciadopelavozautodiegéticadapersonagemJosé
Félix,sendointerrompido,frequentemente,pelavozhomodiegéticadePadrePompeu.
No entanto, quando chegam à Fazenda Fortaleza, instala-se, também, uma terceira
perspectivaextradiegética, comavozdeumnarradorheterodiegéticoqueassumea
enunciação, apresentando versões diversas da trama romântica, e passa a expor o
caráterviolentoesanguináriodograndeproprietáriodeterras.
Nesse sentido, algumas reflexões de Padre Pompeu são expressivas, pois a
personagem religiosa, cumprindo a sua função, passa a questionar o Sargento-mor
que,atéentão,eramuitorespeitadoeenaltecidoporele:
A conversa parou.O silêncio prolongou-se, tendo ficado ambos ameditar. PelocérebrodeANTÔNIOPOMPEUpassarammuitas hipóteses. Tinha, entretanto, aimpressãodequeoSargento,sinadalheocultava,quantoaosfatosdasuavida,ocultavanaquelemomento,ofundodoseucoração.Teriaconcebidoumapaixãodoentiapelafilha,desdequeasupuzeraestranhaaoseusangue?[...](CARNEIRO,1941,p.148-149).
10Nooriginal:“[…]lasnovelashistóricasquecontinúaneltrayectoiniciadoporScottmantienenelrespecto a los datos de las versiones historiográficas en que se basan, la verosimilitud en laconfiguraciónde ladiégesis,y la intencióndeenseñarhistoriaal lector.Peroaportan interesantesinnovaciones formales y temáticas que las separan del modelo clásico y que se concretan en lasubjetivación de la historia y en la disolución de las fronteras temporales entre el pasado de lahistoriayelpresentedelaenunciación.”(PRIETO,2003,p.150).
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Essa dúvida do padre, no entanto, é dissipada no transcorrer do enredo, pois
Félixdescobreumenganocometidoeperdoaaumescravo, fazendocomquePadre
Pompeureconsidereasuaavaliação:
Já estava inclinado a dar a dona ONISTARDA razão plena, e achar que ela,somente ela, era vítima, nesse estranho drama doméstico, quando a atitude dearrependimento sem restrições, daquele que era o orgulhoso e duro senhordaFortaleza,ofeznovamentecairemdúvida.Não,pensavaele,nãopoderiasertãomau um homem que descia do seu orgulho, da ira, do acastelado dospreconceitos,às lágrimasescaldantesdearrependimentomaiscompletoemaissincero. Mas decerto o mal se patenteava nas ocasiões em que tinha seusarrebatimentos; dessas explosões, por sem dúvida, teriam surgido o drama daFazenda Fortaleza, esse que estava vendo desenrolar-se sob seus olhos, emocasiãodecisiva.(CARNEIRO,1941,p.201).
ApersonagemPadrePompeué,aliás, figuraque,porapresentaraspectosmais
humanizados, veicula em seu discurso imagens e concepções que poderiam ser
considerados críticos em uma leitura anacrônica, mas que, no discurso ficcional,
reforçam as inter-relações entre a historiografia tradicional e a representação
ficcional, tal como pode ser certificado no trecho reproduzido a seguir, em que a
brutalidadeeaviolênciacontraosindígenassãoquestionadaspeloclérigo:
Fez-seumavalaprofunda,eaíforamjogadososcorpos.Porcimadeles,calviva,edepois, os sete palmos de terra; ficavam assim, por cima desses anônimosselvagens, que menos de meio século antes da vinda de JOSÉ FELIX para aFortaleza,eramosdonos,edonossemcontraste,detodasascircunvizinhanças,uns torrões de terra abundante que haviam possuido. Não é justo, pensava opadrePOMPEU,mastinhareceiodemanifestaraltoessasidéiasrevolucionárias;nãoé justoqueseespulsedoterritórioqueédeles,essagentenãoviveforadacivilização cristã somente porque lhe falta a instrução. E os civilizados, osbrancos, os cristãos, que é que lhes damos? Paz? Amor? Doçura? Instrução?Lealdade?(CARNEIRO,1941,p.218).
Contudo, aopermanecerapenasnoníveldopensamento,não se configurando
emqualqueraçãonanarrativa, taisquestõesservemapenaspararevelarao leitora
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“justiça”presentenointeriordorepresentantedopodereclesiásticonoromance,em
oposição ao sujeito comum, homem pecador. Esse enfrentamento entre as
personagens, emmaior oumenor intensidade, também é habitual nasmodalidades
textuais da primeira fase do gênero. Consoante a Fleck (2017, p. 44), é a partir do
enfrentamento entre as personagens principais e as secundárias que “se originam
algunsdosargumentosfundamentaisdatrama.Assim,umleitormaisatentopercebe
queosgrandeseventoshistóricostêmrepercussõesdiretasnocotidianodossujeitos
comuns”.
DentreosepisódioshistóricosrepresentadosnodeslindamentodeOdramada
Fazenda Fortaleza (1941), estão os constantes conflitos entre José Félix — e seus
homens—contraascomunidadesindígenas.Esseselementoshistóricossãotrazidos
constantementeà luz, sejapelas anedotas contadasaPadrePompeu: “Foidepoisde
uma batida forte, contra os índios, que resolvi esperimenta-los, arriscando-me.”
(CARNEIRO, 1941, p. 124); “Perto havia um capão de araucárias onde os índios às
vezesseescondiam.”(CARNEIRO,1941,p.125);e“ÉacasadoAçorianoquenoano
passadoos índiosmataram,deixandoaviúvadesolada...” (CARNEIRO,1941,p.130);
seja por meio das divagações de suas personagens, como podemos acompanhar
durante uma enumeração de preocupações do próprio Padre Pompeu: “[...] a luta
contraoscaingangueseaameaçacontínuadelesàfazendaondeoscivilizadostinham
uma tranquilidade apenas superficial” (CARNEIRO, 1941, p. 143). Essas alusões e
comentáriostambémtornamexplícitootomapologéticoàperspectivadocolonizador,
tomandoosindígenascomoseresnãocivilizados,quasedesumanizados.Apósumdos
embates,JoséFélixseguecomessatônicaaorefletir:
JOSÉ FELIX tambem pensava, durante a inhumação dos caingangues, na tristesorte daqueles homes, achando injusto que não tivessem uma consagraçãofúnebre,sóporqueeraminimigos.Achavabomedireitoquefossemespulsosdassuas terras; que fossemdominados, arrazados até.Mas faltava, segundo estava
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pensandonaquelemomento,aele,comovencedor,representantedosbrancosedosvencedores,edeD.JOÃO,reidePORTUGAL,umaconsagraçãocavalheiresca,àmoda antiga, um apresentar armas da vitória, ao herói infeliz, tombado parasempre,nainglórialuta...(CARNEIRO,1941,p.218-219).
TantoassuposiçõesdeFélixnotrechoacima,quantoasconsideraçõesdePadre
Pompeu sobre a vida dos escravizados, se coadunam ao que Marilene Weinhardt
(2004, p. 134) já identificou emRastros de Sangue (1971) como ummovimento de
atenuação ou defesa frustrada de episódios controversos e, muitas vezes, dúbios,
realizadosporpersonalidadeshistóricasdoParaná.Emdecorrência,aspersonagens
se irmanam a uma figuração que, apoiada pela postura positivista eurocêntrica,
encobreo teorcolonizadoreapologéticodaconstruçãodeuma imagemparanaense
pautada em heróis do passado responsáveis por incorporar os valores pátrios da
modernidade,dacivilizaçãoedoprogresso,mesmoqueparaissotenhamlançadomão
datruculência,dolatrocínioedomassacredegruposétnicosinteiros.
No mesmo sentido, podemos estender as considerações finais feitas por
Weinhardt (2004) sobreRastros de Sangue (1971) aOdrama da Fazenda Fortaleza
(1941), ao anunciar que, apesar de suas falhas, ela deve ser enunciada, estudada e
revisada,
[...]porrepresentarumtipodenarrativaque,malgrétout,temseupúblico,aindaque restrito entre indivíduos que, de alguma forma, por razões familiares oucircunstâncias geográficas, sentem-se ligados ou próximos aos episódiosrelatados.Comojáseobservou,o interessepelopassadonãoégratuito.Mesmoqueafaturaestéticadeixemuitoadesejar,aobrapodeterleitoresentrepessoasque identificam no discurso aquele universo que tem eco em suas evocaçõesparticulares, que apresenta um mundo ao qual estão atadas emocionalmente,aindaquesejaparacobrar fidelidadeàquiloqueacreditamserveraz,buscandonotextoescritooreflexodasimagensqueforjaramparaseusantepassadosedoespaçoemquevivem.(WEINHARDT,2004,p.134-135).
À continuação da narração, Padre Pompeu retorna para Castro, após diversas
tentativasdecolaborarparaaresoluçãodadifícilrelaçãoentreJoséFélixeOnistarda,
bem como entre sua filha Ana Luiza e o índio Maha-min. Depois de dois anos, o
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escravo Antão vem dar-lhe a notícia damorte de José Félix, a qual, não se sabe ao
certo, pode ter ocorrido por envenenamento ou por uma situação natural, cardíaca,
sendoaprimeirainsinuadapelapersonagem,queinclusiveacusaafiguradePompeu
decumplicidade.
Odesfechodahistória não é esclarecedor, o clérigo—e a tramanarrativa—
permanece na incerteza sobre o que aconteceu na Fazenda Fortaleza e a quem a
verdadepertence:
—Sim,pensavaopadre, eunãoseiquemtem,quemteve razãonesta tragédiaquehojeterminoupelavitóriadaastúciaoprimidacontraaforçaopressora...Nãosei,nãosaberei,nemninguémsaberájamaisqualdosdoisfoivítima,ouentreosdoisqual foimaisvítima,qualdosdoismais culpado...Doisdesgraçados foramvivendojunto.Elaviverádaquipordiante;sim,mascomodesinteressedeumafelicidadecomum,mortaparaacuriosidadedoshomens...Issofoioquepensou,encaminhando-se para a igreja, o padreAntônioPompeu. (CARNEIRO, 1941, p.249).
Dessaforma,ahistóriadeJoséFélixéfinalizadaeopercursodopadrecontinua:
“[...]foicaminhandoparaoaltarmórdeSANT’ANA.Quemoouvisseresmungar,nesse
momento,saberiaquefalavado[sic]malguardadosqueandamnaspequenasvilas,os
segredos grandes...” (CARNEIRO, 1941, p. 251). E a esses grandes segredos, cabe ao
discursoliterário,peloartificiodaficcionalização,recriá-los,resolvê-los,imaginá-los...
3. ALGUMASCONSIDERAÇÕESFINAIS
O artigo ora apresentado realiza uma análise do primeiro romance histórico
paranaense,OdramadaFazendaFortaleza,publicadoem1941,deautoriadeDavid
Carneiro,importantehistoriadordoestado.Anarrativa,pornósclassificadacomoum
romance histórico tradicional, narrativiza o processo de colonização da bacia do
Tibagi, a instalação do maior sesmeiro dessa região, e a personagem de extração
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históricaJoséFélixdaSilvaPassos,reconhecidoporsuaviolênciaeferocidadecontra
apopulaçãoautóctone.
Emsuanaturalizaçãodasrelaçõesdaexploraçãoindígena,oromanceperpetua
a postura enaltecedora da historiografia convencional, que é apresentada de forma
verossímil, juntoaodesenvolvimentodaproblemáticatramaamorosa.Nãopodemos
deixarde frisar,noentanto,queessaperspectivaconservadoraéconiventecomum
passadode violência, imposições arbitrárias, inúmeras chacinas e abusos cometidos
contra a população autóctone nacional, especificamente, nesse caso, contra as
comunidadesindígenasqueprimeirohabitavamoterritórioparanaense.
Nesse sentido, apoiamo-nos nas afirmações de Carlos Mata-Induráin (1995) ao
defender o papel exemplificador das narrativas híbridas de história e ficção, que
trabalhacomoindutoràreflexãodohomemcontemporâneosobresimesmoesobreo
percursodotempo,pois“aperspectivadopassadoseiluminacomosconhecimentos
do presente e, por sua vez, a compreensãodopassado enriquece a domundo atual
[...]11”(MATA-INDURÁIN,1995,p.59,traduçãonossa).Assim,tomamosasnarrativas
tradicionais mencionadas como propulsoras de reflexões e questionamentos
profundos, os quais convergem para a interpelação do passado paranaense e suas
implicaçõesnopresente.
Finalmente, verificamos que O drama da Fazenda Fortaleza (1941),
representativodasnarrativashíbridastradicionaisdehistóriaeficção,nosapresenta
umadasmuitasfacetasdopassadoparanaense.Possibilita-nos,pois, familiarizarmo-
noscommomentoslastimáveisdenossahistória,masquesãoimprescindíveisparaa
melhor compreensão de nossa realidade, instigando-nos à reflexão crítica sobre o
nosso passado, e os caminhos que, no presente, devem ser trilhados rumo à
descolonização.
11 No original: “la visión del pasado se ilumina con los conocimientos del presente y, a su vez, lacomprensióndelpasadoenriqueceladelmundoactual[…]”(MTA-INDURÁIN,1995,p.59).
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REFERÊNCIAS
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ACONDIÇÃODACLASSETRABALHADORANOTEATRODEJOEORTON
THEWORKING-CLASSCONDITIONINTHETHEATREOFJOEORTON
JonathanRenandaSilvaSouza1
RESUMO:EsteartigotemporobjetivoanalisarapeçacurtaTheGoodandFaithfulServant,de1967do dramaturgo britânico JoeOrton. Partindo do estudo dos temas e da forma utilizada, almeja-seressaltar a atualidade da obra, que dialoga com as condições de trabalho dos trabalhadores, emespecial na Grã-Bretanha do pós-Guerra. Propõe-se enfatizar a ligação entre teatro e sociedade,abordando aspectos políticos coletivos, especialmente a exploração dos trabalhadores no sistemacapitalistadeprodução.Palavras-chave:teatrobritânico;JoeOrton;mundodotrabalho.ABSTRACT:ThisarticleaimstoanalysetheshortplayTheGoodandFaithfulServant,from1967,bythe British dramatist JoeOrton. Departing from studying the themes and formused, it intends tohighlight the currentness of this play,which converseswith theworkers’ conditions, especially inpost-war Britain. It aims at emphasizing the connection between theatre and society, coveringcollective political aspects, especially the exploitation of the workers in the capitalist system ofproduction.Keywords:Britishtheatre;JoeOrton;worldoflabour.
1. INTRODUÇÃO
Dentreosmaisexpressivosdramaturgosdoteatrobritânicomoderno,a figura
de JoeOrton (1933-1967) sempre foi controversa, sejapelaspolêmicas geradaspor
suaspeças, sejaporsuavidaparticular trazidacomfrequênciaà tona.Chamadopor
Arthur Marwick de “escritor de farsas negras surpreendentemente originais”
(MARWICK, 1991, p. 118)2, sua morte prematura causou grande furor e atrai
1Doutorando,USP.2Todasascitaçõesdeobrasnãopublicadasemportuguêssãodenossatradução.
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curiosidadeatéosdiasatuaisporcontadacrueldadedocrimecometidoporKenneth
Halliwell,seuparceirodetrabalhoenamorado.
Ortoninsere-senumcontextodegranderenovaçãoteatral,notadamenteapósa
virada que representou a montagem da peça de John Osborne Look Back in Anger
(traduzidanoBrasilcomoGeraçãoemRevolta)noRoyalCourtTheatredeLondresem
1956. Toda a geração subsequente ficou notabilizada como osAngry YoungMen, os
“jovens irados”, referindo-se à juventude revoltada que protagonizava a obra de
OsborneeasdemaispeçasdaformateatraldenominadaKitchen-sinkdrama(“drama
de pia de cozinha”, em tradução livre), isto é, um realismo que se contrapunha ao
dramatradicionaldasaladevisitasburguesa,passandoacolocaremcenatambémas
classesmaisbaixaseseusproblemas.
Deacordocom JohnRusselTaylor (1962),umadas característicasdessanova
geração era o fato de seus dramaturgos pertencerem às camadasmais populares, o
que ajuda a explicar seu interesse por retratar as problemáticas das classes
trabalhadoras. Joe Orton, por exemplo, não finalizou os estudos na RADA (Royal
AcademyofDramaticArts)etinhaproblemasdeortografia,contrapondo-seaoscultos
escritores do passado. Dentre os expoentes dessa nova fase, destacam-se Arnold
Wesker,EdwardBond,HaroldPinter,JohnArden,PeterBarnes,entreoutros.
EssecenáriodemudançasocialeteatraléresumidoporJohnRussellBrown:
Não é acidente que JimmyPorter seja primeiramente visto lendo os jornais dedomingo e que fale de T. S. Eliot, Vaughan Williams, Estados Unidos, Ulysses,Emily Brontë, André Gide, Dante e um conjunto de ídolos culturais da moda,novasdistinçõessociaisequestõespolíticaspotentes.ArealidadedavidatinhaavançadoparaalémdosclichêsteatraiseOsborneestavalevantandotemasquepoderiam alcançar consciência no presente. Politicamente, intelectualmente esocialmente,eraummundoemmudança.(BROWN,1982,p.04-05)3.
3Nooriginal:“ItisnoaccidentthatJimmyPorterisfirstseenreadingtheSundaypapersandthathetalks aboutT. S. Eliot, VaughanWilliams,America,Ulysses, EmilyBrontë,AndréGide,Dante and ahostof fashionablecultural idols,newsocialdistinctionsandpotentpolitical issues.The realityofliving had moved ahead of theatrical clichés, and Osborne was raising topics that could achieve
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Em meio a esse cenário, já nos anos 1960, Orton escreveu, em sua breve
carreira, peças de destaque, como Loot (1964), que recebeu o prêmio Evening
StandardAward,montada tambémnoRoyalCourt em1967;EntertainingMr. Sloane
(1964),traduzidaparaoportuguêsporGertMeyercomoOVersátilMr.Sloane;eWhat
theButlerSaw(1969),montadapostumamente.NoBrasil,suapeçaLootfoitraduzida
pelaimportantecríticateatraleestudiosaBarbaraHeliodoraemontadaem1967sob
o títuloO Olho Azul da Falecida, no auge da Ditadura Militar, recebendo parecer e
cortesporpartedacensura.Mais recentemente,apeça foimontadapelaCia.Limite
151.NacoletâneadepeçascompletasdeOrton,TheGoodandFaithfulServant,escrita
em 1964 e exibida pela primeira vez na televisão em 1967, é a peçamais curta do
dramaturgo.
AobradeJoeOrtonatraiugrandeatençãoemuitorapidamenteoautoralcançou
sucesso dentro e fora da Inglaterra, tendo as peças Loot e Entertaining Mr. Sloane
montadas em Nova Iorque ainda durante a vida do dramaturgo. No Brasil, houve
relativointeresseporsuaspeças,provavelmenteemdecorrênciadopontodecontato
queamontagemdepeçasdeHaroldPinterproporcionouaoutrosautoresdageração
britânicapós-1956.
Diantedoexposto,esteartigo temporobjetivoanalisarTheGoodandFaithful
Servant (1998, [1967]), peça pouquíssimo estudada ou mencionada por teóricos e
críticos, tendo por norte seus elementos formais e temáticos. Inicialmente, serão
abordadasalgumaspeçasbritânicasque tematizamomundodo trabalhoe, ao final,
pretende-se ressaltar a atualidade da peça de Orton, com o intuito de apontar
desdobramentos e reflexões que a conectam com a situação vivida pela classe
trabalhadora.
presentawareness.Politically,intellectuallyandsociallyitwasachangingworld.”(BROWN,1982,p.04-05).
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2. OMUNDODOTRABALHOINVADEASALADEVISITASBRITÂNICA
Nocontextobritânico,arepresentaçãodaexploraçãodaclassetrabalhadoranão
é um fenômeno recente. As condições precárias de trabalho— cuja descrição e
documentação consta de forma abrangente nos escritos de Marx e Engels,
notadamente O Capital (1867) e A situação da classe trabalhadora na Inglaterra
(1845)—aparecemnomomentopós-Guerra,porexemplo,naconhecidapeçadeJ.B.
PriestleyEstáaíforaoinspetor,de1945,montadanessemesmoanopelaprimeiravez
emMoscou.Nessapeça,o suicídiodeuma jovemdaclasse trabalhadoravemà tona
quandouminspetorpassaainvestigaraconexãodeumafamíliadeindustriaiscoma
jovem e seus percalços em semanter empregada e sobreviver sob as condições de
trabalho do início do século XX. Postando-se ao lado do inspetor e do filho Eric, o
ponto de vista da obra tece uma crítica à exploração dos capitalistas sobre os
trabalhadores, considerando que a primeira demissão da moça advém de sua
conscientização e envolvimento na demanda por um aumento de salário através de
umagreve.
Emlinhasgerais,aobraLookBackinAnger(1956),deJohnOsborne,colocaem
cenaum jovemda classe trabalhadora e sua revolta diante da situaçãoprecária em
quevive.ApeçacausouumfurornaépocaprecisamenteportrazeraopalcodoRoyal
Courtasituaçãodasclassesbaixas,retratandonãoapenassuavidaapequenada,mas,
sobretudo, a linguagem dessa classe, constituindo uma afronta aos frequentadores
burguesesdoteatro,acostumadosaseveremnashistóriasalirepresentadas.
PeçascomoSerjeantMusgrave’sDance,escritaporJohnArdenem1959,trazem
tambémuma temáticaessencialàvidadaclasse trabalhadora:agreve.Esse tema já
aparece vagamente na peça de Priestley; entretanto, para esse autor, a greve é um
acontecimentopassadoque,aomodoibseniano,vemàfalaparaserdiscutidoerevelar
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algosobreaspersonagensnopresente,desdobrandoasconsequênciasdeeventosque
sepassaramnumtempoanterioràação—nocaso,acontribuiçãodaclasseburguesa
paraamortedeumatrabalhadora.
EmArden,porém,agreveestáacontecendoduranteoentrechoeasdemandas
dos trabalhadores, paralelas à ação principal, chocam-se com os propósitos do
sargentoMusgrave e seus subordinados, que vão a uma cidade do interior da Grã-
Bretanhaparadesmascararasatrocidadesdasguerrascoloniais.Apeça,considerada
sua obra de maior sucesso, emprega expedientes épicos à luz do uso feito pelo
dramaturgo alemão Bertolt Brecht anteriormente. No enredo, os trabalhadores
aprendempelavianegativaqueauniãocomasautoridades(umaaliançadeclasses),
aquioprefeito—donodaminaemquetrabalhame,portanto,seuinimigopolítico—,
opastoreopolicial,nãobeneficiasua luta,pelocontrário:desmobilizaosgrevistas.
Contudo, conforme relatado por uma das personagens, a taverneira Sra. Hitchcock,
essesmesmostrabalhadores,quesofremcomafome,poderãofuturamenteperceber
o erro cometido de terem traído a sua classe no enfrentamento ao contraditório
Musgraveeseumessianismo.
Temadecertarecorrêncianoteatrobritânicoemgeralecommaisdestaqueno
momentoderenovaçãodeformasetemaspós-1956,asituaçãodaclassetrabalhadora
apareceemváriasobrasdoperíodo,deArnoldWeskeraEdwardBond.Osexemplos
citadossãoapenasilustrativosdecomoointeressepelascondiçõesdostrabalhadores
emergem como assunto em Priestley, por exemplo, para, em Osborne, trazer os
trabalhadores à cena e, finalmente, em Arden, romper com o drama tradicional na
utilizaçãodeexpedientesépicosaolevaraopalcoumasituaçãodegreve.
Não se pode, porém, dizer que o tema e seus desdobramentos na forma
dramatúrgica tenham sido foco de Joe Orton. Ainda que se possa afirmar que suas
personagensemgeralpertencemaosestratoseconômicosmaisbaixosdasociedade,a
figura do trabalhador e suas condições de trabalho passam ao largo das peças de
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Orton.Entretanto,demaneiracômica,mascomcríticaácidaàexploraçãoperpetrada
sobreostrabalhadores,essetematambém“invade”aobradodramaturgocomapeça
TheGoodandFaithfulServant(1998, [1967]), focodenossaanáliseapósessebreve
preâmbulo.
3. AEXPLORAÇÃODOTRABALHADORNOPÓS-GUERRA:THEGOODANDFAITHFUL
SERVANT(1998,[1967])
EmpeçascomoTheGoodandFaithfulServant(1998,[1967]),Ortonsedebruça
sobre omodo como o indivíduo se encontra àmercê do sistema capitalista em sua
facetadomodernomundoempresarial.Percebendoaproduçãopós-1956,estavano
horizontedosAngryYoungMenretratarumarevoltadecorrente,entreoutrosfatores,
da exclusão das classes mais baixas da chamada sociedade afluente, a qual trouxe
acessoàsclassesmédiaealtaoquehaviademaisavançadonomundocapitalista.A
Ilha, recuperadadaguerra,desfrutavadeumperíododecrescimentoeconômico,no
qualobritânicomédioviajavamaise tinhaacessoaeletrodomésticoseautomóveis,
situação bastante diversa da carestia dos tempos da guerra. Porém, os jovens das
classes inferiorespoucoparticipavamdessenovopanorama, sendoexemplos Jimmy
Porter,deLookBackinAnger,osadolescentesdaemblemáticapeçadeEdwardBond,
Saved(1965),ouopróprioJoeOrton,umjovemproletáriodeLeicesterdeaspirações
literáriaseteatrais.
AocontráriodasdemaisobrasdeOrton,TheGoodandFaithfulServant (1998,
[1967])atraiupoucaatençãoporpartedacrítica.Emumabuscaembasesdedados,
inclusiveemindexadoresabrangentes,comooGoogleAcadêmico,épossívelencontrar
poucosestudosquecitemapeça.Emartigode2011/2012,apesquisadoraisraelense
YaelZarhy-Levo,ancorando-senasanálisesdeMauriceCharney(2008/2009)sobrea
peça—umartigoeumcapítulo—,defendeatesedequeacrítica,aoalçarumautor
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ao cânone, atribui-lhe um estilo particular e aquilo que se afasta dessa espécie de
padrão é postode lado. Em seus exemplos, elenca os casosdeHaroldPinter eTom
Stoppard.Oprimeiroérepresentativo,poisenvolve,assimcomoOrton,acriaçãode
umtermoquedefineumestilopróprio:Pinteresque—esse, inclusive,dicionarizado.
Em se tratandodeOrton,Ortonesque corresponderia emgeral ao farsesco,marcado
porhumornegroeapeloàsreferênciasgrotescasesexuais.
Seguindoaleituradaestudiosa:
Em concordância com a visão de Charney, parece provável, especialmenteconsiderandoquenãohácríticasdisponíveissobreaexibiçãodapeça,queaobranãoatraiunenhumaatençãodoscríticos.Porcontadafaltadeinteressenapeça,possivelmente advinda da percepção de que era incompatível com o recenteconstructodeOrton, e considerandoquea carreiradeOrton foi finalizada logodepois, o destino de The Good and Faithful Servant foi aparentemente seladocomodeumapeçaesquecida.(ZARHY-LEVO,2011/2012,p.93-94)4.
Investigar esse desconhecimento da peça, presumivelmente em decorrência,
entre outros fatores, de destoar do estilo de Orton, é também nosso objetivo neste
artigo. Em The Good and Faithful Servant (1998, [1967]), George Buchanan é um
trabalhadorquededicou50anosdesuavidaàempresa;apeçaseiniciacomsuaida
aosrecursoshumanosparaaassinaturadospapéisdesuaaposentadoria.Nocaminho,
encontra-se com a senhora da limpeza, Edith, que ele descobre ser uma antiga
namorada com quem teve um filho. Pondo em xeque a tese de que a peça foge do
constructodeOrton,temosdesdeoinícioascoincidênciastípicasdesuadramaturgia,
bem como as tiradas cômicas de humor negro que o notabilizaram: “EDITH. Eu era
4 No original: “In line with Charney’s view, it seems probable, especially given that there are noavailable reviews of the play’s broadcast, that the work failed at the time to attract any criticalattention.Becauseofthecritics’ lackof interest intheplay,possiblyderivedfromtheirperceptionthatitwasincompatiblewithOrton’srecentlyemergedconstruct,andsincetheplaywright’scareerwascutshortsoonthereafter,thefateofTheGoodandFaithfulServantwasseeminglysealedasanoverlookedplay.”(ZARHY-LEVO,2011/2012,p.93-94).
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atraente até os trinta. BUCHANAN. Durou tanto assim? EDITH. Daí eu tive minha
primeiradoença.”(ORTON,1998,p.154)5.
SeuencontrocomaSra.Vealfoy,responsávelpelosrecursoshumanos,também
dáotomdotipoderelaçãoqueaempresatemcomseusempregados.Porumlado,há
umtratamentofrioevazio:“Nósnãotemosabsolutamentenenhumaresponsabilidade
sobre seus outros membros. Se eles se deteriorarem, de nenhummodo a empresa
podeserresponsabilizada”(ORTON,1998,p.157)6—emreferênciaaobraçoperdido
deGeorge,provavelmentenumacidentedetrabalho.Poroutrolado,diantedamenção
dadescobertadeumneto,odomínioeocontroledaempresasobreotrabalhadorvêm
à tona: “BUCHANAN.Éumassuntopessoal.Minhavidaprivadaestáenvolvida.SRA.
VEALFOY. Se sua vida privada estiver envolvida, nós seremos os primeiros a lhe
informar sobreo fato” (ORTON,1998,p. 159)7. Considerandoa formadramatúrgica
escolhida, umapeça curta,Ortonvai direto aoponto epõe em funcionamento, cena
apóscena,umacríticamordazaocapitalismotraduzidonocorporativismomoderno,
articulandoseuhumorácido,quebeiraogrotescoemcertosmomentos.
Apósaassinaturadospapéis,aSra.Vealfoyapresentaaosdemaisfuncionárioso
recém-aposentadonumapequenacerimônia:
SRAVEALFOY.[...]Eleestáansioso,eusei,porumaaposentadoriaativa.Eécomaaposentadoria em mente que o pessoal de seu departamento, George, tem oprazerdelhepresentearcomestamaravilhosatorradeira,queeuacreditoseroque você queria [...]. E, como presente de despedida da empresa, eu tenho agrandesatisfaçãodelhedaresterelógioelétrico[...].Quandovocêolharparaele,selembrarádenós,tenhocerteza.(ORTON,1998,p.159-160)8.
5Nooriginal:“EDITH.IremaineddesirableuntilIwasthirty.BUCHANAN.Youlastedsolong?EDITH.ThenIhadmyfirstillness.”(ORTON,1998,p.154). 6Nooriginal:“Weareinnowayresponsibleforyourotherlimbs.Iftheydeteriorateinanywaythefirmcannotbeheldresponsible.”(ORTON,1998,p.157).7Nooriginal:“BUCHANAN.It’sapersonalmatter.Myprivatelifeisinvolved.MRSVEALFOY.Shouldyourprivatelifebeinvolved,weshallbethefirsttoinformyouofthefact.”(ORTON,1998,p.159).8Nooriginal: “MRSVEALFOY. […]He is looking forward, Iknow, toanactiveretirement.And it iswithretirementinmindthatthemenofyourdepartment,George,havepleasureinpresentingyouwith this very lovely electric toaster.Which I believed, iswhat youwanted. […]And, as a parting
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AconhecidaironiadeOrtonéutilizadaparalevaraoextremodoabsurdoedo
cômicoalgoquecertamentepoderia teracontecidona realidade:o relógioque faria
comqueBuchananselembrassedoscolegasdetrabalhoéexatamenteaqueleque,sob
o capitalismomoderno após a Revolução Industrial, rege religiosamente a vida dos
indivíduosno trabalho, suaprodutividadee seus esparsosmomentosdedescansoe
lazer.
Após seu pequeno discurso, a Sra. Vealfoy deseja encerrar prontamente a
cerimônia.AsrubricasdeOrtondemonstramporsisóacrueldadecomqueomundo
empresarialmoderno,travestidodegentilezas,trataaquelesqueomovem:
[SRAVEALFOYolhaparaorelógio.Émeiodiaemeia.]Bem, eu tenhoque terminar agoraporque imaginoque as senhorasda cantinaestãoimpacientesparacomeçaraserviroalmoço.Então,umavezmais,obrigada.Deusabençoe.E—obrigada—muitoobrigada.[...]. [A AUDIÊNCIA empurra BUCHANAN e SRA VEALFOY. BUCHANAN e SRAVEALFOYestãosozinhosaoladodamesa.]SRAVEALFOY. Certifique-sedeque entregará seuuniforme.Depois do almoço,vocêestálivre.Nãotemosmaisnecessidadedevocê.[Ela sorri e sai.BUCHANAN está sozinho. Ele pega os pacotes, se junta à fila doalmoço. Ninguém fala com ele, ou percebe sua presença. A fila anda] (ORTON,1998,p.160-161,grifosnooriginal)9.
Ortonnãoperdeaoportunidadededemonstrarasofisticaçãodessacrueldade.
DesdeapequenaexpressãodaSra.Vealfoy(“Deusabençoe”)eseusorrisologoapós
descartá-lo até a imagem da fila que “anda” e do relógio regulador de todos os
presentfromthefirm,Ihavegreatdelightingivingyouthiselectricclock.[…]Whenyoulookatit,you’llthinkofus,I’msure.”(ORTON,1998,p.159-160).9Nooriginal:“[MRSVEALFOYlooksattheclock.Itistwelve-thirty].Well,Ihadbettercometoanendnow,as I thinkthecanteen ladiesare impatient tobeginservingdinner.Soonceagain, thankyou.God bless. And― thank you― thank you. (…) [The AUDIENCE push past BUCHANAN and MRSVEALFOY.BUCHANANandMRSVEALFOYarealonebesidethetable.]MRSVEALFOY.Makesureyouhandinyouruniform.Afterlunchyou’refree.We’venofurtherneedofyou.[Shesmiles,andgoesout.BUCHANANisalone.Hepicksuptheparcels,joinsthelunchqueue.Noonespeakstohim,orisawareofhispresence.Thequeuemovesforward.]”(ORTON,1998,p.160-161).
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movimentosdosfuncionários,ossímbolosdaordenaçãoeregramentodomundodo
trabalho,nomomentopós-Guerra,seapresentamcomumaconfiguração“amigável”,
“cordial”.RepousaaquiadiferençaentreoqueevidenciaOrtoneaquiloqueosrelatos
de Engels retratam em se tratando do século XIX: a vileza do modo de produção
capitalista adquire agora uma face de pretensa “preocupação” com o trabalhador e
com seu bem-estar, pois evidentemente isso é condição para que se retire dele o
máximodeprodutividade.
Diantedadescobertadeumneto,Raymond,Buchanandesejaqueogarotodeixe
suavidadediversõescomoskatee“seendireite”,oquenapráticasignificaseguiros
passosdoavô.AalienaçãodeGeorge,quefoilevadoaacreditarqueapenasotrabalho
evidenciaovalordeumapessoa, transpareceempequenosdiálogoscomEdith,que
proporcionammomentos de humor bastante particulares da dramaturgia de Orton:
“BUCHANAN.Nãotrabalha!?[Eleencara,boquiaberto.]Oquevocêfazentão?RAY.Eu
curto.BUCHANAN.Issoéumacoisaterríveldesefazer.”(ORTON,1998,p.167)10.
Buchanan,comaajudadaSra.Vealfoy,garantiráqueogarotovoltea“andarna
linha”— “BUCHANAN. (…)Minha antiga firma ficaria feliz em te empregar por um
pequenosalário”(ORTON,1998,p.172)11—,especialmenteagoraquesuanamorada
Deborah está grávida. Sem que recorra ao expediente de suspense, o dramaturgo
deixaclarodesdeoprincípioqueRaynãopoderáseguirporoutrocaminhoquenãoo
do avô. Isso não impede, porém, que Orton coloque em funcionamento um humor
negroquemostrao futurosombrioqueaguardao jovem—tornar-se,aexemplodo
avô,acometidoporumquadrodeinvalidezedepressão:“BUCHANAN.Estoutentando
temostrarumavidadiferentedaquevocêestá levandoatualmente.Umavidaútile
construtivacomoaqueeuvivie—[Elecomeçaatossir.EDITHbatenassuascostas.]
10 No original: “BUCHANAN. Not work!? [He stares, open-mouthed.]What do you do then? RAY. Ienjoymyself.BUCHANAN.That’saterriblethingtodo.”(ORTON,1998,p.167).11 No original: “BUCHANAN (…) My old firm would be delighted to employ you for a smallremuneration.”(ORTON,1998,p.172).
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Oh,Cristo!Meuspulmõesvãoestarnotapetedaquiapouco”(ORTON,1998,p.175)12.
AdiscrepânciaentreodiscursodeBuchananesuacondiçãodesaúdeporumladosão
fontedehumore,poroutro,umacríticaàalienaçãoaqueotrabalhadorésubmetido.
Orton dispõe de situações cômicas ad absurdum para enfatizar o quanto o
trabalhadorétratadodemododescartável,comperversidadeedescaso:
EDITH.Ésuatorradeira.Funcionadeumjeitoestranho.Eorelógioétãoinútilquanto.Dizahoraquequer.[BUCHANANvaiparaaprateleiraepegaorelógio.]BUCHANAN.Estáindopratrás!Algumacoisaestáerradacomaspeças.[Eleviraorelógioeoderruba.]Oh!EDITH.Oquefoi?BUCHANAN.Medeuumchoque.Subindonomeubraço.[...]EDITH[comumencolherdeombros].Elesparecemmaisarmasmortíferasdoquepresentesdeumpatrãoagradecido.(ORTON,1998,p.177)13.
Enquantonoplanosimbólicoospresentesvindosdaempresamostram-secomo
mercadoriasbaratasquesevoltamcontraBuchanan,dopontodevistareal,davidade
George, a empresa também lhe relegou agravamentos físicos e psicológicos. Cada
detalheparecereforçarqueavidadeBuchananfoiextremamenteprejudicada,tanto
dentrodaempresa—quelhefezperderummembro—quantoforadela,emqueaté
orelógio,aquisimbolizandosuaprópriavida,andaparatrás.
Ortonteceinúmerosdessesparalelosnapeça,quepoderíamosatécaracterizar
como similares a gestus brechtianos — cenas, gestos ou falas de personagens que
12Nooriginal: “BUCHANAN. I’m trying to showyou adifferent life from theone you’re leading atpresent.Auseful and constructive life such as I’ve led and― [Hebegins to cough. EDITHpats hisback.Oh,Christ!Mylungs’llbeontheruginaminute.”(ORTON,1998,p.175).13Nooriginal: “EDITH. It’s your toaster. It carrieson in amost eccentric fashion.And the clock isaboutasuseful.Tellswhatevertimeitfancies.[BUCHANANgoestotheshelfandpicksuptheclock.]BUCHANAN.It’sgoingbackwards!Something’swrongwiththeworks. [Heturnstheclockoveranddropsit.]Oh!EDITH.Whatisit?BUCHANAN.Gavemeashockitdid.Rightupmyarm.[…]EDITH[witha shrug].Theyseemmore likemurderweapons thangifts fromagratefulemployer.”(ORTON,1998,p.177).
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contêm em si a representação de uma questão coletiva. Dentre eles, encontra-se a
representação material de que, para o sistema, o valor do trabalhador se equipara
verdadeiramente ao desses utensílios, isto é, quando estão velhos ou quebrados,
devem ser descartados e trocados rapidamente por novos, exatamente a dinâmica
observadaalegoricamentenasubstituiçãodeBuchananporseunetoRaymond.
AironiadeOrtonquepermeiaotextoapresenta-sedesdeaepígrafedapeça—
elemento paratextual que o dramaturgo usa com frequência— “‘Muito bem, servo
bome fiel’Mateus. 25:21” (ORTON, 1998, p. 151)14. Essa pequena frase retiradado
textobíblico,alémdeapresentaraorigemdotítulodaobra,concentrapartedoque
Orton propõe com essa pequena peça. Se por um lado remete à figura de Mateus,
chamadoporJesusCristoparadeixardeserumcobradordeimpostosesegui-lopor
toda a vida, aqui se refere a umempregadoque tambémdedicou sua vida inteira a
umacausa,ageraçãodelucrodomundoempresarial.
Naparábolaquemotivaotítulo,Jesuscontaahistóriadeumadministradorque
viajou ao estrangeiro, relegando aos seus servos “talentos” (valores em dinheiro),
sobre os quais eles deveriam retornar ao patrão o que lucraram. Um por um eles
devolvemoqueconseguiramesãoelogiados.Oúltimodeles,porém,devolveotalento
semlucrarnada,aoqueoadministradorochamade inútilemandaqueseja jogado
nastrevas.Amoraldaparábolaésintetizadanaideiadequeaquelequetemreceberá
aindamais,masoquenãotem,mesmoopoucoquetemlheserátirado.Oleitorque
conhece tal referência bíblica encontra nesse elemento extratextual uma pista de
interpretação.AexemplodoquefoipropostoporErwinPiscatoreBertoltBrecht,no
propósito de fazer o teatro “narrar”, o dramaturgo insere aqui um expediente que
comentaaaçãoaserlida/encenadaeantecipadoquesetrataapeça.
Revertendo a moral bíblica, Orton sinaliza que o destino de Buchanan é
exatamente o do servo infiel, apesar de ter se comportado como o servo fiel da
14Nooriginal:“‘Welldone,thougoodandfaithfulservant’Mateus.25:21.”(ORTON,1998,p.151).
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parábola,dedicando-sepor50anosparamultiplicaros“talentos”—leia-selucros—
do patrão, tendo no caminho inclusive perdido um membro provavelmente num
acidentedetrabalhoe,apesardisso,desejandoqueonetosigaseuspassos.Todavia,
nada disso importa dentro da lógica capitalista; seu destino é, mesmo assim,
implacável, terminando pouco valorizado, com um quadro depressivo e, no fim da
peça,morto,apesardaidadede65anos.Nessesentido,oprópriotítulodaobraparece
serirônico,poisemboraBuchananaparenteseroservobomefiel,étratadocomoo
servomaue infiel, jogadoàstrevasdoabandono,reservadopelomododeprodução
capitalistaealógicaempresarialmodernaàquelesquenãotêmmaisnadaaoferecer,
chamados,portanto,de“improdutivos”economicamente.
A acidez de Orton é candente e, ao longo da peça, vai desmascarando essa
“religião” que os trabalhadores são levados a professar, defendendo e expressando
gratidão incondicional aos seus empregadores. Tal caráter do capitalismo como
religiãofoiexploradodopontodevistateóriconoséculoXXporWalterBenjaminem
seu ensaio de 1921, O capitalismo como religião. Partindo do trabalho de outros
pensadores, como Max Weber, que caracterizou a religião como nascedouro do
capitalismo, Benjamin, postando-se da perspectiva dos explorados, aponta que o
próprio capitalismo é uma religião, tendo por característica definidora seu próprio
culto,decaráterpermanente.Talapontamentoécongruentecomoqueseobservaem
Orton:aspersonagens,emespecialSra.VealfoyeBuchanan,parecemestarencantadas
por tal doutrina. O uso ritual que se observa no fim da peça vem para reforçar a
alienação dos trabalhadores, afundando-os ainda mais no destino inexorável que é
professartal fé.OrtoncertamentenãotevecontatocomessetextodeBenjamin,que
passouacircularmaisrecentemente;aindaassim,colocaemfuncionamentonoplano
artístico aquilo que o pensador circunscreve do ponto de vista teórico, isto é, o
“capitalismodeveservistocomoumareligião”(BENJAMIN,2013,p.21),enoquala
culpa (em alemão Schuld, tanto culpa quanto dívida) cumpre também papel
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importante, levando os indivíduos a um “estado de desespero universal”, tornados
autômatosdasociedadeindustrial,aqualBenjamintantocriticavaemsetratandode
suaideologiadoprogresso.
Sabendo da situação a que os ex-funcionários estão expostos, a Sra. Vealfoy
lança então uma espécie de grupo de apoio que pretende fazer com que os idosos
aposentados socializem entre si. O anúncio ditado por ela novamente escancara a
desumanidadeaqueessestrabalhadoresestãosujeitosea“benevolência”daempresa
emosajudar:“PESSOASSOZINHAS.(…)Apessoaoupessoasdequalquersexodevem
ser velhos, sozinhos e ex-funcionários da empresa. Nenhuma outra qualificação é
exigida.”(ORTON,1998,p.177)15.
Senumprimeiromomentoseuscolegasnãoopercebemnorefeitório,aotrazer
Georgeparao grupo,maisumavez ele é submetidoà situaçãodedesconhecimento
porpartedeseusantigoscolegas:“SRAVEALFOY.(...).AlguémselembradoGeorge?
[TodosencaramBUCHANAN.Ninguémdiznada.]Ninguém?Têmcerteza?Eletemum
rosto bem característico. Certeza de que ninguém mesmo conhece nosso novo
membro?” (ORTON, 1998, p. 183)16. Após um colega reportar que o conhece, a Sra.
Vealfoyosdeixaconversandoe,depoisdedispersaramultidãoapósamortedeuma
das senhoras presentes, ela retorna para saber sobre o que os dois homens
conversam.Primeiramente,chamaaatençãodoleitormaisatentooquantoamortede
uma das pessoas presentes é absolutamente banalizada ironicamente pela
responsávelpelosrecursoshumanos,designaçãoessaquejásinalizaoestatutoqueos
humanosdetêmnomundoempresarial.
Nodecorrerdaconversa,atémesmoaatuaçãonaguerra,tãocaraparaaqueles
quealutaram,édesprezadadentrodocontextodaempresa.AosaberqueBuchanan
15Nooriginal:“LONELYPEOPLE.(…)Thepersonorpersonsofeithersexmustbeold,lonelyandex-membersofthefirm.Nootherqualificationsareneeded.”(ORTON,1998,p.177).16 No original: “MRS VEALFOY. (…) Does anybody remember George? [Everybody stares atBUCHANAN.Noonesaysanything.]Nobody?Arewesure?Hehasadistinctiveface.Arewequitesurewenoneofusareacquaintedwithournewmember?”(ORTON,1998,p.183).
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atuouduranteaguerracomosentinela17,aSra.Vealfoy insisteemqueele falesobre
isso,expressando-sedeformadepreciativasobreaexperiênciadovelhosenhor:“SRA
VEALFOY.Quemsolicitouquevocêfizesseisso?BUCHANAN.Porque—[confuso]nós
todos fizemos isso. SRA VEALFOY. Que bom pra você! Você aproveitou? Ficava no
telhado?”(ORTON,1998,p.187)18.
O arremate do dramaturgo em expor a frieza com que Buchanan — e por
associaçãoosdemaisex-funcionários—étratadovemlogoaofinaldaconversacomo
outrosenhor,oqualBuchananacreditavaqueoconhecia.Chamaaatenção também
que o suposto colega é a única personagem que não tem nome, já evidenciando
formalmentequesetratadeumapersonagemtipo,podendoserqualquerindivíduo:
HOMEMVELHO[paraBUCHANAN,comcuriosidade].SeunomeéHyams?BUCHANAN.Não.HOMEMVELHO.Nãoé?[Pausa.]CertezaquenãoéGeorgieHyams?BUCHANAN.Não,essenuncafoimeunome.MeunomeéBuchanan.HOMEMVELHO[selevantando.]Achoquenãoteconheçoentão.BUCHANAN.Mas—[Chocado.]vocêdissequeconhecia.HOMEM VELHO [indo em direção ao grupo em volta da SRA VEALFOY.] Meenganei.Acheiquevocêeraumantigocolegameu.OnomedeleeraHyams.BUCHANAN [segurando a manga do HOMEM VELHO.] Você não me conheceentão?HOMEMVELHO.Não.BUCHANAN.Maseu trabalheiaqui.Eu ficavanaentradaprincipal.Temcertezaquenãoselembrademim?HOMEMVELHO.Medesculpe.[EleselivradeBUCHANANevaiparaogrupoaoredordaSRAVEALFOY.]BUCHANAN.Ninguémmeconhece.Elesnuncameviramantes.(ORTON,1998,p.188-189)19.
17 Sobre a atuação de fire watch (aqui traduzido por sentinela) durante a Guerra, ver:https://www.bbc.co.uk/history/ww2peopleswar/stories/10/a3032010.shtmlhttps://web.archive.org/web/20160316141000/https://firefightersmemorial.org.uk/index.php/in-memoriam/fire-watchers-fire-guards.Acessoem:30abr.2021.18Nooriginal:“MRSVEALFOY.Whorequiredyoutodothat?BUCHANAN.Why–[Puzzled.]wealldidit.MRSVEALFOY.Good foryou!Didyouenjoyyourself?Wereyouon the roof? (ORTON,1998,p.187).19OLDMAN[toBUCHANAN,withcuriosity].IsyournameHyams?BUCHANAN.No.OLDMAN.Isn’tit?[Pause.]Surelyyou’reGeorgieHyams?
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Em suma, além de ser considerado uma mercadoria, similar aos
eletrodomésticosbaratosque lhegratificaramtantosanosdetrabalho ininterruptos,
Buchananéabsolutamenteumdesconhecidodetodos,eaúnicaqueopercebeafinalé
aSra.Vealfoy, representantedosrecursoshumanose,portanto,amaior interessada
emtudoqueeletinhaacontribuir.
O mencionado caráter de culto religioso do capitalismo, aqui traduzido no
modusoperandidaempresa,aparecenovamentequandoaofinaldapeçaaSra.Vealfoy
reúne seu grupo de convivência para cantar, quase como num ritual religioso. Sua
proposta é “Nósvamospassarpor todasasmúsicas comapalavra ‘Feliz’.” (ORTON,
1998,p.189)20.Arubricaaponta:
[O pianista entoa ‘Here We Are Again, Happy As Can Be’. Os ex-funcionários sejuntam em volta do piano. A SRA VEALFOY no centro, vislumbra-se o rosto deBUCHANAN. Ele começa a cantar. Para. Canta novamente. Vários rostos velhos,cansadosedeprimidossãovistos.OrostosorridentedaSRAVEALFOYévistoassimqueamúsicamudaabruptamentepara‘HappyDaysAreHereAgain’(...)](ORTON,1998,p.189)21.
BUCHANAN.NO,that’sneverbeenmyname.MynameisBuchanan.OLDMAN[gettingupfromhisseat].I’mafraidIdon’tknowyouthen.BUCHANAN.But–[Shocked.]yousaidyoudid.OLDMAN[movingtowardsthegrouparoundMRSVEALFOY].Imadeamistake.Ithoughtyouwereanoldmateofmine.HisnamewasHyams.BUCHANAN[catchingholdoftheOLDMAN’ssleeve].Youdon’tknowmethen?OLDMAN.No.BUCHANAN.ButIworkedhere.Iwasonthemainentrance.Areyousureyoudon’trememberme?OLDMAN.I’msorry.HeshrugsBUCHANANoffandmovestothegrouparoundMRSVEALFOY.BUCHANAN.Nobodyknowsme.They’veneverseenmebefore.(…).(ORTON,1998,p.188-189).20Nooriginal:“We’regoingtorunthroughallthesongswith‘Happy’inthem.(ORTON,1998,p.189).21Nooriginal:“[Thepianiststrikesup‘HereWeAreAgain,HappyAsCanBe’.Theex-employeescrowdroundthepiano.MRS.VEALFOYinthecentre,BUCHANAN’sfaceisglimpsed.Hebeginstosing.Stops.Singsagain.Severalold,tiredanddepressedfacesareseen.MRS.VEALFOY’Slaughingfaceisseenasthemusicabruptlychangesto‘HappyDaysAreHereAgain’(…)].(ORTON,1998,p.189).
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ASra.Vealfoyécaracterizadaquasecomoumafigurareligiosaoudivinaquese
propõeadefenderainstituiçãoaquepertence,capazdesolucionare“curar”osmais
diversosproblemas,inclusiveadepressãoqueBuchananestáenfrentando.Comefeito,
segundoa rubrica, elaéaúnicaque sorri, sinalizandoao leitorquea felicidadeque
aparecenotítulodasmúsicasnãoalcançaostrabalhadores.Pelocontrário,essesestão
“velhos,cansadosedeprimidos.”(ORTON,1998,p.189).Essacaracterizaçãoqueexibe
duassituaçõesdiametralmenteopostas—atristezaeodesesperodosex-funcionários
eaauradefelicidadedaSra.Vealfoy—atingeseuápicealgumasfalasàfrente,quando
ela convence o aposentado a se juntar ao grupo, que entoa cantos “positivos” e, na
visãodela,quase“curativos”:
SRA.VEALFOY.[...]Entãovamoslá,anime-see,sevocênãosouberaspalavras,ésóacompanharamelodia.[Elaoconduzdenovoaocentrodogrupo,entreosdoishomens de cadeiras de rodas. BUCHANAN se junta ao canto. (A voz dela sesobrepõeàsdemais conformeamúsicamuda.)]. ‘Euquero serFeliz,MaseunãopossoserFeliz,AtéqueeutenhatefeitoFeliztambém’.(ORTON,1998,p.189)22.
Quaseemcaráterpremonitório,Ortontratadotipodeexploraçãoradicalqueo
sistemacapitalistaadotariaanosdepoiscomoaparecimentodoqueficouconhecido
comoneoliberalismo,sobaliderançadopresidenteestadunidenseRonaldReaganea
primeira-ministrabritânicaMargaretThatcher.Nesseestágiodochamadocapitalismo
tardio, o corporativismo e ideias como eficiência e otimização no âmbito individual
ganham força, junto com a defesa liberal do estado mínimo e livre-comércio no
espectromaisamplo.Dentrodessaideologia,otrabalhador—alémdeexplorado—é
levado a se comprometer com a empresa, “vestir sua camisa” e se dedicar ao seu
crescimento, o qual supostamente corresponderia ao enriquecimento do próprio
empregado,chamadoagorade“colaborador”eque,dentrodaideiado“trickledown”
22Nooriginal:“MRSVEALFOY.[…]Socomeon,cheerup,andifyoudon’tknowthewordsjusthumthe tune. [She leads him back to the centre of the group, between two old men in wheelchairs.BUCHANANjoinsinthesinging.(Hervoicesoaringabovetherestasthemusicchanges.)]‘IwanttobeHappy,ButIcan’tbeHappy,TillI’vemadeyouHappytoo’”.(ORTON,1998,p.189).
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(“economia do gotejamento”), seria beneficiado com a riqueza dos empresários. Em
que pese o novo termo, percebe-se a permanência da exploração do modo de
produção capitalista na Inglaterra que vemos de um ponto de vista crítico
documentada, analisada e historicizada desde Marx e Engels, apesar da nova
roupagemesofisticaçãodasformasdecontroleeexploraçãodaforçadetrabalho.
Nãosomenteavidadotrabalhador—emsuasdimensõesfísicaepsicológica—
é totalmentedispostaparausodoempregador,maseleéainda levadoaproversua
posteridadeparaseualgoz.Portanto,nemserianecessárioqueOrtondescrevesseem
detalhe o destino de Raymond, o que ele o faz com expressivo uso de expedientes
épicos de montagem e projeções. Epicamente se apoiando num contexto externo à
peça, emquea juventudepossuipoucasoportunidades alémde se conformaremao
sistemaouserebelarematravésdacriminalidade,odramaturgoreforçaqueRaymond
reproduzirá o caminho de seu avô num círculo vicioso, algo reafirmado na fala
seguinte àquela que menciona que Ray se regenerou, revelando o falecimento de
Buchanan,substituídonosistemapelojovem,fadadoàmesmasina.
Nacenafinal,encerrandoacríticaferozaointeressedescaradodaempresana
exploração indiscriminadada forçade trabalhodo indivíduoe,porconsequência,ao
emergente mundo empresarial neoliberal no berço do capitalismo — e hoje
naturalizadonomundointeiro—,amortedeBuchananéanunciadapelaSra.Vealfoy
numafestadaempresa.Damorte,rapidamenteparte-separaadança,poisBuchanan
jáfoisubstituídopeloneto,atendendoassimaointeressemaiordaempresa:
Antes que nós continuemos com nossa diversão, eu tenho que anunciar umatristemorte.GeorgeBuchananfaleceusemanapassada.Suaesposadesejaqueeuexpressesuagratidãoatodosdaempresaqueenviaramfloresemseutristeluto.Eagora,continuemoscomadançaevamostorcerporumbomtempoduranteatemporada de férias. [A banda toca ‘On the Sunny Side of the Street’]. (ORTON,1998,p.191-192)23.
23Nooriginal:“BeforewecarryonwithourfunIhavetoannounceasaddeath.GeorgeBuchananpassedaway lastweek.Hiswifewishesme toexpress thanks toall in the firmwhosentbeautiful
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Faz-se importante mencionar que, ao modo épico, a música final coloca em
evidência uma contradição entre a letra e a própria ação da peça. Tecendo um
comentário irônico,o textodamúsicaqueevocao “ladoensolaradodarua”aparece
logoemseguidaaoanúnciodamorteprematuradeumtrabalhador,denotandoqueo
narradorépicodesejaescancararexatamenteodiscursovaziodaempresa,paraaqual
talfalecimentoéuma“fatalidade”equedeveserprontamentesubstituídadasmentes
dos funcionários pela menção às férias e uma música “positiva”, empregada como
entorpecente e meio de se fugir da dura realidade de exploração de muitos que a
mortedeBuchanandesvela.
4. CONCLUSÃO
Procuramos ressaltar que a peça de Joe Orton guarda em si um expressivo
potencialcríticoequeasualigaçãocomarealidadeatualsedá,dentreoutros,porque
asquestõesqueoautortematizounãoforamsuperadashistoricamente, justificando,
assim,oretornoàTheGoodandFaithfulServant(1998,[1967]),eaagudacríticaque
fazàexploraçãodotrabalhadornomododeproduçãocapitalistamoderno.
REFERÊNCIAS
BBC. British Broadcasting Corporation. WW2 People’s War: Memories of Fire Watching.https://www.bbc.co.uk/history/ww2peopleswar/stories/10/a3032010.shtml. Acesso em: 30 abr.2021.BENJAMIN,Walter.Capitalismocomoreligião.Trad.NélioSchneider.SãoPaulo:Boitempo,2013.
floraltributesinhersadbereavement.Andnow,onwiththedanceandletisprayforgoodweatherduringtheholidayseason.[Thebandplays‘OntheSunnySideoftheStreet’]”.(ORTON,1998,p.191-192).
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CÂNDIDO,DEVOLTAIRE,ESUASAPROXIMAÇÕESPOSSÍVEISCOMAS
ETIÓPICASDEHELIODOROECOMOROMANCEGREGOANTIGO
VOLTAIRE’SCANDIDEANDITSPOSSIBLESIMILARITIESWITH
HELIODORUS’SAETHIOPICAANDANCIENTGREEKNOVELS
FranceliseMárciaRompkovski1
RESUMO:Esteartigosepropõe investigaras influênciasdasEtiópicasdeHeliodoroedoromancegrego antigo sobre o Cândido de Voltaire. Assim, tomaremos as características marcantes dasEtiópicastraçadas,porexemplo,notrabalhodeFusillo(2006)eateorizaçãosobreaconstruçãodasnarrativasantigasetrazidaporBakhtin(1973/2018)eBrandão(2005),comafinalidadedeapontaros topoi comuns às obras e analisar como as funções da týkhe, da morte aparente e doreconhecimento,nelasoperam.Palavras-chave:týkhe;reconhecimento;morteaparente.ABSTRACT: This article proposes to investigate the influences ofHeliodorus'sAethiopica and theancient Greek novel in Candide by Voltaire. Thus, we will take Aethiopica's most strikingcharacteristicsasoutlined, forexample, in theworkofFusillo (2006), and the theorizationon theconstructionofoldnarrativesbroughtbyBakhtin(1973/2018)andBrandão(2005),aimingtopointout thecommon topoionbothworksandanalyzehowthe functionsof týkhe,apparentdeathandrecognitionaffectthem.Keywords:týkhe,recognition,apparentdeath.
As Etiópicas, romance grego composto por Heliodoro de Émesa ao redor do
séculoIIIouIVd.C.,exerceulargainfluêncianaliteraturaeuropeiaduranteosséculos
1Pós-graduanda,UTFPR.
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XVIeXVII,emgrandemedidadevidoàsuadifusãopelatraduçãoparaolatimeparaas
línguasvernáculasocorridanodecorrerdosanos1500(CRESPOGÜEMES,1979).
Heliodoronãosó fascinouautores célebresda literaturaocidental,dentreeles
Cervantes, Rabelais, Racine e Mademoiselle de Scudéry, como suas Etiópicas foram
também consideradas origem e modelo expresso quando da ainda incipiente
teorizaçãodessegêneroquenãoéépica,nãoétragédiaenemécomédiaequeviráa
serdenominadoromance(BRANDÃO,2005;THOREL-CAILLETEAU,2006). Issopode
ser observado, a título exemplificativo, no prefácio de Huet para a Zaíde: história
espanhola (1670). Conformeexplica SylvieThorel-Cailleteau (2006), nesse tratadoé
exposto que “as aventuras de Teágenes e Caricléia são tão necessárias e uma
referência capital para o romance quanto a Ilíada e a Odisseia” (p. 66, tradução
nossa).2
Nãoseriadeseestranhar,portanto,queAsEtiópicaschegasseatéVoltaire,senão
comofontedireta,emboraelepossuísseemsuabibliotecaumatraduçãodoromance,
aomenos comoparadigma (LYNCH, 1985). Parece pacificado, contudo, queCândido
parodie as convençõesdo romance grego antigo tomadonumâmbitomais genérico
(BAKHTIN,1973/2018;FUSILLO,2006;THOREL-CAILLETEAU,2006).
Nessesentido,oquenospropomosnestetrabalhoéprocurarreverberaçõesdas
Etiópicas deHeliodoronoCândido deVoltaire, lançandomãodeumaanáliseque se
debruce sobre algumas das características marcantes desse romance antigo e
apontadas,porexemplo,notrabalhodeMassimoFusillo(2006),masqueigualmente
envolva a teorização sobre a construçãodasnarrativas antigas e trazida, sobretudo,
porMikhailBakhtin(1973/2018)eJacynthoBrandão(2005).
AsEtiópicasnarraasaventurasdeCaricléiaeTeágenes,doisjovensdeextrema
belezaevirtudequeseapaixonamàprimeiravistaequesãosubmetidosaumasérie
2Nooriginal:“theadventuresofTheagenesandCharicleaareasnecessaryandcapitalareferenceforthenovelastheIliadandtheOdyssey”(THOREL-CAILLETEAU,2006,p.66).
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de provas e aventuras, encontros e desencontros, em uma viagem que começa em
DelfoseterminanaEtiópia.
Éumanarrativa,portanto,quecontémváriosdostopoidoromanceantigo,esse
definido, grosso modo3, justamente como histórias de viagens, aventuras e amor
românticoquesedesenrolaemumcenáriovagamenterealistadoMediterrâneooudo
Oriente próximo e que envolvem um rapaz e uma moça de berço nobre e
excepcionalmente atraentes. O destino os separa, os expõe a naufrágios, raptos,
cortejos indecorosos de bandidos e senhores a que jamais se sujeitam, preferindo a
morte a sacrificar sua castidade. Ao fim de uma série de tribulações, enfim se
reencontram,contraemnúpciasevivemfelizesparasempre(HÄGG,2006).
Cândido,porsuavez,seguedepertooprotagonistademesmonome,expulsoa
pontapésdo castelodobarãodeThunder-ten-TronckhnaWestfália por ter trocado
beijos comCunegunda, a filha desse último. É o seu amor por ela que omove num
caminho também de aventuras e desventuras, guerras, viagens pela Europa e pelas
Américas; igualmente, para, ao final, reencontrá-la e com ela se casar em
Constantinopla.
À primeira vista, não podemos deixar de notar que há uma semelhança de
enredoentreasduasobrasjáquealgumasdesuastemáticassãocompartilhadas.São
duasnarrativasdedeslocamento,nasquaisocasalprotagonistaenfrentafigurascomo
piratas e bandidos, sofre diversos reveses que o separam e que culminam no seu
encontro e em seu casamento. Entretanto, essa aproximação não basta. Devemos
olhar, domesmomodo, para o queAs Etiópicas possuem de particular nessa vasta
abstraçãoeobservarquaisligaçõespodemostecercomoCândido.
O romance de Heliodoro, mesmo que sentimental, comporta uma série de
reinvenções,dentreelasovastoempregodametadiegese,ouseja,dehistóriasdentro
3Umaprofundamentodadiscussão sobre aproblemáticadessadefiniçãopode ser encontradonotrabalhodeTomasHägg(2006).
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da história principal, que aparece em algumas passagens, elevada ao fator três
(FUSILLO,2006).
Omistériodacenaquedescortinaoromance,porexemplo,emquebanquetee
guerra se confundem, dominada pela figuramisteriosa de umamoça comparável a
umadeusa e armada como tal, aparentemente inexplicável, será desvelado, pouco a
pouco, a partir do livro 2 e terminando no início do livro 5, não pelo narrador
principal, mas por um dos personagens do romance, o sacerdote Calasiris, cuja
trajetóriaconvergiucomadeCaricléiaeTeágenes,protagonistasdessequadroinicial
(FUSILLO,2006).
EmCândido,porsuavez,aindaqueasnarrativasdospersonagensnãoocupem
tanto espaço como nas Etiópicas, a técnica do encaixamento se observa,
ilustrativamente,norelatodeCunegunda,feitonocapítulo8,sobrecomoescapouda
morteechegouaPortugal.OtestemunhodaVelha,porseuturno,éamaiornarrativa
engastadaquetemosnaobraeaelaéconcedidooespaçodedoiscapítulos(11e12)
paracontarsuahistóriadedesgraçaseparaelucidar,dentreoutrosfatos,odepoder
cavalgarcomumanádegasó.
Aconcessãodapalavraaospersonagensporpartedosnarradoresprincipais,de
modoquesigamosofiodoqueécontadoapartirdopontodevistadaqueles,porum
lado tem o efeito de gerar maior proximidade deles conosco, dado que temos a
impressão de acessarmos sua subjetividade diretamente, sem intermediários.
Contudo,devemosteremmentequeopersonagemnoscontarásóoquesabeouoque
quer e, ainda, do modo que lhe pareça mais conveniente, gerando uma série de
parcialidades e lacunas, essas últimas que serão preenchidas paulatinamente no
decorrer da narração. Como sintetiza Massaud Moisés (2012) “o emprego da
[narraçãoem]primeirapessoaacarretaumalimitaçãodohorizontenarrativo[...]em
contrapartida, empresta verossimilhança e intensidade ao enredo [...]mais atento à
experiência.” (p. 367) Ademais, o próprio narrador em terceira pessoa tanto nas
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Etiópicas quanto emCândido, coloca-se comumente em uma posição que escolta os
personagensemcenae,assim,desvia-sederevelartudooquesabe.
Vinculadoaisso,trazemosumafunçãonarrativaimportantedoromancegrego
(BAKHTIN, 1973/2018; BRANDÃO, 2005), que se presta a gerar suspense e que é
compartilhada pelas obras: a damorte aparente. NasEtiópicas há um episódio que
emprega esse artifício no livro 2, em que Teágenes é tomado por um profundo
desespero (e nós, leitores, pela surpresa) ao descobrir(mos) um corpo assassinado
que imagina(mos) ser o de Caricléia. Como o narrador em terceira pessoa segue
Teágenes e Cnêmon na descoberta desse corpo, sem revelar qualquer outra
informaçãoqueessesnãopossuam,produz-seochoque,neleseemnós.
OCândido, por suavez, está repletodeeventosdesse tipo,oquepermite crer
queVoltairelevaessaconvençãoaumaespéciedepontoderupturaecontribuipara
destacar a compleição paródica da obra (LYNCH, 1985). A notícia das mortes de
Cunegundaedeseuirmãopelosbúlgaros,porexemplo,chegaaCândidopormeiode
Pangloss (que possui, portanto, um entendimento parcial do que ocorreu), mas os
irmãos,emmomentosdiferentes,aparecemàvistadoprotagonistamuitobemvivos.
Emoutroepisódio,opróprioCândidoatravessaocorpodeseufuturocunhadocoma
espada,masvaireencontrá-lomaisparaofimdahistória.OpontodevistadeCândido
acompanhadopelonarradorprincipal,redunda,domesmomodo,numconhecimento
limitadodosfatos.
Nessemesmo sentido, Panglossmorre diante dos olhos do nossowestfaliano
numespetáculoinauditodaSantaInquisiçãoemPortugal,paradepoisserencontrado
inesperadamentenas galerasdaTurquia. Elehavia sido enforcado (ou, antes,muito
mal enforcado) embora não fosse o costume, pois esse determinava que o acusado
fossequeimadonafogueira.Éapartirdamortedomentor4,queCândidopoderáser
4Háumavinculaçãodamorteaparentecomatýkhe,umafunçãoqueseráexplicadaposteriormenteneste trabalho.Épormeioda separaçãodePangloss,umeventoaparentementedesfavorável,queCândido estará livre para experienciar omundo e fazer contato com outros personagens que lhe
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guiado por outros personagens e colher evidências, por si mesmo, exposto a mais
acontecimentosdomundo(docapítulo7ao26)doabsurdodafilosofiapanglossiana.
Essa,queacompanhaorapazdurantetodoseupercurso,professaqueoseventosque
sesucedemresultarãonecessariamentenomelhordosmundos,oquenotranscorrer
daspáginassemostrabastantequestionável.
A narrativa, entretanto, é construída para tornar plausível a ressurreição de
Pangloss.Ofilósofo“morre”nocapítulo6esóvamosreencontrá-lono27,noqualse
explicaráoquesucedeu,emespecialquechoviaacântaros,circunstânciaqueimpediu
suaexecuçãopelaschamas,essaquepoderiaculminarnumamorteverdadeira.Além
disso, aumidadeatrapalhouaperformanceda cordaedoexecutor: “o executordas
sentençascapitaisdaSantaInquisição[...]queimavamuitíssimobemaspessoas,mas
não estava acostumado a enforcar: a corda estava molhada e escorregou mal,
formandoumnó”(VOLTAIRE,2012,s/p).
E por falar em sentenças incomuns, lembremos que no livro 8 de Etiópicas,
Caricléia é, ao contrário de Pangloss, condenada justamente às chamas por ter sido
acusada (e ter confessado que de fato o fizera, consumida pelo desespero de não
vislumbrarumfuturocomTeágenes)deterassassinadoporenvenenamentoaserva
de Ársace,mesmo que a fogueira não fosse a punição costumeira para esse tipo de
crime. Ela escapa da pena mais cruel que se executa na Pérsia, pois sua beleza e
juventudeenternecemos juízesque “se contentaramemcondená-laa serqueimada
viva”(HELIODORO,1979,p.367,traduçãonossa).5
Ora, issoeraabsolutamentenecessárioparaqueapedrapantarba,queamoça
carregava consigo, mostrasse suas propriedades e a salvasse do fogo (aqui,
novamente, o inesperado), mas essa explicação, obviamente, só nos é dada depois,
apresentarãooutrasvisõessobreesse.Pormeiodisso,aliadoàprofusãodeadversidadesdeváriostipos,anarrativasedesdobraeécolocadaemfuncionamentoparaprovaratesedequesistemassãoquestionáveis.5Nooriginal:“secontentaronconcondenarlaaserquemadaviva”(HELIODORO,1979,p.367).
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preservando-se, como no Cândido, a atenção do leitor e transmutando a punição
bárbaranasalvaçãodosenvolvidos.
OutropontoemcomumquepodemosidentificarnasEtiópicasenoCândidoéa
tendênciaderetomadadoque já foinarrado,aindaque issopareçacumprir funções
diferentesemHeliodoroeVoltaire.Noprimeiro,alémdeseprestaraauxiliaroleitora
sesituarnessanarrativa longa,emquecoisasestãoatodomomentoacontecendo;a
estratégia contribui para essa articulação em suspense, pois preenche as lacunas,
lançauma luzdiferente àquiloque já foi objetodeatençãoeo coloca sobreopalco
maisumavezparasalientarsuaimportância6(CRESPOGÜEMES,1979).
JánoCândido,arecapitulação,feitabasicamentedemodoparatático7,colabora
também para exacerbar a velocidade de ritmo que o romance possui e para criar
humor.ÍtaloCalvinoassimexplicaesseefeito:
OgrandeachadodeVoltairehumoristaé aqueleque se tornaráumdosefeitosmaissegurosdocinemacômico:oacúmulodedesastresagrandevelocidade.Enão faltam as imprevistas acelerações de ritmo que conduzem ao paroxismo osentidodeabsurdo:quandoasériedasdesventuras jávelozmentenarradasemsua exposição “por extenso” é repetida num resumo de provocar tonturas(CALVINO,1974/2014,p.111).
Agora,iremosnosdeterbrevementesobreoassuntoqueénarrado,sobreoque
noscontamessesnarradoresnasEtiópicasenoCândido.Seriapossívelsublinharum
temaquelhessejacaro?
Michael Wood (2012) no prefácio escrito para a edição do Cândido utilizada
nestetrabalho,trazumaideiaquetalveznosforneçaalgumaspistasparadeterminar
mais um dos pontos de contato com as Etiópicas: a vanglória do sofrimento, uma
6Ver,porexemplo,livro5,4-3.(HELIODORO,1979,p.237).7 Por exemplo: “amenos que a senhora tenha sido violada por dois búlgaros, que tenha recebidoduasfacadasnabarriga,quetenhamdemolidodoisdosseuscastelos,quesetenhamdegoladodiantedosseusolhosdoispaiseduasmães,equetenhavistodoisdeseusamadoschicoteadosnumautodefé,nãovejocomoasenhorapossamesuperar”(VOLTAIRE,2012,s/p).
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espéciedecompetiçãoquevisadeterminarqueméalvodemaisagrurasda fortuna,
acentuada pelo emprego do encaixamento das narrativas dos personagens em
primeirapessoa,quepodem,àvontadeexagerarnadramaticidadedasadversidades
pelasquaispassaram.
Sobre isso, Cunegunda e aVelha têmumabreve altercação a respeitodequal
delasteriasofridomais(veranota7),oqueaslevaaumaapostasumarizadanestes
termosporessaúltima:“sehouverumsó[homem]quenãotenhaamaldiçoadoavida
comfrequência,quenãotenhaditomuitasvezesqueeraomais infelizdoshomens,
atirai-meaomardecabeça”(VOLTAIRE,2012,s/p).
Cândido, inspirado por essa aposta e saturado da maldade dos homens,
promove,noCapítulo19,umcertameparaescolherumcompanheirodeviagempara
siquepossaconsolá-lodealgumaforma,poisacondiçãoimpostaaoscandidatoseraa
de que “fosse o mais desgostoso de seu estado e o mais infeliz da província”
(VOLTAIRE,2012,s/p).
Ora,asEtiópicas igualmenteestá recheadadessashistóriasde infelicidades8, o
que corrobora a leitura de mundo da Velha, e que ouvidas, funcionam como uma
espéciede consoloparaquemas escuta, comonoepisódio emqueCnêmoncontao
quepassouemrazãodasmaquinaçõesdesuamadrastacontraele9.Mastambémhá
ummomentoemquetaishistóriasseapresentamemdisputa,emtermossemelhantes
aoqueocorreemCândido,entreeleeTeágenes:“emdesgraças,Teágenes[...]éincerto
8“―Óvicissitudesdodestinohumano,sempreinstávelesujeitoatodasasmudanças!Quegrandevaivémde desgraças recai sobremuitos outros e sobremim!”No original: “¡Cuán gran vaivén dedesgraciastienesabienprecipitarsobreotrosmuchosysobremí!”(HELIODORO,1979,p.285).9 “[Caricléia e Teágenes] pediram-lhe demilmaneiras para falar, porque pensaram que seria umgrandeconsoloouvirpenassemelhantesàsdeles.”Nooriginal:“[CaricléiaeTeágenes]lepidierondemilmanerasquehablara,puespensabanqueseríaungranconsuelooírpenassemejantesa lasdeellos”(HELIODORO,1979,p.77).
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quem tem a vantagem, porque a fortuna também me cobriu generosamente de
misérias”(HELIODORO,1979,p.77,p.132,traduçãonossa).10
Relacionadoa isso,olhemosnestemomento,maisdetidamente,paraogrande
fio condutor das narrativas analisadas, as peripécias dos protagonistas. Bakhtin
(1973/2018) expõe, notadamente sobre o romance grego, que “a maioria das
aventuras [...] organiza-se precisamente como provações do herói e da heroína,
predominantementecomoexpressõesdesuacastidadeedafidelidadedeumaooutro.
Mas, além disso, são provadas sua nobreza, coragem, força, intrepidez e mais
raramentesuainteligência”(BAKHTIN,1973/2018,p.40).
Taisprovações,comoexplicaBrandão(2005),sãoviabilizadasnaorquestração
doromancegregopelafunçãodatýkheque,maisdoquemeroacasoouumavontade
caprichosadeorigemdivina,éentendidacomo“oencaixequepermiteaevoluçãoda
narrativa como o elemento que, introduzindo nela o inesperado, tanto prende a
atenção do leitor quanto fornece os instrumentos para que o narrador possa
desdobrarsuahistória.”(p.224)Eleaindaesclarecequeatýkhetrazambivalênciaao
romancegrego,jáquealgumfatoaparentementebenéficopodeseroiníciodegrandes
provações, ao passo que algum acontecimento desfavorável pode culminar num
desfechosatisfatório.11
NasEtiópicas Caricléia e Teágenes são submetidos a diversas provas que vão
desdeoraptoporpiratasebandidos,todosmuitoinclinadosadesposarCaricléia,até
aangustiantetorturaaquesãosubmetidosporÁrsaceemMênfis,elaquedenenhum
modo logrou seduzir Teágenes. Isso sem mencionar as provas atléticas bem
executadas e vencidas pelo rapaz. Todos esses episódios corroboram que os
10 No original: “en desgracias, Teágenes [...] es incierto quién lleva la ventaja, porque la fortunatambiénamímehacolmadogenerosamentedemiserias”(HELIODORO,1979,p.77,p.132). 11Atýkhe,ainda,écaracterizadapeloseuamoraonovo.EmCândido,essasnovidades(amaiordelas,talvez,oencontrodeEldorado)emgrandepartedasvezessãohorrivelmentedesfavoráveisealheiasa probabilidades, mas que acontecem assimmesmo: “’Mas’, disse Cândido, ‘aí está uma aventurapoucoverossímilquetivemosemVeneza.[...]’‘Issonãoémaisextraordinário’,disseMartinho,‘doqueamaioriadascoisasquenosaconteceram’”(VOLTAIRE,2012,s/p,grifonosso).
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protagonistas, como se espera em razão das convenções do gênero, são fiéis e
equivalentesemnobrezae,maisespecificamentenocasodamoça,sagazes.
EmCândido,umafunçãosemelhanteàtýkhecolocaàprova,pormeiodafigura
de seu protagonista e das situações extraordinárias que se apresentam a ele e aos
demais personagens e que vão se acumulando exponencialmente, num carrossel de
desgraças,comosintetizouÍtaloCalvino(1974/2014),nãoanobrezaouacastidade12,
masqualquerespéciedesistema,nãosóodoOtimismoleibnizianodePangloss,como
poderiasesupornumaprimeiraanálise:
No entanto, não são apenas às particularidades do sistema de Leibniz a queVoltaire se opõe, mas, sobretudo, à crença que ele sentiu ser característica doracionalismo de sua época, de que a lógica e a razão podem de alguma formaexplicaramisériacaóticadaexistênciaeignorarmetafisicamenteosfatos.[...]comosistemafilosófico,ootimismoédesacreditadonãotanto(e,certamente,nãoapenas)porqueseusprincípiossemostramimplausíveisàluzdasevidências,masessencialmenteporqueéumsistema.Comotal,é tãodesumanoeperigosoquantotodososoutrossistemasquesãoimplacavelmentesatirizadosnahistória:osistemamilitar,osistemadaIgreja,osistemacolonial,osistemadecastase,defato,oprópriosistemadalógica(PEARSON,2006,xixexxii,traduçãonossa).13
ÉclaroqueanaturezadatýkhenocasodeVoltaire,alémdepôràprovaalgoque
vai além dos personagens, apesar de empregá-los para provar sua tese, parece
enviesar exageradamente no sentido da má-sorte, já que temos, ao lado de
12 O heroísmo e a castidade como lugares-comuns do romance são também alvos de ironia noCândido. O horror da guerra, por exemplo, é caracterizado como heroico e seus soldados quesaqueiam vilas e violam as mulheres são ditos heróis. Cunegunda, por seu lado, não possui acastidadecomoumdeseuspontos fortes (LYNCH,1985).Cândido, igualmente,não lheé fiel,poiscedeàseduçãodamarquesanoCapítulo22.13Nooriginal:“YetitisnotjusttheparticularsofLeibniz’ssystemwhichVoltaireobjectsto,butevenmore so the belief, which he felt to be characteristic of the rationalism of his age, that logic andreason can somehow explain away the chaotic wretchedness of existence by grandly andmetaphysically ignoring the facts. [...] as a philosophical system, Optimism is discredited, not somuch (and certainly not only) because its tenets are shown to be implausible in the light of theevidence,butessentiallybecauseitisasystem.Assuchitisasinhumanandasdangerousasalltheothersystemswhichareruthlesslysatirizedinthestory:themilitarysystem,theChurchsystem,thecolonialsystem,thecastesystem,andindeedthesystemoflogicitself”(PEARSON,2006,xixexxii).
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contingênciascomotempestadese terremotos,encontroscomsujeitosquecometem
crimes e não cumprem com a palavra. Todavia, o que poderia parecer uma regra
nefasta que nos satura de desencanto, é quebrada pelo caráter inesperado e
ambivalente da týkhe em ao menos um momento: o fiel Cacambo, apesar de
permanecer desaparecido durante sete capítulos, gerando certa dúvida sobre sua
lealdade, semostra de fato fiel como seu epíteto sugere e leva Cândido a encontrar
Cunegunda, conforme prometido, o que contribui para demonstrar que mesmo o
sistemapessimistadeMartinhoéquestionável(PEARSON,2006).
E derivadas das vicissitudes do destino humano estão as andanças dos
personagens nas duas obras. Caricléia e Cândido fazem suas jornadas sempre
acompanhados,senãoporsábiosstrictosensucomonocasodela,aomenosporfiguras
experimentadas, para defini-las todas num sentidomais geral. Amoça é guiada por
Sisimitres, Caricles eCalasiris; já nossowestfaliano, porTiago, Pangloss, pelaVelha,
porCacamboeMartinho.
Aqui, novamente, nesta semelhança vale apontar uma diferença. Caricléia
adquire relativamente rápido certa astúcia, fruto da experiência advinda dessas
andançasedaconvivênciacomCalasiris.Empregaemalgunsepisódiosaficçãocomo
arma14,ouseja,menteparaprotegerasieaTeágenes,dizendo,porexemplo,quesão
irmãosaopirataTíamis,àservadeÁrsaceeaHidaspes.
Cândido,porseu turno,apesarde tersofridoe testemunhadoosreveses (eas
maldades) domundopor treze capítulos,mostra-se obstinado e ingênuo emnão se
utilizar dos mesmos subterfúgios a que recorre Caricléia, embora fosse óbvio que
perderiaCunegundaparaD.Fernando:
14“estaficçãodeveserguardadacomoumaarma,edevesermantidaemsegredodetodos[...].”Nooriginal:“Hayqueguardar,pues[...]estaficcióncomounarma,yhayquemantenerlaensecretoatodos[...]”(HELIODORO,1979,p.104).
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nãoousoudizerqueelaeraasuamulher,porquedefatoelanãoera;nãoousavadizer que era sua irmã, porque tampouco não o era; e embora essa mentiraoficiosa tivesse estadooutroramuitonamodaentreosantigos epudesse serútilaosmodernos,asuaalmaerapurademaisparatrairaverdade(VOLTAIRE,2012,s/p,grifonosso).
Onarrador,notrechoemdestaque,parececriticaressaconvençãoromanesca,
contudo, ao trazer o sentido de utilidade dessa para os modernos, sugere que tais
mentiras úteis sãomais práticas do que a fidelidade ingênua de Cândido à verdade
(LYNCH, 1985). Todavia, é claro que no decorrer da narração, nosso protagonista,
alémdegradualmenteirabandonandoossistemasdePanglossedeMartinho,vaise
tornandomais prático como a Velha e Cacambo, que, ao contrário de filosofar, dão
conselhosqueresultamemação.15
Aindasobreascaracterísticasdessetoposcomumdoromanceantigoquesãoas
viagens, importante mencionar que As Etiópicas possuem algumas que lhe são
peculiares.Podemos,porexemplo,percebernesseromanceosincretismoculturaleo
multiculturalismo que se refletem, por um lado, na preocupação do autor com o
aspectolinguísticonosdiálogosentreospersonagens,quemuitasvezesseutilizamde
intérpretes e, por outro, na caracterização desses pontos geográficos. Enquanto em
outros romances antigos não é observada qualquer valoração dos lugares, em
Heliodorotemosumsistemadeculturascomplexoquesevinculatambémàpolifonia
dasvozesnarrativas(FUSILLO,2006).
A Pérsia representaria um polo negativo, ligado à figura de Ársace, déspota e
entregueaoerosdaloucura;AtenasévinculadaàdeCnêmon,personageminspirado
15 “Cacambo, que sempre dava tão bons conselhos quanto os da velha, disse a Cândido: ‘Nãoaguentamos mais; já caminhamos bastante; estou vendo uma canoa vazia ali na margem; vamosenchê-la de cocos, lancemo-nos nessa barquinha, deixemo-nos levar pela correnteza; um rio leva sempreaalgumlugarhabitado’”(VOLTAIRE,2012,s/p).CompararcomoqueacontecenoCapítulo5,emquePanglossexplicaaorigemdosterremotosaoinvésdeajudarCândidoaserecuperardosferimentoscausadosporessemesmofenômeno.
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nomitodeFedra;Delfoséolugardaantigasabedoriadosoráculos,personificadoem
Caricles; o Egito está na intersecção da Grécia com a cultura oriental, tal como o
Homero de Heliodoro e o próprio Calasiris. O degrau mais alto desta hierarquia
pertenceria à Etiópia, espécie de lugar utópico e origem da antiga sabedoria dos
gimnosofistas, onde ocorre o casamento também sincrético de Caricléia e Teágenes
(FUSILLO,2006).
EmCândido, igualmente, temosumapreocupaçãocomas línguas faladasentre
ospersonagens. Cândido, apesarde serumpoliglotahabilíssimo, de línguamaterna
alemã, capaz de se expressar em holandês, português, italiano, espanhol, francês,
inglêseturco,lançamãodeCacambocomointérpretenopaísdosorelhinhase,claro,
emEldorado(WOOD,2012;apudPOMEAU,1980,p.195).
AEuropaeasAméricassemostramanálogas16emtermosdeguerras,traiçõese
exploração do ser humano pelo ser humano, apesar de Cândido ter certeza,
inicialmente, dequenonovo continente tudo estariabem, “pois épreciso confessar
quesepoderiagemerumpoucopeloquesepassanonosso[Europa]emfísicaeem
moral”(VOLTAIRE,2012,s/p).
Fazemos aqui a ressalva de que a ingenuidade extrema do protagonista no
começo da narrativa faz daWestfália uma espécie de paraíso, algo não inerente, é
claro,masfrutodesuaextremainexperiência.Suaterranataleratudooqueconhecia
atéentãoe,alémdisso,estavacontaminadapelafilosofiapanglossiana.
O único lugar de Cândido em que de fato tudo está encadeado em função do
melhoréEldorado.CândidoeCacambo,entretanto,seresolvemadeixaressautopia
onde ouro é lama dourada, pedras preciosas são cascalho, prisões e tribunais não
existemeondeserezaparaagradecer,nuncaparapedir.Afelicidadenivelaeanulaa
diferença,nosfazcomotodososoutros:“gosta-setantodecorrer,desevalorizarna
própriaterra,defazeralardedoqueseviunasviagens,queosdoisfelizesresolveram
16 “‘O senhor está vendo’, disse Cacambo a Cândido, ‘que este hemisfério não valemais do que ooutro:acredite-me,voltemosàEuropaomaisbrevepossível’”(VOLTAIRE,2012,s/p).
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nãomaissê-lo”(VOLTAIRE,2012,s/p).OnarradordasEtiópicas,porseuturno,teria
dito “é que a natureza humana é incapaz de receber prazer puro e sem mistura”
(HELIODORO,1979,p.237,traduçãonossa).17
CândidoterminasuajornadaemConstantinopla,ondeenfimsereúnemtodosos
personagens principais da trama (o irmão de Cunegunda, entretanto, é excluído
posteriormente,dadasuaintransigênciadeimpedirocasamentodelacomCândido).A
fazendaemqueseinstalaméumparaísopragmático.Ali,cadaumcontribuicomoque
faz demelhorpara o funcionamento orgânico e eficiente dapropriedade, aindaque
taistalentossejamdistribuídospelonarradordemodoparticularmentedesfavorável
paraasmulheres(PEARSON,2006).Nãoéumfinaltãosatisfatóriocomoaquelequese
dánaEtiópiadorei-modeloHidaspes;entretanto,nãoétambémtãoruimcomoasérie
defatosadversosquefoiseacumulandonodecorrerdahistóriapoderianossugerir.
OpercursodeCaricléiaculminanadescobertadesuaorigemfamiliar(FUSILLO,
2006), mas ela não muda. Sua beleza, castidade e nobreza são corroboradas no
desenrolar dasdurasprovações a que é submetida. Já Cândido, no ínterimdas suas
aventuraspelaAméricaeEuropa,vaiabandonandopoucoapoucotodosossistemas,
dootimismodePanglossaopessimismodeMartineadotaomesmopragmatismode
seu jardim,queé, emcerto sentido, equivalente aodaVelha,deCacamboedobom
velhinhodeConstantinopla.
Bakhtin (1973/2018) aponta como outro dos elementos cruciais do enredo
romanescogregoaoladodasmortesaparentes,oreconhecimentoeotravestimento,
nosquaispodeserobservado“ojogodiretodoenredocomossinaisdaidentidade”(p.
39).NasEtiópicasomovimentoédenãoreconhecimentoparaodereconhecimentoe
de confirmação de identidade. Caricléia no livro 7, após se travestir comomendiga,
não é reconhecida por Teágenes, que necessita da senha anteriormente combinada
parasedarcontadequequemoabraçaésuaamada.Ainda,nofimdoromance,graças
17Nooriginal:“lanaturalezahumanaes incapazderecibirplacerpuroysinmezcla”(HELIODORO,1979,p.237).
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ao testemunho de Sisimitres, ao relato escrito presente no cinturão com que fora
abandonada e a seu cotejamento como retrato deAndrômeda, é reconhecida como
verdadeirafilhadePersinaeHidaspeseprincesadaEtiópia.
No Cândido, ao contrário, temos cenas de reconhecimento que se mostram
falsas.Quando,naFrança,CândidorecebeumacartadeCunegundalhedandonotícias
de que estaria hospedada ali perto, apesar de ela nunca ter lhe enviado nenhuma
carta,onarradoranuncia,mesmoassim,quesetratariadefatodela:“[...]elepegaseu
ouroeseusdiamantesefaz-seconduzircomMartinhoaohotelondeaSrta.Cunegunda
se hospedava” (VOLTAIRE, 2012, s/p, grifo nosso). Um parágrafo depois,
surpreendidos pela guarda e ameaçados de prisão, Cunegunda não é mais
Cunegunda.18AverdadeiraCunegundatambémnãoémais,aofimdanarrativa,oque
era― “corada,fresca,gorda,apetitosa”19―,gerandoestranhamentoquandoCândido
a vê: “O terno amante Cândido, ao ver a sua bela Cunegunda amorenada, de olhos
rajados,comocoloressecado,asfacesenrugadas,osbraçosvermelhoseescamados,
recuou três passos tomadodehorror e avançouemseguida, porbomprocedimento”
(VOLTAIRE,2012,s/p,grifonosso).
Apesar de manter sua palavra e ao fim desposá-la, Cândido igualmente está
diferenteemrelaçãoa seuamorporela,pois justificaocasamentodizendoqueseu
deveréamá-lasempre.Bem,devernãoéomesmoquequerer.
Registramos, por fim, a tendência enciclopédica das duas obras, outra
característicainerenteaogêneroantigosegundoBakhtin(1973/2018).
Tanto Heliodoro quanto Voltaire trazem à narrativa temas como história,
filosofia, literatura e mesmo explicações científicas de fenômenos naturais. Com a
intençãodeilustrar,citamosateoriaquevisavaelucidaromotivosubjacenteàscheias
18 “Martinho, tendoretomadoosangue-frio,achouqueadamaquese faziapassarporCunegundaeraumagatuna”(VOLTAIRE,2012,s/p).19ComoLynch(1985)aponta,abelezadeCunegundaéterrena,aocontráriodadivinadeCariclea,eseassemelhaàdeumprodutodepâtisserie.
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periódicas do Nilo, dada no livro 2 das Etiópicas, e uma para a existência dos
terremotos fornecida no capítulo 5 do Cândido, ainda que estejam longe de serem
essesosúnicosexemplosdesseenciclopedismo.
Nosaspectosabordadosnestetrabalho,esperamosterconseguidodemonstrar
tantoavinculaçãodeCândidoaoromancegregoantigo,nogeral,quantoàsEtiópicas,
emparticular.
Para além das semelhanças de enredo, vimos que Voltaire se utiliza desse
recurso bastante comum nas Etiópicas que são as narrativas engastadas, que
contribuempara enfatizar as tribulações sofridas pelos personagens e operampara
aguçaracuriosidadedoleitoremanterseuinteressenahistória.
Apontamos, da mesma forma, a preocupação em ambas as narrativas de
preservar a verossimilhança, seja por meio do expediente enciclopédico ou em
situações mais pontuais, como nos episódios em que Pangloss e Caricléia são
condenadosàmorte.Ressaltamos,contudo,quedevemosreconhecerquenoCândido
há uma profusão de eventos nefastos que colocam em dúvida que um jogo de
probabilidadesestejaoperando.
Neste diapasão, colocada, igualmente, como uma obra que parodia as
convenções romanescas, procuramos indicar que a função semelhante à týkhe em
Voltairenãoatuaparacorroborarpormeiodaprovação,comonoromanceantigo,a
nobreza e a castidade do casal protagonista, mas para provar a tese voltairiana do
descréditodossistemas,vinculadaaesseconjuntodedesgraçasquesereitera.
A função da morte aparente, elevada a um nível exagerado, assim como a
utilização da retomada narrativa, comuns aos romances antigos, mas, em Voltaire,
empregadas de forma condensada, ressaltando os infortúnios que acometem os
personagens,causaumefeitodevelocidadeehumor.
A inversão da função do reconhecimento, para a de não reconhecimento, por
fim, tambémparodia os lugares comunsdanarrativa romanesca e leva, senão a um
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final infeliz, aomenosmelancólico. Cândido, que não reconhecemais sua amada, a
quem busca esperançosamente durante grande parte da história, encontra-a
extremamentemaltratadaporessatýkhequeaquiédúbia,poispermiteocasamento,
mas enviesa ainda uma vez para a má-sorte. A aparência da moça se constitui no
último golpe contra o sistema panglossiano, vez que tudo o que aconteceu com ela
definitivamentenãoculminounomelhor.Cândidoadesposaporqueédebomtomque
ofaça.Comoseujardim,aofimeaocabo,precisacultivarsuamelancolia,naspalavras
deVictorHugo,“afelicidadedesesertriste.”
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. “O romance grego.” In ____. Teoria do romance II―As formas do tempo e docronotopo.Trad.PauloBezerra.SãoPaulo:Editora34,p.15-46,1973/2018.BRANDÃO,JacynthoLinsBrandão.L.Ainvençãodoromance.Brasília:EditoradaUNB,2005.CALVINO,Italo.“Candideouavelocidade.”In_____.Porquelerosclássicos.Trad.NilsonMoulin.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,p.110-14,2014[1974].CRESPO GÜEMES, Emilio. “Introducción a Heliodoro.” In HELIODORO. Las Etiópicas, E. Madrid:Gredos,p.7-55,1979.FUSILLO,Massimo.“Aethiopika(Heliodorus,ThirdorFourthCentury).”InMORETTI,F.TheNovel,v.2.Princenton:PrincentonUniversityPress,p.131-37,2006.HÄGG, Tomas. “The Ancient Greek Novel: A Single Model or a Plurality of Forms?” In MORETTI,Franco.TheNovel,v.1.Princenton:PrincentonUniversityPress,p.125-55,2006.HELIODORO.LasEtiópicas,E.Madrid:Gredos,1979.MOISÉS,Massaud.Dicionáriodetermosliterários.SãoPaulo:EditoraCultrix,2012.LYNCH,James.“RomanceconventionsinVoltaire'sCandide.”InSouthAtlanticReview,v.50,n.1,p.35-46,1985.PEARSON,Roger. “Candide.” InVOLTAIRE.Candideandother stories.NewYork:OxfordUniversityPressInc.,p.xvii-xxiv,2006.
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THOREL-CAILLETEAU, Sylvie. “The poetry of mediocrity.” In MORETTI, Franco. The Novel, v. 2.Princenton:PrincentonUniversityPress,p.64-94,2006.VOLTAIRE.Cândido,ouoOtimismo.Trad.MárioLaranjeira.SãoPaulo:PenguinClassics/CompanhiadasLetras,2012.Ebook.WOOD,Michael.“IntroduçãoaoCândido,ouoOtimismo.”InVOLTAIRE.Cândido,ouoOtimismo.SãoPaulo:PenguinClassics/CompanhiadasLetras,2012.Ebook.Recebidoem:28/02/2021Aceitoem:05/04/2021
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APOLÔNIA,P.E..Abuscade... 190
ABUSCADEUMASOCIEDADEAFRICANATRADICIONALEAFIGURA
FEMININANAOBRAPOÉTICADEPAULATAVARES
THESEARCHFORATRADITIONALAFRICANSOCIETYANDTHEFEMALE
FIGUREINTHEPOETICWORKOFPAULATAVARES
PaulaEsterApolônia1
RESUMO:OpresenteartigoprocuraevidenciardequeformaelementosconsideradosprópriosdassociedadesafricanastradicionaisaparecemnaobrapoéticadePaulaTavares.Tendoemvistaopapeldapoesiaparaaautora,entende-sequeelaautilizaparacompreenderaspectosdessassociedades,asquaiselamesmadiznão“compreenderinteiramente”.Atravésdocomentáriodealgunspoemasselecionadosdapoetaangolana,destacamostambémoquãorelevanteéofrequenteaparecimentodafigurafemininaemsuapoesia.Palavras-chave:PaulaTavares;poesiaangolana;sociedadesafricanas;figurafeminina.ABSTRACT:ThisarticleseekstoshowhowelementsconsideredtobetypicaloftraditionalAfricansocietyappearinthepoeticworkofPaulaTavares.Inviewoftheroleofpoetryfortheauthor,itisunderstoodthatsheusesittounderstandaspectsofthesesocietieswhichsheherselfsaysshedoesnot “fullyunderstand”.Through thecommentaryofsomeselectedpoemsby theAngolanpoet,wealsohighlighthowrelevantitisthefrequentappearanceofthefemalefigureinherpoetry.Keywords:PaulaTavares;Angolanpoetry;Africansociety;femalefigure.
PaulaTavares,escritoraangolanaquepublicaoseuprimeiro livroem1985,é
umapoetaqueprocuraseaproximardemodosdeveresentirquesepodeimaginar
seremprópriosdeumuniversoafricano,oqual remeteasociedades tradicionaisdo
continente,emespecialdaregiãoondehojeficaAngola.Emalgumamedida,aautora
buscarecuperarumamemóriaquefoiarrancadacomacolonização,oquerefleteem
1Graduanda,UFOP.
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APOLÔNIA,P.E..Abuscade... 191
suaescritapoética,naqualépossível identificarelementosatinentesa culturasnão
ocidentais, historicamente objeto de repúdio e desprezo por parte da perspectiva
eurocêntricadoscolonizadores.
Tavares surge no cenário das letras angolanas em ummomento de inovação,
quando se abandona o que ela própria identificou como um “chamamento
cantalutista”, associado aos ideais do movimento de libertação nacional, com sua
vontade de criar um “‘homem novo’” (TAVARES, 2008, p. 44). Segundo Laura
Cavalcanti Padilha (2012), desde o primeiro livro, Ritos de passagem, a poesia de
Tavares representa, “umamudançade rumododizer lírico femininoemAngola” (p.
217). Hoje, já se pode dizer que sua obra faz parte não apenas do cânone literário
angolano,masdo“espaçoalargadodas literaturasemlínguaportuguesa”(PADILHA,
2012,p.220).
Padilha,umadasbasescrítico-teóricasqueutilizamosnestetrabalho,étambém
quemafirmaqueaobradapoetatransita“pelospolosdatradiçãoedamodernidade”,
como fazia jáumantecessor importante,RuyDuartedeCarvalho,ao “interseccionar
os bens simbólico-culturais das populações que habitavam o lugar ‘achado’ pelos
navegantes portugueses e a herança também simbólico-cultural por estes
transplantada”(PADILHA,2012,p.219).Nomesmosentidovaiaafirmaçãodeoutra
de nossas referências, Carmen Lucia Tindó Secco (2011, p. 263), quando diz que
Tavarestrabalhacom“culturas”,noplural:“Éumapoesiaque[...] [faz interagir],em
tensão,ossentidostelúricoseoespólioadvindodeculturasque,atravésdosséculos,
habitaramAngola”.
No texto que segue, faremos comentários ou análises de alguns poemas
selecionados de quatro dos seis livros de poesia da autora, quais sejam: Ritos de
passagem (1985), Dizes-me coisas amargas como os frutos (2001), Manual para
amantes desesperados (2007)eComo veias finas na terra (2010). Para entender um
poucomelhorouniversotradicionalafricano,faremosusodeHampatéBâ,comseu“A
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tradiçãoviva”(2010),sempretomandocuidadoparanãoencararocontinentecomo
“umblocounoemonolítico”(PADILHA,2012,p.209).Outrosautorestambémserão
citados,comoIsabelCastroHenriques,ManuelFerreiraeBernardoAmorim,quenos
ajudarãoapensaremalgumasdasespecificidadesdapoesiaemquestão.
Tendoemvistaaideiadequeapoesiadaautoraécapazde“entrançar[...]duas
heranças” (PADILHA, 2012, p. 219), pode ser interessante pensá-la como uma
“mulher-de-dois-mundos”, que teve contato com duas culturas bem distintas, duas
sociedades bem diferentes, considerando-se também as diferenças entre o espaço
urbanoeoespaçorural.DeacordocomManuelFerreira,emseutexto“Umaaventura
desconhecida” (1975), a sociedade africana sofreu um processo de hibridização
cultural,queafetademaneiraparticularosescritoresquealiproduzemassuasobras.
Em seus termos, mesmo poetas “de genuínas raízes africanas” nesse espaço são
“possuídosdeumaculturafortementeeuropeia”,demodoquea“suapoesia,mesmo
quando orientada comdeterminaçãopara as fontes originais deÁfrica, terminapor
acusar a cargade todoumprocesso culturalmistoouhíbrido” (FERREIRA,1975,p.
41).
Neste sentido, a autora representaria uma figura que se pode aproximar do
mestiço,talcomodescritoporFerreira(1975,p.44):“Odestinodomestiçoseráodo
homem-de-dois-mundos,quesecumpriráumpoucodeharmoniacomopesocultural
de cada um destes dois mundos”. Seria, nas palavras de Bernardo Nascimento de
Amorim(2019,p.40),emartigosobreaautora,“umafigurainfluenciadapela‘cultura
da potência colonial’,mas interessada em se aproximar, emparticular, das ‘grandes
massasrurais’,cujo‘patrimôniocultural’[...]pretenderiavalorizar”.ComodizAmorim
(2019, p. 39-40), o escritor, em situações assim, teria que realizar uma espécie de
travessia,embuscadasfontesdeumaculturaafricanapropriamentedita:
Acontece que o escritor, o intelectual, pertencente aos ‘grupos letrados’ de suanação, sendo um membro da ‘pequena burguesia autóctone’, deve,
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necessariamente, fazerummovimentode travessia, sequiser seaproximardas‘massas populares trabalhadoras do campo e dos centros urbanos’. (AMORIM,2019,p.39-40).
Aprópriapoetafalasobrecomosuaexperiêncianaregiãodeorigemcondizcom
asafirmaçõesanteriores:
AHuíla,talqualeranaminhajuventude,eraolimiteentreduassociedadesbemdistintas; a sociedade europeia ― é uma cidade com muitas característicaseuropeias:umacidadedeplanalto,ondefazfrioeverde...E,poroutrolado,umasociedade africana que era ignorada pela cidade europeia. (TAVARES, 1991, p.849).
Tavares(1991,p.949) falada importânciadaHuíla,suaregiãonatal,paraseu
fazerpoético,marcadopelo “limiteentreduas sociedades completamentedistintas”.
Elaadmiteque“só fala línguas imperiais”,masadverteque issonãoaseparadesua
terra:“Eueaminhaterranãonosseparamos.Ouéissoqueeuprocuronãoseparar”
(TAVARES, 2008, p. 49). Tendo “no ouvido o som de outras línguas”, que não as
africanas,eladizqueseutrabalhoseconstituicomoumacanibalização,devoraçãode
diversasreferências: “eunão façocópias: trabalho,canibalizoedevorocomomuitos
outrosafricanosfizeram”(TAVARES,2008,p.49).
Outro ponto muito explorado na obra de Tavares diz respeito ao universo
feminino. Em sua poesia, predomina um sujeito lírico frequente e destacadamente
feminino,oqualrealizadiversasfunçõesepapéisnostextos.Sobreseuinteressepela
figurafeminina,Tavaresafirma:
[...] a situação damulher em particular chamou-me a atenção desde sempre: asituação da mulher na sociedade africana, da mulher enquanto unidade deproduçãofundamentalnessamesmasociedade,damulheremtornodaqualtudogiravaeque,aomesmotempopareciaserumnadaimportanteemrelaçãoaessamesmasociedade.Apartirdessapreocupação,veio-meavontadededescobriroqueéquesepassavarealmentenavidadessasmulheresnessasociedadenaqualeunãotinhacrescidoedaqualeunãosabiacompreendermuitascoisas.Assimquisescrever,conhecercoisascomotodososrituaisdeiniciação,apuberdade,a
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preparaçãodamulherparaomatrimónio,ocasamento,a relação-mulher,mãe-filhoquerdizer:opercursodamulheratéàmorte.(TAVARES,1991,p.850).
Opoemaaseguirseencontrano livroRitosdepassagem,publicadonoanode
1985, inaugurando a obrapoética da autora.Na visãode Secco (2011, p. 265), esse
livro se diferencia dos posteriores da poeta por possuir um eu lírico com atitudes
peculiares:“Saltandoocercadoebuscandoaosulaliberdade,afigurafeminina,nesse
primeirolivrodePaulaTavares,persegueoscheirosesaboresdaterra,redescobrindo
asuaprópriasexualidade”.
O poema, sem título, é antecedido por uma epígrafe, na qual se encontra um
provérbio da filosofia de Cabinda, região localizada no norte de Angola. Como
manifestação da tradição oral, o provérbio já indica a vontade da poeta de dar
visibilidadeàculturaangolana:
Ascoisasdelicadastratam-se comcuidado FILOSOFIACABINDA
Desossaste-me cuidadosamente inscrevendo-me noteuuniverso comoumaferida malditanecessária
conduzistetodasasminhasveias paraquedesaguassem nastuas semremédio meiopulmãorespiraemti ooutro,quemelembre malexiste
Hojelevantei-mecedo pinteidetaculaeáguafria ocorpoaceso nãobatoamanteiga nãoponhoocinto VOU paraosulsaltarocercado.(TAVARES,2011,p.55).
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Acerca da epígrafe, é possível notar uma relação entre ela e o conteúdo do
poema,tendoemvistaaideiadecuidado,presenteemambos.Nopoema,observa-se
umcontrasteentreoquesediznocorpodopoema,comoquesediznoprovérbio.A
epígrafe utiliza o substantivo “cuidado” de modo a aproximá-lo das ideias de
delicadeza, cautela, atenção, enquanto o advérbio “cuidadosamente”, no corpo do
poema,carregasignificadosopostos,poisestáassociadoaumatodeviolência.
Há no poema claras referências ao que se acredita ser natural ao universo
africano e umpoucoda rotinadamulher tradicional africana.Aprimeira estrofe se
iniciacomoeulíricodescrevendoaçõesquesofreudeumasegundapessoa,um“tu”.
Pelostermosutilizadosnosversos,desdeoinício,como“desossaste-me”,depreende-
se que se trata de ações negativas e nocivas ao sujeito poético.Na última estrofe, é
possível identificar uma revolta por parte dele, que se infere ser feminino, uma vez
queasfunçõesdescritasnamesmaestrofesãodesempenhadastradicionalmentepor
mulheres.
Na última estrofe do poema, acontece, de fato, uma mudança, uma quebra,
fenômenomarcadopelainsatisfaçãodoeulíricoque,atéentão,mostrava-sepassivo.A
movimentaçãodosversoseestrofesdopoema,característicabempeculiardaescrita
poéticadeTavares,emparticular,emRitosdepassagem,acompanhaasatitudesdoeu
lírico, de maneira que a passividade é então substituída pela necessidade de se
revoltar.EssefatovaiaoencontrodopensamentodeTavares(1991,p.858),expresso
atravésdaseguintefala:“[...]mesmonesseuniversotradicional[...],eupensoquehá
muitos gritos de revolta nessa máquina que não funciona assim tão bem”. Aqui, a
insatisfaçãoseconcretizacomainiciativade“saltarocercado”,oqueevidenciaqueo
cercadoéumlugardeopressãoelimitação.
OpróximopoemaseencontranolivroDizes-mecoisasamargascomoosfrutos,
terceirolivrodaautora,publicadonoanode2001.Secco(2011,p.269)destacacomo,
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nesselivroeemoutrosdaautora,osujeitopoéticoassume“umaatitudederesistência
noquedizrespeitoàpreservaçãodastradições”,mesmoemmeioàs“desilusõescom
opresente”.
Dequecoreraomeucintodemissangas,mãefeitopelastuasmãosefiosdoteucabelocortadonaluacheiaguardadodocacimbanocestotrançadodascoisasdaavóOndeestáapaneladoprovérbio,mãeadastrêspernaseasapartidaquemedesteantesdaschuvasgrandesnodiadonoivadoDequecoreraaminhavoz,mãequandoanunciavaamanhãjuntoàcascataedesciadevagarinhopelosdiasOndeestáotempoprometidop’raviver,mãesetudoseguardaerecolhenotempodaesperap’raládocercado.(TAVARES,2011,p.133).
Nessepoema, intitulado“Ocercado”,expressãobastantehabitualnapoesiada
escritora angolana, temos o eu lírico feminino dirigindo questionamentos a uma
segunda pessoa, nomeada e identificada como “mãe”Os questionamentos giram em
torno de sua identidade, o que pode levar a que se pense em uma espécie de crise
existencial da voz poética, a qual levaria o sujeito a um desconhecimento de sua
própriapersonalidade.
A primeira estrofe apresenta o questionamento sobre qual era a cor de um
objetoimportanteparaoeulírico:oseucintodemissangas,elementoqueapareceem
outrospoemasdaautora, constituindo-secomoobjetoqueseriaprópriodeculturas
africanas.Aqui,ficaevidentequesetratadeumobjetofabricadodemaneiraartesanal,
pelasprópriasmãosdafiguraqueoeu líricochamademãe.Avozpoéticarecorreà
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mãeparaencontrarpertencesque,decertaforma,constituemasuaidentidade,oseu
sentido de pertencimento. Na estrofe em questão, aparece, ainda, a figura da avó,
reforçandoapresençadouniversofemininonapoesiadeTavares.
Épossívelencontrar,nasegundaestrofe,outrotermomuitousadoporTavares
em sua poesia, qual seja, a palavra “provérbio”, que também remete às culturas
africanaseàsuacaracterísticaoralidade.Nuncaédemaisrelembrar,comefeito,como
a tradiçãooral,daqualprocuraseaproximarapoesiadaautora,éelementocentral
paraascomunidadesafricanas.Em“Atradiçãoviva”,HampatéBâafirma:
Quando falamos de tradição em relação à história africana, referimo-nos àtradiçãooral,enenhumatentativadepenetrarahistóriaeoespíritodospovosafricanosterávalidadeamenosqueseapoienessaherançadeconhecimentosdetoda espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre adiscípulo,aolongodosséculos.(BÂ,2010,p.167).
Osegundoquestionamentodopoemagiraemtornodeoutroobjetomanuseado
com frequênciapelasmulheres. Comonaprimeira estrofe, esseobjeto, a “panelado
provérbio”,relaciona-seaosafetosdoeulírico,poiséumpresenterecebidonodiade
seu noivado. O cuidado na escolha da panela, com características tão singulares (a
panela“dastrêspernas/easapartida”),relaciona-seaumritual,odonoivado.
A terceiraestrofeapresentauma linguagemmaismetafóricae,decerta forma,
retomaaprimeiraestrofe,aorepetirasprimeiraspalavrasdeseuprimeiroverso,que
tambémsustentaametáforaresponsávelporexpressaracriseexistencialdoeulírico
(“De que cor era a minha voz, mãe”). A maneira do correr da água (“descia
devagarinhopelosdias”),porsuavez,éutilizadaparacaracterizararotinaeoritmo
dosdiasdesseeupoético,nopassado,quandoascoisaspareciamcorrersemgrandes
contratempos.
Aquartaeúltimaestrofe,porfim,apresentaumafigurapoéticainsatisfeitacom
sua situação presente, marcada por promessas não realizadas e expectativas não
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satisfeitas.Odirecionamentodosquestionamentosaumafiguranomeadacomomãe
evidenciatambémoquão íntimossãoospensamentosesentimentosexpressospelo
sujeitodopoema,quemaisumavez semostradesejosode sairdoespaço limitante
queocercadorepresenta.Em“Ocercado”,Tavaresexploraaspossibilidadesdepapéis
a serem desempenhados pelas mulheres africanas, enfatizando as três principais
opçõesmais frequentes, isto é, os de esposa,mãe e filha. Como no poema anterior,
aquitambémocercado,associadoaolugareaospapéisdestinadosàmulher,aparece
comoumlocaldeopressão,queimpedeumavivêncialivreporpartedoeulírico.
Sobre o quinto livro da autora, intituladoManual para amantes desesperados,
publicado no ano de 2007, Secco aponta algumas peculiaridades. Uma delas diz
respeito à sua suposta função de orientar, sugerida pela palavra “manual”:
“Colocando-secomomanual,olivroseinstituicomoguia,comoalgoasertocadopelas
mãos,comoorientaçãoparalidaramorosamentecomocorpo”(SECCO,2011,p.273).
Depois,ressalta-seasualinguagemambígua:“[...][os]poemasdolivroemquestãosão
perpassados por profunda ambiguidade, oscilando entre a tranquilidade e a
tempestade[...]”(SECCO,2011,p.274).E,ainda,masnãomenosimportante,destaca-
se como o sujeito lírico dos poemas do livro “reinventa ritos e rituais de povos
pastores do sudoeste angolano” (SECCO, 2011, p. 273). “Otyoto”, que a seguir se
transcreve, é uma das composições em que mais transparece a preocupação de
Tavaresemrelaçãoàsituaçãodamulher.
OTYOTO(oaltardafamília)TodasasmãesdacasaredondadisseramGuardaostesourosOstelhadosdevidroOsilêncioCuidadocorpodacasaedastrançasDesfaz-teemleiteParaafomedascrianças.
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NinguémfaloudedorAbandonosolidãoAloucuraéinterditaFicamossonhosavoarPássarosnabocadovento.(TAVARES,2011,p.203).
Sobre a palavra que se encontra no título do poema, o primeiro significado
disponível diz “se tratar de um lugar onde as pessoas se reúnem para realizar
cerimôniasoufalardeassuntosrelacionadosàcomunidade”;eosegundoaponta“ser
umlocalondesetransmiteensinamentos,nofinaldodia,emvoltadeumafogueira”
(REM’S,2015,s/p)2.Ambosserelacionamaosubtítulodopoema,queapareceentre
parênteses, abaixo do título: “o altar da família”. O poema se constitui por duas
estrofes. Na primeira, aborda-se a educação tradicional da mulher africana, sendo
possívelperceber,emespecial,duasdas funçõesque lheeramdestinadas:cuidarda
casa e das crianças. Nessa mesma estrofe, podemos perceber alguns aspectos
considerados próprios de sociedades africanas tradicionais, como a ideia de
coletividade e a transmissãodos ensinamentospormeioda oralidade. São aspectos
quepossuemumamarcanterelevânciaparaosafricanos,comoafirmaHampatéBâ,no
jácitado“Atradiçãoviva”:“Atradiçãooraléfundamentalparaacomunidadeafricana,
nãosóparaasobrevivênciadesuacultura,mastambémdesuahistória”(BÂ,2010,p.
167).
Nasegundaestrofe,evidencia-sequãosolitáriaéa rotinadamulher.Comono
primeiro poema que comentamos, tem-se um eu lírico feminino falando de seus
sentimentos mais íntimos, destacando-se um sentimento de angústia, devido à
interdiçãodosonharedaprópriamanifestaçãodoquesesenteepensa.Aescolhada
expressão“loucurainterdita”sugerequetodaadoreosentimentodessasmulheres,
cujas mães se reúnem na casa redonda para transmitir as normas e costumes do
grupo,fazempartedascoisassobreasquaisnãosedevefalar,sobreasquaissedeve
2“Otyoto:osvaloresdaculturaafricanaeangolanaparanovageração”(REM’S,2015,s/p).
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guardarosilêncio.AcomummovimentaçãodapoesiadeTavaresaparecenovamente;
dessa vez, esse fenômeno não ocorre na estrutura do poema, mas sim em seu
conteúdo:avontadedevoar(“Ficamossonhosavoar/Pássarosnabocadovento”),
deselibertar,marcaoimpulsodosujeitopoético.
Oúltimopoemaacercadoqual faremosumcomentárioseencontranoúltimo
livro da poeta,Como veias finas na terra, publicado no ano de 2010. Segundo Secco
(2011, p. 276), nesse livro, tem-se um “sujeito poético [que] ‘tece’ e ‘retece’ sua
históriaeadeAngola”,reelaborando“memóriasesonhosrelacionadosàspaisagens
dainfâncianaterra[...]”.Segueacomposição,semtítulo:
AmulherdepalavrasantigasMoveuasmãosparaamarrarosolDeixounapraiaasmarcasdospésInventouumtextoParacruzarasfibras.ArdemdenovooslíriosNosilênciodasdunasOsriosdeseivaengordamAárvoredosvelhospelasraízesAmulherdaspalavrasantigasEnchedeáguanovaaspanelasondeosespíritossereconhecemematamasededosdiasedasnoitesAguardiãdofogocomeçaavidaPelossetecaminhosLêaspalavrasiguaisEcomeçadenovoAmemóriadotempoEstáinscritanosseusgestospequenosQuetornamoavessodaterraTãoperfeitocomoilhaQuesemovelentaPordentrodocerco.Assimserasgamosdias
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ÀforçadevozesPequenasmulheresemfilaRecolhendoospeixesAssimseinscrevemnomapadanoiteOsgritosdasmulheresOchorodascrianças.(TAVARES,2011,p.255-256).
O poema se inicia com uma apresentação de uma terceira pessoa, cujas
“palavras antigas” remetem à importância dos antepassados para as culturas
africanas. Ainda nessa primeira estrofe, destaca-se algo que pode ser associado a
saberes africanos, nomeadamente, a arte de se tecer cestos, uma atividade muito
valorosa na África e que se integra a todo um sistema próprio de suas sociedades
tradicionais. SegundoHampatéBâ (2010,p. 185), em tais sociedades, “as atividades
humanaspossuíamfrequentementeumcarátersagradoouoculto,principalmenteas
atividadesqueconsistiamemagirsobreamatériaetransformá-la,umavezquetudoé
consideradovivo”.Osofíciosartesanais,vistostambémcomo“osgrandesvetoresda
tradiçãooral”,deveriamrepetir“omistériodacriação”(BÂ,2010,p.185).
A figura da mulher é caracterizada como uma potência de grande força e de
grandesabedoria,oquevaiaoencontrodoqueaautorapensaeprojetaparaamulher
africana. Paula Tavares (1991, p. 852) comenta que, em Angola, logo após a
independência, em 1975, podia-se encontrar “mulheres em quase todas situações”,
“mulheresquetiveramumpapelmuitoimportantenoprocessodelutadelibertação
nacional,mulherescomumapalavramuitofortemesmononovoGoverno”.
A segunda estrofe, que expõe as consequências das ações da “mulher das
palavras antigas”, citadas na estrofe anterior, aborda a revitalização da vida, a
renovação de energias, destacando-se também a ligação do homem africano com a
natureza.Onovoeovelhoseconectam,emumcicloqueépartedapróprianatureza.
O plano místico faz parte dos costumes do continente africano, sendo
considerado algo natural. É esse planoque aparece na terceira estrofe do poema.A
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presençados“espíritos”,quesereconhecemnaspanelascheiasdeáguanova,comque
matam a sua sede, denota como o mundo apresentado no texto é tocado por uma
dimensãometafísica. É Hampaté Bâ, novamente, quem chama a atenção para outro
ponto importante: “Deve-se ter emmente que, demaneira geral, todas as tradições
africanas postulam uma visão religiosa do mundo.O universo visível é concebido e
sentidocomoosinal,aconcretizaçãoouoenvoltóriodeumuniversoinvisívelevivo,
constituídodeforçasemperpétuomovimento”(BÂ,2010,p.173).
Naquartaenaquintaestrofes,reforça-searelaçãoentreovelhoeonovo,que
aparece,nopoema,desdeoinício,comovimos,quandosefalada“mulherdepalavras
antigas”,aqualapareceagoracomoumaespéciedesacerdotisa,a“guardiãdofogo”,
capaz de dar começo à vida. A quinta estrofe, em particular, com a referência à
memória, remete à importância dos antepassados para a África. Para Hampaté Bâ
(2010, p. 25), existe, no africano, “uma vontade constante de invocar o passado”, a
qual,todavia,“nãosignificaoimobilismoenãocontradizaleigeraldaacumulaçãodas
forças e do progresso”. Diz ainda o autor sobre o “tempo africano”: “[...] o tempo
africanotradicionalenglobaeintegraaeternidadeemtodosossentidos.Asgerações
passadasnãoestãoperdidasparaotempopresente.Àsuamaneira,elaspermanecem
semprecontemporâneasetãoinfluentes,senãomais,quantooeramduranteaépoca
emqueviviam”(BÂ,2010,p.25).
Nasextaestrofe,aparecenovamenteumareferênciaà importânciadatradição
oralparaasobrevivênciadahistóriaedasculturasafricanas,muitodevedorasdaação
de “pequenasmulheres”, cujas vozes rasgam os dias: “Assim se rasgam os dias / À
forçadevozes”.Conectadaàs açõespresentesnaestrofe anterior, a sétimaeúltima
estrofes apresentam, entretanto, uma ambientação sombria, marcando também o
universofemininocomdoresofrimento.
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Nopoemaque estamos comentando, a expressão “memóriado tempo”parece
remeternãoapenasaoqueéprópriodouniversoafricano,mastambémaoquetrouxe
acolonizaçãodocontinentepeloseuropeus.DeacordocomIsabelCastroHenriques:
[...] colonizaréumexercícioquevisadesmemoriaraspopulaçõesemrelaçãoàsuaprópria história, introduzindo a história do colonizador e construindoumanovamemória,ondeunseoutrossãohierarquizadosdeacordocomaordemdocolonizador, marcando de forma definitiva a valorização do mesmo, adesvalorizaçãoearecusadooutro.(HENRIQUES,2014,p.49).
NapoesiadePaulaTavares,avalorizaçãodoqueseriaprópriodassociedadese
culturas africanas tradicionais, em particular daquilo que está ligado ao universo
feminino,é tambémummododecontrariaroprocessocolonialesuaviolência,que,
como diz Henriques, sendo “inerente à dominação”, “foi sempre uma constante dos
processos de colonização” (HENRIQUES, 2014, p. 49). Marcada pela hibridez,
permeadapelotrânsitoentremundosbemdistintos,queforamcolocadosemcontato
porforçadacolonização,apoesiadaautoraencontranaexperiênciadeintegrantesde
clãsecomunidadesdomeiorural,bemcomonaexperiênciadasmulheresaíinseridas,
uma formadeseaproximardeumuniversoculturalpormuito tempoapagado,mas
cujovalorreconheceeconfirma.
REFERÊNCIASAMORIM,BernardoNascimentode.“Escrever,conhecer:aprocuradasociedadeafricananapoesiadePaulaTavares.”InMulemba,RiodeJaneiro,v.11,n.21,p.35-49,jul.-dez.2019.BÂ,A.Hampaté.“Atradiçãoviva.”InKI-ZERBO,J.(Ed.).HistóriageraldaÁfrica,1:Metodologiaepré-históriadaÁfrica.2ªed.rev.Brasília:Unesco,2010.p.167-212.FERREIRA, Manuel. “Uma aventura desconhecida.” In _____ (Org.). No reino de Caliban: antologiapanorâmicadapoesiaafricanadeexpressãoportuguesa.V.1.Lisboa:SearaNova,1975.p.16-64.
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HENRIQUES, Isabel Castro. “Colónia, colonização, colonial.” In SANSONE, Livio; FURTADO, CláudioAlves (Orgs.).Dicionário crítico das ciências sociais dos países de fala oficial portuguesa. Salvador:UBUFBA,2014.p.45-58.PADILHA,LauraCavalcante.“Sobremulheres,cânones,silêncioseenfrentamentos.”InDiadorim.Riode Janeiro, v 11, p. 209-223, jul. 2012. Disponível em:https://revistas.ufrj.br/index.php/diadorim/article/view/3965/15629.Acessoem:05abr.2021.REM’S,Capitão. “Otyoto:OsvaloresdaculturaAfricanaeAngolanaparaanovageração.” In JornalAngolano de Artes e Letras. 23 nov. 2015. Disponível em: http://jornalcultura.sapo.ao/eco-de-angola/otyoto-os-valores-da-cultura-africana-e-angolana-para-nova-geracao/. Acesso em: 18 fev.2021.SECCO,CarmenLuciaTindó.“Asveiaspulsantesdaterraedapoesia.”[Posfácio].InTAVARES,Paula.Amargoscomoosfrutos:poesiareunida.RiodeJaneiro:Pallas,2011.p.259-281.TAVARES,Paula.Amargoscomoosfrutos:poesiareunida.RiodeJaneiro:Pallas,2011._____.“Contarhistórias.” InPADILHA,LauraCavalcante;RIBEIRO,MargaridaCalafate(Orgs.).LendoAngola.Porto:Afrontamento,2008.p.39-50._____. “EncontrocomPaulaTavares [Entrevista].” InLABAN,Michel (Comp.).Angola:encontrocomescritores.V.2.Porto:FundaçãoEngenheiroAntóniodeAlmeida,1991.p.845-861.Recebidoem:28/02/2021Aceitoem:05/04/2021
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SOARES,J.S.Umacríticaàs... 205
UMACRÍTICAÀSVÍTIMASDEVIOLÊNCIAURBANANOCONTO“ZAÍTA
ESQUECEUDEGUARDAROSBRINQUEDOS”
ACRITICISMOFVICTIMSOFURBANVIOLENCEINTHETALE“ZAÍTA
ESQUECEUDEGUARDAROSBRINQUEDOS”
JúliaSilveiraSoares1
RESUMO:Esteartigotemcomoobjetivoanalisaroconto“Zaítaesqueceudeguardarosbrinquedos”,presentenacoletâneaOlhosd´água,deautoriadeConceiçãoEvaristo(2016),abordandoostemasdedesigualdadesocial,depreconceitoracialedeviolênciaurbana.Amanutençãodecomportamentosautoritários revela a herança de uma mentalidade escravista e colonialista. Serão utilizadas asabordagens teóricas de Marilena de Souza Chauí (2017), Lilia Moritz Schwarcz (2019), JaimeGinzburg(2012)edadosestatísticosdoIBGE.Palavras-chave:desigualdade;violência;ConceiçãoEvaristo.ABSTRACT:Thisarticleaimstoanalyzetheshortstory“Zaítaesqueceudeguardarosbrinquedos”,presentinthecollectionOlhosd´água,writtenbyConceiçãoEvaristo(2016),addressingthethemesofsocialinequality,racialprejudice,andurbanviolence.Themaintenanceofauthoritarianbehaviorrevealsthelegacyofaslaveryandcolonialistmentality.ThetheoreticalapproachesofMarilenadeSouzaChauí(2017),LiliaMoritzSchwarcz(2019), JaimeGinzburg(2012)andIBGEstatisticaldatawillbeused.Keywords:inequality;violence;ConceiçãoEvaristo.
Espera-sequeamulhernegrasejacapazdedesempenhardeterminadasfunções,comocozinharmuitobem,dançar,cantar,masnãoescrever.Àsvezesmeperguntam:‘Vocêcanta?’.Eeu
digo:‘nãocantonemdanço’.
ConceiçãoEvaristo
1Mestranda,UFES,BolsistaCAPES.
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SOARES,J.S.Umacríticaàs... 206
1. INTRODUÇÃO
Avozdonegro,pormuitasvezes,foisilenciadadurantelongotempoe,aindaem
temposatuais, sua trajetóriae lutassão ficcionalizadaserroneamente.Opovonegro
buscaarduamenteseusdireitosafimdecombaterasdesigualdadessociaisquesofre
na sociedade brasileira e, principalmente, o preconceito racial.Há uma acomodação
emrelaçãoàresistênciaaoracismoestrutural,quegera,obviamente,distinçõesentre
raças em variados aspectos. Essa problemática é preocupante, pois,
consequentemente, acarreta muitos problemas sociais que são, infelizmente,
interiorizadosnocotidianocomum.
Noâmbito literário,oproblemase repete,poisasnarrativas retratamonegro
sob umolhar subalternizado e, raramente, ele aparece comoprotagonista. Em vista
disso, é necessário reivindicar as devidas mudanças e compartilhar a verdadeira
condição dos afrodescendentes, para que, assim, ele deixe de pertencer a um grupo
marginalizado e consiga o reconhecimento de atingir a representatividade na
literaturabrasileira contemporânea.ConceiçãoEvaristomanifestagrandiosamentea
temática apresentada, denunciando as questões no que tange ao indivíduo negro e
suas batalhas diárias. A autora transforma essas experiências e traduz em forma
literária, domesmomodoqueprovocaodebate sobrea importânciadoMovimento
Negro como meio de recuperação de memórias e identidades da população afro-
brasileira.
AobraOlhosD’água(2016),constituídapor15contosbreves,procuradaravoz
aos protagonistas, excluídos sociais, todos negros, que enfrentam dificuldades e
sofrem cotidianamente os vários tipos de violências nas favelas brasileiras. São
históriasnarradastantoporpersonagensfemininas,quantomasculinaseinfantis,ou
seja,nãoháumpadrãoquantoaogêneroe faixaetária.Entretanto,háumaconexão
entreambos:araça,aclassesocialeosdesfechosinfelizes.Preconceito,desigualdade
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SOARES,J.S.Umacríticaàs... 207
social,vivênciasemcondiçõesprecárias,vidasde inocentesperdidas,sãoalgunsdos
temasprincipaisnoscontosdeEvaristo.Aautora,negra(ouseja,tambémpertencente
aessecoletivo),descrevetaisexperiênciaspessoaispormeiodeumaescritapoéticae
subjetiva e converte-as em obra literária. Evaristo caracteriza essa ação como
escrevivência.
Em uma entrevista à BBC News Brasil2, Evaristo explica a concepção da
expressão ideadapor ela e a relevânciada subjetividadedoescritornoprocessode
transmitirrecordaçõespessoaisaumaobraliterária:
BBC Brasil — A senhora usa a expressão "escrevivências" para falar na suaescrita, feita a partir de suas vivências como mulher, negra, de origem pobre.Achaqueestáaíaforçadesuaobra?ConceiçãoEvaristo—Nãoéqueohomemnãopossa escrever sobre amulher.Pode.Nãoéqueobranconãopossaescreversobreonegro.Pode.Masquandoessediscursofaladoouescritocarregaanossasubjetividade,justamenteporqueelenascenumlugarsocial,numlugardegênero,numlugarracialdiferente,eletrazdeterminadaspeculiaridadesqueaquelequeescrevede fora,pormaisqueseja competentedopontode vista intelectual ou emocional, não vai trazer. Elenão trazumacargadequemescrevededentro.Aquinão temnenhum juízodevalor,dequererdizerqual textoémaisbonito.Nãoé issonão.Mas trata-sedeapontar esse local diferente onde esse discurso nasce e é desenvolvido. (BBCNEWSBRASIL,2018).
Evaristochamaaatenção,indiretamente,paraodesafioemenfrentarocânone
literário, emgeral, brancoemasculino.Assim, sãonecessáriasoutras apresentações
de lugaresde fala, preferencialmentenegras e femininas. Esse tipodediscurso, que
sempre esteve às margens, ganha voz e espaço na contemporaneidade através de
outrasescritorasalémdeEvaristo,taiscomo:MariaFirminadosReis,CarolinaMaria
de Jesus, Djamila Ribeiro, Paulina Chiziane, Noémia de Sousa, Alice Walker,
ChimamandaNgoziAdichie,entreoutras.
2Paraacessoàentrevistaintegral,ver:https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43324948.Acessoem:01set.2020.
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Aindaa respeitoda limitaçãodasproduções literáriasdoscoletivosoprimidos
emdiscussão,JaimeGinzburg(2012)explicaomotivoprincipalpeloqualissoocorre:
apriorizaçãodosinteressesdatradiçãopatriarcaleelitesdominantes.
A sustentação do cânone funciona como uma política da memória, apontandopara o que deve ser lido e lembrado, de acordo com intelectuais a quem éatribuída a autoridade para escolher. Um historiador da literatura respeitadoforma opiniões, estabelece padrões de gosto e, ao definir o que deve serlembrado, compõe uma pauta para a memória social. Seus critérios de valorinfluenciarão os critérios de outros. A memória de uma sociedade, entendidacomo memória coletiva, deve ser permanentemente posta em debate. Ela nãopode ser concebida como totalidade fechada, mas como dinâmica aberta.(GINZBURG,2012,p.221).
O autor ressalta a importância da literatura de testemunho, dos estudos
oriundos de grupos excluídos; aborda, também, o problema da padronização do
cânone literário brasileiro e explica como a imagem unificada provoca exclusões
quando são selecionadas, pois, se há uma predefinição do que será lembrado como
“memóriasocial”,logo,criam-sehierarquias.Vejamoscomoissoacontecenocontexto
docontodeEvaristo.
2. APRESENTAÇÃO DO CONTO E ANÁLISE SOBRE AS REPRESENTAÇÕES DAS
INFÂNCIASPERDIDASPROTAGONIZADAPORZAÍTA
Em “Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos” (2016), Evaristo constrói uma
tramaque,comoosdemaiscontos,acontecenasfavelasbrasileiras.Asdificuldadesda
rotina dessa realidade conturbada são vivenciadas por personagens da família de
Zaíta,umacriançaqueprotagonizaoenredo.Afamíliaécompostapelamãe,Benícia,
pela irmã gêmea de Zaíta, Naíta e pelos dois irmãos mais velhos. O pai não é
mencionado frequentemente na narrativa, tampouco está presente na vida das
meninas,eessaausênciaéexplicadapeloexcessodetrabalho.
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Omodo como o ex-casal é descrito reflete suas respectivas lutas diárias e as
tentativas de resistência aos problemas financeiros. As poucas informações são
retratadasda seguinte forma: “AmãedeZaítaestava cansada.Tinha trintaequatro
anosequatrofilhos”(EVARISTO,2016,p.45)e“Opaidasgêmeas,queduranteanos
moroucomsuamãe,trabalhavamuitoenuncatraziaobolsocheio”(p.46).
No que tange aos irmãos, também poucomencionados, nem seus respectivos
nomessãofornecidos.Aausênciadessaúltimainformaçãoindica,possivelmente,uma
crítica:elessãorepresentativosdostantosjovenstrabalhadoresdebaixarendaquese
esforçamporumespaçonomercadodetrabalho,masnãoconseguemoquealmejam
pela falta de oportunidades, de não terem experiências ou por não terem concluído
cursostécnicosousuperiores.
Queria seguir carreira, buscava outra forma e local de poder. Tinha umquererbemfortedentrodopeito.Queriaumavidaquevalesseapena.Umavida farta,um caminho menos árduo e o bolso não vazio. Via os seus trabalharem eacumularemmisérianodiaadia.[...]Opaideleedoirmãomaisvelhogastavaseupouco tempo de vida comendo poeira de tijolos, areia, cimento e cal nasconstruçõescivis.[...]Omoçoviamulheres,homenseatémesmocrianças,aindameio adormecidos, saírem para o trabalho e voltarem pobres como foram,acumuladosdecansaçoapenas.(EVARISTO,2016,p.46).
O fato de tanto o mais novo quanto o mais velho não terem seus nomes
indicadosfuncionacomodenúnciadapoucarelevânciaqueasociedadedáparaessa
parcela dapopulação, que resiste e tenta sobreviver às duras jornadasde trabalhos
informais. No que se refere, especificamente, ao mais novo, ele procurava outras
realidadesmaissatisfatóriasfinanceiramentee,dessaforma,nãoresisteàstentadoras
propostasdevidaedinheiro“fáceis”,istoé,dotráficodedrogas:
Queria, pois, arrumar a vida de outra forma. Havia alguns que trabalhavam deoutromodoeficavamricos.Erasóinsistir,sótercoragem.Sódominaromedoeir adiante. Desde pequeno ele vinha acumulando experiências. Novo, criançaainda, amãenemdesconfiava e ele já traçava o seu caminho. Corria ágil pelosbecos,colhiarecados,entregavaencomendas,edisplicentementeassobiavauma
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músicainfantil,somindicativodequeoshomensestavamchegando.(EVARISTO,2016,p.46).
OenredoatraiumaatençãoespecialparaaspersonagensinfantisZaítaeNaítae
suasingenuidadesemmeioaumcontextoproblemático.Osfrequentestiroteiosentre
policiais e traficantes causam preocupações aosmoradores e, no trecho a seguir, é
retratadaumasituaçãoemqueaspersonagensvivenciamperíodosdemedo:
Zaítapercebeuqueavozdamãetremiaumpouco.Denoitejulgououviralgunsestampidosdebalaaliporperto.Logodepoisescutouospassosapressadosdoirmãoqueentrava.Elaseachegoumaisparajuntodamãe.Airmãdormia.Amãesemexeunacamaváriasvezes;emumdadomomentosentouassustada,depoissedeitounovamentecobrindo-setoda.Ocalordoscorposdamãeedairmãlhedavamcertoconforto.Entretanto,nãoconseguiudormirmais,tinhamedo,muitomedo,eamãelhepareceuterpassadoanoitetodaacordada.(EVARISTO,2016,p.46).
As descrições são importantes para melhor compreensão do contexto
sociocultural, pois são um pano de fundo para a trama que gira, especialmente, em
tornodasirmãsque,emumdiaaparentementenormal,saemdecasasemapermissão
desuamãe,deixandoespalhados,nochão,algunsbrinquedos.
Zaíta, quando percebe a ausência de Naíta, sai à sua procura, com muita
angústia. Inicia a busca visando às possibilidades de locais em que a irmã poderia
estar: “Zaítasaiudecasaemcasapor todoobeco,perguntandopela irmã.Ninguém
sabiaresponder.Acadaausênciadeinformaçãosuamágoacrescia.Foiandandojunto
comadesesperança.Chorava.”(EVARISTO,2016,p.46).
OnarradorinformaaoleitorqueNaítaestavasimplesmentenacasadavizinha:
“Aoutramenina,Naíta,queestavanobarracoao lado, escutandoosberrosdamãe,
voltouaflita.Foi recebidacomtapasesafanões.SaiuchorandoparaprocurarZaíta.”
(EVARISTO, 2016, p. 47). O andamento dos fatos segue até o desfecho: amorte da
protagonista. Contudo, antes do clímax, são apresentados o contexto social e as
últimasatribulaçõesocorridas:
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Nos últimos tempos na favela, os tiroteios aconteciam com frequência e aqualquer hora. Os componentes dos grupos rivais brigavam para garantir seusespaços e freguesias. Havia ainda o confronto constante com os policiais queinvadiamaárea.[...]Obarulhosecodebalassemisturavaàalgazarrainfantil.Ascrianças obedeciam à recomendação de não brincarem longe de casa, mas àsvezes sedistraíam.E, então,nãoexperimentavamsomenteasbalasadocicadas,suaves, que derretiam na boca, mas ainda aquelas que lhes dissolviam a vida.(EVARISTO,2016,p.48).
Nota-seorecurso linguísticodoeufemismo,noempregoredundantede“bala”,
utilizadopelonarradorparasreferiràscriançasassassinadasevítimasdetiroteiopor
balas perdidas. Assim, para amenizar a desagradável morte de inocentes, traz a
palavra “bala”, istoé, amuniçãoque, aoentraremcontato comocorpohumano, se
“dissolve”,eéumaformadefazerreferênciaà“bala”guloseimaquetantoéapreciada
pelascrianças.
Zaítaperdesuavidadeumamaneiramuitotrágica,mesmocomoutraspessoas
demonstrando tentativas de ajudá-la a sair do ambiente onde acontecia o tiroteio.
Observa-senodiscursodonarradorapresençadametáforaaocompararoefeitoda
“bala”(munição)nocorpocomodesabrochamentodasflores:
Zaíta seguia distraída em sua preocupação. Mais um tiroteio começava. Umacriança,antesdefecharviolentamenteajanela,fezumsinalparaqueelaentrasserápido em um barraco qualquer. Um dos contendores, ao notar a presença damenina,imitouogestofeitopelogaroto,paraqueZaítaprocurasseabrigo.[...]Emmeio ao tiroteio a menina ia. Balas, balas e balas desabrochavam como floresmalditas,ervasdaninhassuspensasnoar.Algumasfizeramcírculosnocorpodamenina. Daí um minuto tudo acabou. Homens armados sumiram pelos becossilenciosos,cegosemudos.Cincoouseiscorpos,comoodeZaíta,jaziamnochão.(EVARISTO,2016,p.48).
AssimcomoZaíta,outros indivíduosmorreramemmeioao tiroteio.O finaldo
conto é construído pela reação de Naíta e de alguns moradores diante da infeliz
surpresadeencontraremameninasemvidaeestendidanochão:“Osmoradoresdo
becoondehaviaacontecidootiroteioignoravamosoutroscorposerecolhiamsóoda
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menina.Naítademorouumpoucoparaentenderoquehaviaacontecido.”(EVARISTO,
2016, p. 48). Em meio a um momento desolador, causado pelo confronto entre
gangues rivais, a fala final deNaíta demonstra o prevalecimento de sua inocência e
faltadenoçãodoocorrido.Aseguir,oseucomportamentoarespeitodatragédia:“E
assimqueseaproximoudairmã,gritouentreodesespero,ador,oespantoeomedo:
—Zaíta,vocêesqueceudeguardarosbrinquedos!”(p.48).
3.TEORIADO“MITODANÃOVIOLÊNCIABRASILEIRA”SEGUNDOMARILENACHAUÍ
DeacordocomafilósofaeescritoraMarilenadeSouzaChauí,emseulivroSobre
aviolência (2017),o “mitodanãoviolênciabrasileira”correspondeà ideiadequeo
povo brasileiro não tenha, em sua essência, aptidão para atitudes violentas. Há um
ocultamento na sociedade sobre fatos históricos que, segundo a história política
nacional,foramrealizados“semsangue”,istoé,“[a]narraçãopolíticada‘históriafeita
semsangue’operacomoalicerceparaconstruçãomíticadasociedadebrasileiracomo
aboasociedade,una,indivisa,pacíficaeordeira.”(CHAUÍ,2017,p.37).
Essamistificaçãoocorrehámuitotempo.Segundoaautora,épreocupante,pois
assim são naturalizadas ações autoritárias sob o outro de modo que se repitam
frequentementeaolongodosanosesemquestionamentos,ouseja,essasatitudessão
conservadas na sociedade a ponto de serem admitidas tranquilamente. A filósofa
expõe situaçõesde comoummitopode ser refletido e os impactosdequandoele é
praticado:
Ummitocristaliza-seemcrençasquesão interiorizadasdetalmaneiraquenãosão percebidas como crenças e sim tidas não só como uma explicação darealidade,mascomoaprópriarealidadeexistente;[...]Ummitoresultadeaçõessociaiseproduzcomoresultadooutrasaçõessociaisqueoconfrontam,istoé,ummitoproduzvalores,ideias,comportamentosepráticasqueoreiteramnaepelaação dos membros da sociedade. Em suma, um mito não é um simplespensamento,masumaformadeação.(CHAUÍ,2017,p.38).
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Como explicado pela escritora, um mito não é somente uma ideia fixa, mas,
certamente,resultaemaçõesdevariadasmaneiras,eumadelaséanaturalizaçãodos
tiposdevocabuláriosusadospelamídiaparanegaraviolência realocorrida.Assim,
informações são ocultadas no momento da divulgação dos acontecimentos. Chauí
(2017)ressaltaaimportânciaquesedevedaraesseproblemafrequenteeaindafaz
umalistagemdostermosusadosconformeosveículosdecomunicação:
Se fixarmos nossa atenção ao vocabulário empregado pelos meios decomunicação observaremos que os vocábulos se distribuem sempre de umamaneirasistemática:• Fala-seemchacinaemassacreparareferir-seaoassassinatoemmassadepessoasindefesas,comocrianças,favelados,encarcerados,índios,sem-terra;• Fala-seemindistinçãoentrecrimeepolíciaparareferir-seàparticipaçãode forças policiais no crime organizado, particularmente o jogo do bicho, onarcotráfico,ocontrabandodearmaseossequestros;• Fala-seemguerraciviltácitaparareferir-seaomovimentodossem-terra,aos embates entre garimpeiros e índios, policiais e narcotraficantes, aoshomicídios e furtos praticados em pequena e larga escala, mas também parareferir-seaoaumentodocontingentededesempregadosemoradoresdasruas,eparafalardosacidentesdetrânsito;• Fala-se em vandalismo para se referir a assaltos a lojas, mercados,supermercadosebancos,adepredaçõesdeedifíciospúblicoseaoquebra-quebradeônibusetrensdotransportepúblico;• Fala-se em fraqueza da sociedade civil para referir-se à ausência deentidadeseorganizaçõessociaisquearticulemdemandas,reivindicações,críticasefiscalizaçãodospoderespúblicos;• Fala-se em debilidade das instituições políticas para referir-se àcorrupçãonostrêspoderesdarepública,àlentidãodopoderjudiciário,àfaltademodernidadepolítica;• Fala-seemdesordemparaindicarinsegurança,ausênciadetranquilidadeeestabilidade,istoé,parareferir-seàaçãoinesperadaeinusitadadeindivíduosegruposqueirrompemnoespaçopúblicodesafiandosuaordem.(CHAUÍ,2017,p.38-39).
Essas ações revelam a existência de uma imagem consolidada em torno da
violência e em decorrência disso, segundo Chauí (2017), um núcleo é formado: “O
conjunto dessas imagens indica a divisão entre dois grupos: de um lado, estão os
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grupos portadores de violência, e de outro, os grupos impotentes para combatê-la.”
(CHAUÍ,2017,p.39,grifosnooriginal).Apartirdessadivisãoentredoisladosopostos,
esses tipos de condutas permitem a continuação e naturalização deste mito na
sociedadebrasileira.Segundoacrítica,deumlado,nocaso,o“portadordaviolência”,
érepresentadopelaspessoasdesprovidasderecursosfinanceiros.
A autora exploramais profundamente o assunto e afirma quais são os efeitos
causados contra aqueles considerados os “agentes violentos”. Ela nomeia isso de
“mecanismojurídico”:
Essemecanismopermite,porumlado,determinarquemsão“agentesviolentos”(demodo geral, ladrões e assassinos pertencentes às classes populares) e, poroutro lado, legitimar a açãopolicial contra a populaçãopobre, os sem-terra, osnegros,osindígenas,ascriançasseminfância,osmoradoresderua,osfavelados.Aaçãopolicialpodeser,àsvezes,consideradaviolenta,recebendo,comovimos,onomede “chacina”ou “massacre”quando,deumasóveze semmotivoclaro,onúmero de assassinados é muito elevado. No restante das vezes, porém, oassassinato policial é considerado normal e natural, uma vez que se trata deprotegero“nós”contra“eles”.(CHAUÍ,2017,p.40).
Ouseja,a lutaentre“nóscontraeles”caracterizaarelaçãocomose fosseuma
luta entreobemomal, e, no geral, a açãopolicial é aprovada: “[...] ‘Eles’ (vândalos,
desordeiros,bandidos)não fazempartedo ‘nós’, estãoexcluídosdagentebrasileira.
[...] isto é, por essência, os brasileiros não são violentos e, portanto, a violência é
acidental.” (CHAUÍ, 2017, p. 40). O “mecanismo jurídico”, de acordo com Chauí,
legitimaaaçãopolicialcontraapopulaçãopobre,comoseospobresfossemosúnicos
violentosnasociedade.Nocontoemanálise,umadasvítimasdeviolênciadessetipoé
ameninaZaítaeacríticarealiza-sepelafaltadeimportânciaqueanaçãobrasileiradá
àsmortes,decriançasounão,oriundasdeummeiosocialdebaixarenda.
Chauí(2017)apontaoutroscomportamentosviolentos,quenãosãovistosdessa
forma, mas, certamente, como atitudes acidentais, ou que não “deviam acontecer”.
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Para ela, eles estão interiorizados na nossa estrutura, portanto, são por nósmuitas
vezesignoradosou,então,dissimulados.Estemecanismochama-se“inversãodoreal”.
Por exemplo, o machismo é colocado como proteção à natural fragilidadefeminina,proteçãoqueincluiaideiadequeasmulheresprecisamserprotegidasde si próprias, pois, como todos sabem, o estupro é um ato feminino deprovocaçãoesedução;opaternalismobrancoévistocomoproteçãoparaauxiliara natural inferioridade dos negros e dos indígenas; a repressão contra oshomossexuaiséconsideradaproteçãonaturalaosvaloressagradosdafamília.Asociedade brasileira não percebe que as próprias explicações oferecidas sãoviolentasporqueestácegaparaolugarefetivodeproduçãodaviolência,istoé,aestrutura da sociedade brasileira. Dessamaneira, as desigualdades econômicas,sociaiseculturais,asexclusõeseconômicas,políticasesociais,acorrupçãocomoformade funcionamentodas instituições,oracismo,omachismo,a intolerânciareligiosa, sexual e política não são consideradas formas de violência, isto é, asociedadebrasileiranãoépercebidacomoestruturalmenteviolentaeaviolênciaaparececomoumfatoesporádicodesuperfície.(CHAUÍ,2017,p.41).
Na citação, Chauí (2017) expõe outros tipos de distinções sociais, além da
questão racial, como a de gênero, a diversidade sexual e religiosa, que usualmente
reduzemumsujeitoacoisaesemoreconhecimentodeseusdireitosdevidosdireitos.
Emsíntese, a filósofanospropõe reflexões sobre “omitodanãoviolência”,os
variados modos de violência interiorizados no cotidiano, comuns aos brasileiros,
sendoaqueles,ainda,nãotãopercebidosoupoucoquestionadosemdecorrênciados
fatos históricos ocorridos durante a época da escravatura. Por esse motivo, são
conservadosvestígiosdeumasociedadeautoritáriaehierarquizada,eummodelode
família patriarcal que leva em sua herança os rastros de uma mentalidade
escravocrataecolonialista.
AsreflexõesdeChauí(2017)sãoimportantesparaoentendimentodocontoem
análise,emespecialnoquetangeao“mecanismojurídico”,quelegitimaaaçãopolicial
contra a população pobre, visto que Zaíta, uma menina inocente, representa uma
moradora da favela vítima de violências que são tão comuns nesse contexto social.
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Vejamosas contribuiçõesdeoutraestudiosaquevãoaoencontrodas colocaçõesde
Chauí.
4. RESISTÊNCIAS DE DISCURSOS CONSERVADORES E AUTORITÁRIOS SEGUNDO
ESCRITOSDELILIASCHWARCZ(2019)
Lilia Schwarcz, professora e historiadora, apresenta em Sobre o autoritarismo
brasileiro (2019) conformidades de ideias com as de Chauí (2017). Ela expõe os
comportamentos desde a época do sistema escravocrata à do século XXI, para
comprovar como eles ainda continuam. Para fundamentar sua discussão, são
utilizadasteoriasedadosestatísticos.Aautoradescreve indiretamenteasdefinições
de “omitodanãoviolência”,ouseja, tambémconfirmaqueobrasileiroacreditaser
essencialmente pacífico, e viver em uma nação com um histórico civilizado, mas,
muitasvezes,ignoraouamenizaasconsequênciasterríveiscausadaspelaescravidão:
[...] A escravidão foi bem mais que sistema econômico: ela moldou condutas,definiu desigualdades sociais, fez de raça e cor marcadores de diferençafundamentais,ordenouetiquetasdemandoeobediência,ecriouumasociedadecondicionadapelopaternalismoeporumahierarquiamuitoestrita.Alémdisso,ediferentementedoqueseprocuroudifundir,nãoseconfirmaanoçãodequenopaís teria existido uma escravidão “mais branda”. Um sistema que prescreve apropriedade de uma pessoa por outra, não tem nenhuma chance de serbenevolente.(SCHWARCZ,2019,p.27-28).
Comumpassadoviolentoesangrento,osresultadosapósoperíodocolonialista
provocamaindaumadesigualdadeestrutural,padrõesquepersistemnaconservação
de hierarquias entre um superior e um inferior. Esse tipo de relação é usado pela
autora com os termos “mando e obediência”. No trecho a seguir, Schwarcz (2019)
exibecomofoiocontextohistórico,políticoesocialdaépoca,alémdeseusefeitosde
exclusãocontraosnegros:
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[...] Se a presença de negros em espaços de prestígio social já era basicamentevedada,oumuitodificultadapelaescravidão,permaneceubastanteincomumnocomeço de nossa história republicana. Por isso, o sistema escravocrata sóaparentemente restou fincado no passado. Tal configuração social, que levou àexclusão de boa parte da população das principais instituições brasileiras,produziu ainda um apagamento dos poucos intelectuais negros que haviamlogrado se distinguir na época colonial e especialmente durante o Império.Tambémocultou a formação de uma série de sociedades, associações e jornaiscomunitários negros, idealizados na Primeira República, que procuravam, nabasedacoletividade,lutarpelanecessáriainclusãosocial[...].(SCHWARCZ,2019,p.31).
O tipo de discriminação discutido se mantém até os tempos da
contemporaneidade,poisacomparaçãofeitadonegrocomoinferiorestáconcretizada
nas culturas e hábitos; logo, ele temmenos acesso aos seus devidos direitos como
cidadão,ouseja,segundoSchwarcz(2019):“essassãohistórias‘persistentes’,quenão
terminamcomameratrocaderegimes;elasficamencravadasnaspráticas,costumes
e crenças sociais, produzindo novas formas de racismo e de estratificação.”
(SCHWARCZ,2019,p.32).
Asatitudesentre“mandoeobediência”sãorealizadasnanormalidadedodiaa
dia, portanto, elas são, segundo Schwarcz: “uma sociedade acostumada com
hierarquiasdemando,queusadeumadeterminadahistóriamíticadopassadopara
justificar o presente, e que lida muito mal com a ideia da igualdade na divisão de
deveresmasdosdireitostambém.”(SCHWARCZ,2019,p.35-36).
Schwarcztraznúmerosestatísticosdascondiçõesdiscrepantesentreobrancoe
onegroparaembasarseuargumento.Sobreaexpectativadevida:
[...]Segundoorelatóriodo Ipea,adespeitodoaumentogeraldaexpectativadevidaentreosbrasileiros,osindicadoresquecobremoperíodoquevaide1993a2017mostramcomoapopulaçãobrancacontinuavivendomaisdoqueanegra.Nesseperíodo,ogrupodehomensbrancosemtornodesessentaanosdeidadepassou de 8,2% para 11,1%, ao passo que o de negros namesma faixa etáriaaumentoude6,5%para8%.(SCHWARCZ,2019,p.32).
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Eemrelaçãoaosíndicesdemortalidade:
Maispreocupantessãoosíndicesdemortalidadedehomensdeumaformagerale, em particular, de jovens homens negros: as maiores vítimas da violênciaurbana edo acessoprecário a recursosmédicos. Se, no anode2010, a taxadehomicídiofoidaordemde28,3acada100miljovensbrancos,adejovensnegroschegoua71,7acada100mil,sendoqueemalgunsestadosataxaultrapassacempor100miljovensnegros.Porsinal,segundoaAnistiaInternacional,umjovemnegro no Brasil tem, emmédia, 2,5 vezesmais chances demorrer do que umjovembranco.NaregiãoNordeste—ondeastaxasdehomicídiosãoasmaisaltasdopaís—essadiferençaéaindamaior: jovensnegroscorremcincovezesmaisriscodevida.(SCHWARCZ,2019,p.33).
Podeserobservadoqueosnúmerossãoexorbitantesetaisíndicesdemonstram
o quanto a nação brasileira é desigual e, principalmente, violenta. Em relação à
temáticadaalta taxadehomicídiosde jovensnegrostrazidapelacrítica,noconto,é
realizadaumaanalogiacomarealidade,vistoquesenarramcontextosdeviolências
urbanascomoprotagonismodameninanegranoqualsetemcomoodesfechouma
mortetrágica.
5.DISCUSSÕESSOBREASDESIGUALDADESSOCIAISEMFORMATOSDEGRÁFICOSE
TABELAS
O gráfico e as tabelas que serão expostos a seguir resultamde levantamentos
informadospelositedoIBGE(InstitutoBrasileirodeGeografiaeEstatística)3.Alguns
temasforamescolhidosafimdecomprovarasdesigualdadessociaispresentesentre
as populações, especificamente, entre o negro ou pardo e o branco no Brasil, tais
como:condiçõesdemoradia,educaçãoeporúltimo,astaxasdehomicídiosdeambos.
3 Paraacessoaositeoficial,ver:https://www.ibge.gov.br/.Acessoem:01set.2020.
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GRÁFICO1—PROPORÇÃODEPESSOASRESIDINDOEMSETORESDEAGLOMERADOSSUBNORMAIS,PORCOROURAÇA,SEGUNDODADOSDE2010.(AAUTORA,2021).
O gráfico 1 foi criado a partir de números somados entre os municípios das
capitaisbrasileiras,deacordocomoCensoDemográfico2010doIBGE.Eleapresenta
uma proporção de pessoas residindo em setores de aglomerados subnormais: a
população branca, representada pela cor azul, possui 261,2 pessoas, enquanto a
populaçãonegraouparda,450,4.
Níveldeinstrução Populaçãobranca PopulaçãonegraoupardaSeminstrução 4,3 9,1
Fundamentalincompleto 28,4 37,2Fundamentalcompleto 8 8,2Médioincompleto 3,7 5,2Médiocompleto 27,0 26,9
Superiorincompleto 4,7 3,3Superiorcompleto 24,0 10,1
TABELA1—PROPORÇÃODEPESSOASSEGUNDOSEUSNÍVEISDEENSINOECOROURAÇANOBRASIL,2018.(AAUTORA,2021).
Osdadosacima,informadospelatabela1,sãoresultadosdeumasomadacoleta
da pesquisa realizada com pessoas na faixa etária entre 25 anos, em 5 regiões
brasileiras:Norte,Nordeste,Sudeste,SuleCentro-Oeste.Atabelarefleteclaramentea
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desproporçãonosníveisdeensinoemqueapopulaçãobrancasobrepõenapopulação
negra,especificamentenaEducaçãoBásica.
Sexoecorouraça Númeroabsoluto TaxaHomembranco 12902 30,2
Homempretooupardo 46217 82,5Mulherbranca 1492 3,2
Mulherpretaouparda 3288 5,7TABELA2—NÚMEROETAXADEHOMICÍDIOS(POR100MILHABITANTES),SEGUNDOSEXOE
COROURAÇA,2017.(AAUTORA,2021).
A pesquisa apresenta números e taxas de homicídios ocorridos no Brasil,
segundo diferentes faixas etárias (IBGE, 2017). A diferença de números e taxas
apresentadastantopelográfico1,quantopelastabelas1e2,énotável,eindicativado
racismoestruturalexistentenopaís.
Teve-secomoobjetivo,atravésdatabela2,indicarocontrasteexplícitoentreos
números de homicídios de pessoas brancas e negras ou pardas. No conto, a
personagemZaítaéumacriançanegraqueperdeprecocementeavidaporcausada
violência urbana e, assim como no meio literário, os casos na realidade são muito
semelhantes.
6.CONCLUSÃO
Atravésdesuaarteliterária,ConceiçãoEvaristoconseguedenunciarasdurase
precárias realidades demuitos brasileiros pertencentes a uma classemarginalizada
que,muitas vezes, são silenciadas. Ela realça osmeios de vivências tristes em seus
contosprotagonizadospornegroserealizacomêxitooobjetivodeprovocarreflexões
edebatessobreaproblemáticaentreosleitores.
Nopresenteartigo,pretendeu-seanalisaroconto“Zaítaesqueceudeguardaros
brinquedos” (2016), no qual se observa a crítica da autora em relação às violências
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existentesnasfavelas,àspoucasoportunidadesdevidaoferecidasaosjovensnegros,
dopreconceitoraciale,especialmente,acercadasvítimasdebalasperdidasdurante
tiroteios,sejamelasvitimadastantoporganguesrivais,quantoporaçõespoliciais.
Os escritosdeMarilenaChauí (2017), Lilia Schwarcz (2019) e JaimeGinzburg
(2012) promovem questões outras sobre como determinados comportamentos
autoritários e hierarquizantes, frutos de uma tradição patriarcal e escravista do
passado,aindaestão interiorizadosesãoreproduzidoscomnaturalidadeemtempos
modernos.Algumasdessas atitudes foram identificadas em levantamentosdedados
estatísticos do IBGE e transformadas em imagens ilustrativas de forma a facilitar o
entendimento.
Os teóricos e as pesquisas utilizados foram de suma importância para se
compreender o contexto sócio, histórico e cultural brasileiro, assim como os
comportamentos da sociedade. Na narrativa, a garotinha negra, uma moradora da
favela,morreemmeioaumcontextoviolentoe,porconseguinte, trazàtona,paraa
discussão,ainsignificância,ouopoucocasoqueasociedadedemonstraemrelaçãoàs
violências urbanas e comominimiza as precárias condições sociais enfrentadas nas
favelas.
Aspesquisas tiveramo intuitodemostrara contínuadiscriminaçãoestrutural
noBrasilqueéresultadodeumlongoprocessohistóricoemquetrataramaraçanegra
com inferioridade.O racismoéuma temáticaemergentequedeve serdebatidapelo
cidadão brasileiro a fim de que se desmistifique a ideia, o mito, de que ele não é
violentoporessência,conformeapresentadoporChauí(2017).Étambémnecessário
reprimir o movimento de denegação do preconceito e desigualdades vigentes, pois
claramente existem e são refletidas nas práticas cotidianas. As camadas populares
merecemoreconhecimentodosseusdireitoscomosujeitosparaseremdevidamente
incluídosnasociedade.Paraqueessesquestionamentosocorrameresultememações
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SOARES,J.S.Umacríticaàs... 222
de valorizaçãodas culturas, é fundamental que se conheça a história dopaís e seus
desdobramentos.
REFERÊNCIAS
BRASIL.INSTITUTOBRASILEIRODEGEOGRAFIAEESTATÍSTICA.CensoDemográfico.Disponívelem:https://www.ibge.gov.br/.Acessoem:1set.2020.______. CensosBrasileirosde2010-2018.DesigualdadessociaisporcorouraçanoBrasil.Brasília:IBGE.Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/25844-desigualdades-sociais-por-cor-ouraca.html?=&t=resultados/.Acessoem:1set.2020.CHAUÍ,Marilena.“Omitodanãoviolênciabrasileira”.InCHAUÍ,M.Sobreaviolência.BeloHorizonte:AutênticaEditora,2017,p.29-50.DIASCARNEIRO,Júlia.Éprecisoquestionarasregrasquemefizeramserreconhecidaapenasaos71anos, diz escritora. In BBC News Brasil. 9 mar. 2018. Disponível em:https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43324948.Acessoem:5set.2020.EVARISTO,Conceição.“Zaítaesqueceudeguardarosbrinquedos.”InEVARISTO,C.Olhosd’água.RiodeJaneiro:Pallas;FundaçãoBibliotecaNacional,2016,p.45-48.GINZBURG,Jaime.“Aviolênciaconstitutivaeapolíticadoesquecimento.”InGINZBURG,J.Críticaemtemposdeviolência.SãoPaulo:EditoradaUSP;Fapesp,2012,p.217-238.SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Escravidão e racismo.” In SCHWARCZ, L. M. Sobre o autoritarismobrasileiro.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2019,p.27-40.Recebidoem:05/03/2021Aceitoem:05/04/2021
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IMPRENSA&TRADUÇÃO:JORNAISINTERNACIONAISENACIONAIS
NOTICIANDOOTESTEPOSITIVODEBOLSONAROPARAACOVID-19
JOURNALISTICTRANSLATION:NATIONALANDINTERNATIONAL
PERSPECTIVESWHENBOLSONAROTESTEDPOSITIVETOCOVID-19
ElisaHeiermannQuadros1LuizaBenettideLemosCordeiro2
SabrinaCostadaSilva3SilvanaAyubPolchlopek4
RESUMO: Em julho de 2020, o presidente Jair Bolsonaro testou positivo para a covid-19, fatoamplamente noticiado por diferentes narrativas na imprensa local e internacional e quemotiva oestudo deste artigo no âmbito da tradução-jornalística. Analisamos, portanto, escolhas lexicais ecampos semânticos que configuram a tradução do fato por jornais norte-americanos, europeus ebrasileiros. Buscamos comprovar que essas escolhas representam culturalmente e constituemdiferentestraduçõessobreoevento,atuandocomoprocessosformadoresdesentidoereiterandoojornalistacomotradutordefatos.Palavras-chave:traduçãojornalística;léxico;covid-19.ABSTRACT: In July2020,President JairBolsonarotestedpositivetocovid-19,somethingthatwasbroadly releasedby themediaworldwideand thatmotivated this researchwithin the journalistictranslation interface. It focuses on lexical choices and semantic fields depicted from a corpuscomposed ofNorthAmerican, European andBrazilian papers. Thus,we seek to demonstrate thatdifferent choices culturally represent the news and instantiatemeaningful reading processes thatbroadenthescopeofthetextsandplacethejournalistasthetranslatorofnewsreports.Keywords:journalistictranslation;lexicalchoices;covid-19.
1GraduandaemLetras-Inglês,UTFPR2GraduandaemLetras-Inglês,UTFPR.3GraduandaemLetras-Inglês,UTFPR.4UTFPR.
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1.INTRODUÇÃO
Desde a institucionalização dos estudos tradutórios como área acadêmica, a
partir do desenvolvimento domodelo de James Holmes em 1970, as pesquisas em
tradução ou envolvendo o processo tradutório vêm ganhando ares cada vez mais
diversificadoseampliados.Umdoscaminhosparaessavisibilidadetemsidoacriação
de interfacesdepesquisa, na tentativadebuscarmos respostasparaquestõesque a
traduçãoapenasnãoconsegueresponder.Entreteóricos,asinterfacessão,porvezes,
criticadaspordiluiraidentidadedaáreadetradução,mas,poroutrolado,estudiosos
veemessadiversidade comoumnovoolhar, umnovo frescorpara aspesquisas e a
possibilidade de os estudos tradutórios efetivamente ganharem ainda mais
visibilidade.Esseéocasodainterfacetradução-jornalismo,focodesteartigo.
Falaremtraduçãoejornalismoatuandojuntosparecenãoserpossível,emum
primeiro momento, mas a interface existe já há mais de 10 anos e é altamente
produtiva,comodesenvolvimentodedissertações,monografias,teses,artigos,livrose
cursos na área. Dentro dessa abordagem, discute-se a visão consensual de que os
profissionais que redigemasnotícias para os veículosde comunicação emgeral e a
imprensa escrita emparticularmantêmumapostura de neutralidade frente ao fato
noticioso,tendoaobjetividadecomoseualicercedetrabalho.Nesseaspecto,traduzir
uma notícia é interpretado como uma ação de fidelidade ao texto-fonte, ou seja, à
reportagem, visto que o texto jornalístico deve, por obrigação, retratar a realidade
com isenção,distanciamentoe credibilidade.BillKovacheTomRosenstiel (2004,p.
61)apontamaobrigaçãocomaverdadecomoumdospilaresdojornalismo,vistoque
“cria uma sensação de segurança que se origina da percepção dos fatos e está na
essênciadasnotícias”.
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Esse vínculo entre notícia e realidade existe de fato, no sentidode as notícias
retrataremasmaisdiversassituações,desdeatentadosterroristas,resgatesdereféns,
fugasdeprisioneiros,atéavançosnaciênciae tecnologia,política,economia,apenas
para citar alguns exemplos. Contudo, estão longe de ser isentos, um dos pilares de
sustentação do jornalismo, pelo simples fato de encontrarem na linguagem e no
jornalistaseuspontosdeancoragem.Omesmoocorrecomatradução,queencontra
nalinguagemenotradutorseusalicercesdeação,resultandonosprimeirospontosde
aproximaçãoentreasáreas.
Assim,nossoobjetivo,nestetexto,éabordarosprincípiosteóricosqueregema
interface, bem como a dinâmica de atuação dos fatores que influenciam a prática
jornalística e a prática tradutória e explicar esses argumentos discutindo aspectos
lexicais e semânticos em um corpus de estudo constituído por headlines e leadsde
periódicos online nacionais e internacionais sobre um tema em comum: o fato de o
presidentedoBrasil,JairBolsonaro,tercontraídoacovid-19.
2.AINTERFACE―CONSIDERAÇÕESTEÓRICAS
Como primeiro passo para a compreensão das variáveis geradas na interface
aquidescritaeparaquepossamosdefatoenfocareentenderatraduçãojornalística,
partimosdeumanoçãoampliadadetextoquesedeslocaparaumpontoanteriorao
texto-fonte(TF), istoé,ofatogeradoroufato-fonte(FF),queseconstituinopróprio
eventonoticioso,ouseja,o fatoqueoriginaanotícia.Essaperspectiva,ancoradaem
HansVermeer(1986),resultaemumaproduçãoescritainseridaemumcontextoreal
de comunicação que é determinada por meio da interferência de valores
culturalmentemarcadoseatreladosaosindivíduosintegrantesdessacomunicação,no
caso,ojornalista,otradutoreo(s)leitor(es).
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A associação do jornalismo a valores culturais nos remete ao que dizMayra
Rodrigues Gomes (2000, p. 19, grifo nosso), que, antes de registrar e informar, “o
jornalismoéelepróprioumfatodelíngua”,cujopapeloufunçãonainstituiçãosocialé
organizá-la discursivamente, ou seja, dar visibilidade a outras instituições (história,
saúde, esportes, política, governo) integrantes dessa situação comunicativa e,
determinantesdesi,demuitasvariáveisinerentesaoprocessodeproduçãotextual.
Nesse sentido, as reportagens, traduzidas ou não, não estão imunes à sua
condição geográfica, histórica e à hierarquia existente nas redações (editores,
redatores,chefesderedação,porexemplo),mas,sobretudo,pressupõemaexistência
do que chamamos de “filtros culturais”, isto é, elementos naturais integrantes do
sistema de comunicação intercultural, pautados nos valores culturais da sociedade
paraaqualo textosedestina,encurtando,assim,adistânciaentreo fatoocorridoe
aquele veiculado pela imprensa, principalmente quando as notícias ultrapassam
fronteirasinternacionais.
Esses filtros influenciam o processo de constituição de sentido dos textos,
auxiliandooleitorquantoàcompreensãodosacontecimentos,resultandonapossível
variação lexical, temática e estrutural das notícias quando traduzidas para outros
leitores.Issoocorreemrazãodequesempreháumrecortenoqueserefereàmaneira
de abordar o fato, considerando o(s) leitor(es) emprospecção, as características do
veículo e critérios de valores-notícia (FRANZON, 2004) determinados pelo público,
pela redação,peloveículo,pelaculturaepelopróprio jornalista: “Talprocessonada
mais é doqueum correlato, nouniversoda imprensa, das leituras que se fazemde
uma realidade, de um fato. Trata-se, enfim, de uma leitura e não da leitura desse
mesmofato”(ZIPSER,2002,p.3,grifonosso).
Assim,épossíveldiscutirostrêseixosqueconstituemainterfacedatradução
jornalística: o funcionalismo alemão (NORD, 2016), os fatores de influência para o
jornalismo(ESSER,1998)earepresentaçãoculturaldenotícias(ZIPSER,2002).
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3.ADINÂMICANASSISTEMATIZAÇÕESDEESSERENORD
FrankEsser(1998)desenvolveuseumodelodeestudocomparandoasformas
de atuação do jornalismo inglês e alemão, trabalhando com o conceito de
interculturalidade nas várias instâncias (ou esferas, conforme o autor) que
influenciamofazerjornalísticoemcontextointernacional.Segundoessasistemática,o
jornalismo de cada país é emoldurado por condições sociais e culturais que
possibilitam e direcionam a formação da sua identidade social e cultural. Nesse
sentido,ofazerjornalísticointegraosistemasocial,atuandocomo“osolhoseouvidos
danação”,eé,também,partediferenciadadessesistema,porterprincípiosenormas
de atuação próprias. Esses princípios, porém, não atuam independentes do sistema
social, pois estão vinculados a ele. Portanto, apesar da defesa de constante
neutralidade frenteaorelatode fatosnoticiosos,o jornalismoatua, invariavelmente,
direcionado ao público-leitor, e faz da informação e formação de opinião suas
principaisfunções.
AsesferascondicionantesdofazerjornalísticosãoorganizadasporEsser(1998)
no que o autor denomina “Modelo Pluriestratificado Integrado” ou “metáfora da
cebola”,classificando-opormeiodasesferassocial,estrutural,institucionalesubjetiva
queatuamdentrodeumasituaçãode recursividade,ouseja,de influênciamútua.A
dinâmica existente entre esses fatores condicionantes interfere no texto final da
reportagemquenoschegaàsmãosporintermédiodasmídiasimpressasedigitais,ou
seja, pressupomos a existência de um filtro entre o fato e a reportagem que passa
pelasesferas:i)socialehistórica;ii)estruturasnormativasdaimprensa;iii)estrutura
das redações,profissãoeprincípiosda imprensa; e iv)pela esfera subjetivanaqual
atuaoprópriojornalista.
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DinâmicasemelhanteéobservadanomodeloestruturadoporChristianeNord
(2016)paraatradução.Ancoradanofuncionalismoalemão(WEININGER,2000)ena
skopostheory (VERMEER, 1986), o funcionalismo nordiano compreende a tradução
comoumaaçãocomunicativaintercultural,emumcontextodesituaçãoreal,comosão
oseventosnoticiosos.Jáotradutorexerceoseupapelnoconfrontoentreasculturas
envolvidas, articulandoo seuespaçoeatuandonele comomediador.Aexemplodas
esferasdeatuaçãoexternaseinternasaojornalismo,Nord(2016)tambémsistematiza
fatoresdeinfluênciaexternoseinternosaostextos;traduzidosounão.
Os fatores extratextuais dizem respeito ao contexto, isto é, à situação de
produçãodoTFederecepçãodotextotraduzido:emissor; intenção;receptor;meio;
lugar; tempo; propósito e função textual. Esses fatores aproximam-se das seis
perguntasbásicasdo leadquedevemserrespondidasnaelaboraçãodareportagem:
“O quê?”, “Quem?”, “Quando?”, “Onde?”, “Como?” e “Por quê?”. Desses fatores,
destacamos a função que, de acordo comNord (2016), é determinada pela atuação
conjunta dos outros seis itens externos nomomento da recepção (leitura) do texto
traduzido. Jáos fatores intratextuais tratamdos fatores linguísticos, istoé,domodo
comooautor (tradutore jornalista)escreve,ouseja,domodocomoa linguagemse
articula para veicular a mensagem: tema, conteúdo, pressuposições, estruturação,
elementosnãoverbais,léxico,sintaxe,elementossuprassegmentaiseoefeitodotexto.
A dinâmica entre esses fatores faz com que qualquer mudança externa exerça
influênciadiretasobreos fatores internos,sendoarecíproca igualmenteverdadeira.
Esse caráter de recursividade e interdependência configura a situação comunicativa
como um evento único, isto é, os textos e a comunicação não são situações
padronizadas e precisam ser ajustadas às suas condições de produção e recepção
(públicoleitor).Comojornalismoissonãoédiferente.
Assim,combasenassistematizaçõesdeEsser(1998)eNord(2016)e,dentroda
abordagemfuncionalista,ainterfacesematerializapormeiodosseguintescritérios:i)
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tradução e jornalismo estão intimamente ligados às esferas de influência social e
cultural; ii) o fator intercultural é inerenteà sistematizaçãopropostapelos teóricos,
resultando em leituras diferenciadas para um mesmo fato; iii) tais sistematizações
resultam ainda emuma dinâmica comparável entre si; iv) os textos são produzidos
considerando-seoleitor-destinatáriosempreemprospecção;v) jornalistaetradutor
estãonocentrodesuaspráticas;evi)o leitoréumafigura(in)diretamenteativano
processodeproduçãotextual.
4.OJORNALISTACOMOTRADUTORDEFATOSNOTICIOSOS
Pormeio da dinâmica estabelecida entre a tradução e o jornalismo, podemos
entendero jornalista como tradutorde fatosnoticiosos. Sustentadopelosprincípios
queregemaimprensa,o jornalistaassumeafunçãodetradutorcombaseemalgum
trabalhofeitoequetenhaobtidobonsresultadosjuntoaopúblico(CULLETON,2005).
Nesse sentido, o jornalista se submete às instâncias influenciadoras do jornalismo,
geralmentepriorizandoumatraduçãofielaotextooriginaldareportagem.Poroutro
lado, existem situações em que o fato gerador da notícia acontece em condições
culturaisdistantesdocontextode recepção, exigindoajustesmaispontuaisno texto
midiático. A partir disso, surgem as escolhas lexicais, semânticas, e os diferentes
enfoques, isto é, perspectivas diferentes de abordagem para o fato relatado, que
demandammudanças estruturais no corpo da notícia, a fim de que o público leitor
finalconsigaconstruirefeitosdesentidocomotexto.
No processo de tradução, o jornalista tende a considerar quais informações e
detalhesdo fatodevemser ressaltados, expandidos, reestruturadosouatéomitidos,
tendo em vista o contexto de recepção da notícia e os valores-notícia agregados ao
fato.Muitasvezes,tem-seanecessidadedeancorarareportagemculturalmente,isto
é, buscar no contexto de chegada fatos históricos e/ou situações que auxiliem a
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compreensão do leitor e permitamque ele experimente efeitos de sentido análogos
àquelesprovocadosno leitoremseucontextodeorigem.Issoresultanoconceitode
tradução como representação cultural (ZIPSER, 2002), ou seja, quando há filtros
culturais atuantes nas abordagens, ao passo que a notícia transpõe fronteiras
internacionais.
Arepresentaçãoculturalseestabeleceemoposiçãoànoçãode“transcodificação
isenta” (literalidade), como incentivado pelosmanuais de jornalismo, segundoMeta
Zipser(2002)epelaprópriaprática.Atraduçãocomorepresentaçãodeumacultura
admiteaatuaçãodevaloresexternos,docontexto,sobreaproduçãotextualebusca
ancorarofatonoticiosoemreferênciasdaculturadechegada,paraqueo leitor-alvo
consigacompreenderosacontecimentoseosefeitosdestesobreosleitoresdacultura
emqueo fatoocorreu.Nesse sentido, segundoZipser (2002), a interfacepressupõe
paralelos de que i) essas áreas são “essencialmente interculturais” e determinam o
instrumentaldo trabalhodo tradutoredo jornalista; ii)aautoconsciênciaculturalé
atuante nas tarefas do jornalista e do tradutor, determinando as diferentes
perspectivas de abordagem do fato; iii) tradutor e jornalista são intermediadores
culturais:a traduçãorepresentaumaculturaeo jornalistaatuacomo“tradutor”dos
fatos.
Para exemplificar esses argumentos, analisamos reportagens nacionais e
internacionais de quando o presidente Jair Messias Bolsonaro contraiu a covid-19.
Paraaanálise,nossofocosãoasescolhaslexicais(fatoresinternos)queconfigurama
narrativa do fato nas manchetes (headlines) e lides (leads) das notícias. Em um
segundo momento, essas escolhas são agrupadas em campos semânticos que
sinalizam as diferentes angulações dadas para o fato por parte dos jornais
selecionados.
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5.METODOLOGIA
Em julhode2020,opresidente JairBolsonaroanunciouà imprensaquehavia
contraídoacovid-19,fatonoticiadonacionaleinternacionalmenteequegerougrande
repercussão pelas falas e atitudes do presidente. Esse acontecimento nos levou a
definir o corpus da pesquisa, composto por seismanchetes e suas respectivas lides
referentes à testagem positiva do presidente Bolsonaro para a covid-19. Para isso,
fizemos uma busca online por reportagens sobre o fato e selecionamos cinco
periódicos representativos de seus países de origeme umportal de notícias online,
tambémdegrandealcancejuntoaopúblicoleitor,asaber:
• periódicos norte-americanos: The New York Times, The Washington Post e
Bloomberg;
• periódicossul-americanoseeuropeus:oargentinoClaríneosfrancesesLeFigaro
eLeMonde;
• periódicosnacionais:FolhadeSãoPaulo(FSP),EstadodeMinas(EM)eUOL.
Comonãoanalisamosotextodasreportagens,nossocritériodeescolhadesses
veículosfoiapenasoimpactodasmancheteseaqualidadeinformativadosleads,pois
essessãoorientadosporperguntasgeradorasqueresumemamatériaparaoleitor:“O
quê?”,“Quem?”,“Quando?”,“Onde?”,“Como?”e“Porquê?”.Poressarazão,temosum
portaldenotíciaseapenasumperiódicosul-americano,emvezdeummesmonúmero
eamesmacategoriadeveículosmidiáticos.Essedetalhemereceexplicaçãopelofato
dequeumadasprerrogativasdateorianordianaéoestudodetextosquetenhama
mesmanatureza,ouseja,apenasperiódicosouapenasportaisdenotícia,demodoa
facilitaracomparaçãodefatorestextuaisexternoseinternosaotexto.
O passo seguinte à definição do corpus de estudo foi a leitura e seleção das
escolhas lexicaismaisrecorrentesnasmanchetesenos lides.Dareleituradestas, foi
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possível categorizar alguns campos semânticos representativos do fato noticioso e
denominadospornóscomo:“atitude”(dopresidenteemrelaçãoàpandemia);“vírus”
(termosempregadosparasereferiràcovid-19), “infecção” (termosparasereferira
testagem positiva), e “outros” (termos adjacentes, tais como hidroxicloroquina). A
possibilidade dessa categorização é o que nosmostra os caminhos da tradução em
meio jornalístico, especialmente quando as notícias ultrapassam as suas fronteiras
geradoras e que comprovam a tradução do fato dentro dos estudos da interface
tradução-jornalismo.Sendoassim,umaúltimaconsideraçãose faznecessária: textos
jornalísticos satisfazem uma condição inerente à proposta: são textos autênticos,
segundoNord(2016),ouseja,textosemcontextodesituaçãoreal.
6.BOLSONAROEACOVID―LÉXICONASMANCHETESELIDES
Escolhas lexicais e campos semânticos constituemumdos caminhos possíveis
para analisarmos mudanças de enfoque, angulação e a consequente representação
cultural dos fatos noticiosos em tradução (ZIPSER, 2002). Em Lawrence Venuti
(1995), encontra-se uma aproximação para a compreensão de escolhas lexicais
quando o teórico comenta sobre a influência de condicionantes culturais e sociais
atuando sobre a produção e leitura do texto e viabilizando a prática tradutória. Na
tradução jornalística, isso não é diferente, lembrando que o fato noticioso sofre a
influência direta de condicionantes externas e internas ao fazer jornalístico (ESSER,
1998), da mesma maneira como ocorre com a prática tradutória, conforme Nord
(2016).
No caso dasmanchetes e lides que compõemos periódicos norte-americanos,
observamos que não há uma variação significativa nas escolhas lexicais. Os termos
recorrentes são: “Bolsonaro”, “Presidente do Brasil” (President of Brazil), “testou
positivo” (tested positive) e “Coronavirus/covid-19”, todos citados duas vezes. O
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propósito e, consequentemente, o efeito dessas escolhas, é o de familiarizar o leitor
finalcomoconteúdodanotícia,leitoresteentendidocomoqualquerpessoafalantede
língua inglesa,emqualquerpaísdomundo,nãoapenasnorte-americanosresidentes
nos EUA. O enfoque das reportagens está nas escolhas que designam a atitude do
presidente frente à pandemia: “protestou contra” (railed against); “minimizou”
(downplayed); “procurou” (sought to); “incita o país a voltar ao trabalho” (urges
countrybacktowork)e“menosprezou”(belittled).Todossãovariaçõessobreomesmo
tema e traduzem o descaso do presidente brasileiro frente à doença que está
enfrentandoequejáhaviamatadomilhõesdebrasileirosàépoca.Acovid-19é,então,
abordadapelostermos:“ameaça,casos,mortes,pandemia”,respectivamente,“threat,
cases, deaths, pandemic”, sendo que o termo “ameaça” (threat), produz um efeito
intencionalmenteaflitivo,hostiledoloroso.Essasescolhascontrastamcomostermos
“infectado”(infected)e“testoupositivo”(testedpositive)quesereferemaofatodeo
presidentetercontraídoovírus,cujaaçãodevastadorainsisteemminimizar.Dessas
escolhas, categorizamos os campos semânticos (Figura 1) como “atitude”, “vírus” e
“infecção”, grupos que se repetem nos demais periódicos e demarcam as fronteiras
tradutóriasdanotícia.
FIGURA1―CAMPOSSEMÂNTICOS―PERIÓDICOSNORTE-AMERICANOS(AsAutoras,2020).
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Quantoaosperiódicoseuropeus,asmanchetesidentificamprimeiramentequem
é Jair Bolsonaro, de forma a suprir o distanciamento dos leitores do noticiário
brasileiro.Asescolhas lexicais recorrentessão: “presidente” (leprésident), “anuncia”
(annoncé), “testou” (testé) e “covid” ou “coronavírus”, todas citadas duas vezes, a
exemplo dos periódicos norte-americanos. Essa questão sugere provável
intermediaçãodeagênciasdenotíciascomoReuterseAFP(AssociatedFrancePress),
quecedemreportagenspadrãoaperiódicosdomundointeiro,queascomplementam
comdetalhesdeinteressedoseupúblicoleitoralvo.
Umavezidentificandoopresidentebrasileiro,osperiódicosfrancesesinformam
sobre a testagem positiva, empregando os termos: “testou positivo” (testé positif),
enquanto o sul-americano Clarín emprega o termo “foi infectado” (fue infectado),
conferindoumtommaisdramáticoàquestão.Nessecaso,oLeMonde éoúnicodos
três periódicos a complementar o fato informando o leitor sobre “sintomas”
(symptômes)ea“radiografiadospulmões”(radiographiedespoumons),detalhesnão
repassadosaoleitorbrasileiro,porexemplo.DiferentementedoLeMonde,oLeFigaro
nãomencionasintomas,masenfatizaopresidenteterminimizadoapandemiaecitao
númerodevítimaspeladoençanoBrasil.Aênfasemaior,portanto, estános termos
que contextualizam a contaminação. No caso do argentino Clarín, temos apenas o
sobrenomedopresidente,informandosuaconfirmaçãosobretercontraídoacovid-19
e seu próprio prognóstico de estar “perfeitamente bem” (perfectamente bien). O
periódico menciona, ainda, que o presidente voltou a subestimar a doença e a
incentivar o uso da hidroxicloroquina, sobre a qual reitera não haver comprovação
científicadesuaeficácia.
Aomissãodessasinformaçõesnosperiódicosbrasileirosgerou,posteriormente,
acriaçãodeumconsórciodeveículosda imprensapara informarapopulaçãosobre
dados da covid-19 não divulgados pelo governo brasileiro. O efeito dessas escolhas
sobreoleitoréclaramentefactualeinformativo,refletindoumdistanciamentosocial
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epolíticodosperiódicoseuropeus(ESSER,1998)quepermiteabordare traduziros
fatosdeformamaisclaraeobjetiva,quandocomparadosàcarênciainformacionaldos
periódicosbrasileiros,provavelmenteporrazõespolíticaseideológicas.
Umúltimodetalhe,aindasobreosjornaiseuropeusesul-americanos,resideno
modocomoabordamaatitudedopresidentebrasileiroaoserinfectadopelacovid-19.
OLeMondeempregaostermos“anunciou”(annoncé),“revelou”(révélé),“apresentou”
(présentait);jáoLeFigaroempregaostermos“anunciou”(annoncé)e“nãoparoude
minimizar” (n’a cessé de minimiser), enquanto que o Clarín detalha “informou”
(informó), “voltouasubestimar” (volvióa subestimar)e “promoveu”(promocionó) [a
cloroquina]. Vale ressaltar que o verbo “anunciar” traz consigo uma semântica
positiva, no sentido de “anunciar uma boa notícia, fazer publicidade, anunciar o
futuro”. Por outro lado, os termos “subestimar” e “minimizar” reiteram seu descaso
comapandemiaque,porsuavez,étraduzidapelostermos“doença”(enfermedad),no
Clarín, e “pandemia”(pandémie)e “mortes” (morts),nocasodoLeFigaro,únicoque
apresentanúmeros(65milmortes).
Dessas escolhas, podemos designar osmesmos campos semânticos (Figura 2)
anteriormente definidos para os periódicos norte-americanos “atitude, infecção,
vírus”,comumadendodenominadopornóscomo“outros”paradesignarinformações
adjacentesequecompõem,masnãosãoofocodanotícia.
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FIGURA2―CAMPOSSEMÂNTICOS―PERIÓDICOSEUROPEUS
ESUL-AMERICANOS(AsAutoras,2020).
Por fim, temososperiódicosbrasileirosque,aexemplodosdemais,mantêmo
foco em escolhas lexicais recorrentes: “Bolsonaro”, “quarentena”, “contrair”, “vírus”,
“cloroquina”, todos citados ao menos duas vezes, nas manchetes. Aqui, podemos
contrastar as escolhas nacionais com a pretensa neutralidade dos periódicos norte-
americanos; “presidente” (president), “Bolsonaro”, “vírus” (virus), “testou positivo”
(tested positive); e uma quase indignação de europeus e sul-americanos “anuncia”
(annoncé), “subestimar” (subestimar). Diferentemente dos demais, os periódicos
nacionaisparecemseenvolvermaiscomatestagempositivadopresidenteemrazão
deofatoterocorridonoBrasil.
A diferençamaior está na categoria “atitude” do presidente perante a doença
(Figura3).OportalUOL,porexemplo,empregatermoseexpressõescomo“anunciou”,
“admitiu”,“nãoaguentamaisficaremcasa”,indodeencontroàsreaçõesdemilhares
debrasileiros,mascomcerto tomdecríticapelo fatodessa informaçãotersidodita
pelo presidente que deveria dar o exemplo e permanecer em isolamento. Em
contrapartida,aFolhadeSãoPaulo(FSP)empregaoverbo“afirmar”,queassumeum
tom assertivo e de pretenso distanciamento, ao passo que o Estado de Minas (EM)
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utiliza “contar”, “disse”, ao que parece dar pouca importância, como algo comum,
corriqueiro, de forma similar à atitude recorrente do presidente ao banalizar o
númerodemorteseinfectadospelacovidnopaís.
FIGURA3―CAMPOSSEMÂNTICOS―PERIÓDICOSNACIONAIS
(AsAutoras,2020).
Já sobre a infecção, os periódicos empregam os termos: “infectado; testar
positivo” (UOL); “contraiu” (FSP) e “diagnosticado, febre” (EM). Percebemos aqui o
distanciamento total dado pelo portal UOL e pela FSP, veículos que integram o
consórciodeimprensaquebuscatrazerdadosobjetivossobreoscasosdeinfecçãoda
covid-19, enquanto o EM é o único periódico que confere certa humanização ao
presidente, mencionando sintomas da doença. Por fim, e a exemplo do argentino
Clarín, temos uma terceira categoria para os campos semânticos denominada como
“outro” e que aparece no EM: “tomar cloroquina, passou a se sentir melhor”. Essa
escolha reitera a defesa do presidente sobre o uso do referidomedicamento e nos
remeteaoTheWashingtonPostquandomenciona“incitaopaísavoltaraotrabalho”
(urgeshis countryback towork), bastando,para isso, fazerusodomedicamentoem
questão.
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Entende-se que as escolhas lexicais que constituem os campos semânticos
possíveis,mas nempor isso inertes, dasmanchetes e lides analisados neste estudo,
mostramdiferentescaminhosdeleituraparaummesmofatonoticioso,umavezque
essefatoreverberapróximoaoseureferente,casodosperiódicosnacionaisoulonge
desse foco. Essas diferentes angulações, que atuam com traduções para o fato na
interface da tradução jornalística, configuram as escolhas lexicais como elementos
pertencentes às esferas social e subjetiva para o jornalismomencionadas por Esser
(1998) e aos fatores textuais internos, em especial, léxico e efeitos de sentido,
mencionadosporNord(2016).Adinâmicaentreessescondicionanteséoquealçaa
figura do tradutor e, também, a do jornalista, bem como suas escolhas lexicais, ao
centrodoprocessotradutórioejornalísticodemaneiraativaecontundente.
Em outras palavras, mesmo que condicionado pela esfera social, na qual a
instituiçãojornalísticaatua,pelosprincípiosquesustentamofazerjornalísticoepela
própria estrutura das redações, o jornalista assume o protagonismo e torna-se o
centrodasuapráxis,tecendoescolhassintáticas,estruturais,lexicaisquedeterminam
o olhar interno, do jornalismo como instituição social, e externo, do leitor final que
impulsionaessasescolhas,aindaqueindiretamente.Omesmoocorrecomafigurado
tradutorquetambémassumeumprotagonismonecessárioeinerenteàsuacondição
deintermediadorcultural,vistoqueotradutor,assimcomoojornalista,tambémtece
suasescolhas linguísticaspormeiode fatoresculturaisdeterminantes,ressaltandoo
princípiodainterculturalidadequepermeiaosprocessosjornalísticoetradutório.
CONSIDERAÇÕESFINAIS
Emépocadefakenews,quemsabelerumareportagemérei!Certo,sabemosque
esseditadoéumaadaptação,masessaideiapassaaexistireaadquirirsignificaçãoa
partirdomomentoemquealinguageméarticulada,pelotradutor,pelojornalista,de
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forma a dar vida a um texto, a um fato noticioso. Essa é a proposta da tradução
jornalística:revelaralinguagemquearticulaasnotícias,trazeràtonaosignificadodas
escolhas lexicais, sintáticas, pragmáticas feitas pelo jornalista-tradutor e propor um
novoolharparaasreportagensquerecebemos(lemos)todososdias.
Saber ler e compreender o noticiário, em especial os fatos que ultrapassam
fronteiras e ganhamdimensão internacional, amplia o alcance e o entendimento da
realidade. Além disso, buscar o que a imprensa noticia sobre um mesmo fato
comprovaqueasreportagensquelemosconstituemapenasumaleituraenãoaúnica
possível para ummesmo acontecimento, segundo Zipser (2002). São essas leituras
quenospermitemargumentarqueessescaminhosconstituemdiferentestraduçõese
representamculturalmenteummesmofatonoticioso.
Nessesentido,ainterfacecolocaalinguagemcomoprodutodeummeiosociale
como um processo formador de sentidos que difere entre culturas. Em outras
palavras, a transcodificação isenta, isto é, a transferência de sentidos estáveis, que
correspondem a uma tradução literal, e a pretensa neutralidade jornalística não se
sustentam. Sendoa linguagemumamanifestação cultural, omodo comoa imprensa
internacional noticia a testagem positiva do presidente para a covid-19 representa
culturalmente a sociedade na qual a imprensa atua e se sustenta, gerando as
diferentestraduçõesdadasparaanotícia.
Outro ponto a ser considerado é a possibilidade de trabalhar com textos
jornalísticosemsaladeaula.Váriasescolastêmseuprópriojornalinstitucionale,em
sala,osalunosaprendemogênerodotextojornalístico,suascaracterísticasefunções.
Os próprios alunos produzem o material publicado no jornal da escola e, nesse
contexto,sãoconfrontadoscomestiloecaracterísticasespecíficasdaredaçãodotexto
jornalístico, com a maneira de diagramar conteúdo para portais online e material
impressoetambémpodemaprenderalerdefatoojornal,aentenderaestruturada
notícia, a entender e identificar oque são fakenews. Aspossibilidades sãomuitas e
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atuais, além de que, como professores, podemos ainda identificar nesses alunos
qualidades e talentos que podem ajudá-los a descobrir futuras profissões, como
jornalistas,repórteres,redatores,tradutoreserevisores.
Oprocessotradutóriosecoloca,portanto,comoumaferramentaamaisparaauxiliaro
professor a diversificar o processo de ensino-aprendizagem de LE. Nesse sentido, a
tradução é vista como uma ferramenta pedagógica, um exercício que possibilita a
reflexãosobreousoeosignificadodaspalavrasemdiferentescontextoseculturas.O
exercício de comparação de estruturas entre línguas aguça, ainda, a percepção de
comoaslínguasrefletemomeiosocialnoqualsãoempregadas.Assim,oalunotema
oportunidadede aprender a ler “as entrelinhas”, saber quemescreveu o texto, para
quem, porque e como, tornando-se um cidadão mais consciente da diversidade
linguísticaecultural,dentrodasuaprópriaculturaeparaalémdela.Nessesentido,a
interfacedatraduçãojornalísticaconstituimeiodeinteraçãoeconscientizaçãosobre
o papel do jornalista, do tradutor e do leitor em sociedade, em uma dinâmica que
implicasairdesi,olharparao“outro”e,sóentão,olhardevoltaparasimesmo.
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OPARATEXTOPREFACIALDETRADUÇÃOLITERÁRIA:OCASODOS
HAMLETSBRASILEIROS
THEPREFATORYPARATEXTOFLITERARYTRANSLATION:THECASEOF
THEBRAZILIANHAMLETS
PedroLuísSalaVieira1
RESUMO:Opresenteartigoconstituiumareflexãocríticadafunçãodoparatextoprefacialdotextotraduzido de quinze traduções da peça Hamlet, de William Shakespeare. Esta pesquisa parte dopressuposto de que paratextos de tradução contribuem para a compreensão de fenômenosrelacionados ao texto traduzido e para a recepção de obras literárias em culturas diversas(BATCHELOR, 2018; TAHIR-GURÇAGLAR, 2002). Este estudo pretende, portanto, ampliar adiscussãoa respeitododiscursoprefacial comoobjetodepesquisa fundamentalparao estudodetraduções.Palavras-chave:paratextos;tradução;Hamlet.ABSTRACT: This article is a critical reflection of the function of the prefatory paratext of thetranslated textof twelveBrazilian translationsofHamletbyWilliamShakespeare.Thisresearch isgrounded on the assumption that the paratexts of translation contribute to understand thephenomena related to the translated text and the reception of literary works in diverse cultures(BATCHELOR,2018;TAHIR-GURÇAGLAR,2002).Thisstudyintendsthustobroadenthediscussionontheprefatorydiscourseasacrucialresearchobjectforthestudyoftranslations.Keywords:paratexts;translation;Hamlet.
1Doutorando,UFF.
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1.INTRODUÇÃO
Na concepção de André Lefevere (1992), a tradução constitui um tipo de
reescritado texto-fontenaqualeste incorporaa ideologiaeapoéticadominantedo
contexto imediato da nova cultura em que se inscreve. A partir desse princípio, é
possívelafirmarquecadatraduçãodeumamesmaobrarevelaumaformadistintade
apresentar determinado texto literário ao leitor. Os paratextos, na condição de
componentes textuais que apresentam a obra e asseguram sua presença nomundo
(GENETTE, 1997), assumemumpapel fundamental no contexto do texto traduzido,
poissãoresponsáveisporconstruiramediaçãodotextoliteráriocomanovacultura
receptora.
Opresenteartigo,combasenaanáliserealizadaemdissertaçãodeMestradoa
respeito do tema (VIEIRA, 2018) e emdiálogo comoutras pesquisas que tratamda
temática,refletesobreafunçãodoparatextoprefacialdetraduçãoliteráriapormeio
da análise de doze traduções brasileiras de Hamlet2, de William Shakespeare. A
denominação “paratexto prefacial” engloba neste artigo não apenas os prefácios
propriamente ditos, mas também outros textos situados no entorno do livro, como
introduções,posfáciosetextosdeorelhadelivroecontracapa.
2.APARATEXTUALIDADEDETRADUÇÃOLITERÁRIA
GérardGenette(1997),autordeParatexts:thresholdsof interpretation3,situao
paratexto como um fenômeno transtextual4 que assegura a presença da obra no
2 Como o presente artigo aproveita o corpus e os resultados obtidos na pesquisa de Mestradorealizada em 2018, não foi incluída a tradução de Geraldo Carneiro publicada pela ManeiraAdvogadosem2019.3TítulodatraduçãoinglesadeSeuils(títulooriginaldaobraemfrancêspublicadoem1987).
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mundo,influenciandoasuarecepçãoeconstituindo-seemumazonafronteiriçaentre
otextoeoreceptor.Essadefiniçãoatribuiaoparatextoafunçãodeestimularoleitora
usufruir a obra, destacando seus elementospositivos e justificandoa sua relevância
cultural. Essa característica contribui para que ele seja um espaço de promoção
comercialdolivro,delimitandoopúblico-alvoedefinindooobjetivodapublicação.
Notextotraduzido,afunçãodoparatextonosistemareceptorlevantadiversas
questões. Na concepção de Kathryn Batchelor (2018), autora de Translation and
Paratext, oparatextonão compõeapenasespaçode introduçãoe/oumediação,mas
também intervenção e transformação, constituindo um espaço com potencial de
modificar a recepção de determinado texto na cultura receptora. Şehnaz Tahir-
Gürçaglar (2002), por exemplo, aponta que a análise de paratextos de tradução
constitui uma forma de elencar conceitos e definições diferentes a respeito de
traduçãoemdeterminadocontextoculturalehistórico:“Oestudodestematerialpode
nosproverpistasvaliosasarespeitodecomoatraduçãofoiconcebidaetambémdas
condições sob as quais as traduções foram produzidas e consumidas”5 (TAHIR-
GÜRÇAGLAR, 2002, p. 58-59, traduçãominha). Nesse sentido, os paratextos podem
constituirfontessistemáticasderecriaçãodasnormastradutórias.
Márcia Martins (2015) aplica essa reconstrução em seu artigo “A voz dos
tradutores shakespearianos em seus paratextos”, no qual coteja o discurso dos
tradutoresnoselementosparatextuaisarespeitodoprocessotradutóriocomotexto
traduzido, buscando observar se as decisões e escolhas tradutórias correspondem
àquiloqueforaporelesproposto.Empesquisasemelhante,CarmenToledanoBuendía
(2013)caracterizaoparatextocomoartifícioparaqueavozdotradutorsejaouvida,
4 Além da paratextualidade, Genette também aborda relações transtextuais de intertextualidade(relaçãoentretextos),metatextualidade,arquitextualidadeehipertextualidade.Paraaprofundar-senotema,consultaraobraParalimpsestes:lalittératureauseconddegré.5Nooriginal:“Thestudyofsuchmaterialmayofferusefulcluesnotonlyabouthowtranslationwasdefined, but also about the conditions under which translations were produced and consumed”(TAHIR-GÜRÇAGLAR,2002,p.58-59).
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alémdealegarqueoestudodenotasdetraduçãoeoutrostiposdeparatextopodem
fornecer informaçõesrelevantesparaacontextualizaçãodosprocessostradutóriose
compreensãodasnormasepolíticasvigentesnaépocadapublicaçãodatradução.
Teresa Dias Carneiro (2014), ao discutir o prefácio de tradutor como gênero
autônomo, argumenta que esse tem como objetivo realçar a importância do texto
traduzido e da qualidade da obra, evocando um discurso modesto perante o texto
“original”, cuja intenção e verdade são inalcançáveis pela tradução. Essa atitude
“amplificadora”queenalteceotextoliterárioseconjugaaumaposturaescusatóriana
qualotradutorserefugianomantodaobraoriginalparaimpedirpossíveiscríticasao
seutrabalho.
São diversos os ângulos pelos quais se pode analisar e discutir a função do
paratextoprefacialnatraduçãoliterária.Nocasodopresenteestudo,ofocoresideno
discurso construído no paratexto prefacial — doravante denominado discurso
prefacial—das traduções brasileiras deHamlet como intuito de demonstrar como
esses componentes abordaram o autor, a obra e a própria tradução sob uma
perspectivadiacrônica.
3.ASTRADUÇÕESDEHAMLETNOBRASIL:UMAANÁLISEDIACRÔNICA
A história das traduções da peça shakespeariana no Brasil se inicia com a
publicação da primeira versão em forma integral da peça, traduzida pelo poeta e
advogadoTristãodaCunhaepublicadaem1933pelaEditoraSchmidt, intitulada “A
tragédiadeHamleto,PríncipedaDinamarca”(SHAKESPEARE,1933).Trata-sedeuma
daspoucasobrasqueinformaemsuafolhaderostootexto-fonteutilizado:TheWorks
ofWilliam Shakespeare, editadoporWilliamAldisRight e publicadopelaMacmillan
emLondreseNovaYorkem1904.Tantooprefácioquantoo texto traduzido foram
redigidosemprosaseiscentista, revelandouma tentativadeadaptara linguagemda
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obra ao tempode Shakespeare.O prefácio, de autoria de Cunha, se caracteriza pela
exaltação à figura de Shakespeare, expressa nas palavras de louvor atribuídas ao
bardo inglêscomo“gênio literário”e “excessivocomoosol”, situandoodramaturgo
em um patamar inalcançável no panteão dos grandes escritores em virtude de sua
“incomparávelmagiadeexpressão”.
O prefácio de Cunha também apresenta uma avaliação crítica de sua própria
tradução, resumida na seguinte passagem: “Traduzi sem esquecer aquele aviso de
Rivarol6,paraquemmuitavezéprecisosacrificarapalavraparanãotrairoespírito”
(p.06).Acrescentatambémqueamelhortraduçãoéaquelaquemaisseaproximado
original, o que revela uma visão tradicional de tradução, pois é preciso “sacrificar a
palavra”, istoé,abster-sedafidelidadetextualparatransmitira intencionalidadeea
mensagemdoautor,imbuídasdasupostaverdadesobreaobra.
O caráter laudatório no discurso voltado a Shakespeare e sua obra também
marcaobreveparatextoprefacialdasegundatraduçãodapeça,dopoetae tradutor
paulista Oliveira Ribeiro Neto (SHAKESPEARE, 1960), publicada originalmente em
19487 pela editorapaulistaMartinsFontes. Essa versão apresenta apenasumbreve
textointrodutórionaorelhadolivrocomcaráterpromocionalesemautoriadefinida.
Nessa apresentação, Shakespeare é exaltadode formagenérica, sendo tratado como
umafiguradecaráteruniversal:“AtéosregimespolíticosrespeitamShakespeare,que
érepresentadoemtodasasnações,sejaqual foroseuregimeou ideologia”(s/p).O
paratexto também chama a atenção para uma espécie de eternidade da obra
shakespeariana, destacando que sua ampla aceitação no mundo político e literário
garantem sua “perenidade” e “indestrutibilidade”, constituindo um “ponto de
6AntoinedeRivarol(1753-1801)foiumescritorepolemistafrancês.NoBrasil,aobradeRivarolfoiacolhidaexatamenteporTristãodaCunha.EmCoisasdoTempo (1922),Cunhadedicaoensaiodeintroduçãoaoautorfrancês,intituladoNoJardimdeRivarol(CUNHA,Tristãoda.ObrasdeTristãodaCunha.RiodeJaneiro,LivrariaAgirEditora;Brasília:INL,1979,p.28-56).7 A edição utilizada no presente corpus, da mesma editora, é a reimpressão publicada em 1965,acompanhadadastraduçõesdeRomeueJulietaeOtelo,domesmotradutor.
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referência permanente”. Em suma, o breve paratexto de Ribeiro Neto se dedica a
exaltardeformaacríticaafiguradoautor,semmençãoaoutrasquestõesrelacionadas
àobraouàprópriatradução.
AtraduçãodePériclesEugêniodaSilvaRamos,publicadaem1955pelaEditora
José Olympio (SHAKESPEARE, 1955), contém paratextos mais elaborados. Em uma
apresentação extensa intitulada “Introdução”, de autoria do próprio tradutor, são
tratados diversos aspectos do texto de Shakespeare e de sua biografia. Trata das
fontesdoenredodapeça,discutindoaorigemdocontodopríncipedinamarquêsna
obra Gesta Danorum, compilado de contos antigos do erudito dinamarquês Saxo
Grammaticus, e que teria chegado ao bardo por meio da adaptação francesa da
história de François de Belleforest. No aspecto da tradução, limita-se a apresentar
justificativasrelacionadasaousodaversãodotexto-fonteedequestõesconcernentes
àalternânciaentreoversoeaprosanatradução.
Na tradução posterior, de Carlos Alberto Nunes, publicada originalmente pela
EditoraMelhoramentos,(SHAKESPEARE,1956),assimcomonaversãodeSilvaRamos
(SHAKESPEARE,1955),permaneceapreocupaçãoemprover informaçõesdaobrae
doautoraopúblico.Naediçãoutilizadanestecorpus,publicadapelaEdiouroemano
indefinido, a sua tradução ― intitulada Hamleto, Príncipe da Dinamarca ― é
acompanhada de suas traduções das outras tragédias shakespearianas. O primeiro
paratexto, intitulado “Introdução ao Plano do Teatro de Shakespeare”, serve como
introdução geral à obra, discutindo variados aspectos em torno da obra
shakespeariana:acomparaçãoentreacríticashakespearianaromânticaeamoderna,
acusandoestadebuscarreduziroautoraumaanáliseobjetiva“parareconduzi-laao
domínioestritamentehumano”(NUNES,s/d,p.04),enãopoupaodiscursolaudatório
quando ressalta que “depois da leitura de tantos estudos igualmente proveitosos,
sentimo-nosaindamaisamesquinhadosdiantedagrandezadopoeta”(p.04).
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Apóstratarbrevementedabiografiaedacronologiadesuaobra,Nunesrealçaa
relevância de traduzir Shakespeare para outras culturas, a ponto de sustentar que
“nãoseráexageroafirmarqueovalordessas literaturassecalculapelamaneirapor
que têm reagido com relação a Shakespeare” (NUNES, s/d, p. 08), acrescentando
posteriormenteque“a influênciadeShakespearesobreuma literatura independeda
excelênciadatradução.BastaquesejaShakespeare”(p.09).Nunesargumentaquese
manteve fiel ao textoem inglêsaooptarpelodecassílaboheroiconaspassagensem
verso por considerar esta forma mais próxima do padrão poético shakespeariano,
mantendo a uniformidade do estilo nas passagens em verso branco. Em relação à
prosa,afirmaquebuscou“fazerjustiçaàopulênciadooriginal”(p.10).
Osoutrosdoisparatextos,semautoriadefinida,assemelham-seemmatériade
conteúdo: o primeiro consiste em uma introdução intitulada Hamleto que retoma
elementosrelacionadosàobracomofonteshistóricaseasinopsedoenredo,alémde
proverbrevesreflexõescríticasarespeitodapeçaeenaltecê-lacomoa“obra-primade
Shakespeare”(s/d,p.543).Oautordestacaaprofundidadedospersonagens,semos
quais a peça não passaria de uma “vasta carnificina sem interesse” (s/d, p. 543). O
segundo texto é um breve ensaio intitulado “Prefácio”, que retoma algumas
informações contidas no prefácio anterior, novamente trazendo ênfase aos
personagens cujas características únicas e peculiaresmoldama relevância artístico-
literáriadapeça.
Em 1968, a Editora Agir publica a tradução da professora e escritora Anna
Amélia Carneiro de Mendonça, reeditada posteriormente em 1995 pela Nova
Fronteira (SHAKESPEARE, 1995). Essa reedição apresenta dois prefácios, ambos
escritos pela filha da tradutora, Bárbara Heliodora, crítica e especialista de grande
notoriedadedaobra shakespeariana.Noprimeiro, correspondente à ediçãodaAgir,
Heliodoracontaquepediuàmãequetraduzisseapeçaparaumasériedeaulasque
ministraria na época para a Conservatório Nacional de Teatro, pois necessitava de
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“uma tradução para o teatro, emque atores e diretores pudessem sentir o fluxo da
ação”(HELIODORA,1995,p.07).
Nesse prefácio, Heliodora também comenta que a linguagem shakespeariana,
populareacessívelaopúblicoelisabetano,refletiaamodernidadequeseexpandiade
forma contemporânea ao dramaturgo, e discorre a respeito das características
elementares da dramaturgia elisabetana, destacando a união dos traços do teatro
medieval, dominado pelas histórias associadas à moral humana, com elementos do
Renascimento, como a busca de autoconhecimento pelo indivíduo. Ao final desse
prefácio, Heliodora engrandece a peça como a “mais fascinante” para atores e
diretores, e um símbolo da evolução do homem diante das tarefas que lhe são
impostas.
No prefácio posterior, Heliodora apresenta um discurso mais objetivo e
igualmente didático, tratando essencialmente da biografia do autor, da história da
publicação da peça, da origemdo enredo e das diferenças entre as versões. Conclui
essetextocomaseguinteafirmaçãoarespeitodaspossibilidadesdeleituradaobra:
“Éprivilégiodo leitor fazerasuaprópriamontagemimagináriaerefazê-la,alterá-la,
aprimorá-la, segundoasdescobertasque irá fazendoacadanova leituradesse texto
inesgotável”(HELIODORA,1995,p.23).
Umanodepois da publicação dessa tradução, a Editora JoséAguilar publica a
obracompletadeShakespeare traduzidaem formadeparceriaporFernandoCarlos
deCunhaMedeiroseOscarMendes8(SHAKESPEARE,1988).Aediçãoanalisadaéuma
reimpressãode1988 e conta comquatroparatextosprefaciais.Oprimeiro é a nota
editorialassinadapor JoséAguilarqueseencarregasumariamentedeapresentaros
tradutores,destacandotambémqueoobjetivodaeditoriaconsistiuemalcançar“uma
traduçãomaisfielpossívelaotextodoautor”(AGUILAR,1988,p.12).
8 De acordo comMárcia Martins (1999), embora essa informação não esteja explícita na ediçãoanalisada, Cunha Medeiros ficou encarregado de verter as passagens em prosa enquanto OscarMendestraduziuascanções.
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O prefácio seguinte, intitulado “Shakespeare”, é de autoria de C. J. Sisson,
reconhecido crítico britânico da obra shakespeariana, e traduzido por Cunha
Medeiros. É o primeiro paratexto assinado por um especialista na obra
shakespeariana presente em uma tradução da peça. A presença de um texto crítico
indicaumapreocupaçãocomoleitorquepretendeseinformarsobreoautoremum
panoramamaiscríticoeintelectual,semlimitar-seatratargenericamentedeaspectos
biográficos ou elementos do enredo. Entre outras questões, Sisson trata da era
elisabetana e do desenvolvimento do pensamento shakespeariano no decorrer dos
séculos.
Oparatextoseguinte,intitulado“AvidadeShakespearenavidadoseutempo”,
de autoria deOscarMendes, apresenta brevemente o contextohistórico vividopelo
dramaturgo,destacandoqueoavançosocioeconômicoquesedesenhavanaInglaterra
daquela época ecoa em toda a obra shakespeariana: “Na sua obra, lida com a
necessária atenção, descobre-se o retrato, a descrição, a paisagem humana, da
Inglaterraelisabetana[...]”(MENDES,1988,p.46).
Antes da seção dedicada às tragédias, somos apresentados a uma nota
introdutória, também de autoria de Oscar Mendes, que ressalta a relevância das
tragédias para o cânone shakespeariano, além de discutir aspectos inerentes a esse
gênero.Hamletécaracterizadocomoa“tragédiadadúvida”,poisohomemsetortura
parajustificaremsuaconsciênciaseusatoseomissões.QuantoaShakespeare,exalta
seu gênio criador por insuflar vida a seus personagens a ponto de conferir a eles
imortalidade.Porfim,cadapeçadovolumepossuiumparatextoprefacialqueconsiste
deduassubseções intituladas, respectivamente,de “Sinopse”e “DadosHistóricos”:a
primeiraapresentaumabrevedescriçãodoenredodapeça,enquantoasegundatraz
aspectosbiográficosehistóricosrelacionadosàobraeaoautor.
Depois de um hiato de quinze anos, é publicada a tradução de Geraldo de
Carvalho Silos, pela Editora JB (SHAKESPEARE, 1984). Nessa versão, todos os
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paratextos prefaciais são de autoria do tradutor. O primeiro, intitulado “Prefácio”,
constituiumbreverelatosobreoprocessotradutório,descrevendodetalhescomoos
cinco anos de pesquisa na Biblioteca Nacional do Canadá. No segundo paratexto,
intitulado “Introdução”, Silos recapitula diversos aspectos relacionados à obra e ao
autor já assinalados por paratextos anteriores, como as fontes do enredo, o “Ur-
Hamlet”,asdiferentesversõesdapeçaeocontextohistóricodesuaprodução.Entre
todos os elementos trazidos por Silos neste extenso paratexto, podemos destacar o
fato de ele mencionar o uso do Oxford English Dictionary para “decifrar” o que o
próprio denomina “inglês elisabetano” de Shakespeare, linguagem por ele
caracterizada pela indisciplina e extrema flexibilidade.Destaca a relevância de ler a
peça de acordo com o seu tempo para “entender com clareza o que o público
elisabetano ― formado mais pelo povo do que pela classe alta ― ouvia dos
personagens”(SILOS,1984,p.XXV).
Silosdedicaumaseçãodoparatextoparatratardotemadatradução,limitando-
se a afirmar que, diante das escolhas que o trabalho lhe impõe, “o tradutor por
necessidade transforma-se em crítico, tomando partido pela escolha que insira a
decodificaçãonoqueelepensanãosódapalavra,dafrase,masdetodaapeça”(SILOS,
1984, p. XXVI). Na seção intitulada “Notas”, no posfácio, Silos argumenta que o
tradutor de Shakespeare se depara com dilemas interpretativos e ambíguos em
virtude dos variados sentidos atribuídos a seus textos por especialistas norte-
americanos e ingleses, concluindo que o tradutor deve manter-se na incerteza e
buscarreproduzirosentidoverticaldotexto.Noresumobiográfico,detalhaaspectos
da vida de Shakespeare ainda não tratados em outros paratextos, como a origem
familiardospais,hipótesessobreasuainstruçãoacadêmicanainfânciaejuventude,a
inspiraçãonamortedeKatherineHamletnorioAvonparaescreveracenadaOfélia,o
casamentodeShakespearecomAnneHathaway,onascimentodesuafilhaSusannae
deseusfilhosgêmeoseamorteprematuradeseufilhoHamnet.
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Em 1988, a L&PM publica a tradução de Millôr Fernandes. A versão de
Fernandes apresenta um número reduzido de paratextos prefaciais, que se
caracterizam pelo caráter breve e objetivo. O prefácio, intitulado “William
Shakespeare (1564-1616)”, fornece informações biográficas sobre o autor, o
panoramahistóricodesuaspeças,umabrevecontextualizaçãohistóricadesuaépoca
ecomentasobrecaracterísticasestruturaisdoteatroelisabetanoquepermitiamuma
proximidadefísicadosatorescomopúblico.Naconclusão,oautoréenaltecidocomo
umdosmaioresautoresde todosos temposemvirtudedagrandezapoéticade sua
linguagem,daprofundidadefilosóficadesuasobrasedacomplexacaracterizaçãodos
personagens.Na contracapa, umbreve texto editorial define a peça comoumaobra
que trata da condição humana e compõe uma dimensão trágica. Por fim, elogia a
traduçãodeMillôrFernandes,destacando seuposicionamento críticoemrelaçãoao
eruditismopresenteemtraduçõesanterioresqueprejudicariaocaráterdramáticodo
textoeasuacompreensãonalínguadechegada.
Atraduçãoposterior,deMarioFondelli,publicadapelaNewtonComptonBrasil
(SHAKESPEARE, 1996) apresenta apenas um breve paratexto prefacial intitulado
“Notabibliográfica”,que trataprincipalmentedapublicaçãodoFirstFoliode1623e
da despreocupação de Shakespeare em publicar as suas peças, tarefa empreendida
postumamenteporseuscolegasHemingeseCondell.Traçaumpanoramahistóricodo
cânonedramáticoshakespeariano,trazendobrevescomentáriossobreaestruturade
seustrabalhospoéticos:osdoispoemasnarrativos—TheRapeofLucreceeVenusand
Adonis — e seus 154 sonetos. Na conclusão, fornece informações bibliográficas da
crítica shakespeariana. Na contracapa, um texto editorial sem indicação de autoria
promoveaobraeoautor.CaracterizaapeçaHamletcomo“umdosêxitosmaisfelizes
doextraordinário talentodeShakespeare”edefineapersonagemAmleto(conforme
grafiadoprópriotexto)comoumafiguradedoisperíodoshistóricosdistintos,em“sua
enigmáticaporémgrandeeloqüenteinação[sic]”e“umhomemeternamenteemluta
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comasantinomiasdamoralecomanecessidadedeescolheracadadiaoseupróprio
modode agir” (1997, quarta capa).Ao fimdanota, apresentaumaminibiografiado
bardo.
Atraduçãoseguinte,deElvioFunck,voltaaconferirumpapelpreponderanteao
paratextoprefacial.ProfessordeLiteraturaInglesadaUnisinos,noRioGrandedoSul,
a sua versão foi originalmente publicada pela editora da universidade em 2003 (a
ediçãodopresentecorpuséumareimpressãode2005)esedestacaporsuaproposta
detraduçãointerlinear,ondeotextoeminglêséseguidoporsuaversãoemportuguês.
No paratexto prefacial intitulado Introdução, Funck define Shakespeare como
“profundoconhecedordanaturezahumana”, cujas consideraçõesescapamao “leitor
comum”(FUNCK,2005,p.07).Denominatraduçõesanteriorescomo“narrativalinear
e superficial do enredo” (FUNCK, 2005, p. 07) e define a sua tradução como uma
“tentativa de dar aos leitores deHamlet a oportunidade de ler esta obra-prima da
literatura universal com um pouco mais de profundidade” (FUNCK, 2005, p. 07),
destacando que a decisão de publicar uma tradução interlinear teve o objetivo de
agradaraquelesqueapreciamcompararasduasversões.
Funck salienta que o objetivo original de sua tradução— segundo o próprio,
umatradução“pragmáticaesempretensõespoéticas”,apósdeclararqueapenasum
poetapodetraduziroutropoeta—erafornecerumtextodeleituramaisfluidaaseus
alunos de graduação, tratando as notas explicativas como essenciais para a
compreensãodedeterminadaspassagensdapeça.Nessesentido,otradutordistingue
leitoresqueapenasseinteressampeloenredodos“verdadeirosleitores”,queseriam
aquelesde fato interessadosnaobrae,portanto,devembuscarumamparocríticoe
históricoparaacompanharaleitura.Emrelaçãoàtradução,Funckselimitaajustificar
determinadas decisões tradutórias na subseção Questões gramaticais, explicando
aspectosrelacionadosàcorrespondêncialinguísticanoportuguêsdospronomesthou,
theeethy,deusocomumnalinguagemoralnaépocadeShakespeare.
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Em 2010, a Editora Hedra publica a tradução de José Roberto O’Shea
(SHAKESPEARE,2010),professordaUniversidadeFederaldeSantaCatarina.Aversão
deO’SheaconstituiatraduçãodoPrimeiroIn-Quartodapeça,publicadaem1603.O
paratexto inicial consiste em um texto de introdução dividido em três blocos,
começandocomumresumobiográficodeShakespearedetomlaudatório,realçandoa
profundidadedosseuspersonagens, responsáveispordescreveracondiçãohumana
quegarantiuauniversalidadedesuasobras.Asegundaparteapontaqueadiferença
entre as três versões reside na extensão, estrutura, caracterização, nos nomes das
personagens e nas rubricas, alegando que todas essas diferenças devem ser vistas
como resultadode “impulsos criativosquevisamà construçãode textosdramáticos
comfunçõesespecíficas”(O’SHEA,2010,p.05).Oúltimoblocoapresentaumresumo
biográficodotradutor,destacandoasuatrajetóriaacadêmicaeosseusinteressesde
pesquisa.
O segundo paratexto prefacial, intitulado “Introdução”, de autoria do próprio
tradutor,tratadecaracterísticaspeculiaresdessaversãodapeça.O’Sheadestacaque
elacontémmaisaçãodoqueintrospecção,constituindoumaversãoresumidadeuma
peça extensa com qualidades dramáticas que superam as versões mais conhecidas.
TraçaumpanoramahistóricodasperformancesdestaversãonoBrasil enomundo,
ressaltando que se trata de uma obra mais teatral que literária devido às suas
qualidades dramáticas. Lança, por fim, uma proposta a diretores teatrais do país:
“Nesse particular, já é hora de os contextos lusófonos serem contemplados com
traduções e encenaçõesdoHamletde1603,mais curto e enxuto” (O’SHEA,2010, p.
31).
A tradução de Lawrence Flores Pereira (SHAKESPEARE, 2015), professor da
UniversidadeFederaldeSantaMaria,completaocorpusdestaanálise.Publicadapela
CompanhiadasLetrasem2015epremiadapeloJabutinomesmoano,oparatextoda
versão de Pereira apresenta elementos em comum com traduções anteriores, como
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discussão das fontes do enredo e as diferentes versões da peça, mas também traz
informaçõesnovasdebasebiográficaebibliográficaao longodosquatroparatextos
prefaciaisqueseencontramnoseuconjunto.
No primeiro texto, intitulado “Introdução”, Pereira realça que Shakespeare
desvia o tema de vingança diante da hesitação do protagonista em agir, embora a
temática ainda permeie todo o enredo. Realça a cisão histórica que representa o
contraste temporal entre o Rei Hamlet e o Príncipe Hamlet: “[...] o pai encarna o
mundoarcaico,baseadono costumeenapalavra,nãopenetradopelohumanismoe
sua sutil visão demundo na qual a consciência do filho parece habitar” (PEREIRA,
2015,p.16).Esteparatextoéseguidopeloensaio“Hamleteseusproblemas”,deT.S.
Eliot,traduzidopelopróprioPereira,noqualEliotclassificaapeçacomoumfracasso
artístico por conta da “ausência de um equivalente objetivo aos sentimentos do
personagemdeHamlet”(ELIOT,2015,p.38),deficiênciatambémapontadapelopoeta
norte-americano nos sonetos do Bardo. Pereira dedica um espaço breve para
comentar a respeito da tradução na “Nota sobre a tradução”, ecoando as ideias de
Haroldo de Campos sobre tradução de poesia, para quem essa constitui um “canto
paralelo”queabarcariaoutrasvozesalémdadita “original”. Justificaousodoverso
dodecassílabo como correspondente ao pentâmetro iâmbico, buscando evitar uma
“ritmaçãoexcessivamenteaudível”:“Oalexandrinopresta-seperfeitamenteàsformas
conversacionais,reflexivasedisruptivas”(PEREIRA,2015,p.47).
As traduções da obra, portanto, além de apresentar diferentes propostas
interpretativas da peça shakespeariana, contêm diferentes formas de apresentar a
obra e o autor, selecionando determinados assuntos e excluindo outros, além de
conter variações em suas temáticas. Os paratextos, assim como o texto literário, se
originam em determinado contexto socio-histórico, contendo um discurso — ou
discursos — que remete a enunciados que adentram uma corrente histórica e são
moldados por suas condições de produção (BRANDÃO, 2015). Esse discurso,
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denominado discurso prefacial, forma temas e padrões que refletem a recepção
históricadafigurashakespearianapelaculturareceptora.
4.ODISCURSOPREFACIAL:TEMASEPADRÕESPREDOMINANTES
A análise evidencia o propósito introdutório do paratexto prefacial,
privilegiandoaapresentaçãodaobraedoautorpormeiodedeterminadospadrões
temáticos: biografia do autor e seu contexto histórico; a origem da obra,
principalmentenoquetangeaoseuenredo;comentárioscríticosarespeitodapeça,
seja para tratar das diferentes versões, seja para caracterizar a trama e os
personagens.Todosessestemassãotratadosoradeformamaisbreve,oradeforma
mais aprofundada e específica, repetindo informações já presentes em outros
prefácios,mastambémreformulandooutrazendoelementosnovos.
O discurso prefacial com fins introdutórios também pode conter o caráter
laudatóriomencionadonoiníciodesteartigo,tendocomopropósitoenaltecertantoas
qualidades da obra quanto a figura do escritor. Esses discursos podem ser
alimentados por vozes críticas, seja do próprio tradutor, seja de outros autores e
estudiososdaobra.NocasodatraduçãodeCunhaMedeiroseMendes,temosumtexto
crítico de Sisson. Pereira, por sua vez, trouxe a visãodeEliot comouma espécie de
contrapontoàvisãoenaltecedoradaobraedoautor.O caráter laudatório começaa
diminuirapartirdoparatextodeHeliodoraque,naposiçãodeestudiosaecríticada
obra, inicia a desconstrução paulatina da imagem monumental do autor que se
desdobra em um discursomais crítico e objetivo no decorrer do tempo, observado
principalmentenastraduçõesmaisrecentes.
Otemadatradução,porsuavez,ganhamaisespaçoeprofundidadeaolongodos
anos.Antesatreladoaumavisãotradicionalqueapregoaanecessidadedeatradução
alcançaro“sentido”dotextooriginal,comonocasodosparatextosdeCunhaeNunes,
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essa concepção se modifica nas versões posteriores. Heliodora, no prefácio da
traduçãodeMendonça,preocupa-semais coma linguagemdramáticadoque coma
necessidade de reproduzir a originalidade de Shakespeare na língua-alvo. Silos, por
sua vez, associa a sua tradução a uma tarefa de pesquisa e a um trabalho crítico,
alertando,maisdeumavez,quantoàsdificuldadesqueotextoshakespearianoimpõe.
Na traduçãodeFernandes,odiscursosecontrapõeà linguagemeruditacomumente
associadaaobardo.A traduçãodeFunckassociaa traduçãoaummododidáticode
apresentar Shakespeare a um público não especializado, enquanto Pereira realça o
caráterpolifônicodatraduçãodepoesia.
Quando tratam do tema da tradução, notam-se dois padrões nos paratextos
prefaciais. O primeiro, nos termos do presente estudo, se denomina “ideologia de
tradução”,emqueoautordoparatextoevidenciaasuaprópriavisãodetradução.Os
exemplos dos paratextos das traduções de Mendonça, Silos, Fernandes e Funck
denotam esse padrão: Heliodora deixa clara a necessidade de traduzir o texto
shakespearianotendoemmenteaperformanceteatral;Silosrelacionaatraduçãoao
estudo crítico e aprofundado da obra como ummodo de alcançar a sua verdade; o
paratexto da tradução de Fernandes enfatiza a importância do uso coloquial do
portuguêsparaexprimiralinguagemshakespearianaealcançarumpúbliconamesma
amplitudequeShakespearenoseutempo;Funckcritica traduçõesdeHamletquese
assemelham a uma leitura superficial do enredo, conferindo importância às notas
explicativas para mediar a leitura para compreensão do receptor ou mesmo do
“verdadeiro leitor”. Podemos também citar a tradução de Cunha, cujo uso do
português seiscentista evidencia a suaposiçãodeque a traduçãodeve reproduzir a
linguagemdaépocadapublicaçãodaobra.
A outra face da abordagem tradutória nos paratextos diz respeito à discussão
sobre as estratégias tradutórias e/ouo juízoque o prefácio cria a respeitodo texto
traduzido, assemelhando-se a uma análise crítica da própria tradução. Esse padrão
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denomina-se,nostermosdesteestudo,“discursosobreatradução”.Trata-sedeuma
abordagem mais concreta e descritiva em que se enumera e discute aspectos e
característicasrelacionadosàprópria tradução.Cunhaoferece indíciosdessepadrão
em seu prefácio, mas Silva Ramos é o primeiro a se dirigir ao leitor a respeito de
decisõestradutóriasderelevância.Nunestambémcomentaseuprocesso,emboranão
entreemdetalhes.Silos,conformeobservadonaanáliseapresentada,éoprimeiroa
discutiroseuprocessotradutóriodeformamaisaprofundada,fornecendodetalhesde
sua experiência de pesquisa e como os resultados obtidos influenciaram o produto
final. As traduções mais recentes, principalmente as três últimas que compõem o
corpusdesseestudo,tratamaquestãodatraduçãocommaisnaturalidade,emboraa
reflexãoemrelaçãoaoprocessoestejampresentesnasnotasexplicativas.
O paratexto prefacial de tradução literária, com base nos temas principais
destacados acima, cumpre duas funções primordiais: apresentar a obra à cultura
receptora,sejaintroduzindoelementosrelacionadosàobraeaoautor,sejamediando
arelaçãocomoleitorpormeiodainduçãodarecepçãodaobra—muitasvezescom
finspromocionais;ediscutiraspectosdetradução,noqualseapresentaumaposição
teórica sobre o tema e/ou se trata de questões práticas relacionadas ao processo
tradutório.
5.CONSIDERAÇÕESFINAIS
Opanoramaapresentadoapontaqueosenunciadosparatextuaissemodificam
nodecorrerdosanos, indicandoumaevoluçãodiscursivadoparatextoprefacialque
sealinhaàsmudançasnocontextosócio-histórico.Anecessidadedeapresentaraobra
literária permanece latente no decorrer dos anos, alternando apenas os temas e a
constituição do discurso. Quanto ao outro tema predominante, a análise indica a
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evolução de determinada visão sobre a prática em questão, adquirindo espaço nos
paratextoseapresentandoumadiscussãomaissofisticadasobreotema.
O estudo do discurso no paratexto prefacial de tradução literária ainda pode
trazermuitascontribuiçõesaosestudosdatraduçãoliteráriaedarecepçãodeobras
na cultura-alvo. O foco no paratexto de tradução permite uma compreensão mais
aprofundada dos aspectos que influenciam o texto traduzido e a sua relação com a
cultura receptora. É fundamental, portanto, que haja desdobramentos relevantes
acercadacompreensãodosdiscursosconstruídosnosparatextosesuarelaçãocoma
recepçãodaobraemdiferentesmomentosdahistória.
REFERÊNCIAS
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OCAÇADORDEPIPASCOMOROMANCEMULTILÍNGUE:OBSERVAÇÕES
SOBREATRADUÇÃOBRASILEIRA
THEKITERUNNERASAMULTILINGUALNOVEL:OBSERVATIONSONTHE
BRAZILIANTRANSLATION
JuliaPinheroJudiceMenezes1
RESUMO:Opresenteestudotemcomoobjetivocentralanalisaraspalavrasestrangeirasmantidasnatraduçãobrasileiradobest-sellerTheKiteRunner(2003),deKhaledHosseini,publicadonoBrasilcomoOCaçadordePipas(2005).Aoverificaropossívelsignificadodessaspalavrasnocontextoemque aparecem e a quantidade de línguas citadas, parte-se da hipótese de que os estrangeirismospodem não familiarizar o leitor com a cultura afegã,mas confundi-lo, reforçando a impressão doOrienteMédiocomoumlugarexótico.Palavras-chave:OCaçadordePipas;traduçãobrasileira;estrangeirismos.ABSTRACT:ThisstudyanalyzesforeignwordskeptintheBraziliantranslationofthebestsellerTheKite Runner (2003), by Khaled Hosseini, published in Brazil as O Caçador de Pipas (2005). Bysearchingthemeaningofthewordsincontext,besidesthenumberoflanguagescited,thisanalysisassumesthehypothesisthattheirpresencemaynotfamiliarizereaderswiththeAfghanculture,butratherconfusethem,reinforcingtheimpressionoftheMiddleEastasanexoticplace.Keywords:TheKiteRunner;Braziliantranslation;foreignwords.
1.APRESENTAÇÃO
O romanceO Caçador de Pipas, do afegão-estadunidense Khaled Hosseini, foi
publicado nos Estados Unidos em 2003 e lançado no Brasil pela editora Nova
Fronteiraem2005,comtraduçãodeMariaHelenaRouanet.Livrodeestreiadoautor,
1Graduanda,UFU.
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retrataquestõesétnicas,raciaisereligiosasnoAfeganistãodadécadade1970eseus
impactosfuturosnavidadedoisamigos.Alcançougrandesucessocomercial,comoito
milhões de exemplares vendidos no mundo e um milhão apenas no Brasil
(GONÇALVES FILHO, 2014, s/p). Em 2007, foi adaptado para o cinema e, em 2011,
adaptadoparaumromancegráfico.
O livro narra a história de Amir e, em segundo plano, de Hassan. Amir é um
garotopashtun,vindodeumafamíliadeclassealta,queabrigaoempregadoAlieseu
filhoHassan,amboshazaras.AmireHassansãoamigosebrincamempinandopipas
nasruasdeCabul.Entretanto,umeventocatastróficoossepara;Hassanéviolentadoe
Amir, sem reação, não ajuda o amigo. O romance inicia-se com Amir recebendo a
ligaçãodovelhoamigo,querepresentaumachancederedençãoedeperdão.Aolongo
da história, percorremos a ocupação soviética, a tomada do Talibã e, mais tarde, a
chegada das forças estadunidenses. Há um panorama do Afeganistão nesses três
períodos,passandopordiversosconflitosétnico-políticosnaregião.ComentaBeatriz
Velloso:
AestreiadeKhaledHosseinitemváriosméritos.Atramaéboa,bemconduzida,tocante. As descrições da cultura, das tradições e da vida no Afeganistão sãoextremamente interessantes— carregam o leitor para o cotidiano de um paísque,apesardeestarsemprenonoticiário,éummistérioparaamaioria.“QuasenãoexistemromancespassadosnoAfeganistão”,dizoautor.“Porissofiqueifelizcomosucesso.”(VELLOSO,2005,s/p).
A curiosidade a respeito de uma região pouco conhecida no mundo — ou
conhecidasomentepelaguerratalqualretratadanamídia—parecetersidoumadas
razões principais para o sucesso comercial de O Caçador de Pipas, que colocou o
Afeganistão em lugar de destaque na literatura de massa contemporânea (SIMÕES,
2006,s/p).Atéqueponto,porém,umaobradeficçãocomoessapermitequeoleitor
entre em contato com uma cultura distante é uma questão controversa. A visão
transmitidapodeserparcialdemais,comoargumenta,ainda,Velloso:
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Mas há um problema: em várias passagens Hosseini parece ter uma visãodemasiado benevolente dos EstadosUnidos. Ao imaginar como seria a vida dopersonagemHassancasoele tambémtivesse imigrado,oprotagonistaAmirdizqueoamigoestariavivendonum“paísondeninguémse importacomofatodeele ser um hazara”. Difícil acreditar que um afegão será visto com tamanhatolerância pelos americanos, antes ou depois do 11 de setembro. Mas essadiscussãonãoexisteemOCaçadordePipas.(VELLOSO,2005,s/p).
Paraentenderoporquêdessapossível“visãodemasiadobenevolente”paracom
os Estados Unidos, é preciso saber um pouco sobre a trajetória do autor, que se
inspirouemsuainfânciaaoescreveroromance.DeacordocomTheKhaledHosseini
Foundation(2007),oautornasceuem1965,emCabul.Em1970,mudou-separaoIrã,
quando seu pai foi transferido para a embaixada afegã em Teerã. Após um breve
retornoaCabul,afamíliatransferiu-se,então,paraaFrançaedepoisparaosEstados
Unidos, onde conseguiu asilo. Hosseini só voltaria ao Afeganistão em 2003, ano de
lançamentodeOCaçador dePipas, aos38 anos. Essa trajetória é importantepara a
abordagem da obra, porque possui traços autobiográficos — como é explicado no
prefácioparaaediçãodo10°aniversáriodaobraemlínguainglesa(HOSSEINI,2013).
Pode-seinferir,apartirdisso,umavisãobastantepessoaleatémesmoestrangeiraa
respeitodaculturaafegãporpartedoautor, jáqueelepassouamaiorpartedesua
vidanoexterior.Tambémsepodeentenderoromancecomoumaautoficção, jáque
estabeleceumpactoambíguocomo leitor;aomesmotempoemquenãoseassume
como autobiografia, também não se separa do autor (FAEDRICH, 2015, p. 47). A
seguir,segueexemplodessavisãoemumdiálogoentreHassaneRahimKhan—seu
velho amigo, no qual Rahim encontra-se com uma doença terminal e fala a Hassan
sobreascaracterísticasqueosdiferemeomotivopeloqualserecusaaserajudado:
Peloquevejo,osEstadosUnidos infundiramemvocêootimismoque fezdelesumgrandepaís. Issoéótimo.Nós,osafegãos,somosumpovomelancólico,nãosomos?Quasesempreficamoschafurdandoemghamkhorieautopiedade.Damo-
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nosporvencidosdiantedasperdas,dosofrimento;aceitamostudoissocomoumfatodavidaouchegamosatéaconsiderá-lonecessário.(HOSSEINI,2005,p.203).
OpontodevistaexpressoporHosseinigeracontrovérsiaporquesãopoucasas
oportunidadesdeoleitorocidental—eleitorbrasileiro,especificamente—conhecer
aculturaafegã.Aideiaquesetemdodito“Oriente”,ou“OrienteMédio”,costumaser
distorcidae/oufantasiosa,comodescritoporEdwardSaid(1990,p.13)aocomentar
comoaquelaregiãohabitavaoimaginárioeuropeunadécadade1970:“OOrienteera
quase uma invenção europeia, e fora desde aAntiguidade um lugar de romance, de
seres exóticos, de memórias e paisagens obsessivas, de experiências notáveis”. A
expectativadeexotismoedeumavisão“emprimeiramão”deumaterradistantesão
atrativos para o leitor, mas que pode ser frustrada por uma visão excessivamente
americanizada,comoapontouVelloso(2005),ou,alémdisso,porumgênerobastante
formulático, queWalnice Galvão (2010, p. 75) chama de “romance étnico”, sobre o
qual comenta: “Estes autores escrevem na língua do conquistador, e não nas deles
mesmos”.
De fato, O Caçador de Pipas foi majoritariamente escrito em língua inglesa,
embora apresentedezenasdepalavras estrangeiras entremeadas ao longodo texto.
Foiapresençadessaspalavrasestrangeirasnatraduçãobrasileira—poiselasforam
mantidas—quemotivouapresentepesquisa,partindodasimplescuriosidade:“Aque
línguapertencemessaspalavras?Aumalínguaafegã?Sesim,qual?”.Essefoiopasso
inicialparaumlevantamentodetodososvocábulosestrangeirosnotextobrasileiroe
notextodepartida,eminglês,parachecarseosestrangeirismoshaviamsidomesmo
mantidos.Apartirdaí,otrabalhodesdobrou-seemnovasfases,dasquaisemergiram
ashipótesesdeque(1)nemtodasaspalavrasusadasemlínguaestrangeiranotexto
deHosseiniemantidasemlínguaoriginalnatraduçãodeRouanetpertencemasóum
idioma e (2) o leitor não conhecedor dessas palavras não tem como saber, pelo
contextonarrativo,aqueidioma/culturapertencem.
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Essashipótesesconvidamaumdebatearespeitodaestrangeirização(VENUTI,
1995;2008),quesediferedaquelacomqueestamosacostumadosà luzdosEstudos
da Tradução. Enquanto a estrangeirização pode ser vista como uma maneira de
entreveraculturaexpressanotextodepartidaedemanter“umamisturaheterogênea
dediscursos”2(VENUTI,1995,p.34,traduçãominha),nocasodeOCaçadordePipas,é
possível argumentar que a heterogeneidade de discursos torna a cultura de partida
maisopaca,menosvisível,justamenteporquenãoépossívelentender,exatamente,o
que é estrangeirizado e como: há vocábulos de línguas desconhecidas, mas que
permanecemdesconhecidas,poisoleitornãoconseguedistingui-lasentresi.
Comoimigrante,Hosseiniencontra-senacondiçãodeestrangeiroaoapresentar
uma cultura à qual pertence apenas parcialmente, já que,mesmo tendo nascido em
Cabul,oautorviveumajoritariamentenosEstadosUnidos.Seuempregodediversas
línguasereferênciasculturaisaolongodotextomanifestauminteresseemmostrara
riquezadesuaculturadeorigem,aomesmotempoemquenãoaclarifica,pois,ainda
assim,essaculturaparecealgodistanteeimpalpável—suavisãoétambémadeum
estrangeiroocidental.
É preciso salientar o fato de que o Afeganistão possui ao menos 45 línguas
faladasnaatualidade(TURIN,2005,p.04),eoleitornãotem,aprincípio,comosaber
quallínguaestálendo,nemaqueetniapertence.Issoparececausaroefeitocontrário
ao esperado pela estrangeirização, isto é, em vez de multiplicidade, tem-se uma
espéciedehomogeneização—todasaspalavrasestrangeirascompõemumaespécie
delínguadesconhecidaeexótica,reafirmando,portanto,queaprópriaformacomoo
autorretrataoromanceéamesmadaquelaqueoOcidentepercebeaculturaafegã—
emsuma,umolharestrangeiro.
Para investigar todasessasquestões,eoutrasque foramsurgindoao longode
umexamemaisapuradodo texto, foi realizadaumabuscaminuciosadaorigemdas
2Nooriginal:“aheterogeneousmixofdiscourses”.(VENUTI,1995,p.34).
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palavras contidas emO Caçador de Pipas, tal qual descrita, mais à frente, na seção
Metodologia; a seguir, foram reunidos os resultados, conforme parcialmente3
apresentadosna seção “Palavras estrangeiras emOCaçador dePipas”; por fim, com
basenosresultados,levantou-seumanovahipótese,adequeodesconhecimentodas
palavras e expressões estrangeiras ao longo da narrativa promove, em vez de uma
chancede contato com culturasdesconhecidas, umpossível apagamento cultural—
tal argumento édesenvolvidona seçãoDiscussão, que sebaseianasproposiçõesde
Galvão(2010)eSaid(1990)arespeitodeimperialismoedeLawrenceVenuti(1995;
2008) e Even-Zohar (2013) no que se refere à estrangeirização e aos conceitos de
centro/periferianoâmbitodaliteratura.
2.METODOLOGIA
O presente trabalho foi desenvolvido a partir de um projeto de pesquisa de
IniciaçãoCientífica4, quepartiudeuma indagaçãogeradapela leiturado romanceO
Caçador de Pipas, pois, ao lê-lo, percebeu-se que variados vocábulos e outros
elementosdanarrativapodiamgerardemasiadaconfusãoarespeitoda(s)língua(s)e
daculturadoAfeganistão.Aspalavrasestrangeiras,especificamente,pareciamserde
difícil compreensão. Essa indagação foi a razão pela qual quis-se analisar
minuciosamenteaobraecompreenderousodetaispalavras.Paraisso,foirealizada
umasegundaleitura,maisdetalhada,demodoamapearessas214palavraseformular
a Tabela 1. Depois, foram elaboradas, com base na anterior, as outras tabelas de
análise.
3Nãohaveriaespaço,nesteartigo,paralistartodososresultadosdapesquisa;porissofoifeitaumaseleçãodeachadosconsideradosmaisrelevantes.4 Projetodepesquisa: “Ousodas línguas estrangeirasno romance “O caçadordepipas””.BolsistapeloConselhoNacionaldeDesenvolvimentoCientíficoeTecnológico(CNPQ),noperíodode2019―2020.
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Para a elaboração das duas últimas tabelas, recorreu-se ao uso de dicionários
especializadosemlínguasorientais,aoGoogleTradutor,aositeWikipédia,agrandes
sitesdenotícias internacionais,asitesorientaisdeculináriaedereligião—enfim,a
fontes variadas relacionadas ao Oriente Médio, além do portal oficial do governo
afegão (ISLAMIC REPUBLIC OF AFGHANISTAN), de entrevistas concedidas por
Hosseini (vídeos e reportagens escritas) e de glossários e sites que disponibilizam,
especificamente, as palavras estrangeiras contidas no livro. Em sua maioria, essas
palavras são acompanhadas por autotraduções na própria obra, explícitas ou
implícitasnocorpodotexto.
3.RESULTADOS
ParamapearousodepalavrasestrangeirasnatraduçãobrasileiradeOCaçador
de Pipas, foram feitas três tabelas independentes, mas que se complementam. A
primeiratabela,apresentadaparcialmenteaseguir,teveporobjetivoagrupartodasas
ocorrênciasdepalavrasestrangeirasaolongodolivro.
Termosestrangeiros Página Frequência
Nome+Khan 9 189
Baba 10 436
Allah-u-kbar 14 3
Shi'a 15 5
Bazaar 16 15
Naan 16 16
Babalu 16 11
EXCERTODATABELA1—PALAVRASESTRANGEIRASNATRADUÇÃOBRASILEIRADEOCAÇADOR
DEPIPAS(AAUTORA,2019).
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Ao todo, foram encontradas 214 palavras. Algumas ocorrem apenas uma vez,
enquanto amais utilizada,baba, é repetida 436 vezes ao longo do texto. Após esse
primeiro passo, verificou-se se essas palavras ocorriam da mesma maneira no
romanceeminglês,oqueseconfirmou.
A segunda tabela, por sua vez, foi montada a partir de uma pesquisa mais
aprofundada das palavras encontradas. Foi constituída novamente por todas as
palavras, de forma que pudessem ser categorizadas em: recurso adotado para
pesquisá-la;língua;contextoemqueelaaparecenotexto;seéfamiliarizadaounãono
Ocidente.Porém,comosepodenotaraseguir,emdiversoscasosalínguaouapalavra
nãoforamencontradas,ouosignificadoencontradopareciadivergirdaqueleimplícito
notexto.Houve,ainda,oscasosdepalavrasgrafadasequivocadamente.
Com base nesses dados, foi possível traçar um perfil da origem das palavras
estrangeirasencontradasemOCaçadordePipas.Éimportanteressaltarqueessesnão
são dados definitivos, pois esse tipo de pesquisa depende de diversos recursos—
dicionárioson-line,ferramentasdetraduçãoautomática,comoGoogleTradutor—que
nãoapresentamresultadosirrefutáveis.Assim,atéondesepôdeverificar,hápalavras
dequinzelínguasdiferentes,entreasquaisasmaisfrequentessãopersa(dari/farsi),
árabeeurdu.Combaseemsuaocorrêncianainternet,pode-seinferirqueapenas7%
dessaspalavras são relativamentedisseminadasnoOcidente—casodebazaar, por
exemplo.
Termo Língua Pesquisa ContextoNome+Khan Persa Palavra encontrada no site
Wikipédiacomamesmaacepçãoutilizadanolivro.
Palavra desconhecida noOcidente,refere-seaumtítuloparaumgovernanteoumilitarquedepois passou a significar“senhor”.“Um dia, no verão passado,meu amigo Rahim Khan meligou do Paquistão.”(HOSSEINI,2005,p.09).
Aghasahib ---- Palavra encontrada apenas em Palavra desconhecida no
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sites e glossários referentes aolivrocomamesmaautotraduçãoutilizadapeloautor.
Ocidente refere-se à Aghacomo “Grande Senhor/Nobrecomandante” e Sahib como“Amigo/mestre”.“Baba sempre falava dastravessuras que ambosaprontavam, e Ali balançava acabeça dizendo ‘Mas aghasahib, diga a eles quemarquitetava as travessuras equemeraosimplesexecutor’.”(HOSSEINI,2005,p.32).
Ameen Hebraico Palavra também encontradacomoAmém”,“ámen”ou“âmen”,em diversos sites,principalmente sobre religiãocom a mesma acepção utilizadanolivro.
Palavra relacionada à religiãofamiliarizadanoOcidente.“O mulá conclui suas orações.Ameen.” (HOSSEINI, 2005, p.82).
Kabob Derivadadapalavra“kebap”,doTurco.
Palavra encontrada em sites deculinária e traduzida pelo siteWikipédia como “kebab”; comose fosse nosso “espetinho”brasileiro.Comamesmaacepçãoutilizadanolivro.
PalavrarelacionadaàculináriafamiliarizadanoOcidente.“Depois, fomos comer kabobno Dadkhoda em frente aocinema Park.” (HOSSEINI,2005,p.90).
Khastegar Híndi Palavra encontrada apenas emsitessobrefilmes,quesereferema“Thesuitor”,umfilmeiranianocom o título original de“Khastegar”, que seria “Opretendente”. Surgiu dúvida emrelação à acepção da palavra.Traduzida pela tradutora comacepçãodiferentedaqualestánolivro,por“comedor”emHindi.
Palavra desconhecida noOcidente.“—Peloqueouvidizer,éumamoça decente, trabalhadora emuito gentil. Só que nenhumkhastegar, nenhumpretendenteveiobateràportado general desde então —disse baba com um suspiro.”(HOSSEINI,2005,p.145).
Ahestaboro Dari PalavraencontradanaWikipédiae em outros sites com grafiadiferente daquela que está nolivro: “Ahesta Bero” Refere-se auma composiçãomusical tocadaemcasamentos.
Palavra desconhecida namaneira que encontro naspesquisas.“Assim, casamento vai,casamento vem, e ninguémcantou "Ahesta boro" paraSoraya, ninguém pintou aspalmas das suas mãos comhena, ninguém segurou oCorão acima da sua cabeça...”(HOSSEINI,2005,p.153).
Allah-u-akbar Árabe Palavra encontrada com umagrafia diferente daquela que
Palavra desconhecida, namaneira que encontro nas
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estánolivro:“AllahuAkbar”,coma mesma acepção utilizada nolivro.
pesquisas.“Então, os cachorros fazem afesta e o tédio do diafinalmente termina, e todosgritam “Allah-u-akbar!"’(HOSSEINI,2005,p.247).
Sabagh Árabe Palavra encontrada com grafiadiferente “Sabbagh” e acepçãodiferente no site da Wikipédia,traduzidacomo“jardim”.
Palavra desconhecida noOcidente.“— Está bem — disse eu. —Vamos lhe dar um sabagh,vamos lhe dar uma lição, nãoé?”(HOSSEINI,2005,p.363)
EXCERTODATABELA2—SIGNIFICADODASPALAVRASESTRANGEIRASCONFORMEPESQUISAREALIZADA.(AAUTORA,2019).
Foi constituída, por fim, uma terceira e última tabela sintetizada, reunindo
palavrascujalínguadeorigemnãopôdeseridentificada,palavrascujosignificadonão
foi encontrado e palavras encontradas com acepção divergente daquela que o texto
parecesugerir.
LÍNGUA GRAFIAERRADAACEPÇÃO
DIVERGENTESEMSIGNIFICADO
ACEPÇÃOE
GRAFIA
DIVERGENTE
NÃO
IDENTIFIC
ADA
ShorBazaar Rawsti Kharkharamishnassah Kamyab
Dil-roba Aghasahib Bacheh
Kolchas Moochi Nah-kam
Maghout YaMowlah Nawasa
Chilas Shahbas
Mehmanis TopehChast
Seh-parchaMorghkabo
b
Lawla Haiii/Ha
Kocheh-Morgha Khodega
PERSA YeldaEid-e-Qorban Ahgungbichara Sawl-e-Naumubabrak
Qabuli Khodahaf Pari
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ez
DoghAhestaboro Spassiba
Isfand Masnawi Tar
SamosasShahnam
ah Nang
ÁRABE
Allah-u-akbar Hadj Shari'a Kasseef Sabagh
SalaamAlaykum Raka´ts Qaom
Qawali Surrahs
Alhamdullellah
URDU
Nika Tanhaii Lochak Alahoo Kaka Maghbool
Shalwar-kameezes Watani Kursi
Sherjanji Dil
Bakhshesh
INGLÊS Mueszzin Mast
PACHTO Pashtu Talib
RUSSO Boboresh
HINDI Khastegar
TURCO Qurma
BENGALÊ
S Jai-namaz
CEBUANO Balay
TABELA3—PALAVRASESTRANGEIRASGRAFADASEQUIVOCADAMENTE,PALAVRASCOMACEPÇÃODIVERGENTEDAENCONTRADAOUCUJOSIGNIFICADONÃOFOIIDENTIFICADO.(A
AUTORA,2019).
Como se pode perceber, a maior categoria é a de palavras grafadas
equivocadamente,totalizando29.Logoemseguida,temosaspalavrassemsignificado
claro(21)easpalavrascomacepçãodiferentedaquelasugeridapelotexto(19).
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4.DISCUSSÃO
Combasenosresultadosmostrados,pode-sesuporque,paraoleitorocidental,
amaiorpartedaspalavrasouexpressõesestrangeirascontidasemOCaçadordePipas
é desconhecida, e que é preciso confiar que o autor detenha conhecimento e/ou
domíniodaslínguaseculturasàsquaissãofeitasreferênciasaolongodoromance.
Noentanto,partindodofatodeque50%daspalavrasnãoforamsolucionadas
na presente busca — ou seja, a sua exata origem não foi encontrada, nem o seu
significado (aomenos com a grafia apresentada)— confirma-se um estranhamento
quesópodesercomprovadoapósorecolhimentodessesdados.
Émuitoprovávelqueoautortenhatidoaintençãodetornarvisívelseupaísde
origem, mas, ao recorrer a tantos vocábulos desconhecidos cujos sentidos são
“difíceis”dedecifrar,suaopçãolevantadúvidassobreasuafamiliaridadecomrelação
àculturaafegãecomasoutrasculturasqueaborda,oquepareceocolocaremuma
posiçãodeestrangeirocomrelaçãoàsuaprópriaculturadeorigem.
Observa-se que, em razãodessaposição, caracterizando-se como emigrante, o
autor transfere para alguns de seus personagens esse “entre-lugar”. Parece que ele
próprio entende a posição em que está inserido. No trecho a seguir, há um diálogo
entreAmireFarid—homemresponsávelporajudá-loquandoretornaaoAfeganistão.
Amirestavaespantado,percebendoaformacomoseupaísseencontrava:“Estoume
sentido um turista naminha própria terra”, e é questionado: “Ainda considera esse
lugarsua terra? [...]DepoisdevinteanosvivendonaAmérica...” (HOSSEINI,2005,p.
232).Logoemseguida,Faridcontinuae tentaprovaraAmirqueoqueeleafirmava
nãopossuíafundamento:
Deixe eu tentar imaginar, agha sahib. Você com certeza morava em uma casagrande,dedoisoutrêsandares,comumbeloquintalqueojardineirocobriade
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flores e árvores frutíferas. Tudo cercado por grades, é claro. Seu pai tinha umcarro americano. Vocês tinham empregados, provavelmente hazaras. Seus paiscontratavam operários para decorar a casa por ocasiões das magníficasmehmannis que organizavam para que os amigos viessem beber e conversarsobre as viagensque faziamàEuropaouàAmérica.E apostoosolhosdomeufilho mais velho como esta é a primeira vez na vida em que está usando umpakol.[…]Vocêsemprefoiumturistaporaqui.Sóquenãosabiadisso.(HOSSEINI,2005,p.232).
Comojáfoidiscutidoanteriormente,esenotamaisumaveznotrechoacima,o
romance de Hosseini é carregado de palavras estrangeiras que podem provocar no
leitor, em um primeiro momento, a sensação de que está imergindo cultura afegã
adentro. Já na segunda página do livro, nota-se a palavrababa: “Pensei emHassan.
Penseiembaba.EmAli.EmCabul”(HOSSEINI,2005,p.10)—eéelaqueapresentaa
maiorquantidadederepetições,com436ocorrênciasaolongodetodoolivro.Devido
aocontextoeaalgumconhecimentodemundo,oleitorentendequebabaéamaneira
comoAmirserefereaopai.Outrocasosemelhanteéodapalavrabazaar:“Lembrode
umdia,quandoeu tinhaoitoanos,eAliestavame levandoaobazaarparacomprar
naan”(HOSSEINI,2005,p.16),poisnessecaso,também,entendemosaqueoautorse
refere.
O que não se entende sem o auxílio de paratextos nem uma pesquisa
aprofundadaéaque línguapertencemessaspalavras— jáquediversas línguassão
faladasnoAfeganistão—e se a traduçãoqueo leitor a princípio imagina émesmo
aquelautilizadapeloautor.
Porém,àmedidaqueo leitorsedeparacomtantaspalavras,muitasdelassem
explicação de significado e sem referente cultural para oOcidente, a experiência da
leitura pode ser dificultada, como vemos em: “‘Mas, agha sahib, diga a eles quem
arquitetava as travessuras e quem era o simples executor’.Meu pai ria e passava o
braçonosombrosdeAli”(HOSSEINI,2005,p.32).Essetrechodescrevequandobaba
conta a Amir e Hassan sobre as brincadeiras que ele e Ali (pai de Hassan) faziam
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quandocrianças.Vê-sequeoautorutilizouopardepalavrasmaisde20vezese,em
todas,semexplicação.
Em 35% dos casos, o autor formula sua própria explicação, uma espécie de
autotradução daquilo que está tratando, como, por exemplo: “Enchemos três
caminhonetes. Eu fui junto com baba, Rahim Khan, Kaka Homayoun — meu pai
sempre dizia que as crianças devem chamar todos os homensmais velhos dekaka,
tio…” (HOSSEINI, 2005, p. 88). Assim, nesse caso, só se pode confiar que a
autotradução feita pelo próprio Hosseini seja válida, no entanto, ao pesquisar a
palavra e sua origem, nenhum resultado foi encontrado, nem em sites e glossários
referentesaolivro.
Alémdesse caso, surgiuoutropontoproblemático, odequealgumaspalavras
não possuemomesmo significadodaquele utilizadono livro: “Mais cedo, pedi aAli
quepreparasseokursiparanós—basicamenteumaquecedorelétricoinstaladosob
umamesabaixarecobertacomumedredombemgrosso”(HOSSEINI,2005,p.62).Ao
pesquisá-la,segundoositeWikipédiaeoGoogleTradutor,apalavraparecesereferira
“cadeira”.
As palavras estrangeiras são observadas em diversos temas, como política,
cultura,esporteereligião,comdestaqueparaaculinária,poisHosseinitrazdiversos
exemplosdepratosebebidasestrangeiros,massemexplicações,nemmesmonotasde
rodapé: “Fiquei sabendoqueogeneralpodia serbemranheta, fazendocoisas como,
por exemplo, provar a qurma que a esposa punha à sua frente, dar um suspiro e
empurraroprato”(HOSSEINI,2005,p.179)eem“Sorayaekhala Jamilaforamfalar
comumamulherobesaqueestava fritandobolanideespinafre”(HOSSEINI,2005,p.
359).
De acordo comVenuti, a estrangeirização é “umapressão etno-desviantepara
registraradiferençalinguísticaeculturaldotextoestrangeiro,enviandooleitorpara
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longe”5 (VENUTI, 1995, p. 16-17, tradução minha). Porém, com base nos exemplos
relatados acima, o excesso desse uso não parece, nesse caso, aproximar o leitor da
culturaestrangeira,poisnemmesmoessaculturaestábemdefinida—sesãousadas
várias línguas diferentes (como ficoudemonstradonapesquisa), pode-se supor que
hajaumamultiplicidadeculturalqueperpassatodootexto.
Outroaspectorelevanteéqueo“apagamento”culturalnãodizrespeitosomente
às línguas, mas também às culturas da região como um todo. Em três passagens,
Hosseini aborda um tema cultural relevante em diversos países orientais: a forma
como os homens e as mulheres são vistos e se comportam em sociedade, sob seu
pontodevista,reforçandoaleituradeleenquantoestrangeiro.Serácitadaapenasuma
delas, demaneira a demonstrar como essa visão que perpassa o romance pode ser
superficialaoreforçarestereótipos jámarcadosno imaginárioocidental: “Fiqueium
pouco constrangido com a posição de poder que me cabia simplesmente porque
ganheinaloteriagenéticaquedeterminouomeusexo”(HOSSEINI,2005,p.153).Esse
trechofazreferênciaaumaconversaentrebabaeAmirsobreseucasamento,naqual
Amir afirma que os afegãos, geralmente os de famílias importantes e respeitáveis,
eram pessoas inconstantes e que por qualquer motivo desistiriam de uma
pretendente.Eleestavasequestionandoporqueela(Soraya,suafuturaesposa)ainda
nãohaviasecasado.Amirfalaalgumasvezessobreo“doispesos,duasmedidas”quea
sociedadeimpõeparaoshomenseasmulherese,sobretudo,damaneiracomoseupai
não era um típico afegão, cumprindo com os costumes afegãos apenas quando o
convinha. Percebe-se, assim, que o romance não promove uma desconstrução, nem
mesmoumarelativização,deumestereótipoqueoOcidentejácarregaarespeitodo
OrienteMédiocomoregiãomachistaesempreinjustacomasmulheres.
Pode-se supor que, seHosseini não fosse naturalizado estadunidense, poderia
terescritoseuprimeiroromancenoidiomafarsi,mascertamenteseulivrofoiescrito
5 No original: “an ethnodeviant pressure on those values to register the linguistic and culturaldifferenceoftheforeigntext,sendingthereaderabroad”(VENUTI,1995,p.16-17).
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deliberadamenteeminglêsparaatingirumpúblicoespecífico,oocidental.Salienta-se
queesseéumlivroestadunidensesobreoAfeganistão.Nãosetratadeumanarrativa
direcionadaaoseupaísdeorigem,masaomundoocidental:
[...]apesardeaobratrazerelementoslinguísticos,culturaisegeográficossobreomundooriental,estesnãosefazemsuficientesparaqueproduzamosumefetivoreconhecimento do mundo afegão... Isto é, mesmo que o autor nos apresentealguns vocábulos e fragmentos da cultura afegã, estes não permitem que nosapropriemosdas significações sociais de dadas enunciações. (RÖHRIG, 2010, p.90).
Voltandoàquestãolinguística,quinzelínguasdiferentesforamidentificadasno
romance e são de várias famílias linguísticas distintas. Línguas da família indo-
europeia: do ramo iraniano (pachto e farsi); do ramo indo-ariano (bengalês, hindi,
sânscritoeurdu);doramogermânico(inglêsesueco);doramoromânico(espanhol);
doramoeslavo(russo).Dafamíliaafro-asiática:doramosemítico(árabeehebraico).
Da família austronésia: do ramo malaio-polinésio (cebuano). E, por fim, a família
altaica/turca (turco e cazaque). Observando-se a origem tão distinta de todas essas
línguas,edeseusfalantesespalhadosaoredordomundo,nota-seque,defato,estão
muitolongedeformaremumblocolinguísticohomogêneo,nempoderiampertencera
umamesmacultura.
Além disso, nota-se outra questão no que diz respeito a transliterações, dado
queosvocábulosestrangeirosforammantidosnatraduçãobrasileiradamesmaforma
emqueaparecemnotextofonte,ouseja,constata-sequeelesnãoforamtransliterados
para a língua portuguesa, encontram-se ainda em língua inglesa. Considerando as
diferençasentreessas línguasesuasrespectivaspronúncias,corrobora-sea ideiade
Venuti(1995)dequeatraduçãoestrangeirizantepodealteraraformacomootextoé
lidoeatémesmoproduzido,fatopresenteemtodaaobra.
Olivrofoiumbest-sellereganhounãoapenasum,masdiversosprêmios,tendo
um alcance imenso e, com base nele, muitos leitores formaram uma imagem do
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Afeganistãoedeculturaspresentesnaquelaregião.Nessatentativa,eleatingeoleitor
deformacerteira,poisoenvolvecomumahistóriaemocionantemarcadapordiversos
estrangeirismos,quecausamumafalsailusãodeproximidadeeconhecimentonãosó
daculturaafegã,comotambémislâmicaeárabe.
5.CONSIDERAÇÕESFINAIS
O presente artigo abordou um tipo de ficção relativamente pouco estudado
academicamente—obest-sellercontemporâneo—e,emparticular,umromanceque
retrata culturaspouco conhecidasnoBrasil enoOcidente comoum todo, oque lhe
confere a responsabilidade (intencional ou não) de apresentar minimamente essas
culturasaograndepúblico.
Comfrequência,aorigemafegãdoautorparece legitimaroretratoqueele faz
doAfeganistãoemOCaçadordePipaseemseuslivrossubsequentes,masesseéum
aspectoqueprecisasercolocadoemxeque—nãoapenasporqueHosseinipassoua
maior parte de sua vida nos EstadosUnidos e apenas voltou ao seu país de origem
apósapublicaçãodeseuprimeirolivro,masporqueavisãodeumromanceficcional,
ainda que “autoficcional”, não pode ser considerada fidedigna na maneira como
retrataumadeterminadacultura.Nãohá,defato,umcompromissohistoriográfico.
Comoficoudemonstradopormeiodapesquisaaquiapresentada,queabordou
todososvocábulosestrangeirosnatraduçãobrasileirado livro,nãohá, também,um
compromissolinguístico-cultural:umamultiplicidadedelínguasestrangeiraséusada
aolongodeOCaçadordePipas,mas,amenosqueoleitorjátenhaumconhecimento
prévio,essaslínguaspermanecerãodesconhecidasporeleeindistintasentresi,assim
comoalgumasdasculturasaquepertencem.
Devido ao conhecimento tão restrito da cultura afegã do qual falamos
anteriormente, pretende-se continuar esse tipo de estudo sobre línguas orientais,
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especificamentedalínguaárabe,comênfasenahistóriadaTraduçãonoOrienteMédio
(edeobrasprovenientesdelá)edeseumercadoeditorial.Aintençãoqueorientatal
propósito é para que, de alguma forma, seja possível gerar mais conhecimento e
pesquisanoBrasilarespeitodeculturastãoricaseque,atéentão,situavam-seforade
nosso imaginário. Para além da noção das Mil e Uma Noites, a obra árabe mais
reconhecidaeprestigiadanoOcidente,éprecisoquehajaumrealespaçodetroca—
cultural,tradutórioelinguístico—entreosabereasliteraturasmarginalizadas.
REFERÊNCIAS
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SIMÕES,Eduardo. “Afeganistãovirabest-sellernoBrasil.” InFolhadeS.Paulo,29de julhode2006.Disponívelem:https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2907200619.htm.Acessoem:20jun.2020.TURIN,Mark.“Linguisticdiversityandthepreservationofendangeredlanguages:AcasestudyfromNepal.”InMountainResearchandDevelopment,v.25,n.1,p.4-9,fev.2005.VELLOSO, Beatriz. “Umdrama afegao: a conturbada historia do paıs e cenario paraO Caçador dePipas, romance de Khaled Hosseini.” In Época [on-line] 10 de outubro de 2005. Disponível em:http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR71896-6011,00.html.Acessoem:20jun.2020.VENUTI,Lawrence.TheTranslator’sInvisibility:ahistoryoftranslation.2nded.LondreseNovaYork:Routledge,2008._____.Thetranslator’sinvisibility:ahistoryoftranslation.LondreseNovaYork:Routledge,1995.Recebidoem:05/03/2021Aceitoem:14/04/2021
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OCULTIVODEMEMÓRIASANCESTRAISEMBAARAZKAWAU,DE
GUSTAVOCABOCO
THECULTIVATIONOFANCESTRALMEMORIESINBAARAZKAWAU,BY
GUSTAVOCABOCO
ThiagoAlexandreCorrea1
Noano2019,quefoiinstituídopelaUnescocomosendooAnoInternacionaldas
Línguas Indígenas,é lançadaaobraBaarazKawau,domultiartista indígenaGustavo
Caboco (2019), na programação do Abril Indígena realizada no Museu Paranaense
(MUPA,2019)2.Trata-sedeumlivrodeexpressivaoriginalidadeporsuacomposição
estética, que transita entre a linguagem verbal e não verbal, resultando em um
primorosorelatomultissemiótico,escritoemlínguaportuguesaelínguawapichana.
Os textos verbais e não verbais presentes na obra apresentam uma narrativa
envolvendo Caboco, seu tio Casimiro Cadete e foram escritos tendo o lastimável
incêndio do Museu Nacional, acontecido em 2018, como motivação. Pouquíssimos
mesesantesdessatragédia,oautorhaviarealizadoumavisitaaoprédiohistóricoe,em
1Mestrando,UFPR.2InformaçõespublicadasemnotanositedoMuseuParanaense:“Mesa-redondadiscutealiteraturaindígenanoMuseuParanaense”.Disponívelem:http://www.museuparanaense.pr.gov.br/Noticia/Mesa-redonda-discute-literatura-indigena-no-Museu-Paranaense.Acessoem:05mar.2021.
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umadassalasdeexposições,sedeparoucomumabordunawapichana.Cabocoficou
impressionadonãoapenascomacoincidênciaenvolvendoaidentificaçãodapeça,de
mesmapertençaétnicaqueasua,mastambémcomadatadacriaçãodaobra,muito
próxima ao ano de nascimento de seu tio-avô, 1924 e 1921, respectivamente. Três
mesesapóssuavisita,omuseufoiconsumidopelaschamaseoartista,então,pensana
borduna wapichana que lá estava, e na irrecuperável perda daquele patrimônio
artístico,científico,históricoememorialístico.Nessaconjuntura,sedácontadequena
datadoacidenteaobratinha94anosenquantoseutiofaleceraaos93anos.
Somadastaiscoincidênciasaodesejodecontribuirpelaatualização,permanência
e persistência da memória de seu povo, impulsiona-se a criação dessa valiosa
publicação,maisumadesuassementesdomovimentode#retornoaterra3,projetode
pesquisa e de produção artística voltado ao fortalecimento de suas identidades e
memóriasindígenas,comoopróprioautorrelata:
Aminhatrajetóriaderetornoàorigemindígenaguiaaproduçãonasartesvisuais.Nascinacapitalparanaensenumambienteurbanocomashistóriasdeminhamãe:umaWapichana,daterraindígenaCanauanim,domunicípiodeCantá—BoaVista,Roraima.Lucilenesaiudaaldeiaaos10anosdeidade,em1968,esuashistórias,sementes, que a acompanham, em conjunto com o retorno que realizamos em2001,ondefuiapresentadoàminhaavóefamiliaresindígenas,traçaramomeudestinocomoartista.Encontreinodesenho,notexto,naescuta,nobordado,nosom, formas de dialogar com as atualidades indígenas e minha identidade(CABOCO,2019,s/p)4.
Emlínguawapichana,BaarazKawau significa“ocampoapóso fogo”(BIENAL,
2020). Esse elemento relacionado ao idioma já antecipa uma característica de
indispensávelimportância:ademarcaçãodessavozoriginária,comoatoderesistência
3 O “retorno à terra” é o nome dado ao método e processo de pesquisa do artista. Preferimosmencioná-locomahashtagdemodoafacilitarafiltragemdebuscanasredessociaisparaquemtiverinteresse em conferir seus trabalhos. Informações coletadas no site do artista (CABOCO, 2017):https://caboco.tv/work/retorno-a-terra-ano-7/.Acessoem:05mar.2021.4 O livro foi impresso em serigrafia artesanal pela Editora Listrado e a impressão não contémpaginação.
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edeenfrentamentoàsestruturasdecolonizaçãoqueporséculosocultaramasvozes
indígenas. Encontramos aqui a demarcação do protagonismo, de que os próprios
indígenas tenham assegurado o direito de narrar suas histórias, protagonismo que,
aliás, é uma das principais reivindicações da literatura indígena brasileira
contemporânea. Além disso, em uma perspectiva simbólica, o campo após o fogo
representaavigorosapersistênciadamemóriacomoumcampofértil,capazderesistir
àschamasdestrutivasdofogo,pois,mesmoemumcampoaparentementeimprodutivo,
temacapacidadedegerminaraindaemmeioàscinzas:“Oscorpos-memóriassãovivos,
mesmoapósacombustão.Nãoapagarãoanossamemória”(CABOCO,2019,s/p).
Arepresentaçãodofogoéexpressanãosomentepelotextoverbal,mastambém
poroutroscódigos,sejapelosdesenhosdaslabaredasoupelacordaspáginasquesão
de vermelho intenso. Um dos desenhos finais, inclusive, representa omuseu sendo
consumido pelas chamas, assim como também encontramos, na página seguinte,
desenhosquemostramabordunasendocarbonizadaaospoucosatéqueresteapenas
umamontoadodecinzas.Cinzasque,noentanto,aindaportamvidaereflorescempela
viadaarte,atravésdaseivaresultantedotalentoecompromissodeCaboco,permitindo
queabordunaserevitalizesimbólicaerepresentativamentenaobraBaarazKawau.
Nãofossepelaatuaçãodoartista,porseucompromissocomamemóriaancestralepor
sua visita aomuseumeses antes da tragédia, é provável que, aí sim, a borduna se
extinguissedefinitivamente.Felizmenteapotênciadaarteeapersistênciadamemória
nãopermitiramqueissoacontecesse.
Acaracterísticacromáticaquecompõeaobratambémpodeprovocarareflexão
sobreahegemoniabrancanosespaçosdepoderoficiais,sendoumdelesouniversoda
literatura.Nessesentido,overmelhodaspáginaspodefazerreferênciaaotomdapele,
deumapelequeporséculos foi silenciada,masquemesmocomtodaaopressãose
recusoua sucumbir e, atualmente, comomecanismode resistência,de reverberação
artística e como estratégia de denúncia, se apropria dessa forma ocidentalizada de
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expressão através das páginas, ou peles de papel, comodiz o xamã yanomamiDavi
Kopenawa(2015).
A atualização dasmemórias, também é representada visualmente. O primeiro
desenho,queencontramosnaguardaefolhadeguardadolivro,apresentaummenino
deitadoemumarede,eaimagemdessaredesemesclasimultaneamentecomodesenho
de uma faca, possivelmente relacionada ao trabalho nas “plantações de mandioca,
milho,arroz,melancia,caju,banana.Muitabanana”(CABOCO,2019,s/p).
Alémdisso,dovigorosopédessepersonagemdespontaumramodebanana,fruto
quetempresençarecorrenteaolongodaspáginasenaproduçãoartísticadeCaboco
comoumtodo. Inclusive,nacontracapa,encontramosa ilustraçãodabrincadeirade
plantarbananeira5,aosevirardepontacabeçacomasmãosnosoloeospésparacima.
Mesmo sendo uma brincadeira tradicional, na criação do artista acaba sendo uma
provocação ao incentivar que as pessoas se vinculem com a terra, ou seja,
metaforicamente,comsuasancestralidades.Outrodetalhedemerecidaatençãoéque
essemeninoseguraumlivronasmãos,eesseobjetopodesugerirasnovasferramentas
quetêmcontribuídoparaovínculocomasancestralidadesnosdiasatuais.Alémdisso,
ocultivodasmemóriasedasidentidadesindígenasnacontemporaneidadeseconstrói
também pela via das tecnologias, conforme reforça Daniel Munduruku, um dos
pioneirosda literatura indígenanoBrasil, aodefenderque “paranós fazermos jusà
ideiadecircularidadedotempo,nóstemosquefazerumcaminhodeatualizaçãodas
nossasmemóriasancestraise,aodominarosequipamentosetecnologias,nósestamos
fazendo exatamente isso, renovando nossa própria ancestralidade” (MUNDURUKU,
2019,s/p).
Vencedordo3ºprêmioseLectdeArteeEducaçãonacategoriaArtista,Caboco
afirma,ementrevistaaositedoprêmio,que“[o]livrofoifeitoparaotioCasimiroepara
5Aimagemdabrincadeiradeplantarbananeiraimpressanacontracapadolivropodeserconferidaneste link (MUPA, 2019): http://www.museuparanaense.pr.gov.br/Noticia/Mesa-redonda-discute-literatura-indigena-no-Museu-Paranaense.Acessoem:05.mar.2021.
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queaspessoasqueestãodentrodaprópriacomunidadetambémserelacionemcom
essamemória.Éumpontodeencontro” (RAHE,2020)6.Nesse sentido, apublicação
pode ser caracterizada como um relato biográfico por narrar importantes
acontecimentos de Casimiro Cadete, tio do autor e personagem do livro, que
completaria100anosem2021,eenfatizarsuafundamentalcontribuiçãonadefesae
preservação da cultura e memória de seu povo. Além disso, essa obra também se
enquadra nas discussões sobre a expansividade dos meios e suportes artísticos
debatidaspelapesquisadoraargentinaFlorenciaGarramuño:
A expansividade dos meios e suportes artísticos se reconhece em práticascontemporâneasque,comoperações,materiaisesuportesmuitodiferentesentresi,foramdesmantelando,detidaeminuciosamente,todotipodeideiadopróprio,tanto no sentido idêntico a simesmo como no sentido de limpo ou puro,mastambémnosentidodoprópriocomoaquelacaracterísticaquediferencia,porqueseriaprópria,umaespéciedaoutra.Àfiguradoartistamultimídia,aquelequeemsuascriaçõessemovedeumadisciplinaàoutraeascombinanumamesmaprática,sesomaafiguradoartista―muitasvezes,masnãosempre,coincidentecomafigura anterior— que pode, além disso, passar de uma disciplina à outra empráticasdiversas:poetasquetambémsãoartistasvisuais(LauraErber),escritoresquetambémrealizamperformanceseinstalações(MarioBellatin),ouartistasquerecorrem a diversas invenções em torno da linguagem em suas própriasinstalações e que posteriormente realizam com estematerial livros que já nãosimplesmente “documentam” essa prática anterior,mas se tornampor sua veztextoseproduçõescomcertaindependência[...](GARRAMUÑO,2014,p.85-86).
EmdiálogocomasconsideraçõesdeGarramuñoecomadefesadeMunduruku
sobre as tecnologias contribuírem com a atualização de memórias, é pertinente
mencionaroutrorecentetrabalhodeCaboco,de2020,denominadoRecadoaoParente
6 RAHE, Nina. “O livro como ponto de encontro”. Prêmio select. Disponível em: https://premio-select.com.br/o-livro-como-ponto-de-encontro/.2020.Acessoem:05mar.2021.
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(IMS, 2020)7, um dos selecionados para o Programa Convida8, do Instituto Moreira
Salles. Esse trabalho também transita por diversas artes e expressões pluriformes,
germinando-secomomaisumadassementesdoseupercursode#retornoaterra.Além
disso,Cabocoéumdosartistasconvidadosparaamostracoletivada34ªBienaldeSão
Paulo (BIENAL, 2020)9, programada inicialmente para acontecer em 2020,mas que
devidoàpandemiadoCovid-19foiadiadapara2021.
Evidencia-se, portanto, quemotivos para conhecer a produção de Caboco são
fecundosequesuavozeexpressãocriativasãoférteis,potenteseinspiradorasparaque
outrosjovensindígenasenãoindígenassejamprovocadosatambémtraçarsuasrotas
memorialísticas e identitárias. Além disso, a originalidade de sua composição e a
cativante singularidade visual engrandecem ainda mais os espaços de expressão
artística promovendo e fortalecendo a democratização de vozes e a pluralidade no
universodaliteraturaedasdemaisartes.
REFERÊNCIASBIENAL. 34ª Bienal de São Paulo. Gustavo Caboco. 2020. Disponível em:http://34.bienal.org.br/artistas/7863.Acessoem:05mar.2021.CABOCO,Gustavo.BaarazKawau.SãoPaulo:CadernoListrado.2019._____.ORetorno.Disponívelem:https://caboco.tv/work/retorno-a-terra-ano-7/.[2017].Acessoem:05mar.2021.CONVIDA entra na terceira etapa. Instituto Moreira Salles. 16 out. 2020. Disponível em:https://ims.com.br/2020/07/20/programa-convida-etapa-3/.Acessoem:05mar.2021.
7PoemadeCabocopublicadonositedo IMS: “Recadoaoparente: fortificarnossoselos”. InstitutoMoreira Salles. Disponível em: https://ims.com.br/convida/gustavo-caboco/. Acesso em: 05 mar.2021.8DeacordocomoqueencontramosnositedoInstitutoMoreiraSalles,oProgramaConvidafoilançadoem 2020 como resposta aos danos causados pela pandemia. Disponível em:https://ims.com.br/2020/07/20/programa-convida-etapa-3/.Acessoem:05mar.2021.9“GustavoCaboco”.BienaldeSãoPaulo.Disponívelem:http://34.bienal.org.br/artistas/7863.Acessoem:05mar.2021.
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GARRAMUÑO,Florencia.Frutosestranhos:sobreainespecificidadenaestéticacontemporânea.RiodeJaneiro:Rocco,2014.IMS. Instituto Moreira Salles. Gustavo Caboco (PR/RR). 2020. Disponível em:https://ims.com.br/convida/gustavo-caboco/.Acessoem:05mar.2021.KOPENAWA,Davi;ALBERT,Bruce.Aquedadocéu:palavrasdeumxamãyanomami.Trad.BeatrizPerrone-Moisés.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2015.MUNDURUKU,Daniel.Vozesdeorigememfolhasdepapel:aliteraturaindígenacomoativismopolítico,culturaleatualizadordamemória:depoimento.Nonada,02dez.2019.EntrevistaconcedidaaJoyceRocha.Disponívelem:http://www.nonada.com.br/2019/12/vozes-de-origem-em-folhas-de-papel/.Acessoem05mar.2021.MUPA.MuseuParanaense.Mesa-redondadiscutealiteraturaindígenanoMuseuParanaense.22abr.2019. Disponível em: http://www.museuparanaense.pr.gov.br/Noticia/Mesa-redonda-discute-literatura-indigena-no-Museu-Paranaense.Acessoem:05mar.2021.RAHE, Nina.O livro como ponto de encontro. Prêmio Select, 2020 Disponível em: https://premio-select.com.br/o-livro-como-ponto-de-encontro/.Acessoem:13jan.2021.Recebidoem:05/03/2021Aceitoem:05/04/2021
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ÉTICA
ETHICS
GuilhermeGontijoFlores1
1. Ética,dogregoἦθος,
ocaráter,ocostume,
ohábitodealguém.
2. Certamentevinculadaaosânscrito!धा
(svádhā,!hábito”,"costume”,
mastambémum“poderinerente”).
3. Dánaraizhipotéticadoproto-indo-europeu
*swe-dʰh₁-sḱé-ti,
queporsuavezvemdaraiz
dʰeh₁-,comosentidode
“fazer”,“colocar”,“posicionar”.
4. Esseriotemambagesmuitas,tortíssima,
vai,porexemplodaremlatim
noverbosuesco—“terocostume”.
1UFPR.
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5. Masmelhor,
muitomelhor,
vaidaremsodalis,
queéo“camarada”,
“parceiro”,
"cúmplice”,
“companheiro"emesmoum
"conspirador"
(pensoquemconspira
comoquemrespira
junto,partilha
umalento).
Ora,sodaliséquemcostumaestarjunto,
partilhaerespira.
Eisumbomcostume.
6. Édeliciosocomoἦθος
variatambémemἔθος,
umélongoἦ,trocado
emebreve,ἔ,
umacentotonalcircunflexo,quesobeedesce,
tambémdeslindadonumasósubida.
Quemvemprimeiroimportamenos
queessecostume
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introjetadoemvariações.
Ocostumevaria,dásuasvoltas.
7. Masesseethosgrego,
aomenosalinovelhoHomero
blindasabat,Homero
naIlíada,canto6,verso511,
quandoaparecenoplural
ἤθεαἵππων,
(cláusulahexamétrica,étheahíppon)
designa“oslugarescostumeirosdoscavalos”,
quepoderiamserseushabitats.
Costume,hábito,habitat.
8. Aquipodemosformularalgo:
éticaéohábitoquehabito.
Maisqueisso—
apartilhadeumarqueconspira.
9. Maséticanãovemdireto
deἦθος
ouἔθος,
palavrastêmseustruques
efeitorios
nuncaseguemretas.
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Vemdeἠθικός,
oadjetivoquedesigna
amoralidade,oqueérelativo
aumcarátermoral.
(Óqueamoraleaética,nofundoseconfundem).
Evemsemgêneromasculinooufeminino,
vemsemsingularidade,
doadjetivoneutroplural:
10. τάἠθικά,
etambémἐθικά.
Coisasmorais.
Normasdevida.Ação
nojogodapartilha.
11. Masissotudo,emgrandeparte
vocêsestãocansadosdesaber.
Repitoomesmo,ovelho,omesmo,
porqueocostumeéumhábitoemqueinvisto,
enuncaumreiesteveverdadeiramentenu,
senãonaguilhotina.
12.
Outrocaminhotrilhadoéodapolítica.
DisseAristóteles
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queohomeméumanimalpolítico
πολιτικὸνζῷον
sendoζῷονavida
brutaeneutra
comoogênerodaética
emoposiçãoàvidapolítica
βίοςπολιτικός,
sendoβίοςvida
organizadaemseusentido,
umidealéticodavidapolítica
queninguémsabeondefica.
13. Reparemcomoacoisasederiva.Aética
quandoescrevoapalavrapoéticanumlivro
enganaasetimologias,ποιητικἠnadatem
comἠθικά,quefaltafazummeroθ(theta)
singularpresentenaαἰσθητική(estética),
eaindaassimdistanteporseuαἰ(ai)eη(eta).
E,noentanto,acontrapelodessesétimos,
todapoéticaéumaest-éticaéumapolítica:
avidabrutaabraçasempararavidaorganizada.
14. Etudoaquiconspiraquandoescrevo,
mesmonegandoocerneemmeuestilo,
tudoconspiraeassiméquemeentrego
acontrapelodocostumedado,
etudoqueaquiviveestásagrado,
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etudoqueconspiraétambémsacer
evivenolimitedoprofano
eintocável,oimpuroempuromundo,
etudoqueconvivenoprofano
aquiconspirasacernosagrado,
eaminhaaçãosozinhanestaescrita
estádesditaemtudoqueatravessa,
sodalis,solidárioàsolidão
edizacadadia:aquihabito.
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CONFISSÕESDEESCRITOR—CHACAL
GUESTAUTHOR
QUESTIONÁRIOPROUSTAInglaterravitorianaadoravajogosdesalão.QuandoMarcelProustconheceuo
JogodasConfidênciasseapaixonouporeleefezsuaprópriaversão.O"QuestionárioProust"jágerouexperiênciasdetodotipo,deentrevistaoficialaconversasde
namorados...Aqui,numanovaversão,adaptadadenovo,eleéusadoparaconfidênciasliterárias.
PROUSTQUESTIONNAIREVictorianEnglandlovedparlourgames.WhenMarcelProustgottoknow
ConfidenceAlbumshefellinlovewiththeideaandcreatedhisownversionofit.The“ProustQuestionnaire”hasalreadyspawnedallkindsofexperiences,fromofficialinterviewstolovers’chat...Here,inanewversion,adaptedonceagain,itisusedfor
literaryconfidences.
Suaprincipalcaracterísticacomoescritor:
souhippieatéhoje.Achoquealevezaeautopia,eucarregueiparaospoemas.
Aqualidadequevocêmaisadmiraemumescritor:
odomínio,ahabilidade,deescreverparaoouvido.SejaUlyssesouGrandeSertão.
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Aqualidadequevocêmaisadmiraemumleitor:
leremvozalta.
Suaprincipalaspiração,aindanãorealizada,comoescritor:
viverdoqueescrevo.
Suaprincipalaspiração,járealizada,comoescritor:
atravessar70anossemtiraropé.
Sonhodefelicidade,navidadoautor:
serco-pilotodealicenopaísdasmaravilhas.
Amaiorinfelicidade,navidadoautor:
oóculosquebrar,aluzapagarnofinaleletrizantedoromance.
Dividindoaliteraturaemnacionalidades...qualpaíspareceterhojealiteratura
maisinteressante?
Brasileira,aúnicaqueconheço.
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Oquemudaaoselerliteraturaemlínguaestrangeira?
Quase não leio literatura estrangeira. Poesia muito menos ainda. Hoje leio menos
autoresquetradutores.
Umromancepreferido?
GrandeSertão:veredas.
Umpoemaouumlivrodepoemaspreferido?
Tudoprontoparaofimdomundo,BrunoBrum.
NaSaladaJustiçadosescritores...qualoseusuper-herói?
OswalddeAndrade
Personagensmasculinasfavoritasnaficção:
SerafimPonteGrande,LeopoldBloom,PedroOrósio,Batleby.
Personagensfemininasfavoritasnaficção:
MollyBloom,Diadorim,Pentesileia.
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CHACAL.Confissõesdeescritor... 303
Umlivroquegostariadeterescrito:
Ulysses
Trechopreferidodeumaobra:
Aberto,dolivroOElefante,deChicoAlvim
Aberto(paracacaso)
ÀsvezesoolharcaminhanatramadaluzsemcuriosidadealgumaqualquerdevaneioVaiembuscadotempoeotempo,comoosempre,vaziodetudonãoestálongeestáaqui,agoraOolharsemmemóriasemdestinosedetémnoardoarnaluzdaluz―lugar?
Vocêestáescrevendoagora?
Agoraagoraestou.Preparando“olivrodascapivaras”(subtítulo)eescrevendoàtoa.
Sem tema, sem endereço. Bom para retomar essa conversinha pirilampa entre som e
sentido. Anda um pouquinho, pára, esquece.Mergulha de volta e volta com um peixe.
Conversacomelesobreaguelra,osufocoelevaelenomardenovo.
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CHACAL.Confissõesdeescritor... 304
Bio-bibliografiaresumida:
Unsquatorzelivrosdepoesia,umaautobiografia,doislivrosdecrônicas,umsobre
oPostoNove.Editei revistas.OCarioca (1995/97), principalmente. Sou cada vezmais
indolente.Infelizmenteoartistatemquefazerbarulhoparaouviremoseusilêncio.Mas
dácerto,dependendodotom.
Conheci alguns países e lá me apresentei. Talvez a melhor parte dessa viagem.
Gostodeestarcomaspessoasemboranuncasaibaoquedizer.Fuiumdosargonautas
doCentrodeExperimentaçãoPoética―CEP20.000,umcovildepoetaseperformers.De
1990a2020,noRio.FizmestradodeLetrasnaPUC (16/19).Boas leituras,desânimo,
cansaço.Difícilnavegarrotasprevisíveis.
Nascertododia.Tenhodoisfilhos,umpardenetos,quemeajudamarejuvelhecer.
Aartedapalavrapedefidelidade...àvida.Valeu.[Ricardo“Chacal”deCarvalhoDuarte]
[I wrote] About fourteen books of poetry, an autobiography, two books of
chronicles,oneaboutPostoNove. Ieditedmagazines.OCarioca (1995/97),mainly. I
havebecomemoreandmoreslothfulUnfortunately,theartistmustmakenoisesothat
othershearhissilence.Butitworks,dependingonthetone.
Igottoknowsomecountriesandperformedthere.Perhapsthebestpartofthis
trip.IenjoybeingwithpeopleeventhoughIneverknowwhattosay.Iwasoneofthe
argonauts of the Poetic Experimentation Center― CEP 20.000, a den of poets and
performers.From1990to2020,inRiodeJaneiro(Brazil).Itookamaster'sdegreein
LiteratureatPUC(16/19).Goodreadings,discouragement,tiredness.It isdifficultto
navigatepredictableroutes
Beingborneveryday.Ihavetwochildren,apairofgrandchildren,whohelpme
rejuvenage. The art of the word calls for fidelity ... [Ricardo “Chacal” de Carvalho
Duarte]