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2021 Número 16
304

Número 16 - Revista Versalete

Mar 06, 2023

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Khang Minh
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Page 1: Número 16 - Revista Versalete

2021Número16

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ReitorRicardoMarceloFonseca

Vice-ReitoraGrazielaBolzóndeMuniz

RevistaVersaletePublicaçãoSemestraldoCursodeLetrasedaPósGraduaçãoemLetrasdaUFPR

humanas.ufpr.br/portal/letrasgraduacao/prppg.ufpr.br/site/ppgletras/pb/www.revistaversalete.ufpr.br

Editoras

JaniceI.NodarieSandraM.Stroparo

CorpoEditorial

AliceLeal(UniversidadedeViena),ÁngelPérezMartínez(UniversidaddelPacífico),BernardoG.L.Brandão(UFPR),CaetanoW.Galindo(UFPR),CláudiaH.Daher(UFPR),DirceWaltrickdoAmarante(UFSC),HelenaMartins(PUC-RJ),IsabelC.Jasinski(UFPR),JaniceI.Nodari(UFPR),JenifferI.A.deAlbuquerque(UTFPR),JonathanDegenève(UniversitéParisIII),LuizE.Fritoli(UFPR),LuizM.S.Gardenal(UFPR),MarceloC.

Sandmann(UFPR),MaríaBeatrizTaboada(UniversidadAutónomadeEntreRíos),MarinaLegroski(UEPG),MartínRamosDíaz(UniversidaddeQuintanaRoo),NairadeAlmeidaNascimento(UTFPR),PatríciadeAraújoRodrigues(UFPR),PauloHenriquesBritto(PUC),PiotrKilanowski(UFPR),RenataP.deS.Telles(UFPR),

RossanaA.Finau(UTFPR),ThiagoV.Mariano(UFPR).

Pareceristasadhoc

AdilsonC.Batista,AlencarGuth,AlexandreGilFrança,AnaB.Braun,AnaCarolinaTorquato,AnaKarlaCanarinos,AndréT.Pelinser,AndréXavier,AndressaL.M.Medeiros,AnnalicedelVecchiodeLima,AnnyC.deA.Moreira,AntonieledeC.Luciano,AntonioGubert,AracyBonfim,AristeuMazuroskiJr.,ArthurArohaK.daSilva,ÁureoL.GueriosNeto,BárbaradelR.Araújo,BárbaraTanaka,BeatrizC.Souza,BrunaKindinger,BrunoVieira,CaetanoW.Galindo,CamilaD.M.Crestani,CleberA.Cabral,DaianeRodrigues,DanielF.Ribeiro,DanieleSantos,DankarB.G.de

Souza,DankarB.G.deSouza,DiogoSimão,DioneiMathias,EduardaR.D.daMatta,ElianneV.M.Izquierdo,EmanuelaSiqueira,FrancineF.Osaki,FranciscoB.dosSantos,GabrielCaesarSantos,GiovaniT.Kurz,Guida

Bittencourt,GustavoVazquez,HugoSimões,IamniR.Bezerra,IlsenM.C.Gareca,IsabelaCimF.deMelo,JaniceInêsNodari,JaninaRodas,JeanineJavarez,JoãoPaulodaSilva,JosuéB.deA.Godinho,KaioC.Carmona,KellyC.Miranda,KleberKurowski,LetíciaP.daSilva,LídiadaSilva,LielsonZeni,LohannaMachado,LucianeC.F.N.

Moreira,LuisHenriqueG.Ferreira,LuizGuilhermedeOliveira,MárciaBecker,MariadeFátimaO.Bezerra,MariaFernandadosSantos,MariaIsabelBordini,MarianaC.PintoMarino,MarinaXavierFerreira,MatheusBarbosaMoraisdeBrito,MaurícioResende,NádiaZiroldo,PâmellaP.Negreli,PaolettaSantoro,PatríciaS.Guibes,PhelipeCerdeira,RaphaelP.Lautenschlager,RebecaP.Queluz,RobertoB.deMenezes,RicardoPeixotoPinto,RodrigoPereiradosAnjos,RondinellyG.Medeiros,SandraM.Stroparo,SelmoFigueiredo,SérgioFreitas,SuelenA.C.

Trevizan,ThaisCons,ThiagoSteven,TiagoRibeiro,UmbertoMiele,VanessaM.P.daSilva.

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RevistaVersaleteR.GeneralCarneiro,460,11ºandar,sala1117

tel./fax(41)3360-5097Curitiba-Paraná-Brasil

[email protected]

Volume9,Número16,jan.-jun.2021

RevisãoeformataçãodostextosAlitonDimasPereiraGomes,AnaJuliaPradoAntunes,CarolineRodriguesDolinskiAntunes,GiulianaBorges

Roballo,GlóriaLetíciaWenceslauBarãoMarques,IsabellaBoddydaSilva,LucasV.VebberCardenas,LuizFernandoHufdeCarvalho.

Revisãodostextosem:Inglês:JaniceI.Nodari

EditoraçãoEletrônicaRodrigoMadalozzoBordini(SCH)

DesignFrancisHaisi

UNIVERSIDADEFEDERALDOPARANÁ.SISTEMADEBIBLIOTECAS.BIBLIOTECADECIÊNCIASHUMANASEEDUCAÇÃO_____________________________________________________________________________REVISTAVersalete/CursodeLetrasdaUniversidadeFederaldoParaná;editoração:JaniceI.Nodari,SandraM.Stroparo,v.9,n.16(2020).Curitiba,PR:UFPR,2021.Periódicoeletrônico:http://www.revistaversalete.ufpr.brSemestralISSN:2318-10281.Linguística–Periódicoseletrônicos.2.Literatura–Periódicoseletrônicos.3.Traduçãoeinterpretação–Periódicoseletrônicos.I.UniversidadeFederaldoParaná.CursodeLetras.II.Nodari,JaniceI.;III.Stroparo,SandraM.CDD20.ed.400_____________________________________________________________________________SirleidoRocioGdullaCRB-9ª/985

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APRESENTAÇÃO

Vamosrepetiraqui,emparte,nossaúltimaapresentação:desdeon.15ascoisas

pioraram muito em nosso país e não podemos fechar os olhos para o que está

acontecendo.

NossaUniversidadeestáfechadahá16meses.Continuamostrabalhando,dando

aulas,orientando,masasrevistasforamabandonadaspelaCapesepeloCNPq:nãohá

maiseditaisdeapoioapublicaçõesnoBrasil,eissonomomentoemqueseexige,mais

quenunca,queosprofessorespubliquemeconsigamprojeçãointernacionalapartir

dadivulgaçãodeseustrabalhosedesuaspublicações.

Aindaassim,apresentamosaquiumbeloconjuntodetextos,cobrindotodasas

áreastemáticasdarevista.Alémdisso,nossoprofessorconvidado,GuilhermeGontijo

Flores,professor, tradutor,poeta,escreveuumtextocurioso,múltiplo,emqueética,

poesia e tradução se misturam. Já o nosso autor convidado é ninguém menos que

Ricardo“Chacal”deCarvalhoDuarte,poetaquejáfezmuitodesdeotempoemquefoi

chamadodepoetaMarginal.

E,novamente,nãopodemosdeixardechorarnossosmortos.Nomomentoem

quefechamosestarevista,asituaçãoéaseguinte:

549.501pessoasmortasnoBrasil.

4.172.497pessoasmortasnomundo.

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Chorar esses números não é anulá-los: é lamentar o negacionismo, a

incompetência e a corrupção, que colaboraram tanto para a existência de tantas

mortes.

Boaleitura.Boasorteparatodosnós.

JaniceI.NodarieSandraM.Stroparo

Editoras

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SUMÁRIO

SUMMARY ESTUDOSLINGUÍSTICOS LINGUISTICSTUDIESDispositivoetecnologia:umaanálisedosQuadrinhosdosanos10deAndréDahmer.Dispositiveandtechnology:ananalysesofQuadrinhosdosanos10deAndréDahmer.10 VivianeLisMarianoMendesDeslizedesentidoerelaçõesdepoderedeverdade:dizeresemalusãoao31demarçode1964.Slideofmeaningandrelationsofpowerandtruth:sayingsinallusiontoMarch31,1964.26 MaruanaKássiaTischerSeraglioDiversidadelinguísticaeensinodeinglês:consideraçõessobreoinglêsafro-americanoeoRapeoHip-hop.LinguisticdiversityandEnglishlanguageteaching:remarksonAfricanAmericanEnglishandRapandHip-hop.44 ElisaMattos

ESTUDOSLITERÁRIOS LITERARYSTUDIESAreterritorializaçãodosujeitoemOinvasor,deMarçalAquino.ThereterritorialisationofthesubjectinOinvasor,byMarçalAquino.64 NatáliaSaffirydeOliveiradosSantos RosanaCristinaZanelattoSantosAspectosdanarraçãonoscontosdeBernardoKucinski:otestemunhodaditaduramilitarbrasileira.NarrationaspectsinBernardoKucinski’stales:thetestimonyoftheBrazilianmilitarydictatorship.83 AlexandreHenriqueSilveira

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Águasquedesenhamahistória:umaperspectivasobreoolhardeJoãoMiguelFernandesJorgeeMiaCouto.Watersthatdesignhistory:aperspectiveontheviewofJoãoMiguelFernandesJorgeandMiaCouto.98 AnaCarolinadosSantosLinharesAjagunçagememalgumasobrasregionalistas.Jagunçageminsomeregionalistworks.115 DenisedeFátimaLessaAlvesRepensarheróis:arepresentaçãodasdisputaspelapossedeterrasnoParanáemOdramadaFazendaFortaleza(1941),deDavidCarneiro.Rethinkingheroes:therepresentationofdisputesoverParana’slandinOdramadaFazendaFortaleza(1941),byDavidCarneiro.133 JorgeAntonioBerndt ThianaNunesCellaAcondiçãodaclassetrabalhadoranoteatrodeJoeOrton.Theworking-classconditioninthetheatreofJoeOrton.152 JonathanRenandaSilvaSouzaCândido,deVoltaire,esuasaproximaçõespossíveiscomasEtiópicasdeHeliodoroecomoromancegregoantigo.Voltaire’sCandideanditspossiblesimilaritieswithHeliodorus’sAethiopicaandancientGreeknovels.172 FranceliseMárciaRompkovskiAbuscadeumasociedadeafricanatradicionaleafigurafemininanaobrapoéticadePaulaTavares.ThesearchforatraditionalAfricansocietyandthefemalefigureinthepoeticworkofPaulaTavares.190 PaulaEsterApolôniaUmacríticaàsvítimasdeviolênciaurbananoconto“Zaítaesqueceudeguardarosbrinquedos”.Acriticismofvictimsofurbanviolenceinthetale“Zaítaesqueceudeguardarosbrinquedos”.205 JúliaSilveiraSoares ESTUDOSDATRADUÇÃO TRANSLATIONSTUDIES

Imprensa&tradução:jornaisinternacionaisenacionaisnoticiandootestepositivodeBolsonaroparaaCovid-19.Journalistictranslation:nationalandinternationalperspectiveswhenBolsonarotestedpositivetoCovid-19.224 ElisaHeiermannQuadros LuizaBenettideLemosCordeiro SabrinaCostadaSilva SilvanaAyubPolchlopek

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Oparatextoprefacialdetraduçãoliterária:ocasodosHamletsbrasileiros.Theprefatoryparatextofliterarytranslation:thecaseoftheBrazilianHamlets.244 PedroLuísSalaVieiraOcaçadordepipascomoromancemultilíngue:observaçõessobreatraduçãobrasileira.Thekiterunnerasamultilingualnovel:observationsontheBraziliantranslation.265 JuliaPinheroJudiceMenezes RESENHA REVIEWOcultivodememóriasancestraisemBaarazKawau,deGustavoCaboco.ThecultivationofancestralmemoriesinBaarazKawau,byGustavoCaboco.285 ThiagoAlexandreCorrea

PROFESSORCONVIDADO GUESTPROFESSORÉtica.Ethics.293 GuilhermeGontijoFlores AUTORCONVIDADO GUESTAUTHORQuestionárioProustProustQuestionnaire300 Chacal

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ESTUDOSLINGUÍSTICOS

LINGUISTICSTUDIES

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Curitiba,Vol.9,nº16,jan.-jun.2021ISSN:2318-1028REVISTAVERSALETE

MENDES,V.L.M.Dispositivoetecnologia... 10

DISPOSITIVOETECNOLOGIA:UMAANÁLISEDOSQUADRINHOSDOS

ANOS10DEANDRÉDAHMER

DISPOSITIVEANDTECHNOLOGY:ANANALYSISOFQUADRINHOSDOS

ANOS10BYANDREDAHMER

VivianeLisMarianoMendes1

RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar, pela perspectiva da Análise do DiscursoFoucaultiana,algumastirasdaobraQuadrinhosdosAnos10 (2016),doquadrinistaAndréDahmer.Escolhemosanalisarcomoosobjetostecnológicos,emespecialosaparelhoscelulares,figuramnaobraequaisasrelaçõesqueossujeitosestabelecemcomeles.Paratanto,utilizamosasnoçõesdediscursoedispositivodeMichelFoucaulteaanálisedasubjetividadeneoliberaldePierreDardoteChristianLaval.Palavras-chave:dispositivo;neoliberalismo;Dahmer.ABSTRACT:Thisstudyanalyzes,fromthetheoreticalpointofviewofFoucaultianDiscourseAnalysis,some comics from Quadrinhos dos Anos 10 (2016), written by the comics writer André Dahmer.Technologicalobjects,especiallymobilephones,werechosentobeourfocusasforhowtheyfigureinthe comics andwhat relationships the subjects establishwith them.Michel Foucault’s conceptsofdiscourseanddispositiveandtheDardotandLaval’sanalysisofneoliberalsubjectivityarebroughtuptounderstandthoserelationships.Keywords:dispositive;neoliberalism;Dahmer.

1. INTRODUÇÃO

Em “A Fábrica do SujeitoNeoliberal”, nono capítulo da obraANovaRazão do

Mundo,ofilósofofrancêsPierreDardoteosociólogodemesmanacionalidadeChristian

1Mestranda,UFG.

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Lavalsededicamaanalisarcomoonovoordenamentoeconômicomundial,advindodo

neoliberalismo, acarretoumudanças sociais que geraram também um novo tipo de

sujeito, denominado pelos autores, em sua análise, de sujeito neoliberal. Esse novo

sujeitoestáinscritonalógicaempresarialneoliberalelevaasrelaçõeshumanasauma

reproduçãodasrelaçõesprodutivas,fazendocomqueossujeitosimplementememsuas

vidaspessoaisamesmalógicadomercado,dasfábricasedasempresas,conformese

verificanoexcertoaseguir:

Diversastécnicascontribuemparaa fabricaçãodessenovosujeitounitário,quechamaremos indiferentemente de “sujeito empresarial”, “sujeito neoliberal” ou,simplesmente,neossujeito.Nãoestamosmaisfalandodasantigasdisciplinasquese destinavam, pela coerção, a adestrar os corpos e a dobrar os espíritos paratorná-losmais dóceis― metodologia institucional que se encontrava em crisehaviamuito tempo.Trata-se agorade governarum ser cuja subjetividadedeveestarinteiramenteenvolvidanaatividadequeseexigequeelecumpra.(DARDOT;LAVAL,2016,p.327).

Conformeatesedefendidapelosautores,osmodosdeproduçãoedeconsumo

influenciaramnomodocomosedãoosprocessosdeconstituiçãodassubjetividades.

Dessaforma,umadasagênciasdoneoliberalismofoioperarareorganizaçãopsíquica

dossujeitos.Nessecontexto,o trabalho jánãotemseusentidoontológico,ouseja,o

trabalho não produz a existência do homem, mas ganha um sentido instrumental,

servindoapenasparaaproduçãodemercadoria.Essaalienaçãodo trabalhoproduz

sujeitoscujosdesejossãoosdomercado:

As novas técnicas da “empresa pessoal” chegam ao cúmulo da alienação aopretendersuprimirqualquersentimentodealienação:obedeceraoprópriodesejoouaoOutroquefalaemvozbaixadentrodenósdánomesmo.Nessesentido,agestãomodernaéumgoverno“lacaniano”:odesejodosujeitoéodesejodoOutro.DesdequeopodermodernosetorneoOutrodosujeito.(DARDOT;LAVAL,2016,p.327).

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Esse novo ordenamento psíquico dos sujeitos altera também as relações de

consumoeascolocacadavezmaisditadaspelasregrasdomercadoedomarketing.Os

sujeitospassamaterdesejosquenãodizemrespeitoaoqueelesdefatonecessitam,

mas,certamente,aoqueomercadodesejaqueestesdesejem.Odesejodesipassaaser

o desejo do outro, sendo este outro omercado. Essa é uma relação de poder, e de

dominação:

A subjetivação neoliberal institui cada vezmais explicitamente uma relação degozoobrigatóriocomtodooutroindivíduo,umarelaçãoquepoderíamoschamartambémde relação de objetalização. Nesse caso, não se trata simplesmente detransformar o outro em coisa― segundo um mecanismo de “reificação” ou“coisificação”,para retomarmosum tema recorrentedaEscoladeFrankfurt―,masdenãopodermaisconcederaooutro,nemasimesmoenquantooutro,nadaalém de seu valor de gozo, isto é sua capacidade de “render” um plus. Assimdefinida, a objetalização apresenta-se sob um triplo registro: os sujeitos, porintermédiodastécnicasgerenciais,provamseuserenquanto“recursohumano”consumido pelas empresas para a produção de lucro; submetidos à norma dodesempenho,tomamunsaosoutros,nadiversidadedesuasrelações,porobjetosquedevemserpossuídos,moldadose transformadosparamelhor alcançar suaprópriasatisfação;alvodastécnicasdemarketing,ossujeitosbuscamnoconsumodasmercadorias um gozo último que se afasta enquanto eles se esfalfam paraalcançá-lo.(DARDOT;LAVAL,2016,p.321).

Énessemesmocontextodasubjetividadeneoliberaledosdesejosdomercado

queestãoinscritososindivíduosexpostosnaobradoquadrinistaAndréDahmer,em

especialemseulivroQuadrinhosdosAnos10,lançadoem2016,equeficouem3ºlugar

na categoria quadrinhos do Prêmio Jabuti de 2017. Ao longo das 320 páginas de

QuadrinhosdosAnos10,dedicadascadaumaaumatirinha,Dahmerbuscasintetizarum

poucodavidamoderna,daprimeiradécadadoséculoemquevivemos.Oautortenta

destrincharascomplexidadescontemporâneassurgidasdasnovastecnologias,redes

sociais, internet e aparelhos eletrônicos, bem como as novas formas de relações

derivadasdessesnovoselementos,cadavezmaispresentesnasociedademoderna.

Nestetrabalho,escolhemosanalisararelaçãodessassubjetividadespresentesna

obra de Dahmer (2016) com os objetos, mais especificamente com a figuração dos

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aparelhoscelularesecomoelesse tornamumdispositivoaodeixaremdepertencer

somenteaumcampoobjetivoepassivo,parasetornaremcatalisadoresdeumaredede

elementosheterogêneos,quetemcomoumdeseusefeitosasprópriassubjetividades,

produzidas a partir dessas conexões do dispositivo, transformando-se em novos

agentes, por sua vez, de ampliação da proliferação das relações de poder e saber

instituídaspelodispositivo.

Buscamosentender,comoauxíliodométodofoucaultianodeanálise,comoesse

novo sujeito supramencionado interage com esses objetos, ou ainda, verificar a

recíproca dessa relação: como esses objetos interagem com esses sujeitos e se os

própriosobjetosnãopassamaterelesmesmosumacertaagência,subtraindotambém

a localidade agencial costumeiramente atribuída à posição sujeito. Para tratar das

relaçõesentredispositivo,subjetividadeeaobradeDahmer,faremosumbreveresumo

dasnoçõesdedispositivoemFoucault―noçõesessasquesãodedecisivaimportância

paranossosargumentos.

2. ANOÇÃODEDISPOSITIVO

“OjogodeMichelFoucault”éotítulodeumaentrevistaconcedidaporFoucaulta

umgrupodepsicanalistasequefoipublicadaem1977noboletimperiódicodocampo

freudianofrancês(FOUCAULT,2014b).Nela,dentreoutrosassuntos,Foucaultéinstado

a esclarecer sua concepção de dispositivo. A resposta é tripartida e contém termos

importantesparaanossadiscussão:

i) Um dispositivo é uma reunião (ensemble) de elementos heterogêneos, que

compreendem discursos, instituições, arranjos arquitetônicos, leis, decisões

regulatórias,declaraçõescientíficas,proposições filosóficas,morais, filantrópicasetc.

Umdispositivoreúne,portanto,elementosdiscursivosenãodiscursivos; formauma

rede(réseau)entreesseselementosecompõe,comeles,umtodoheterogêneo;

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ii) Foucault afirma pretender analisar a natureza do liame que o dispositivo

estabeleceentreesseselementosheterogêneos.Tratardessaquestãoéimportante,pois

permite notar os múltiplos jogos que dispositivos variados interpõem entre seus

elementos, que podem, por sua vez, participar de diferentes dispositivos: “[s]endo

assim,taldiscursopodeaparecercomoprogramadeumainstituição,ou,aocontrário,

comoelementoquepermite justificaremascararumapráticaquepermanecemuda;

podeaindafuncionarcomoreinterpretaçãodestaprática.”(FOUCAULT,2010,p.244).

iii) Dispositivo é uma espécie de formação (formation) que responde a uma

urgência em um dado momento histórico. Nesse sentido, um dispositivo tem um

processodegênesequerespondeaum“imperativoestratégico”,quefuncionacomosua

matriz(FOUCAULT,2010,p.244).

Desse modo, um dispositivo se define como uma rede (réseau) de elementos

heterogêneos,cujagênesesedáapartirdeumaurgência,umimperativo,deumdado

momento histórico. “Rede” e “Gênese” são, portanto, dois termos medulares na

concepçãodedispositivoapresentadaporFoucaultnessaentrevista.Oqueessasduas

expressõespodemapontarparaoentendimentodanoçãodedispositivo?

Porumlado,ofatodeumdispositivocolocaremredeelementosheterogêneos

implica a possibilidade de que esses elementos não constituam, necessariamente,

relações entre si. Desse modo, uma rede é sempre a instituição de relações não

necessárias,dopontodevistadaconstituiçãodosobjetos.Ouseja,aexistênciadeuma

rede,seuestatutoontológico,éumacontingência:nadaseinscrevenoâmagodeseus

elementosconstituintesparaqueadefinam,demodonecessário,detaloutalmaneira.

Namesma entrevista, Foucault afirma que umdispositivo se constitui e perdura na

medida em que é a ligação de dois processos: o processo de sobredeterminação

funcionaleoprocessodepreenchimentoestratégicoperpétuo.Oprimeirodizrespeito

àsrelaçõesinternasdeumdispositivo:omodocomoseuselementosentramemcontato

e,emmovimentosderessonânciaecontradição,replicam-se,ajustam-se,emergemou

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se invisibilizam. O segundo trata da reutilização (réutilisation) que o dispositivo

promovedoselementosquesurgemdasnovascondiçõesdeemergênciaqueeleinstitui.

Foucaultcitacomoexemplooambientedelinquentequeasprisõescriaramcomoefeito

cego, não previsto. Um espaço de filtragem, concentração e profissionalização de

práticasilegaisbastantediferentedoquehavianoséculoXVIII.Todoosistemaprisional

epenal,então,rearranja-seestrategicamenteparapreencheresseespaço,otimizá-loe

compô-loparaaperpetuaçãododispositivo.

Por outro lado, a responsividade que também caracteriza o dispositivo é uma

condiçãonecessáriaparasuaexistência.Comovimosanteriormente,noexemplodas

prisões,mesmooselementosouespaçosemergentesapartirdasrelaçõesinstituídas

pelos dispositivos têm de receber uma réplica, precisam sofrer um processo de

adaptação, conformação, invisibilização, para se religarem ao plano estratégico do

dispositivo. Esse aspecto é de grande importância porque, a partir dele, podemos

afirmar que não são determinadas relações que necessariamente constituem um

dispositivo,masaatividademesmadeinterporrelações.Umdispositivonãoéarelação;

é a atividade de fazer relacionar. Nesse sentido, se as relações que um dispositivo

instauranãosãonecessárias,masaprópriaatividadedecolocaremrelaçãoéqueé

necessária,entãoqualquerrelaçãopodedaracessoaumnovodispositivo(FOUCAULT,

2010).Issonosleva,paratratarmosdodispositivo,adesviarofocodasrelaçõesqueele

estabelece,paratratardoselementosqueoconstituem.Porqueumdispositivooperou

com um elemento e não outro? Por que, no dispositivo da sexualidade, a genitália

recebeu tanta atenção e não outra instância corporal?2 O foco nos elementos não

oblitera as relações. Ao contrário, permite entrever as fissuras dos dispositivos: os

ligames,asjunções,osnós,asmarcasdecostura,quesulcamasrelações.Asrelações

sãoasconexõesentreoselementos,masondeessasconexõesseinstalam?Nospróprios

2VeroscomentáriosdeFoucault,noprimeirovolumedaHistóriadaSexualidade,sobreareabsorçãodos "prazeres sem fruto" à sexualidade centrada na genitalidade (FOUCAULT, 2014a, p. 40). Vertambém:RabinaweDreyfus(1995,p.186).

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elementos, dobrando-os, desarticulando, desfiando; mas também reconstruindo-os,

religando,redesenhando.

Uma outra especificidade se adiciona a nossa problemática: vivemos — nós

ocidentaisdoséculoXXI—emumasociedademarcadapelasredes.Amaioriadenós

sempreestáenvolvidacomalgumaespéciedeconexão,onlineouoffline,demaneira

que, atualmente, as relações não sãomais construídas apenas por redes de escalas

espaciaise temporaishistóricasoumulti-elementais.Qualquer indivíduoquepossua

umúnico aparelho celular smartphone e acesso à internet consegue constituirmais

relações que qualquer dispositivo instituído no mundo analógico. O saber sobre a

sexualidade,surgidodaproliferaçãodosdiscursosatravésdastécnicasdeconfissão,é,

hoje,infinitamentemaiorecomplexo,dadaapulverizaçãoeadifusãodosinstrumentos

decapturaecooptaçãodaspráticasedosdizeres.Peloavançotecnológico,mediçõesde

comportamento ficaram mais refinadas e micrológicas: composição química das

emoções,circulaçãopadronizadanacidade,nosespaçospúblicoseprivados;hábitos

pessoais mínimos: tempo de permanência, de alimentação, de trabalho; relações

interpessoais: possíveis amigos, conhecidos; possíveis interesses, necessidades. A

massadedadoséenorme,comcadaindivíduo,ouusuário,produzindovoluntariamente

uma quantidade inimaginável de informações sobre si mesmo e seus próximos, e

divulgando-osabertaegratuitamenteoneoffline.Tudoissoderivado,principalmente,

dapossedeumúnicoobjeto.

Essasnovasformasdecapturasãoacompanhadastambémdenovasformasde

subjetivação. Como afirma Gilles Deleuze (2016, p. 365-366), “pertencemos a tais

dispositivoseagimosneles”,demaneiraque“[e]mtododispositivo,éprecisodistinguir

o que somos (o que já nem somos mais) e o que estamos em vias de devir”. A

subjetividadeéumdosresíduosproduzidospelaaçãodosdispositivos.Osprocessosde

subjetivação ou assujeitamento ocorrem justamente durante a atividade criativa e

inovadora dos dispositivos que marcam “sua capacidade de transformar-se, ou de

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fissurar-sejáemproveitodeumdispositivodoporvir.”(DELEUZE,2016,p.365).Os

movimentosdesobredeterminaçãofuncionalepreenchimentoestratégicosedimentam

adispersãodosenunciados,criandoaredecapazdeproduzirosregimesdeverdade,as

técnicas de si, o uso dos espaços e dos corpos, curvas de tensão entre saberes,

bifurcaçõeseoposições.Sendoassim,umdispositivonuncaéumatotalizaçãounitária

do campo de forças, mas uma malha momentaneamente conflitiva e incoerente,

coordenadaecoesa,fissuradaelisa.Essedesequilíbrioconstantedodispositivoéoque

permiteaemergênciadevariadasformasdesubjetividadeederesistêncianasrelações

depoder.

Tomando esses dois últimos aspectos — o enredamento característico das

sociedadesocidentaiscontemporâneaseaproduçãodesubjetividadeoriundadessas

conexões—épossívelafirmarqueumdispositivopodeseconstituir,porexemplo,em

escalas muito menores do que os dispositivos que foram analisados por Michel

Foucault.Énessesentidoquepretendemosanalisarafiguraçãodosobjetosnastirasde

Dahmer:elesparecemintroduzireconformar,frequentemente,novasformasdeser-

no-mundo, outras formas de subjetividade, estreitamente atreladas e encadeadas a

redes mais amplas, que transpassam instituições governamentais, conglomerados

empresariais, campos de administração política, comunicação pública e privada,

mercadosprodutivoseassimpordiante.Equetambématravessamcorpos,formasde

visibilidade dos indivíduos, micro organizações, locais de resistência, relações

familiaresetc.

3. ANÁLISE

Nastirasaquiestudadas,asimagenssãotãoimportantesquantootextoemsi.

Pormeiodetrêsaquatroquadros,àsvezesatémenos,elassãocapazesdeproduzir

críticasecrônicasdascomplexidadesdavidacontemporânea.Frequentemente,lançam

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mãodohumorpormeiodaquebradeexpectativa,subentendidose intertextospara

lhesagregarsentido.

PodemosobservarcomoDahmertêmretratadoosaparelhoscelulares.Emsuas

tiras, os aparelhos não exercem apenas suas funções precípuas, ou seja, suas

funcionalidadesobjetaisdestinadasarealizar ligações,acessarà internet,produzire

trocarmensagenseinteragircomaplicativos.Osaparelhospassamaafetarosujeitoe

omodomesmocomoesteproduzasimesmo.Dessaforma,osobjetostornam-seuma

instância de subjetivação: não mais um mero ser-aí passivo, que suporta as ações

arbitrárias e livres de um sujeito. Essa divisão, sujeito e objeto, é oriunda de uma

determinadagradefilosóficaquecompreendeosujeitocomoalgoanterioraocampode

relações que chamamos demundo. Para o idealismo alemão, de Kant a Hegel, mas

também,guardadasasdevidasdiferenças,paraaschamadasfilosofiasdaconsciência,

de Husserl a Sartre, o sujeito é algo prévio às relações que, porventura, possa

estabelecer. Como se sabe, as filosofias advindas do estruturalismo e da crítica da

metafísica feita por Nietzsche se opuseram veementemente à naturalização e

anterioridade da noção de consciência e de sujeito (HABERMAS, 2000). Foucault é

herdeiro dessas últimas correntes, posicionando o sujeito como o substrato de um

processoqueoperaemescalasdepoderesaber,àreveliadosindivíduos.

Nesse sentido, ao modificarmos nossa compreensão para nos adaptarmos às

novasformasde“objetalização”,seguindoaexpressãodeDardoteLaval(2016,p.321),

podemospercebercomoocaráterobjetualdosaparelhoscelularesatuaisnãoimplica

em tomá-los como simples matéria inerte à espera de um sentido mobilizado pelo

indivíduo.Aocontrário,eles,oscelulares,operamformasdesubjetivaçãoqueatépouco

tempo eram inimagináveis pelo pensamento tradicional da tecnologia: a tecnologia

apenas como organização progressiva da instrumentália passiva através da qual os

humanos modificavam seu ambiente. É por isso que é possível arriscar uma nova

interpretação e qualificar tais objetos como uma forma de materialização

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contemporâneadosdispositivos,namedidaemqueelessetornamaparatodeumarede

derelações,provocandomutaçõesecriaçõesdesubjetividade.Osaparelhosdecelular

alteramarelaçãosujeito-objetoemodificamosujeito,transformandonãosomenteo

sentidodostermossujeitoeobjeto,masprincipalmentealterandoasrelaçõespossíveis

entreeles.

FIGURA1—(DAHMER,2016,p.141).

Natirinha,ocelularépersonificadocomosefosseumfilhoquerequercuidados

eatenção.Asrelaçõesquetradicionalmenteeramtomadascomotipicamentehumanas,

agorasãoreinseridaseminstânciasdiferenciaisdatecnologia,umavezqueocelular

nãoconfigura,comodissemosanteriormente,meramenteumobjetoinerteepassivo.

Aotratardocelularcomoumhumano,opersonagemdatiratalvezreconheça,defato,

a radicalidadedas transformaçõesporquepassoua tecnologia, deixandode serum

meiodeacessoaumdeterminadofim,conteúdoousentido,paraseroprópriosentido,

fim e conteúdo. Não se trata mais de lidar com funcionalidades discretas, com

instrumentospassivos,comtécnicasdefazeracontecereproduzir,masdeproduzira

partirdascondicionalidadesdisponibilizadaspelaquantidade,qualidadeeintensidade

dasrelaçõesquetalobjetoécapazdefazer.Issoalteratudo:nãomaisosujeitocujas

estruturas transcendentais condicionam o que é possível e impossível de conhecer,

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como na filosofia de Kant e de seus pósteros; mas o próprio objeto, cujas

funcionalidadesconstringemoqueépossíveldizerefazer.

FIGURA2—(DAHMER,2016,p.64).

É justamente essa constriçãododizer e fazerque aparecena segunda tirinha.

Nela,emumúnicoquadroequatropalavras,oautorconseguefazerumasignificativa

críticasocial,quandosugereacontradiçãodeumapessoaimersanousogeneralizado

e naturalizado do celular alertando outra, por meio do próprio celular, acerca da

existência de vício associado à maconha. Tal contradição destaca a ausência de

autopercepçãocaracterísticadacompreensãocontemporâneadevíciocomoatrelado

principalmenteasubstânciasfarmacológicas,negligenciandoqueovícioéummodode

relação que pode ser estabelecido com quaisquer atividades, objetos ou práticas.

Legalmente,ovícioétidocomoumfatordeincapacidadedapessoa,sendo,porvezes,

atenuadoremcasosdeinfraçãooucrime,oumesmoindicadordenecessidadedetutela

jurídica.Nessesentido,ovícioéumaformadedebilitaçãodosujeito,nosentidodeque

restringe ou inviabiliza o exercício saudável das faculdades racionais que lhe foram

atribuídaspelasnoçõesdesubjetividadeepessoalidadeadvindasdoIluminismoedo

kantismo. Se na primeira tirinha há uma subjetivação do objeto, na segunda o

personagem enunciador oblitera as formas de cerceamento injungidas pela

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endemicidade da tecnologia, e, sobretudo, naturaliza a condição de constante

conectividadedesuasociedade.Alémdisso,aevidênciadanormalidade,daquiloque

passa desapercebido como o resultado de construções, atravessamentos e

recalcamentos do contato entre elementos discursivos e não discursivos, torna-se o

centrodoenunciado:oqueéconsideradorelaçãoviciosaourelaçãosaudávelemuma

sociedadedependenteedefinidapelaimpossibilidadeefetivadeumavidaanalógica?O

que torna a relaçãode abusode consumodeum fármacomais perniciosadoque o

consumo abusivo de dados? Essa distinção depende de umaquantidade dilatada de

ditosenãoditosparasustentá-la,paratorná-laoverdadeiro,oóbvio.Contudo,apartir

de uma pergunta tipicamente foucaultiana, é possível apontar para o início de uma

desconstrução arqueogenealógica que nos provoca a remontar aos processos de

construçãodovíciocomoumaformadedebilidadesubjetivae,maisamplamente,como

foirealizadaarestriçãodeseusentidoparaocampodosquímicosedassubstâncias.

FIGURA3—(DAHMER,2016,p.248).

Aqui, o aparelho celular aparece no lugar do fruto proibido, em referência

alegóricaaomitobíblicodopecadooriginal,queconformariaodestinodahumanidade

ejustificariaseussofrimentoseinjustiças.Nessaanalogia,ocelularseriaummarcoe

motedapassagemdeumavidaplenaedeharmoniaparaumaposterior,depecadoe

desarranjo,assimcomoofrutoproibidooénatradiçãocristã.Dessamaneira,ocelular

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aparece—talvezatécomometonímiadatecnologia—comooelementodedesviodo

percurso estável e plácido da humanidade. Contudo, note-se: essa forma de

representaçãodoaparelhoeda tecnologiadáalcancesnãosomentehistóricosàsua

ação, mas, sobretudo, ontológicos. Isso no sentido de que o significado do fruto na

tradição cristã se dá pelamudança ocorrida no estatuto do humanoquando o casal

primitivoocomeu.A ingestãodo frutoprovocouumaalteraçãona formamesmade

existênciadohumano,demodoaserpossívelsegmentartantoahistóriaquantoaforma

deexistênciahumanaemduaseras:umaanterioreoutraposterioraopecadodecomer

ofrutoproibido.Umdossentidosdocelularnabocadaserpente,noquartoquadro,é,

então,apossibilidadedesesegmentaranarrativadahistóriahumanaeaqualificação

desuasatribuiçõestradicionaisemumanteseumdepoisdoadventodossmartphones.

Oquetornaesseobjeto,maisumavez,nãoapenassuportedepráticas,masinstituidor

deações,configuradordeagências,produtordesubjetividades.Éimportantenotar,no

entanto, queo celularnão é considerado comoumaorigemúnica e fundamental da

subjetividade moderna neoliberal. Ela é apenas o catalisador de um processo que,

devidoaumasériedeoutrosprocessos, tensões, jogos, relaçõesdepoderetc., pode

emergir como possível em um determinado momento histórico. O celular não é,

portanto,afontedefinitivadosimpassesdasociedadeneoliberal,maséumaimportante

instânciadealteração,dedesvio,delírio,bifurcação,daspráticasconformadassobo

signodatecnologia.

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FIGURA4—(DAHMER,2016,p.160).

Por fim, na última tirinha por nós selecionada para tratar das relações entre

subjetividade,neoliberalismo, sobo fio condutordanoçãodedispositivo, temosum

diálogo entre pai e filho, em que há, de modo mais incisivo e veemente, uma das

múltiplas formas de compreensão do humano produzida contemporaneamente: a

transformaçãodohumanoemumdadoinformacional.Essanovacompreensãoécada

vez mais relevante devido à crescente massa de informações que os indivíduos

contemporâneosproduzemnãoapenasnasredessociais,masemquaisquerrelações

que tenham com o mundo online. Em uma transação bancária, ou na simples

visualização ou pesquisa de um determinado produto de consumo, no tempo de

permanência em um estabelecimento, uma quantidade cada vez mais ampla de

informações é capturada pelos aparelhos celulares e disposta a um sem-número de

empresas e multiplicadores que as maximizam e monetarizam. O próprio humano

passa,assim,aserequalizadocomasdemaisformasdeinformação,passandoaserum

dadoentreoutrosnomercadodobigdata.

Um caso notório foi o escândalo envolvendo a eleição do ex-presidente dos

Estados Unidos, Donald Trump, e a campanha pela saída do Reino Unido da União

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Europeia, o Brexit, em que uma empresa chamada Cambridge Analytica utilizou de

dadoseperfisdoFacebookparamanipularosufrágio(KAISER,2019;EMPOLI,2019).

Usuários que não tinham um perfil político definido passaram a ter suas timelines

saturadasporvídeosdecampanhaafavordocandidatoedaopçãopelasaídadaUnião

Europeia.OresultadofoiaeleiçãodeTrumpàpresidênciaeasaídadoReinoUnidoda

Confederação Europeia. Esse caso é emblemático sobre como a tecnologia ajudou

decisivamenteaproduzirnovassubjetividadeserelaçõesemumcampoemque,até

então,acreditava-sequeomaisimportanteeramasrelaçõesestabelecidaspornoções

comoliberdadedeexpressão,votolivre,livreparticipação,democraciaetc.

4. CONSIDERAÇÕESFINAIS

As alterações que osmodos de produção e de consumo sofreram ao longo da

históriahumanaprovocam,emconsequência,mudanças tambémnomodoemquea

subjetividade humana se dá: o advento do neoliberalismo, nas últimas décadas,

provocouumareorganizaçãopsíquicadossujeitos,oqueosfrancesesLaval,sociólogo

eDardot,filósofo,emsuaobraAFábricadosujeitoneoliberaldenominaramdeSujeito

Neoliberal. Essanova forma subjetiva surgiu a partir dodispositivoda eficácia e da

eficiência na utilização dos recursos (inclusive recursos humanos), da lógica

empresarial,domodelodeautogestãoempresarial,edetodaumasériedecondiçõesde

emergênciaquelevaramàexistênciadessessujeitos,enãodeoutrosemseulugar.Essa

mudança tem reverberações também nas relações de poder, nos discursos e na

economia.Essenovohomemnoslevaaremontaraquaisprocessosdiscursivosenão

discursivos o constituíram e quais as transformações e modificações ainda estão

ocorrendoaoredordeste.

Ashistóriasemquadrinhossemostramcomoumgêneroquepermitevisualizar

o campo de tensões, lutas, readaptações, retornos, dispersões que atravessam as

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subjetividadesemergentesdasrelaçõesmodernasdeproduçãodeexistência.Pormeio

de poucas tiras e palavras,Dahmer (2016) consegue tratar temas fortes, polêmicos,

angustiantes, com a simplicidade complexa que os desenhos e a arte permitem

congraçar.

REFERÊNCIAS

DAHMER,André.QuadrinhosdosAnos10.SãoPaulo:CiadasLetras,2016.DARDOT,Pierre;LAVAL,Christian.“Afábricadosujeitoneoliberal”.InDARDOT,P.;LAVAL,C.ANovaRazãoDoMundo:EnsaiosSobreASociedadeNeoliberal.Trad.MarianaEchalar.SãoPaulo:Boitempo,2016.p.321-376.DELEUZE,Gilles.“Oqueéumdispositivo?”InDELEUZE,G.DoisRegimesdeLoucos:textoseentrevistas(1975-1995).Trad.GuilhermeIvo.SãoPaulo:Editora34,2016.p.359-369.EMPOLI,Giulianoda.OsEngenheirosdoCaos.Trad.ArnaldoBloch.BeloHorizonte:Vestígio,2019.FOUCAULT,Michel.Microfísica do poder. Trad. e org. RobertoMachado. 3ª ed. Rio de Janeiro/SãoPaulo:Paz&Terra,2010._____.HistóriadaSexualidade:avontadedesaber.Trad.MariaTherezadaCostaAlbuquerqueeJ.A.GuilhonAlbuquerque.RiodeJaneiro/SãoPaulo:Paz&Terra,2014a._____. “O Jogo de Michel Foucault”. InFOUCAULT, M. Ditos & Escritos IX: Genealogia da ética,SubjetividadeeSexualidade.OrganizaçãodeManoelBarrosdaMota.Trad.AbnerChiquieri.RiodeJaneiro:ForenseUniversitária,2014b.p.44-77.HABERMAS,Jürgen.Odiscursofilosóficodamodernidade.Trad.LuizSérgioRepaeRodneiNascimento.SãoPaulo:MartinsFontes,2000.KAISER,Brittany.Manipulados:comoaCambridgeAnalyticaeoFacebookinvadiramaprivacidadedemilhões e botaram a democracia em xeque. Trad. Roberta Karr e Bruno Fiuza. São Paulo: HarperCollins,2019.RABINAW, Paul.; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Trad. Vera PortoCarrero.RiodeJaneiro:ForenseUniversitária,1995.Recebidoem:22/09/2020Aceitoem:29/03/2021

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DESLIZEDESENTIDOERELAÇÕESDEPODEREDEVERDADE:DIZERES

EMALUSÃOAO31DEMARÇODE1964

SLIDEOFMEANINGANDRELATIONSOFPOWERANDTRUTH:SAYINGSIN

ALLUSIONTOMARCH31,1964

MaruanaKássiaTischerSeraglio1

RESUMO: Este artigo analisa efeitos de sentido produzidos pela substituição de comemorar porrememorar no pronunciamento do presidente JairMessias Bolsonaro em 2019, e que se refere àOrdemAlusiva doDia 31 demarço de 1964. As análises têm ancoragem teórico-metodológica naAnálise de Discurso francesa. Os resultados indicam que a troca de palavras produz o efeito desentidodesaudadeedeadmiraçãodoPresidentesobreoperíodo.Ademais,ocorredisputaporumanarrativaqueobtenhaodiscursodaverdadesobreo temaeque,para isso, relaçõesdepodersãomobilizadas.Palavras-chave:ordemalusiva;efeitodesentido;poder;verdade.ABSTRACT: This article analyzes the effect of meaning produced by the replacement ofcommemorating by remembering in the speech of the President Jair Messias Bolsonaro in 2019,whichreferstotheAllusiveOrderofMarch31,1964.Theanalysesareanchoredtheoreticallyandmethodologically in theFrenchDiscourseAnalysis.Theresults indicate that theexchangeof thesewordsproducestheeffectofmeaningofthePresident’slongingandadmirationovertheperiod.Inaddition, there is a dispute for a narrative that obtains the discourse of truth on the subject and,therefore,powerrelationsaremobilized.Keywords:allusiveorder;effectofmeaning;power;truth.

1COMEÇANDOACONVERSA

Discutiroperíodoemqueosmilitaresestiveramnopoderentre1964e1985no

Brasilpodesetornarconflituoso,principalmenteporhaverduasnarrativasprincipais

1Mestranda,UFFS,BolsistaCAPES.

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disputando o status de verdade. Uma dessas narrativas é a de que o país, naquele

período,enfrentavaumaameaçacomunistaquefoieliminadaporintervençãodeum

regimemilitar e que, após o período necessário, devolveu o poder para os civis. A

outranarrativaéadequeocorreuumgolpeparaquedeterminadogrupotomasseo

podernopaís,promovendoodesenvolvimentodeumaditaduramilitarqueviolouem

diversos aspectos os direitos humanos. Por consequência, qualquer discurso que

envolvaumaououtranarrativaabrangemovimentosdeanálise.

O dia 31 demarço de 2019marcou 55 anos do início do período em que os

militares assumiram os maiores cargos políticos no país durante 21 anos. Com a

eleiçãodireta,em2018,deumrepresentantemilitarna funçãomais importanteem

uma democracia, a de presidente, houve questionamentos sobre a possibilidade da

voltadeumperíodomilitardecunhosimilarcomoaoqueocorreuhámaisdecinco

décadas.

Em seu primeiro ano demandato e com quantidade significativa demilitares

ocupandocargosnogoverno,veioàtona,emmeadosdemarçode2019,qualseriao

posicionamento do presidente Jair Messias Bolsonaro na data já mencionada.

Respondendo a isso, o porta-voz da Presidência, Otávio Rêgo Barros, afirmou, dias

antesdadata,queoPresidentenãoconsideravaaqueleperíodocomoumaditadura

militar (defesa da primeira narrativa) e que ele havia autorizado a realização de

comemoraçõesdevidas, incluindoumaOrdemdoDia(ANEXOI,ao finaldeste texto)

quedeveriaserlidanosquartéis.

Contudo,oatodeoPresidentepermitircomemoraçõesemrelaçãoaoperíodo

militar provocou diversas manifestações contrárias por parte da população, órgãos

federais e jurídicos, meios de comunicação em massa e políticos, questionando,

principalmente,acoerênciaemsecomemorarumperíodoemquecivisforampresos,

torturadoseatémortospormilitares (defesada segundanarrativa).Emresposta,o

presidenteBolsonaro,diasantesdadataeemeventoquevisavaacomemoraçãode

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211 anos da Justiça Militar, negou ter determinado a comemoração da data, pois

segundoele“não foicomemorar, foirememorar,reveroqueestáerrado,oqueestá

certoeusarissoparaobemdoBrasilnofuturo.”(BOLSONARO,2019,s/p).

Com base nesse pronunciamento do Presidente e na substituição do termo

comemorar por rememorar, propõe-se um ensaio que analise os efeitos de sentido

produzidos por essa escolha, por meio do conceito de deslize de sentido, pois o

sentidonãoestáligadoàpalavraemsi,àsualiteralidade.Éapartirdatransferência

de sentidos “que elementos significantes passam a se confrontar, de modo que se

revestemdeumsentido”(ORLANDI,2015,p.42).Assim,esteestudotemorientação

teórico-metodológica na Análise de Discurso — doravante AD — ligada à escola

francesa com o autor Michel Foucault. Ademais, a pesquisa faz um movimento

metodológicoconstanteentre teoriaseanálises,apartirdoqueVerliPetri (2013,p.

42)definecomomovimentopendular,poisé“nomovimentodeirevir(dateoriapara

análise e/ou vice-versa) que o pêndulo agita os processos de produção de sentidos

sobre o corpus, movimentando a contemplação que estagnaria o analista e,

consequentemente, o movimento de análise”. Desse modo, a produção de sentidos

sobreomaterialqueseanalisaéestimuladaapartirdessedeslocamento, logo,cada

análise é singular e contempla a incompletude e a contradição que o movimento

constanteprovoca.

Nocampodosestudosdiscursivos, trabalha-secomaseleçãodeumcorpus—

oumaisdoqueum—para focalizarosobjetivosdapesquisa.Assim,os corporade

análisedestapesquisasão:(a)opronunciamentodoPresidentesobreasubstituição

dos termos anteriormentemencionados; e (b) aOrdemdoDia alusiva ao dia 31 de

março de 1964. Após a análise do pronunciamento, são investigadas sequências

discursivas — doravante SD — da Ordem Alusiva, nas quais identifica-se uma

tentativa de fortalecer o posicionamento do Presidente. Assim, propõe-se pensar os

corporaenquantodiscursos,comonosentidoutilizadoporDominiqueMaingueneau

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(2015, p. 36), pois “as pessoas produzem textos para fazer passar umamensagem,

para exprimir ideias e crenças, para explicar algo, para levar outras pessoas a fazer

certascoisasouapensardecertamaneira,eassimpordiante”.Dessemodo,osentido

éconstruídodentrodasfronteirasdodiscurso,masmobilizaelementosexteriores,os

quaisinfluenciamemostram-senodiscurso.

Nessepercursoanalítico,émobilizadooconceitodedeslizedesentido,noqual

os textos se remetem uns aos outros, bem como a disputa pela narrativa e pela

verdade. Por fim, pensa-se as relações de poder envolvidas e que provocaram a

substituição de termos no pronunciamento do Presidente, uma vez que se entende

essasubstituiçãonãocomoumameratrocadetermos,mascomoumaaçãoprovocada

pormovimentosdepoderadvindosdeesferasdasociedadeexigindomudançassobre

otema.Dessaforma,oscorporadapesquisapartemdadeclaraçãodeBolsonarosobre

adataedaOrdemAlusivadoDia,aprovadapeloPresidente.

Com fundamento nos recortes teóricos e metodológicos previamente

apresentados, se objetiva esgotar o objeto de análise a partir da cisão teórico-

metodológica adotada, visto que “ametodologia da Análise de Discurso existe, mas

não para, está em suspenso, em movimento, (de)pendendo como o pêndulo,

relativizandoosolharessobreomesmoobjeto” (PETRI,2013,p.41-42).Ressalta-se

ainda que as investigações realizadas nesta pesquisa acontecem sob um recorte

específico e, portanto, promovem um gesto de leitura sobre o objeto de estudo,

abrindonovasefuturaspossibilidadesdeanálisesparaoutrospesquisadores.

2EFEITOSSOBRECOMEMORAREREMEMORAR

Paraauxiliarnaanálisedosefeitosdesentidoprovocadospelasubstituiçãoda

palavracomemorarporrememorar,buscou-seosentidodeambasemumdicionário.

Essemovimento contribui para que, em seguida, seja contraposto como sentidode

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deslize e, mais adiante, com a seleção de palavras utilizadas na Ordem do Dia,

documentoaprovadopeloPresidente.

DeacordocomEniOrlandi(2015),ametáforaéfundamentalnaAD,poisnessa

áreaametáforanãoévistacomofiguradelinguagem,mascomoumapalavratomada

poroutra.Portanto,ametáforatemaessênciadetransferirsentidos,determinandoa

maneiracomoaspalavrassignificam,caracterizandoodeslizedesentido.

O significado da palavra comemorar corresponde a lembrar de um fato para

festejá-lo. Contudo, é interessante notar que, quando se comemora, geralmente se

comemorasobreoacontecimentoousobreoindivíduopeloqualsesentecarinhoou

admiração, pois, ao se comemorar, se festeja, e festa é sinônimo de alegria, de

felicidade, de celebração. Portanto, comemorar diz respeito a pensar sobre algo (do

passado)queseadmirae/oudequesesentefalta.Comoexemplo,pode-sedizerque

celebraroaniversáriodealguémsignificacomemoraronascimento, fatodopassado

deumindivíduoporquemsesentecarinho.

Jáasegundapalavraaquianalisada,rememorar,correspondeaosentimentode

recordar comnostalgia, escrever ou pensar algo do passadodemaneira terna. Esse

sentido é sutilmente desigual ao sentido de relembrar, que possui significado de

lembrar novamente, trazer novamente à memória, sem a necessidade de haver

ternura nesse movimento de pensar sobre o passado. Isso posto, entende-se que,

quando alguém diz que lembra de onde morava na infância, pode haver ou não

saudadeeboasmemóriasdolocal.Oqueédiferentededizerqueserememoraacasa

dainfância,poisessemovimentodemonstraasaudadeeaternurapelolocalepelas

memóriasdopassado.

Partimosdanoçãofoucaultianasobrediscurso,naqualdiscursoé“umconjunto

deenunciadosqueseapoiaemummesmosistemadeformação”(FOUCAULT,2017,p.

131).Assim,odiscursonãopodeserpensadocomoalgoinéditododizer,mascomo

um discurso que faz parte de uma teia de dizeres, que se repetem e que se

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transformampormeio do interdiscurso e damemória. Com base nisso, os sentidos

podem iralémdaquelesqueestão sendoapresentados,poisos sentidosderivamde

outrassignificações,caracterizandoodeslocamento,odeslizedesentido.

ParaMichelFoucault(2017,p.146),aanálisediscursivatemcomoprincípioa

noçãodeque tudonemsempreéditoeassim, “estudam-seosenunciadosno limite

que os separa do que não está dito, na instância que os faz surgirem à exclusão de

todos os outros”. Ainda de acordo com o autor francês, devemos perguntar como

determinadoenunciadoapareceuenãooutro.Assim, éprecisodescobrironãodito

dentrodessediscurso,ouseja,setrata

[d]ecompreenderoenunciadonaestreitezaesingularidadedesuasituação,dedeterminar as condições de sua existência, de fixar seus limites da formamaisjusta,deestabelecersuascorrelaçõescomosoutrosenunciados,aquepodeestarligado,demonstrarqueoutrasformasdeenunciaçãoexcluem.(FOUCAULT,2017,p.34).

Desse modo, o sentido necessita desse deslize, desse não dito, pois não está

ligadoàpalavraemsi,àsualiteralidade.Éapartirdatransferênciadesentidosqueos

elementos se contrastame se revestemdesentido (ORLANDI,2015).Logo,palavras

iguais podem significar de modos diferentes, porque estão inscritas em formações

discursivasdiferentes.DeacordocomFoucault(2017,p.142),“aformaçãodiscursiva

éosistemaenunciativogeralaoqualobedeceumgrupodeperformancesverbais[...].

Um enunciado pertence a uma formação discursiva como uma frase pertence a um

texto,eumaproposiçãoaumconjuntodedutivo”.Assim,aFDnãoéformadaporum

conjuntoparticulardevocabulário,maspelomodooupelaposiçãoideológicaqueessa

escolha de vocabulário indica, ou seja, que efeitos de sentido essa escolha de

vocabulárioprovoca.Alémdisso,onãoditocontribuiparaodito,poisdealgummodo,

se acrescentam. Sempre há no dito um não dito que se faz necessário. (ORLANDI,

2015).

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Aanálisediscursiva,segundoFoucault(2017,p.34),tratade“estabelecersuas

correlaçõescomosoutrosenunciadosaquepodeestarligado,demostrarqueoutras

formas de enunciação exclui”. Assim, o deslize é visto por Foucault (2017) como

acontecimento que não pode ser esgotado inteiramente, visto que está articulado à

memóriaeaoacontecimento,eporestaramarradoadiscursosanterioreseseguintes.

Pensandonessedeslizedesentido,noqualosentidopodeseroutro,asubstituiçãodo

termocomemorarpor rememorar carrega sentidos similares,pois ambosos termos

fazemreferênciaadeterminadoperíododopassadoadicionandocarinho,admiração,

afeto e saudade. Esse movimento de análise mostra que o sujeito que produz

rememorartemnonãoditoosentidodecomemorar,poisapresentaafetoesaudade

doperíododequefala.Issoposto,opronunciamentodoPresidente,enquantodeslize

desentido,demonstraosentimentoeodesejoocultoem(re)memorarumperíododa

históriadopaís.

Aescolhadostermosexpõeavisãodosujeitosobreoperíodoqueseiniciouem

31demarçode1964.Nessapercepção,oPresidenteacredita ter sidoummomento

que não caracteriza ditadura, mas regime militar, reafirmando seu posicionamento

sobreaprimeiranarrativaeexcluindoasegundaqueenxergaessemesmomomento

como ditadura militar. Foucault (2017, p. 30) afirma que “tudo o que o discurso

formula já se encontra articulado nessemeio-silêncio que lhe é prévio”. Portanto, é

interessante notar que se buscou amenizar os efeitos produzidos pela utilização da

palavracomemorar,utilizandorememorar,masodizeréinscritoemoutrosdizerese,

nodeslize,seretomanovamenteosentidodecomemorar.

3(RE)TOMANDOAORDEMALUSIVA

A AD, de acordo com Foucault (2017), mostra como os diferentes textos se

remetem uns aos outros, pois, entre outros motivos, estão ligados a enunciados

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anteriores e posteriores e, ao mesmo tempo, a situações e a consequências que

provocamalteraçõesnoprópriotexto.Assimposto,opronunciamentodoPresidente

sobreo31demarçopodeservisto comodizer ligadoàOrdemAlusivadoDia,pois

ambos os discursos se remetem ao mesmo acontecimento. Com base nisso, em

seguida, são analisadas duas SD da Ordem Alusiva e que fortalecem o discurso do

Presidente,sendoodocumentotambémaprovadoporele.

Aoretomarseupronunciamentosobreasubstituiçãodotermocomemorarpor

rememorar,oPresidenteafirmaqueomovimentode rememoraraqueleperíododo

passadoénecessáriopara“reveroqueestáerrado,oqueestácertoeusarissoparao

bemdoBrasilnofuturo”(BOLSONARO,2019,s/p).AoobservarmosaSD1,retiradada

OrdemAlusiva,percebemosqueomovimentoderefletirsobreotemaparaauxiliarno

futurodopaís,destacadopeloPresidente,tambéméencontradonodocumento.

SD1— Em 1979, um pacto de pacificação foi configurado na Lei da Anistia eviabilizou a transição para uma democracia que se estabeleceu definitiva eenriquecidacomosaprendizadosdaquelestemposdifíceis.Asliçõesaprendidascom aHistória foram transformadas em ensinamentos para as novas gerações.Como todo processo histórico, o período que se seguiu experimentou avanços.(BRASIL,2019,s/p).

É interessante notar que, no pronunciamento do Presidente, são usados os

termoserradoecerto,jánaOrdemencontra-seotermolições.Existerelaçãoentreos

termos,poisas lições ficamapósoaprendizadodoserrosedosacertosdopassado.

Portanto, as lições, os erros e os acertos são modificados de modo a tornarem-se

ensinamentos para o futuro. Logo, há a presença de um acontecimento carregado

tantodeacertosquantodeerros,masquenãoosesquecererememorá-loscontribuirá

paraqueanaçãotenhaumfuturomaisprósperonasgeraçõesqueestãoporvir.

Comoditonoiníciodestetexto,operíodode21anos,ainiciarem31demarço

de 1964, possui duas narrativas que disputam o status de verdade. A ação do

Presidente, aodeterminara comemoraçãooua rememoraçãodadata, foi entendida

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pormuitoscomodiscursodedefesadaprimeiranarrativa—adequeopaíspassou

porumperíododifícil,emqueasoluçãofoiainstalaçãodeumregimemilitarenãode

uma ditadura, buscando defender a democracia do país. Esse discurso da busca da

verdadeseencontranaOrdemAlusiva,comomostraaSD2.

SD2—O 31 deMarço de 1964 foi um episódio simbólico dessa identificação,dando ensejo ao cumprimento da Constituição Federal de 1946, quando oCongressoNacional,em2deabril,declarouavacânciadocargodePresidentedaRepúblicaerealizou,nodia11,aeleiçãoindiretadoPresidenteCastelloBranco,que tomou posse no dia 15. Enxergar o Brasil daquela época em perspectivahistóricanosofereceaoportunidadedeconstataraverdadee,principalmente,deexercitar o maior ativo humano— a capacidade de aprender. (BRASIL, 2019,s/p).

Ao tratarmos sobre a noção de verdade, precisamos visitar Foucault (2018a)

paraentenderseuposicionamentosobreo tema.Aorealizarumcortemetodológico

—nãoutilizarasnoçõesmobilizadaspelotermoideologia—,oautorpropõeaanálise

darelaçãoentreverdadeepoderenãoentreciênciaeideologia(FOUCAULT,2018a).

Segundooautor,énecessárioentenderoconceitodeverdadecomo“umconjuntode

procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o

funcionamento de enunciados” (FOUCAULT, 2018b, p. 54). Assim, a verdade é o

própriopodereesteocorresobreocorpodossujeitosenãopeloplanodaconsciência.

Com base nesses argumentos, o autor propõe a análise da relação entre verdade e

poder,logo,aprópriaverdadenãoexisteforaousemopoder,elaéoprópriopoder.

Além disso, a partir de seus estudos, Foucault (2014) identifica um

fortalecimento na sociedade por uma vontade de verdade, a começar no século VII,

produzindo uma dicotomia entre discursos verdadeiros e discursos falsos. Essa

vontade passa por campos como o sistema penal, a medicina, a psiquiatria, a

psicologiaeasociologia, fazendocomqueaprópria leisópudesseserautorizadase

embasadaemumdiscursodeverdade.Dessemodo,aoelegeraverdadeeopoder,o

autor gera o desenvolvimento e a análise do funcionamento de um dispositivo, o

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dispositivo da verdade. Isso porque, a ilusão, a alienação ou a ideologia não dizem

respeito à questão política que interessa Foucault (2018b), mas a própria verdade.

Assim, não se investiga o discurso para ultrapassá-lo buscando a verdade, mas se

analisaosprocedimentosdeproduçãodeverdadenointeriordodiscurso.

Com suporte nessa discussão, entende-se que a Ordem Alusiva (re)afirma o

discurso do Presidente como verdade sobre o acontecimento em questão. Foucault

(2014)percebeavontadedeverdadecomosistemadeexclusão.Nessesentido,quem

detém o discurso possui a narrativa e a vontade da verdade, excluindo outros

discursos, desclassificando-os como discursos verdadeiros. A partir disso, a Ordem

Alusiva,por serumdocumentoaprovadopeloPresidente, reforçaoposicionamento

do governante sobre o acontecimento e sobre a substituição da palavra comemorar

porrememorar.Apresenta-se,naOrdem,umdiscursoquedefendeanecessidadede

(re)lembrarcomternuraumperíododopassadoembuscadoestabelecimentodeum

discursodaverdadeedoqualemanapoder,pois,comoafirmaFoucault(2014,p.10),

“o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de

dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nós queremos

apoderar”.

Essa busca pelo discurso da verdade também implica a memória. Após o

pronunciamentodoPresidente,aDefensoriaPúblicadaUniãoalegouqueaordemde

celebraçãodadatasecaracterizavacomoriscodeafrontaàmemóriaeàverdade.Esse

episódio ilustra como o discurso emana poder para conduzir uma narrativa e

estabelecê-lacomoverdade.Foucault(2017,p.33-34)argumentaque,paraentender

como apareceu determinado enunciado e não outro, é preciso “descobrir a palavra

muda murmurante, inesgotável, que anima do interior a voz que escutamos [...]”.

Assim,acomeçarpelopronunciamentodoPresidenteedoporta-vozemrememorar

determinadoperíododahistóriadopaís—promovendotantosdebatesedisputas—

e, em seguida, ao aprovar umdocumento que reafirma seu posicionamento sobre o

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momento,contribui-separaadivulgaçãoeatentativadeestabelecercomoverdadea

narrativa de que aquele momento é importante para aprender e contribuir para o

futuro do país, além de mostrar qual deve ser a verdadeira história divulgada e

acreditadapelapopulação.

4RELAÇÕESDEPODEREPERIGOSDODISCURSO

O discurso do Presidente pode ser visto pelo viés das relações de poder

abordadas por Foucault em A Ordem do Discurso (2014). O autor inicia essa aula

inauguralinformandoquenãogostariadeentrarnaarriscadaordemdodiscurso.De

acordocomele,“aproduçãododiscursoéaomesmotempocontrolada,selecionada,

organizada e redistribuída por certo númerode procedimentos que têmpor função

conjurar seus poderes e perigos.” (FOUCAULT, 2014, p. 08).Dessemodo, é possível

pensarcomoopronunciamentodoPresidente,aosubstituirotermocomemorarpor

rememorar, busca amenizar os impactos de sua declaração, entrando na ordem do

discurso. Quando o porta-voz da presidência informou que Bolsonaro havia

determinadocomemoraçõesdevidassobreadata,alémdaleituradaOrdemAlusiva,

ocorrerammovimentosafavorecontraesseposicionamentodoEstado.

Paramuitos,esseatofoivistocomoperigoso,sendoque,inclusive,adecisãofoi

derrubada pela juíza Ivani Silva da Luz, da 6ª Vara da Justiça Federal do Distrito

Federal. Contudo, essa decisão foi cassada pela desembargadora Maria do Carmo

Cardoso,corregedoradoTribunalRegionalFederalda1ªRegião,liberandoasForças

Armadaspara realizaremoseventosprevistos,provocandodisputadediscursos,de

poderedeverdadesobreoacontecimento.

Todos esses acontecimentos geraram muita polêmica, e acarretaram a

necessidadedeumpronunciamentodoPresidente.Essemovimentoserelacionacom

ainterdiçãoquefazpartedosprocedimentosdeexclusãotrazidosporFoucault(2014,

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p.09),pois“sabe-sebemquenãosetemodireitodedizertudo,quenãosepodefalar

de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de

qualquercoisa”.Afinal, segundooautor,apolíticaéoprincipalespaço,entre tantos

outros,queestálongedesertransparenteouneutro.Essainterdiçãoapresentadapor

Foucault(2014)representaaforçaeopoderquesedesenvolvesobreoPresidente,e

ocasionaanecessidadedesubstituirumtermoespecíficoporoutroparasuavizaros

impactos.Assim,nãoépermitidofalarqualquercoisaemqualquersituação.

Nessesentido,odiscursodoPresidentesobreoperíododoregimeoudogolpe

militarenvolveumaquestãohistóricamalresolvidanoBrasil.Foucault(2014)afirma

quealguémsóentraránaordemdodiscursoaosatisfazercertasexigências,poisnem

todososespaços—oautorintitulacomoregiões—dosdiscursossãotransitáveise

acessíveis. Logo, o Presidente, ao determinar comemorações, se viu frente a essa

ordem, na qual os discursos são controlados e selecionados. Ademais, para poder

entrar nessa ordem, ele modificou sua declaração, que, mesmo assim, a partir do

deslize,sereportaaomesmosentido.

Foucault (2014, p. 25) relata que “o novo não está no do que é dito, mas no

acontecimentoda sua volta”. Trazendo essa reflexãoparao texto, é possível refletir

queopronunciamentodoPresidente,adeterminaçãoemcomemorarourememorar,

nãoéalgonovoparamuitosquartéisbrasileiros,vistoquejásefaziaisso,mesmocom

proibições, como as da presidenteDilmaRousseff durante seumandato. Contudo, o

quesecolocacomonovoéoacontecimentoemvoltadesseepisódioespecífico,pois,

pela primeira vez, desde o fim do regime/ditadura militar, um (ex)militar ocupa o

cargodapresidência.Diantedisso,onovoéoacontecimentoeaspossíveismudanças

quepodemocorrercomasequênciadesseato.

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5CONSIDERAÇÕES

Considerando o objetivo de analisar efeitos de sentido produzidos a partir da

substituição de palavras — comemorar e rememorar — no pronunciamento do

PresidenteBolsonaro, foramabordadas trêsprincipaisconcepçõesquecontribuíram

para entender como as relações de poder e de verdade e deslize de sentido se

encontramnessediscurso.

Pormeiodafundamentaçãonaanálisedesignificadodaspalavrascomemorare

rememorar em conjunto com a noção de deslize de sentido de Foucault (2017),

observou-se que ambas se conectam, uma vez que essas palavras se referem ao

passado com sentido de ternura, saudade e felicidade. Logo, o movimento do

Presidentedesubstituiro termocomemorarporoutro,rememorar,buscousuavizar

os efeitos de sua declaração. Contudo, os sentidos se encontram em redes de

significações,queseinterligam.Portanto,aindaépossívelperceberqueosentidode

umtermodeslizouparaooutro,caracterizandoopontodevistadosujeitoenunciador

sobreoperíodo.

CombasenaidentificaçãoenaanálisededuasSDretiradasdaOrdemAlusiva,

foi possível identificar os sentidos que se amarram e que fortalecem o

pronunciamentodoPresidente.Comotratadonoiníciodestetexto,operíodode1964

até1985possuiduasnarrativasemconflito.OsdizeresdoPresidenteeodocumento

oficial defendem uma narrativa sobre o período, buscando estabelecê-la como a

narrativaverdadeirasobreosfatos,afinal,essediscursoeopoderqueemanadissoé

peloqueseluta(FOUCAULT,2014).

No terceiro movimento de análise, procurou-se entender os mecanismos de

poder envolvidos e quemotivaram o Presidente a tentar suavizar os efeitos de sua

declaração.Aosepronunciarsobreeelegerumanarrativacomoverdade,eleentrou

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emumaordemdodiscurso,que,comoafirmaFoucault(2014),controlaeselecionaos

discursos. Logo, o dizer do Presidente, para entrar nessa ordem, precisou atender

algumas condições e rituais, e pretendeu amenizar a repercussão. Além disso, foi

observadoqueessediscursonãoé algonovo,mas simoacontecimentoa suavolta,

comaeleiçãodeumpresidentemilitar.

Isso posto, bebendodas noções de Foucault (2014, 2017, 2018a, 2018b), este

texto buscoumostrar quemesmo uma aparente simples troca de palavras abrange

questõesmuitocomplexasrelacionadasàdisputaporpodereporverdade.Combase

na AD, entende-se que cada palavra produz significações que se relacionam com o

sujeito de modo muito particular e profundo, mas que são sempre possíveis de se

trazeràsuperfícieparaanálise,reflexãoebuscapormudança.

AGRADECIMENTOS

Opresente trabalho foirealizadocomapoiodaCoordenaçãodeAperfeiçoamentode

PessoaldeNívelSuperior—Brasil(CAPES)—CódigodeFinanciamento001.

REFERÊNCIAS

BOLSONARO, JairMessias. “Bolsonaromuda tom e diz que ideia é rememorar, e não comemorar,golpede1964.”FolhadeSãoPaulo.MatériaescritaporTalitaFernandes.FolhadeSãoPaulo,Brasília,28 demarço de 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/03/bolsonaro-muda-tom-e-diz-que-ideia-e-rememorar-e-nao-comemorar-golpe-de-1964.shtml.Acessoem:13jun.2019.BRASIL.OrdemdoDiaAlusivaao31deMarçode1964.MinistériodaDefesa,2019.Disponívelem:https://www.eb.mil.br/web/noticias/alusivos-e-ordem-do-dia/-/asset_publisher/QKzf8DsobUm1/content/31-de-marco-de-1964-ordem-do-d-1.Acessoem:21mai.2021.

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DICIONÁRIO Informal. Diferença entre Rememorar e Comemorar. 2019. Disponível em:https://www.dicionarioinformal.com.br/diferenca-entre/rememorar/comemorar/. Acesso em: 13jun.2019.FOUCAULT,Michel.Aordemdodiscurso:aulainauguralnoCollègedeFrance,pronunciadaem2dedezembrode1970.Trad.LauraFragadeAlmeidaSampaio. 24ªed.SãoPaulo:EdiçõesLoyola,2014._____. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 8ª ed. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária,2017._____. História da Sexualidade 1: a vontade de saber (1926-1984). Trad. Maria Thereza da CostaAlbuquerqueeJ.A.GuilhonAlbuquerque.7ªed.RiodeJaneiro/SãoPaulo:PazeTerra,2018a._____.Microfísica do Poder. Curso no Cóllege de France (1978). Org., intr,. e rev. técnica RobertoMachado.8ªed.RiodeJaneiro/SãoPaulo:PazeTerra,2018b.MAINGUENAU, Dominique. Discurso e análise do discurso. Trad. Sírio Possenti. 1ª ed. São Paulo:ParábolaEditorial,2015.ORLANDI, Eni P. Análise do Discurso: princípios e procedimentos. 12ª ed. Campinas, SP: PontesEditores,2015.PETRI, Verli. “O funcionamento do movimento pendular próprio às análises discursivas naconstruçãodo‘dispositivoexperimental’daanálisedediscurso.”In_____,V.;DIAS,C.(Orgs.).AnálisedeDiscursoemPerspectiva:teoria,métodoeanálise.SantaMaria:UFSM,2013,p.39-48.Recebidoem:26/11/2021Aceitoem:16/03/2021

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ANEXOI—ORDEMDODIA

MINISTÉRIODADEFESA

OrdemdoDiaAlusivaao31deMarçode1964

Brasília,DF,31demarçode2019

AsForçasArmadasparticipamdahistóriadanossagente,semprealinhadascomassuas legítimas

aspirações.O31deMarçode1964foiumepisódiosimbólicodessa identificação,dandoensejoao

cumprimentodaConstituiçãoFederalde1946,quandooCongressoNacional,em2deabril,declarou

avacânciadocargodePresidentedaRepúblicaerealizou,nodia11,aeleiçãoindiretadoPresidente

CastelloBranco,quetomoupossenodia15.

EnxergaroBrasildaquelaépocaemperspectivahistóricanosofereceaoportunidadedeconstatara

verdadee,principalmente,deexercitaromaiorativohumano—acapacidadedeaprender.

Desdeoiníciodaformaçãodanacionalidade,aindanoperíodocolonial,passandopelosprocessosde

independência, de afirmação da soberania e de consolidação territorial, até a adoção do modelo

republicano, oPaís vivenciou, commaioroumenornível de conflitos, evolução civilizatóriaqueo

trouxeatéoalvorecerdoSéculoXX.

Oiníciodoséculopassadorepresentouparaasociedadebrasileiraodespertarparaosfenômenosda

industrialização,daurbanizaçãoedamodernização,quehaviamproduzidodesequilíbriosdepoder,

notadamentenocontinenteeuropeu.

Comoresultadodoimpactopolítico,econômicoesocial,ahumanidadeseviuenvolvidanaPrimeira

GuerraMundialeassistiuaoavançode ideologias totalitárias, emambososextremosdoespectro

ideológico.Comofacesdeumamesmamoeda,tantoocomunismoquantoonazifascismopassarama

constituirasprincipaisameaçasàliberdadeeàdemocracia.

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Contra esses radicalismos, o povo brasileiro teve que defender a democracia com seus cidadãos

fardados.Em1935,foramdesarticuladososamotinadosdaIntentonaComunista.NaSegundaGuerra

Mundial, foram derrotadas as forças do Eixo, com a participação da Marinha do Brasil, no

patrulhamento do Atlântico Sul e Caribe; do Exército Brasileiro, com a Força Expedicionária

Brasileira,noscamposdebatalhadaItália;edaForçaAéreaBrasileira,noscéuseuropeus.

A geração que empreendeu essa defesa dos ideais de liberdade, com o sacrifício de muitos

brasileiros,voltariaasertestadanopós-guerra.ApolarizaçãoprovocadapelaGuerraFria,entreas

democraciaseoblococomunista,afetoutodasasregiõesdoglobo,provocandoconflitosdenatureza

revolucionárianocontinenteamericano,apartirdadécadade1950.

O31demarçode1964estava inseridonoambientedaGuerraFria,que se refletiapelomundoe

penetravanoPaís.AsfamíliasnoBrasilestavamalarmadasecolocaram-seemmarcha.Diantedeum

cenário de graves convulsões, foi interrompida a escalada em direção ao totalitarismo. As Forças

Armadas,atendendoaoclamordaamplamaioriadapopulaçãoedaimprensabrasileira,assumiram

opapeldeestabilizaçãodaqueleprocesso.

Em1979,umpactodepacificaçãofoiconfiguradonaLeidaAnistiaeviabilizouatransiçãoparauma

democracia que se estabeleceu definitiva e enriquecida com os aprendizados daqueles tempos

difíceis.As liçõesaprendidascomaHistória foramtransformadasemensinamentosparaasnovas

gerações.Comotodoprocessohistórico,operíodoqueseseguiuexperimentouavanços.

As Forças Armadas, como instituições brasileiras, acompanharam essas mudanças. Em estrita

observância ao regramento democrático, vêm mantendo o foco na sua missão constitucional e

subordinadasaopoderconstitucional,comopropósitodemanterapazeaestabilidade,paraqueas

pessoaspossamconstruirsuasvidas.

Cinquenta e cinco anos passados, a Marinha, o Exército e a Aeronáutica reconhecem o papel

desempenhado por aqueles que, ao se depararem com os desafios próprios da época, agiram

conformeosanseiosdaNaçãoBrasileira.Maisqueisso,reafirmamocompromissocomaliberdadee

ademocracia,pelasquaistêmlutadoaolongodaHistória.

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FERNANDOAZEVEDOESILVA

MinistrodeEstadodaDefesa

ILQUESBARBOSAJUNIOR

AlmirantedeEsquadra

ComandantedaMarinha

GenExEDSONLEALPUJOL

ComandantedoExército

TenBrigArANTONIOC.M.BERMUDEZ

ComandantedaAeronáutica

Fonte:MinistériodaDefesa(2019).

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MATTOS,E.Diversidadelinguísticae... 44

DIVERSIDADELINGUÍSTICAEENSINODEINGLÊS:CONSIDERAÇÕES

SOBREOINGLÊSAFRO-AMERICANOEORAPEOHIP-HOP1

LINGUISTICDIVERSITYANDENGLISHLANGUAGETEACHING:REMARKSON

AFRICANAMERICANENGLISHANDRAPANDHIP-HOP

ElisaMattos2

RESUMO: Este trabalho reflete sobre o African American English (AAE) como manifestação dediversidade linguística, associando-o ao rap e aohip-hop. Após retomar fatores externos ecaracterísticasinternasdoAAEetemáticasdorapedohip-hop,salientandoaproximações,otrabalhoposicionaamboscomopossibilidadesdeensinocríticodeinglês,considerandoasletrasdemúsicascomoregistrodeusodoAAEecomoinsumoparaletramentocrítico(MORGAN,2001;ALIM,2007).Palavras-chave:AfricanAmericanEnglish;RapeHip-Hop;EnsinodeInglês.ABSTRACT: This paper reflects upon African American English (AAE) as linguistic diversity,associatingitwithrapandhip-hop.FollowingabriefreviewofAAE’sexternal factorsandinternalfeaturesandrapandhip-hopthemes,byhighlightingpointsofconvergence,thispaperplacesbothaspossibilitiesforcriticalEnglishlanguageteaching,consideringsonglyricsasrecordsofAAEusageandassourcematerialforcriticalliteracy(MORGAN,2001;ALIM,2007).Keywords:AfricanAmericanEnglish;RapandHip-Hop;EnglishLanguageTeaching.

1Hip-hoperapsãocomumenteusadosparasereferiraomesmotipodemúsica,posiçãoadotadanestetrabalho.Noentanto,ressalta-sequeohip-hopéummovimentomusicalecultural,queabrangeorap,fornecendotemasparaasmúsicasderap,frequentementeinspiradasemaspectosdaculturahip-hop(KLATSKIN,2018,p.33).2Doutoranda,UFMG.

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MATTOS,E.Diversidadelinguísticae... 45

1.INTRODUÇÃO

Como toda língua natural, o inglês apresenta diversidade léxico-gramatical,

fonético-fonológicaepragmática-discursiva,organizadanasvariaçõesdiacrônica (ao

longodotempo),diatópica(entreosespaçosgeográficos),diafásica(entreassituações

decomunicação),diastrática(entreosgrupossociais)ediamésica(entreosmeiosde

comunicação). Como resultado de processos sócio-históricos e culturais, essas

variaçõespodemserobservadasna interaçãoentre falantes edevem fazerpartedo

ensinodelínguas,comosugereMarcosBagno(2007).

No ensino de inglês, no entanto, a diversidade linguística tem sido pouco

abordadadeformasistemáticaecrítica3,oquepodeserindicativodeumaformação

docentesuperficial(RAJAGOPALAN,2005)edepolíticaslinguísticashegemônicasque

visam a atender a interesses neoliberais e neocoloniais de grupos economicamente

dominantes, indiretamente se concretizando através de agentes de planejamento

linguísticocomoomaterialdidáticoouareproduçãodediscursosemitosreferentesa

umasupostasuperioridadedoinglêspadrãoamericanooubritânico(SIQUEIRA,2012).

Umapossibilidadeconcretadevalorizaradiversidadelinguísticadoinglês—e

de não perpetuar políticas linguísticas discriminatórias — é rever as bases sócio-

históricasdeusoslinguísticosnãopadrãocomumentemarginalizados.Paraavariedade

afrodescendente do inglês americano, foco deste artigo, esse exame envolve um

processo crítico e decolonizador, já que as realidades que geraram o inglês afro-

americanoestãoancoradasnaexploraçãodeindivíduose/ougruposescravizados,até

hojemarginalizadosprecisamenteporprocessos(neo)coloniais.

3Emestudoexploratório(SÁ,2017),identificamosausênciadediversidadelinguísticanaspráticasdeensinodeinglêsenaformaçãodocentede40professoresentrevistadosemMinasGeraiseSãoPaulo:87,5%ensinamexclusivamenteavarianteamericanapadrão,57,5%dosquaisjustificamtalescolhacombaseemexposiçãoefamiliaridadecomessavariante,30%condicionamaescolhaaomaterialdidáticousadoe55%afirmamnãosesentirempreparadosparaensinarqualqueroutravariante.

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Desse modo, o ensino crítico e decolonizador passa pelo entendimento de

tensões,opressõeseprivilégiosqueserefletemnaspráticasdelíngua(gem).ParaJosé

Romão (2014, p. 53), esse ato de decolonizar não se concretiza na "libertação das

colônias para criar um estado-nação independente, mas sim [em] um processo de

reconhecimento de várias ciências e epistemologias", necessariamente incluindo as

práticas e os conhecimentos de grupos minoritarizados, como os indígenas e

quilombolasnoBrasileoslatinos,afrodescendenteseindígenasnosEstadosUnidos.

Trata-se,portanto,deconhecerelegitimarsaberesepráticashistoricamentedeixadas

àsmargensdasociedadepormeiodeprocessosdeapagamentoedesvalorização.

Paradiscutiradiversidadelinguísticaporumaperspectivacrítica,estetrabalho

seconcentranavariedadeafrodescendentedoinglês,referindo-seaorapeaohip-hop

comoferramentaspossíveisparaoensinodeinglês,considerandosuascaracterísticas

eassociaçõescomessavariedadedareferidalíngua.Napróximaseção,oinglêsafro-

americanoéabordado,edepois,naterceiraseção,orapeohip-hopsãoaprofundados.

Aquarta seção apontaparapossibilidadesdeusodo rapedohip-hop no ensinode

inglês.Porfim,sãotecidasalgumasconsideraçõesacercadotemaaquitratado.

2.OINGLÊSAFRO-AMERICANO

OAfricanAmericanEnglish(AAE)podelevarmuitosnomes,desdeBlackEnglish

aAfrican-AmericanVernacularEnglish(AAVE).SonjaLaneharteAyeshaMalik(2015)

discutem os muitos nomes que essa variedade pode apresentar, elegendo a forma

AfricanAmericanLanguage (AAL)porentenderemqueessetermoengloba"todasas

variaçõesdousolinguísticonascomunidadesafro-americanas,reconhecendoasmuitas

variedadesnotermogenérico”(LANEHART;MALIK,2015,p.03,traduçãonossa)4.No

4Original:"allvariationsoflanguageuseinAfricanAmericancommunities,recognizingthattherearemanyvariationswithintheumbrellaterm."LANEHART;MALIK,2015,p.03).

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presentetrabalho,optou-seporAfricanAmericanEnglish(AAE)5,poisofocoéoensino

de inglês, reconhecendo a diversidade que esse idioma apresenta na história e

atualmente.

Apesardeindicativadostatusdoinglêsafro-americano,anomenclaturadiversa

éapenasapontadoicebergquandosepensaemusoslinguísticos.Paracompreender

melhoressesusos,sejaparafinsdeanáliseoudescriçãolinguísticaouparaoensinode

línguas,épreciso“mergulhar”nacultura-históriadeseusfalantes,buscandoentender

aforçamotrizeosprocessossócio-históricosqueculminaramnasatuaispropriedades

linguísticas de um idioma ou variedade, neste caso o AAE, considerando aspectos

externose internosà língua.Assim,épreciso"tino investigativo"porpartedequem

estudaalíngua,visandoaexaminaressesusoseessaspropriedadesalémdasuperfície.

Pormuitotempo,acreditou-sequeaescravizaçãohaviaapagadotodosostraços

daslínguaseculturasafricanasnofalardosnegrosescravizadoseasdiferençasdeuso

da língua nadamais eram do que "imitações imperfeitas e inadequadas da língua e

culturaeuropeiaseamericanas",segundoGenevaSmitherman(1994,p.04,tradução

nossa)6. Tal crença assimilacionista e etnocêntrica pode explicar o baixo prestígio

tradicionalmenteassociadoaessavariedade,aoposicionarasculturaselínguaanglo-

americanas como superiores, apagando/estigmatizandomanifestações linguísticas e

culturaisquenãoseencaixamnessepadrão.

No entanto, oAAEnão é linguisticamente inferior a qualquer outra variedade

inglesae,demodogeral,traçoslinguístico-culturaisnãosãosimplesmenteapagados,

mastendemaseenraizarpormeiodecontatoe/ouassimilação(THOMASON,2020).

Dessemodo,ecomoqualqueroutralínguanatural,oAAEapresentaregularidadesque

podem ser explicadas por contato linguístico entre línguas africanas faladas por

5Ressalta-sequeoAAEnãoéfaladoexclusivamenteporafro-americanos(ADGERetal.,2007),enemtodososafro-americanosfalamAAE(TICCO,2015).Mufwene(2001)ofereceumadiscussãosobreanomenclatura.6 No original: "imperfect and inadequate imitations of European-American language and culture."(SMITHERMAN,1994,p.04).

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escravizados e/ou variedades do inglês falado pelos colonos anglo-americanos7. A

supostainferioridadedoAAEnadamaisédoqueumconstrutosocialquerefleteuma

visãopreconceituosa,nãoestandorelacionadacomsuascaracterísticascomosistema

linguístico(PULLUM,1999).

Entre os fatores externos de contato linguístico, pode-se verificar que o AAE

tambémfoiinfluenciadopelocontextoeporinteraçõesdos/entreosescravizadosno

ambienteondepassaramacoexistir forçadamente, impactadoporquestõescomo"o

tamanho da plantação, a variedade de contatos dos escravos com os brancos, sua

ocupação, suaautoimagem,aorigemgeográficadoscolonoseuropeusetc." (EWERS,

1995, p. 02, tradução nossa)8 nos séculos XVII e XVIII, principalmente nas atuais

Carolina do Sul e Geórgia (MUFWENE, 2001). Segundo SalikokoMufwene (2001), a

quantidade de negros escravizados, compondo a maioria da população de várias

colônias do Sul, é mais um fator de influência, além da fase pré-segregação entre

brancosenegros,noséculoXVII.

2.1Característicaslexicais

O léxicodoAAEorganiza-seemdoisgrandesgrupos: i) expressõesepalavras

usadasporfalantesdetodasasfaixasetárias;eii)expressõesepalavrasprivilegiadas

porumafaixaetáriaespecífica,geralmenteadolescentesejovensadultos,comogírias

7 Duas hipóteses buscam explicar a gênese do AAE: a) trata-se de um crioulo norte-americanodesenvolvidoporescravos,queseespalhoupelascolôniaseáreasdeexploração(RICKFORD,2015)eb) refere-se a um dialeto inglês derivado da "fala dos brancos do sul [dos EUA] e de variedadeslinguísticasbritânicas"(EWERS,1995,p.01).AperspectivacrioulatemsidodefendidaporJoeyDillard(1972),JohnRickford(2015),Smitherman(1977,2000),JoahnRickfordeRussellRickford(2000)eTraceyWeldon (2003).Aperspectivadialetal é sustentadaporWilliamLabovetal. (1968),EdgarSchneider(2015),ShanaPoplack(2000)eShanaPoplackeSaliTagliamonte(2001).Ressalta-se,noentanto,queessasabordagenspodemsecomplementar,comoobservamRickford(2015)eGerardVanHerk(2015).8Nooriginal:"thesizeoftheplantation,theslaves'rangeofcontactwithwhites,theiroccupation,theirself-image,thegeographicaloriginoftheEuropeancolonistsetc."(EWERS,1995,p.02).

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associadas à cultura popular (RICKFORD; RICKFORD, 2000; GREEN, 2002). Sobre o

primeirogrupo,JohnRickfordeRussellRickford(2000)explicamque"muitasdessas

palavras historicamente ‘negras’ referem-se a aspectos únicos da experiência negra,

incluindoatributosfísicos,distinçõessociaisepráticasculturaisetradiçõesdosafro-

americanos"(RICKFORD;RICKFORD,2000,p.94,traduçãonossa)9.

Um exemplo é a palavra ashy, que se refere à aparência esbranquiçada ou

acinzentadadapeledevidoàexposiçãoaoventoe/ouaofrio,eémaisevidenteemafro-

americanosdevidoàpigmentaçãomaisescuradapeledaspessoasnegras,comocitado

emSmitherman(1994).DeacordocomRickfordeRickford(2000)eLisaGreen(2002),

essaacepçãonãoéconhecidaforadoscírculos interacionaisafro-americanoseatéo

iníciodoséculoXXIessesentidodotermoaindanãohaviasidodicionarizado10.

Uma das principais características lexicais do AAE é o uso diferenciado de

palavrasjáexistentesnoinglês,istoé,oAAEsubvertepropriedadessemânticaspara

darnovossentidosaitenslexicaisdalínguainglesa(GREEN,2002).Ademais,oAAE,

especialmente nas letras de rap e hip-hop, é empregado como uma força criativa,

extremamente suscetível a inovações (MORGAN, 2001). A palavra haterade, por

exemplo,éumamescladeGatoradecomoitemlexicalhate,usadaemHere,getsome

haterade,getyathirstquenched,namúsicaChun-Li,deNickiMinaj(MARAJ,2018),ejá

seencontradicionarizada.

2.2Característicasmorfossintáticas

Em relação a aspectos sintático-morfológicos, o AAE apresenta regularidades

como a chamada zero copula, ou a ausência do verbo be após pronomes

9Original:"manyofthesehistorically‘black’wordsrefertouniqueaspectsoftheblackexperience,includingthephysicalattributes,socialdistinctions,andculturalpracticesandtraditionsofAfricanAmericans."(RICKFORD;RICKFORD,2000,p.94).10Atéadatadesubmissãodopresentetrabalho,apenasodicionárioCambridgeonlinelistavaessaacepçãodotermo.

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pessoais/sintagmasnominaisnopresente,comoem(1),(2)e(3),aseguir,indicadapor

∅,alémdanãoconcordânciaverbo-nominaldopresentebe (PULLUM,1999;GREEN,

2002),comonoexemplo(4),emnegrito.Apesardecontroversa,aausênciadebenãoé

meroacaso,assimcomonãoéilógicaafaltadeconcordância.Hávárioselementosque

condicionamanãorealizaçãoouanãoconcordânciadebeemAAE,entreelesrestrições

fonológicas(LABOVetal.,1968),afunçãoeotipodopronomeeocontextoimediato

(EWERS,1995).

(1)Somewan'playyoungLaurynlikeshe∅dumb(Lostones,LaurynHill)(HILL,

1998);

(2) You∅ just a Black man in this world (This is America, Childish Gambino)

(GLOVER,2018);

(3)Oh,Igetit,huh,they∅paintin'meouttobethebadguy(Chun-Li,NickiMinaj)

(MARAJ,2018);

(4)Wewaspoorerthantheotherlittlekids…Youjustworkingwiththescrapsyou

wasgiven(DearMama,TupacShakur)(SHAKUR,1994).

Adicionalmente, o AAE apresenta particularidades no uso de marcadores de

tempoeaspecto.Porexemplo,done,"queenfatizaacompletudedeumaaçãoe/ousua

relevânciaparaopresente"(RICKFORD;RICKFORD,2000,p.120, traduçãonossa)11,

umdosmarcadoresmaisconhecidosnoAAE,funcionadeformasimilaraosauxiliares

have/has,comovistoem(5).Note-se,noentanto,quedonenãoocorreemnegativas,ao

contráriodehave/has,eRickfordeRickford(2000)explicamqueosefeitosdesentido

associados a done diferenciam-se daqueles de have/has;done parece indicar

intensidade,segundoosautores.

11Nooriginal:"[Done,]whichemphasizesthecompletednatureofanaction,and/oritsrelevancetothepresent."(RICKFORD;RICKFORD,2000,p.120).

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(5) I done put a hundred bands on Zimmerman, shit(The Box, Roddy Ricch)

(MOOREJR.,2020).

OAAEtambémfazusodoverbobeemformainvarianteparaindicarqueuma

açãoéhabitual(6)eintensificabeen,soletradoBIN,parasereferiraumaaçãoiniciada

eaindaemandamento(RICKFORD;RICKFORD,2000).Beentambéméusadodeforma

semelhanteahave/hasbeen.OutrapropriedadedoAAEéaausênciadeconcordância

morfossintática na realização verbal da terceira pessoa do singular (7), e o uso

recorrentedeain’tparasubstituirbe+not,have+notedid+not(WOLFRAM;SCHILLING-

ESTES,2001),indicadoem(8).

(6)Buthomicidebelookingatyoufromthefacedown(Alright,KendrickLamar)

(DUCKWORTH,2015);

(7)Myemancipationdon'tfityourequation(Lostones,LaurynHill)(HILL,1998);

(8)Weain'tgotnotimetowaste(LOVE,KendrickLamar)(DUCKWORTH,2017);

(9)Iwon’tneversellmysoul,andIcanbackthat(TheBox,RoddyRicch)(MOORE

JR.,2020).

Como Gerard Van Herk (2015) explica, o inglês americano padrão tem sido

equivocadamente usado como ponto de comparação para o AAE. A comparação é

entendida comoequivocadaporqueoAAEretevepropriedades compartilhadas com

outras variedades da língua inglesa, as quais não eram consideradas não padrãona

época/local de uso, segundo o autor. Como exemplo, temos a dupla negação. Hoje

demonizada,essaestruturaerarecorrentenoinglêsdosséculosXVIIeXVIII12efoino

12Comoexplica IngridvanOstade(1982,p.279),oséculoXVIII trouxeuma fortenecessidadedepadronizaroinglêse"asregraserammuitasvezesconstruídascombasenarazão,poisentendia-se

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finaldoséculoXVIIIquecomeçouaserquestionada,combaseemprincípiosdalógica

e damatemática, nas iniciativasdepadronizaçãodo inglêsmoderno.O exemplo (9)

apresentadoacimailustraaduplanegaçãoemumamúsicaderapehip-hop.

2.3Característicasfonético-fonológicas

Noquedizrespeitoaosaspectosfonético-fonológicosdoAAE,praticamentetodas

aspalavrasqueapresentamduassílabase terminamnosufixo–er sãovocalizadase

soletradas–a,–uh,ou–ah,comoembrothahparabrother(MORGAN,2001).Deacordo

comGunnelTottie(2002),noAAEasprimeirassílabasnãotônicastendemanãoser

realizadas,comoindicadoem(10)e(11),emdestaque,e/r/nãoépronunciadonofinal

depalavras(car=/ka/),entrevogais(sure=/ʃɜ:/)eantesdegruposdeconsoantes

(dark=/dak/).

(10)Weain'teven'posedtobehere(NiggasinParis,Jay-ZeKanyeWest)(WEST;

CARTER,2011);

(11)Skinsprotected'gainsttheozonelayers(FearofaBlackPlanet,PublicEnemy)

(RIDENHOUR,1990).

Adicionalmente,avelarfinal/ng/podesetransformaremalveolar/n/eosfinais

–ing e –ink frequentemente viram –ang e –ank (TOTTIE, 2002). O fonema /ð/ é

realizadocomo[d]quandoemposiçãoinicial,fazendothisserpronunciadodis,oucomo

[v]emposiçãointervocálica(brotherépronunciado/bəvə/)emAAE(TOTTIE,2002).O

fonema/θ/transforma-seem[f]eo/l/finalé frequentementeapagado,mesmoem

quetudodeveriaserlogicamenteexplicadoejustificado."Aduplanegação,atéentãonãoentendidacomoincorreta,passouaservistacomoerro.

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formascontraídas,oquelevaapronúnciadetoldaserrealizadacomotoe,porexemplo,

eI’lldoitcomo"aduit”(TOTTIE,2002).

A compreensão de questões sociolinguísticas como as discutidas nesta seção

deveriafazerpartedaformaçãodocentepermanente.Essasinformaçõesserviriampara

explicaremsaladeaulaqueoqueseentendecomolinguisticamentecorreto/incorreto

podevariarcomotempoetemmotivaçõesextra-linguísticas.Alémdisso,comoexplica

Pullum (1999), o AAE apresenta regularidades linguísticas e os supostos usos não

padrãoseguemregrasdessavariedadequeestãocondicionadasarestriçõeslinguísticas

eapresentamcaracterísticasinternasidentificadasemoutrossistemaslinguísticos.

3.RAPEHIP-HOP

Datados do final dos anos 1970 e início dos anos 1980 e primeiramente

concebidoscomomovimentocultural,orapeohip-hop foramcriadoseinicialmente

consumidospelasenascomunidadesafrodescendentesemgrandescentrosurbanos

norte-americanos,comorespostadajuventudepara"aideologiapolíticadaeraReagan-

Busheoabandonosistemáticodasociedadeeeducaçãodascomunidadesurbanasnos

EUA”(MORGAN,2001,p.187),comfoconousodeAAE.ComoexplicaMatthewFeldman

(2002),oAAEtambémpodeserencaradocomomeiodeexpressãoeregistroartístico-

cultural, jáqueasletrasdasmúsicasfuncionamigualmentecomoregistrodeuso,de

acordocomSamyAlim(2007).

Alémdoaltograude liberdade linguísticaparacriarassociaçõesdepalavrase

rimas,orapeohip-hoptêmcomoprincipaistemasquestõescotidianas.SegundoTricia

Rose(1994,p.02),asprincipaistemáticasdorapehip-hopmasculinovoltam-separao

jovem afrodescendente em busca de status social em sua comunidade, sobre como

evitarapressãodasgangueslocaiseganharrespeito,sobre"comolidarcomaperdade

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amigos em tiroteios e overdoses, além de histórias grandiosas e às vezes violentas

alimentadaspelopodersexualmasculinosobreasmulheres".

As temáticas femininas, por sua vez, voltam-se para a jovem afrodescendente

"cética quanto às investidas românticas dos homens, a perspectiva de uma garota

envolvidacomumtraficantededrogas,quenãoconseguesedesvencilhardesseestilo

de vida perigoso" (ROSE, 1994, p. 02-03, tradução nossa)13. Alguns raps falam do

fracassomasculinoemoferecersegurançaàsmulherese"atacamoshomensondesua

masculinidadeparecemaisvulnerável:obolso"(p.03,traduçãonossa)14.Outrosraps

referem-seahistóriasdeirmãs/amigasmotivandomulheresparaselivraremdoabuso

deseusparceiros.

Ochamadoconsciousrapoupoliticalhip-hop,porsuavez,ganhounotoriedade

nas últimas três décadas, abordando temas como feminismo, nacionalismo negro e

afrocentrismo.Ofeminismoéumpontodedestaque,dadoohistóricodemisoginiado

rappormeiodeletrasquevitimizame/ouobjetificammulheresnegras,evidenciando

práticasmachistas,especificamentenogangstarap(ADAMS;FULLER,2006,p.940).O

afrocentrismo,porsuavez,ganhaênfaseemletrascomoFormation,deBeyoncé(12),

visandoàrepresentaçãoeaoempoderamento,erespondendoacomentáriosracistas

sobreaaparênciadesuafilha.

(12) I likemy baby heirwithbaby hair and afros / I likemynegro nosewith

JacksonFivenostrils(Formation,Beyoncé)(KNOWLES,2016).

Comosepodenotar,orapeohip-hopestãoprofundamente ligadosàhistória,

cultura e língua afro-americanas e essa pode ser uma razão pela qual o AAE é

comumente utilizado nas músicas. O chamado "black speech”, segundo Stephen

13Original:“skepticalofmaleprotestationsofloveoragirlwhohasbeeninvolvedwithadrugdealerandcannotseverherselffromhisdangerouslife-style.”(ROSE,1994,p.02-03).14Original“attackmenwheretheirmanhoodseemsmostvulnerable:thepocket.”(ROSE,1994,p.03).

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Henderson (1973, p. 87), é usado de forma consciente, estratégica, pois os artistas

"sabem que os negros [...] não falam como os brancos [...] há uma complexa e rica

herançalinguística,poderosaesutil”,quedialogacomahistóriadeseusfalantes.

4.POSSIBILIDADESDEENSINOCRÍTICODEINGLÊS

Linguisticamente,háumasériedeaproximaçõesentreoAAEeorapeohip-hop

na literatura especializada. Como vimos na seção 2, as características lexicais,

morfossintáticasefonético-fonológicasdoAAEpodemserabordadasemsaladeaula

pormeio das letras de raps emúsicas dehip-hop, contrastando essas propriedades

linguísticascomaquelasdevariedadesoutras,deformanãoprescritiva,ouatravésda

identificação/descriçãodeusosespecíficos aoAAE,buscandomapear regularidades.

Em última análise, o objetivo desse tipo de exercício é melhor compreender a

diversidadelinguísticadoinglês.

SegundoMarcylienaMorgan(2001),aideologialinguísticadorapedohip-hop

apresentacomoprincipaiseixosaênfasenoAAE,comfoconofalarregionaldasclasses

trabalhadoras, além do caos lexical, em que princípios básicos da língua(gem) são

exploradosesubvertidosparacriarsignificadosepadrõesdeusonovos,colocandoem

destaqueanaturezaideológicadasescolhaslinguísticas.Apalavrabama,porexemplo

(13),usadaparase referira ‘caipiras’daszonas ruraisdosuldosEstadosUnidos,é

específica do AAE, devendo ser contextualizada no ensino, para públicos que a

desconhecem.

(13)MydaddyAlabama,MommaLouisiana/YoumixthatnegrowiththatCreole

makeaTexasbama(Formation,Beyoncé)(KNOWLES,2016).

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Comoobservadonaseçãoanterior,ostemasdasmúsicasdiscutemasrealidades

dosafro-americanos,comletrasquefalam"areal",semenfeites.SegundoLeslieAshe

WalterEdwards(2004,p.166),a franquezadasletrasé"ummantranacomunidade

afro-americananegra,naclassetrabalhadora",tantonatemáticaquantonasescolhas

linguísticasdasmúsicas.Oconsciousrap,emespecífico,oferececríticascontundentesa

problemasenfrentadospelapopulaçãonegra,evidenciandoaltaconscientizaçãosocial,

como em (14) e (15), em que a violência urbana e o encarceramento maciço da

juventude negra masculina são abordados, com o AAE sendo usado como meio de

expressãoartístico-cultural.

(14)See,onceuponatimeinsidetheNickersonGardenprojects/Theobjectwas

toprocessanddigestpoverty'sdialect/Adaptationinevitable:gunviolence,crackspot

/Federalpolicies raidbuildingsanddrugprofessionals (Duckworth,KendrickLamar)

(DUCKWORTH,2017);

(15)Power-liftthepowerlessupoutofthistoweringinferno/Myinksohotitburn

throughthejournal/Hip-Hoppassedallyourtallsocialhurdles/Likethenationwide

projects-prison-industrycomplex(Mathematics,YasiinBey[MosDef])(BEY,1999).

Assim,músicascomoGlory,deCommon(LYNN;LEGEND,2014),Mathematics,de

YasiinBey(BEY,1999)eFearofaBlackPlanet,dePublicEnemy(RIDENHOUR,1990),

entre outras, podem ser usadas no ensino de inglês como textos-base para discutir

questõeseeventossócio-históricosrelevantesapósumtrabalhodedesenvolvimento

de habilidades de leitura, oferecendo possibilidades de reflexão crítica pós-leitura.

Nesse sentido, o rap e o hip-hop criam pontes entre interesses e objetivos de

aprendizado como alternativa para desenvolver o letramento crítico e habilidades

acadêmicas,"cidadania,autoestimaeoutrashabilidadestransferíveis”,comosugerem

NatTurnereTysonRose(2015,p.603-604).

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Aindaemrelaçãoaodesenvolvimentodehabilidadesdeleitura,deacordocom

CrystalBelle(2016),orapeohip-hopajudamnoaprimoramentolexicalpormeiodo

AAE, e oferecem ao professor insumos autênticos para a compreensão e prática

narrativa, emque elementos como enredo, voz do narrador, espaço etc., podem ser

analisados.Essetipodeexercício,segundoaautora,écapazdelevarosalunosauma

melhorcompreensãotextualeliterária,seconsiderarmosquemúsicasderapehip-hop

estruturam-senanarrativamusical(KLATSKIN,2018),especialmenteoconsciousrap.

Alémdetrabalharatextualidadeeacompreensãoleitora,asnarrativasdemúsicasde

rap e hip-hop, imbuídas de conscientização política, certamente funcionarão como

inspiração para a produção escrita em língua inglesa, incentivando os alunos a

narraremsuasprópriashistórias(BELLE,2016).

Alémdeutilizarasletrascomoinsumoparaoensinocríticodeinglês,épossível

usarosvídeosdasmúsicasparacontextualizare/ouilustrartemasecríticaslevantados

nasletras,enfatizandoarelaçãosimbióticaentreoAAEeaidentidadeerealidadeafro-

americanas. Por exemplo, nos vídeos musicais15 Formation, de Beyoncé, e This is

America,deChildishGambino,temascomooorgulhoeaidentidadenegraecríticasa

acontecimentos que afetammais a população negra nos Estados Unidos (o furacão

Katrina em Formation e a violência policial em This is America) são apresentados

visualmente,acompanhandoasletras.

5.CONSIDERAÇÕESFINAIS

A diversidade linguística da língua inglesa (por exemplo, variação diatópica e

diastrática) tem raízes históricas profundas, em grande parte ligadas a políticas de

15Porrestriçõesdedireitosautorais,nãoépossívelreproduzirnestetrabalhoascenasdosclipesdessasmúsicas. Assim, remeto o leitor aos vídeos oficiais, que se encontram disponibilizados emhttps://www.youtube.com/watch?v=WDZJPJV__bQ&ab_channel=Beyonc%C3%A9VEVO e emhttps://www.youtube.com/watch?v=VYOjWnS4cMY&ab_channel=ChildishGambinoVEVO.

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discriminação e exploração de grupos minoritarizados (RAJAGOPALAN, 2005), que,

infelizmente, ainda estão vivas nas sociedades pós-modernas demodo geral. Como

parte integral das sociedades, a educação não está alheia a essas políticas

discriminantes. Ao contrário, é muitas vezes por meio dela que as políticas se

concretizam ou se mantêm vivas. O professor de línguas, como um estudioso da

língua(gem),podeedevequestionararbitrariedadesediscriminaçõesemseuobjetode

ensino(BAGNO,2007).

Noensinodeinglês,políticaslinguísticasdegruposdominantescumpremesse

papel de discriminação tambémpormeio da artificialização e do "amaciamento” da

realidade, criando um mundo "plastificado” (SIQUEIRA, 2012, p. 319), com a

diversidadelinguísticareduzidaamerasdiferençasfonético-fonológicase/oulexicais

entreasvariantespadrãoamericanaebritânica.Essamaneirarasaereducionistade

encararadiversidadenãoaconteceporacasoe,entreoutrasrazões,elaservecomo

forma de deslegitimar ou apagar usos linguísticos outros. Um desses usos, como

argumentadonestetrabalho,éoinglêsamericanoafrodescendente.

Muitolongedeserumasimplesgíriaouinglês"quebrado",oAAEéumavariedade

linguísticaderesistênciaecomunhãocultural(SMITHERMAN,1997),quesemanifesta

e se renova em diversos espaços, entre eles o rap e o hip-hop, e que apresenta

regularidades como qualquer outra língua natural. É dessemodo que o inglês afro-

americanoéabordadonopresentetrabalho:comoumavariedadelinguísticalegítima,

cujasregularidadesrefletemprofundasmarcassócio-históricasquenãodeveriamser

apagadasouignoradasemqualquertratamentolinguístico/educacional.Aocontrário,

deveriamsercontextualizadastantonopresentequantoemrelaçãoasuasorigens.

Nessesentido,abordaroAAEpormeiodamúsicaétambémumaformade"fazer

comqueaspessoasnegrasconscientementecelebremasinovaçõesdeseusancestrais

no inglês — a evidência viva de um encontro africano com uma sociedade

linguisticamentehostil noNovoMundo”, conformeargumentamRickfordeRickford

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MATTOS,E.Diversidadelinguísticae... 59

(2000, p. 75, tradução nossa, itálico no original)16: uma experiência certamente tão

significativa"quantofazercomqueaspessoasnegrasenfrentemolegadodaprópria

escravidão" (idem, tradução nossa)17. Essa abordagem pode ganhar contornos

interdisciplinares,comasmúsicasutilizadastambémnoensinodeoutrasdisciplinas,

emassociaçãocomoinglês.

Um ensino de línguas verdadeiramente crítico pressupõe uma análise (mais)

criteriosaequestionadoradoqueseensina,edequaisvozessãoouvidasesilenciadas

nesse percurso, considerando desde os materiais didáticos até as variedades

linguísticasprivilegiadas,ignoradasourechaçadasnoensinodeidiomas.Espera-seque

asconsideraçõesdiscorridasnopresentetrabalhosejammaisumpassoemdireçãoa

uma formação docentemais crítica e reflexiva, que contemple e busque entender a

diversidade linguística, de modo geral, e a história-cultura por trás do inglês afro-

americano,especificamente.

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MATTOS,E.Diversidadelinguísticae... 60

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MATTOS,E.Diversidadelinguísticae... 62

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ESTUDOSLITERÁRIOS

LITERARYSTUDIES

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SANTOS,N.S.deO.dos;SANTOS,R.C.Z..AReterritorializaçãodo... 64

ARETERRITORIALIZAÇÃODOSUJEITOEMOINVASOR,DEMARÇAL

AQUINO

THERETERRITORIALISATIONOFTHESUBJECTINOINVASOR,BY

MARÇALAQUINO

NatáliaSaffirydeOliveiradosSantos1

RosanaCristinaZanelattoSantos2

RESUMO: Este trabalho visa a investigar o processo de desterritorialização de sujeitosmarginalizados,bemcomoosefeitosda reterritorializaçãodaviolênciadiantedasmovimentaçõesespaciais ou simbólicas,manifestas e causadas pormeio das ações desses sujeitos, tomando paraanáliseanovelaOInvasor,deMarçalAquino(2011).UtilizamoscomosuporteteóricoasproposiçõesdeGillesDeleuzeeFélixGuattari(2014;2010;1995)sobreorizoma,soboaspectodamultiplicidadeeaplicadosaosprocessosdedesterritorializaçãoedereterritorialização.Alémdisso,sãousadososapontamentosdeRogérioHaesbaert (2006)sobreosmesmos temase comoesses transcorremnaconstituiçãodeobjetosartísticos,especialmentenaliteraturabrasileiracontemporânea.Palavras-chave: literatura brasileira contemporânea; violência; desterritorialização;reterritorialização;MarçalAquino.ABSTRACT: This paper aims to investigate the process of deterritorialisation of marginalisedsubjects, as well as the effects of the reterritorialisation of violence concerning spatial/symbolicmovements,whosemanifestationsandcausesarerelatedtotheactionsofthesubjects,basedonthenovelOInvasor,byMarçalAquino(2011).Astheoreticalsupport,thepropositionsofGillesDeleuzeand Félix Guattari (2014; 2010; 1995) on the rhizome are used — considering the aspect ofmultiplicity — and applied to the processes of deterritorialisation and reterritorialisation.Furthermore,thenotesofRogérioHaesbaert(2006)onthesamethemesarealsoconsidered,astohowtheytakeplaceinartisticcreation,especiallyincontemporaryBrazilianliterature.Keywords:contemporaryBrazilianliterature;violence;deterritorialization;MarçalAquino.

1Graduanda,UFMS.BolsistadeIniciaçãoCientífica/UFMS.2UFMS.PQ—CNPq.

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1.INTRODUÇÃO

Nestetexto,tomaremoscomocontemporâneaaliteraturaproduzidanoBrasila

partir do início da ditadura militar. Devido à censura imposta pelo regime militar

brasileiro a partir de 1964, os anos subsequentes tornaram-se palco para uma

produçãoque se aproximavada literatura-reportagemeque, talveznas entrelinhas,

buscasserepresentaroqueeravetadonarealidadeempírica.DeacordocomMalcolm

Silverman(2000),aliteraturatorna-semais“jornalística”apósogolpemilitarde1964

ebuscacomunicaradurarealidadequeporanosfoiabafadapelarepressãopolíticada

época.Entretanto,essa"vontade"decomunicaroqueeracensuradonãocorresponde

a uma possível formatação do pensamento popular e, sim, a uma tentativa de

representação, pormeio da ficção, dasmazelas, das injúrias e das violências contra

grupos dissidentes. Esse panorama colaborou para a volta de tendências como: a

ficção regional, a sondagem das relações familiares, a prosa marcada por uma

sexualidade exacerbada e a permanência do realismo, intensificado até atingir um

estilo"brutalista",conformeexpressãodeAlfredoBosinoqueserefereàliteraturade

RubemFonseca,entreoutrosescritoresbrasileiroscontemporâneos.

Silverman (2000) refere-se aos tipos de romances que permearam esse

momento histórico no Brasil. Diante da perspectiva adotada nesta pesquisa e dos

rumos que esta discussão tomará, é válido destacar o romance de massificação, o

romance de costumes urbanos e o romance realista-político. O romance de

massificação procurou representar as causas e principalmente os efeitos do

movimento migratório das zonas rurais para os grandes centros urbanos. Essa

produção ficcional fez notar que, pela falta de infraestrutura e investimentos, os

grandescentrosurbanosbrasileirostornaram-seáreasmetropolitanascommilhares

de famintos, onde a miséria gerou a violência, o crime, a frustração e a morte. O

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romancedecostumesurbanos focounasituaçãodosujeitocomovítimamassificada

pela máquina socioeconômica, expressando temas como as angústias pessoais e a

violênciaencarnadapelaspersonagens.Jáoromancerealista-político,trata-sedaquele

que,alémdeabordar temasdecunhosocial,ocorreunoperíodopós-golpede1964,

possuindo um estilo fragmentado como o trauma que se abateu sobre a sociedade

brasileira.

SegundoAntonioCandido(1989,p.211),a literaturabrasileiradoséculoXXé

uma “literatura do contra” e possui temas como “[...] guerrilha, criminalidade solta,

superpopulação, migração para as cidades, quebra do ritmo estabelecido de vida,

marginalidadeeconômicaesocial”.Essestemasilustramavoltadeumrealismoque,

diferentementedaqueleque floresceunoséculoXIX,dizsobreassuntosreferentesa

grupos sociais que anteriormente não erammencionados como protagonistas ou/e

não possuíam relevância nas tramas/textos literários. Para Candido (1989, p. 208-

209), esse ingrediente trouxe ao texto literário a quebra de fronteiras e teve como

resultadooaparecimentode"textosindefiníveis".

Nãosetratamaisdecoexistênciapacíficadasdiversasmodalidadesderomanceeconto, mas do desdobramento destes gêneros, que na verdade deixam de sergêneros,incorporandotécnicaselinguagensnuncadantesimaginadasdentrodesuas fronteiras. Resultam textos indefiníveis: romances que mais parecemreportagens;contosquenãosedistinguemdepoemasoucrônicas,semeadosdesinais e fotomontagens; autobiografias com tonalidade e técnica de romance;narrativasquesãocenasdeteatro;textosfeitoscomajustaposiçãoderecortes,documentos,lembranças,reflexõesdetodaasorte.Aficçãorecebenacarnemaissensível o impactodoboom jornalísticomoderno, do espantoso incrementoderevistas e pequenos semanários, da propaganda, da televisão, das vanguardaspoéticas que atuam desde o fim dos anos 50, sobretudo o concretismo, stormcenterqueabalouhábitosmentais,inclusiveporqueseapoiouemreflexãoteóricaexigente.(CANDIDO,1989,p.208-209).

Sobre esta mudança, podemos ressaltar duas forças importantes para o seu

desenvolvimento: a globalização, na sua face de expansão tecnológica, e a

incorporaçãodeassuntosreferentesàculturademassapela literatura.Emrelaçãoà

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primeira, o bombardeio dos novos meios de comunicação exerce um papel

significativonaproduçãoliteráriaenoprocessocriativodosescritores,quevivemem

meio a uma pluralidade que acaba implicando em uma crescente fragmentação e

desintegração formal da escrita. A incorporação dos novos códigos de comunicação

trouxe umamodificação significativa nosmodos de escrever. Em relação à segunda

força,a introduçãode temascarosàculturademassacontribuiparaaaproximação

entreaficçãoearealidadeempírica,alémdeaproximarsujeitospostosàmargemdo

centro/do protagonismo. Isso cria novas demandas para o escritor, amplia a

abrangênciadotextoliterárioedifundenovasexpectativasnoleitor.

O advento da tecnologia, segundo Francisco Gomes (2015), expôs aindamais

essa aproximação, pois com leitores mais integrados neste mundo digital tem-se a

motivação para a produção de textos altamente imagéticos, de fácil acesso e que

representamarealidadedequemoslê.Oaumentodeproduçõesfílmicasapartirde

obrasliteráriaséumacontingênciadessaaproximação.Asadaptaçõesoutraduçõesde

obrasliteráriasparaoaudiovisualaproximamopúblicodaliteratura,mesmoqueseja

porintermédiodaimagem,ampliandoaleituradostextosliterários.

Diante desse quadro, pensemos a narrativa literária brasileira contemporânea

demodomaisaprofundado.Essanarrativadialoga, ainda, como realismodoséculo

XIX. Para JacquesRancière (2010, p. 78-79), “[q]uando a divisão [entre as almas da

eliteeasdasclassesbaixas]desaparece,aficçãoseentopedeeventosinsignificantese

de sensações de todas aquelas pessoas comuns que ou não entravam na lógica

representativa, ou entravam nos seus devidos lugares (inferiores) e eram

representadasnosgêneros(inferiores)adequadosàsuacondição.”

Rompe-se, portanto, em certa medida, com um pacto estabelecido por uma

verossimilhançaromântica, controladaporuma lógicahierárquicadopontodevista

social e da ordem das conveniências linguísticas, o que abrirá frentes para que

cheguemosa,e investiguemos,narrativascomoOInvasor,deMarçalAquino(2011),

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tomando os processos de desterritorialização e de reterritorialização como nortes

teóricos.

2.OTERRITÓRIOEOSUJEITODESTERRITORIALIZADO

Aquino (2011),emO Invasor,demaneirabastantesingular,busca representar

os movimentos tanto dos sujeitos como da própria violência urbana. Esses

movimentos, que se traduzem em ações, ocorrem por meio do trânsito entre

territóriosdiferentes.SegundoRancière(2010,p.79),

A ação é uma esfera de existência. Concatenações de ações só poderiam dizerrespeito a indivíduos que viviam na esfera da ação, que eram capazes deconceber grandes planos e de arriscá- los no confronto com outros grandesplanos e comos golpesdodestino.Elasnãopoderiamse referir apessoasqueestavam confinadas à condição da vida nua, devotadas à única tarefa de suareprodução infinita. Verossimilhança não é somente sobre que efeito pode seresperadodeumacausa;ela tambémdiz respeitoaoquepodeseresperadodeum indivíduo vivendo nesta ou naquela situação, que tipo de percepção,sentimentoecomportamentopodeseratribuídoaeleouela.(RANCIÈRE,2010,p.79).

AproposiçãodeRancièreserefereaorealismodoséculoXIX,estabelecendoum

percursoapartirdoqualnãosomenteoqueselêmuda,mastambémapercepçãodo

receptor se altera: o enredo vai sendo criado de tal modo que a verossimilhança

romântica seja sucedida pelo aparente desaparecimento das distinções entre

realidade empírica e representação, o que, por sua vez, trará à tona uma nova

sensibilidade, marcada por traços de uma aparente igualdade social, por exemplo

(RANCIÈRE, 2010). Esse caminho ainda está sendo trilhado, acrescido de outras

nuanças, como as discutidas por Regina Dalcastagnè (2017) no artigo intitulado

“Ruídos, interferências e dissonâncias: o que há de novo na literatura brasileira

contemporânea”:

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Daíaprovocaçãodotítulodestetexto.Oquehádenovonaliteraturabrasileiracontemporâneaé justamenteoquecausadissonâncianessecampoliteráriotãohomogêneo: homens e, especialmente, mulheres, negros/as e periféricos/as,pobrese“malinstruídos/as”entramimediatamenteemdesacordocomoqueseimagina como Literatura Brasileira. O “novo” aqui tem a ver, é claro, com aperspectivasocial,comasescolhasrepertoriais,comaspersonagensquepassama ter voz, mas também com os modos de dizer, com a dicção própria dessesautores e autoras e mesmo com os usos que fazem da língua, que dão outratexturaeoutrosentidoaotexto(DALCASTAGNÈ,2017,p.22).

Astais interferênciasdiscutidasporDalcastagnè(2017)nãosãodaordemdas

coisas negativas, posto que os conflitos são legitimamente humanos, fecundos e

democráticos, sendo "[...] artisticamente originais e relevantes." (DALCASTAGNÈ,

2017, p. 22). Cada detalhe das estruturas da narrativa literária contemporânea

importa para a construção de uma cena em que tudo é dissonância, inclusive os

sujeitos que "[...] têm cara de gente do bem." (AQUINO, 2011, p. 11). Seguindo as

indicaçõesdeAnísio,porenquantoomatadoremfasedecontratação,IvaneAlaor,os

contratantes,chegamàZonaLestedacapitalpaulista,sendoassimrecebidosnoponto

deencontro:“Merecemosumarápidaavaliaçãodosdoissujeitosquebebiamcerveja

debruçados no balcão, conversando com o velho que devia ser o dono do bar. Os

quatro homens que jogavam bilhar tambémnos olharam por um instante, e depois

retornaram a conversa. O rádio sobre o balcão chiava um programa de músicas

antigas.”(AQUINO,2011,p.10).

Valechamaratençãoparaousopelonarradordoverbo"chiar"comrespeitoao

rádio: chiar significa aquilo que tem, que produz um som agudo, continuado e

desagradável, rangente, como se lastimando de algo (GRANDE DICIONÁRIO DA

LÍNGUA PORTUGUESA, 2010, p. 348). É interessante que o rádio é utilizado como

alegoriaporDalcastagnè(2017,p.22)emseutexto:

Para completar a ideia, portanto, junto à imagem da dissonância, as dainterferência e do ruído. Então, basta imaginar uma única onda de rádio,transmitindoummesmoeharmônicodiscursosemparar.Asinterferências,que

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podem se manifestar por ruídos ou por pedaços desarticulados de fala, nãoanulamo discurso,mas incomodame,mais do que isso, chamamatençãoparaoutraspossibilidadesdedizeredeexistir.

O chiadodo rádionaperiferiada capital paulista representanão somenteum

território marcado pela dissonância, mas também marca a representatividade de

sujeitoscujapresençaincomodae,nocasodeOInvasor,deummodoreverso:quando

indagadopelonarradorcomopôdereconhecereleeseusóciologoquechegaramao

bar,Anísio lhe responde: “Dáumaolhadanopovodeste lugar: tudo cara fodido, de

pelemanchada,cabeloruim,faltandodente,unhapreta.Qualquerumécapazdedizer

quevocêsnãosãodaqui.Seeuderamãoparaosujeitoentão,soucapazatédefalarse

elejátrabalhounopesadoalgumdia.Nãotemerro.”(AQUINO,2011,p.11).

O fato é que a presença de Ivan e de Alaor naquele território não passa

despercebida,comoelesaprincípiopensam.Ossujeitosqueestãonobardaperiferia

notam a entrada de ambos não com a verossimilhança na qual se pautava

especialmente uma literatura anterior ao realismo, de modo

normalizado/normatizadopelasconveniênciasliterárias,porémcomainconveniência

geradapelosprocessosdedesterritorializaçãoedereterritorialização.

Partindodeperspectivasgeográficasetomando,numprimeiromomento,como

referência O Mito da Desterritorialização: do “fim dos territórios” à

multiterritorialidade,deRogérioHaesbaert (2006), verificamosque as definições de

territórioforamepodemestarligadasaquestõesdiversas,comoasfísicasoudaterra,

que levam em conta o instinto de proteção de um grupo de animais para com seu

território ou aquelas relacionadas à identidade de determinado grupo, pois seria o

local onde os indivíduos estabelecem laços entre si e despertam um sentimento de

pertencimento.

Duranteumlongoperíodo,pensaroterritóriorelacionava-sediretamentecomo

queeramaterialedelimitadoporfronteirasfísicas.Entretanto,issotemsidoabalado

com as novas noções de território que emergiram após a expansão dos meios

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tecnológicos e da globalização. Uma das perspectivas que levou à formação de um

pensamentomais híbrido é tida comoumavisão "integradora", emque as questões

culturais, políticas e econômicas, em conjunto, conceberiam a noção do que seja o

território.ChristineChivallon (1999), citadaporHaesbaert (2006, p. 78), tratará da

espacialidade como “uma espécie de experiência total” do espaço, que faz conjugar

nummesmolugar"osdiversoscomponentesdavidasocial”.Contudo,deacordocom

Haesbaert(2006,p.79),esta“experiênciatotal”nummesmolocalnãoémaispossível,

pois

[...] a “experiência integrada” do espaço (mas nunca total, como na conjugaçãoíntima entre espaço econômico, político e cultural num espaço contínuo erelativamentebemdelimitado)épossívelsomenteseestivermosarticulados(emrede) [...]. Não há território sem uma estruturação em rede que conectadiferentes pontos ou áreas [...] hoje temos o domínio dos territórios-rede,espacialmentedescontínuosmasintensamenteconectadosearticuladosentresi.

Ou seja, levando em conta essa hibridização, podemos conceber o território a

partir“[...]daimbricaçãodemúltiplasrelaçõesdepoder,dopodermaismaterialdas

relações econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais

estritamente cultural.” (HAESBAERT, 2006, p. 79). Seguindo essa direção, podemos

pensarqueoterritórioétotalmenterelacional,poisneleocorremdiversosprocessos

fluidosentreoqueésocialeoespaçofísicopropriamentedito,oquefazcomqueo

territóriotambémsejafluidoecheiodemovimento.

Tendo em vista esse contexto, precisamos recuperar, ainda que brevemente,

concepções relacionadas ao rizoma e à desterritorialização. Vivemos em uma

sociedade segmentada e fragmentada, na qual quem possui poder, dinheiro e bens

materiais encontra-se no topoda pirâmide da desigualdade social, enquanto os que

nãopossuemnadadissopermanecemnabase.Adinâmicadesse sistemaprezapela

manutençãodosprivilégiosdeclasse,deformaquetodoscontinuememseuslugares

atéofimdesuasvidas.Assim,seufocoéacentralizaçãomáximadepoderempoucas

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mãos, para o controle dos fluxos que movem o mundo. Entretanto, essa noção de

centralidade começa a perder força ao adentrarmos nas teorias a respeito da

convivênciaemrizoma.

De acordo com Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995), estudiosos da

desterritorializaçãoedodeslocamento,ambososconceitosnãoseestruturammaisde

maneirahierarquizada;elesnãopartemdeumpontocentralenãosãoumapossível

referência aos demais. Para ambos, o rizoma funciona por meio de encontros e de

agenciamentos,comoummapademultiplicidadesedepossibilidades.Nestesistema,

ascoisassãoflexíveis,váriosnúcleossãopossíveis,porémnenhumdelesocupauma

posiçãomaiorqueosdemais.Aalegoriadamarionetefuncionacomoumaimagemde

multiplicidadeemDeleuzeeGuattari(1995,p.05):

Osfiosdamarionete,consideradoscomorizomaoumultiplicidade,nãoremetemàvontadesupostaunadeumartistaoudeumoperador,masàmultiplicidadedasfibrasnervosasque formampor sua vezumaoutramarionete seguindooutrasdimensões conectadas às primeiras. “Os fios ou as hastes que movem asmarionetes—chamemo-lasatrama.Poder-se-iaobjetarquesuamultiplicidaderesidenapessoadoatorqueaprojetano texto. Seja,mas suas fibrasnervosasformamporsuavezumatrama.Eelesmergulhamatravésdeumamassacinza,agrade,atéoindiferenciado...Ojogoseaproximadapuraatividadedostecelões,aaqueles que os mitos atribuem às Parcas e às Norns”. Um agenciamento éprecisamente este crescimento das dimensões numa multiplicidade que mudanecessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões. Nãoexistempontosouposiçõesnumrizomacomoseencontranumaestrutura,numaárvore,numaraiz.Existemsomentelinhas.

Nessa perspectiva de "rizoma ou multiplicidade", em O Invasor, temos um

narradoremprimeirapessoa,Ivan,quecontaemretrospectooqueteriaacontecidoa

partir da necessidade do desaparecimento/assassinato de Estevão, seu sócio e de

Alaoremumaempreiteira,eoconhecimentodeAnísio.MesmoadescriçãodeAnísio

é,diríamos,comum,semdemonstraçõesdeseuperigonodecorrerdanarrativa:

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Eraumhomematarracado,debraços, fortesemãosgrandes.Tinhaapelebemmorena, olhos verdes e usava o cabelo crespo penteado para trás. Uma dessasmisturasqueoNordestebrasileiroproduzcomcertafrequência.Aocontráriodoqueeuimaginava,elenãopareciaameaçador—emborahouvessedurezaemseujeitodeolhar.”(AQUINO,2011,p.10).

Ainda que o foco narrativo esteja atrelado à voz de Ivan, a invasão territorial

começaquandoeleeAlaorpartemparaaZonaLestedacapitalpaulistaembuscade

um matador. Começam aí, pelo menos aparentemente, desde o início da trama de

Aquino (2011), os processos de desterritorialização e de reterritorialização de

sujeitos, sejam eles os "bacanas", sejam eles os "fodidos", que carregam consigo a

violência.

Para explicar os conceitos de desterritorialização e de reterritorialização,

tomamosumaalegoriautilizadaporDeleuzeeGuattari(2010,p.91)equeserefereao

capitalismo:

O comerciante compra num território, mas desterritorializa os produtos emmercadorias,esereterritorializasobreoscircuitoscomerciais.Nocapitalismo,ocapital ou a propriedade se desterritorializam, cessam de ser fundiários e sereterritorializamsobremeiosdeprodução,aopassoqueotrabalho,porsuavez,setornatrabalho“abstrato”reterritorializadonosalário:éporissoqueMarxnãofala somente do capital, do trabalho, mas sente a necessidade de traçarverdadeiros tipos psicossociais, antipáticos ou simpáticos, O capitalista, Oproletário.

Oprimeiromovimentodocomercianteé tomarposse,via investimentodeseu

capitaloudeoutrem,deumdeterminadoterritório,paracomeçaraoperarsobreele,

promovendonovosencontrosenovosembates.Nalógicacapitalista,osprocessosque

se desdobram a partir do ato do comerciante acabam sendo naturalizados por uma

ordemmuitopróximadaquelaqueatribuíaaosreisabsolutistasumpoder investido

diretamenteporumaautoridadedivina.Porqueunstêmdireitoàterraeoutrostêm

quesecontentarcomaocupaçãodeumterritórioquenãoéseu,aindaqueaterrao

seja?

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Ambos tambémse referemàexistênciade tiposdedesterritorialização, sendo

eles a relativa e a absoluta. A relativa refere-se ao abandono de territórios criados

socialmente,eaabsolutarefere-seàdesterritorializaçãodopensamentooudopróprio

pensar, que “desmonta” estruturas antigas e constrói novas, elaborando novos

conceitos,nummovimentodereterritorialização(DELEUZE;GUATARRI,2010,p.91-

92).EmnossainvestigaçãodoromanceOInvasor,afirmamosqueambasocorremcom

Anísio,indodesuaformamaissimplesatéamaiscomplexa.

3.ADESTERRITORIALIZAÇÃOEMOINVASOR

Demodogeral, asnarrativas literáriasdeAquinocaracterizam-sepela intensa

relaçãocomarealidadeempírica,procurandotranspô-laparaa literatura.Elebusca

representar, por meio de uma linguagem enxuta, os modos de vida nas grandes

cidades do Brasil, sobretudo no "submundo" (expressão utilizada pelo narrador da

novelaOInvasor,paracaracterizaroespaçoondesepassaatrama)eentreasclasses

sociaismaisbaixas.

O que é representado logo no início do romanceO Invasor, quando os sócios

(Alaor e Ivan) vão ao encontro do futuro assassino (Anísio) de seu amigo, e sócio

(Estevão),éumlocalquelheséestranho,compessoasestranhas:“[...]demoramosum

bocado para encontrar o bar, numa rua estreita e escura da Zona Leste. Um lugar

medonho”(AQUINO,2011,p.09);“[e]ntãoaliestávamos,naquelelugarsemnenhuma

vocação para cartão-postal” (p. 09); e “[e]stacionei perto do que parecia ser uma

fábricaabandonada,umgalpãoenormeecinzento,comparedespichadasevitrôscom

vidrosquebrados”(p.09).

O “submundo” passa a ser não somente a periferia de São Paulo, ondeAnísio

habita,mastambémoslugaresporondecirculamossóciosdeumaempreiteira,Alaor,

IvaneEstevão.Aspersonagensnãobuscamaglóriaougrandesconquistas,poissuas

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históriassãoconstruídasapartirdeconflitosquesónaaparênciasãomorais,sendo

guiados,emgeral,pelahipocrisiaepelacorrupção.Porexemplo,Alaor,alémdesero

mentordocrimedemorte,tambémpossuienvolvimentocomoutraspráticasilegais,

comomanterapropriedadedeumprostíbulo.Ivan,porsuavez,traiaesposa.Ouseja,

ambosestãoimersosemumquadromovidopelacompetiçãoepelaesquizofreniadas

zonasmetropolitanas,buscandoporpoderepordinheiro.

Em O Invasor, Aquino representa a cultura marginal, a cultura das margens,

trazendo para a cena falas carregadas de gírias, de palavrões e de expressões

singulares,geralmenteassociadasàperiferia.

Aindaassociadaàvidanaperiferia,existeaviolência.EmOInvasor,aviolência

nãoéprivilégiodascamadasmenosabastadasdasociedade;elasedisseminatambém

nas classesmédia e alta, e o cenário urbano funciona como facilitador para que as

relaçõesdeviolênciaeumaaproximaçãoincomodativaocorramentreessasclasses.

Sendo assim, não somente Anísio passa por um processo de

desreterritorialização:aviolênciaqueoacompanhaemsuavidanaperiferiatambém

invadeesetransformanoslugaresporondecirculamossóciosIvaneAlaor.Emcerta

ocasião,Anísiovisitaosdoissóciosrestantes,oquedeixaIvanbastanteincomodado:

“Océueo inferno.LogodepoisquePauladesligou,asecretáriameavisouquehavia

umhomemàminhaesperanarecepção.Onomedele?Anísio.”(AQUINO,2011,p.70).

AviolênciadeAnísiocomeçaasereterritorializarquandoseoferececomosegurança

daempresadeIvanedeAlaor:

Estouoferecendoproteçãoporquegosteidosdois.Vocêsnãoquerem?Esperaaí,Anísio,Alaordisse.Aondevocêquerchegar,afinal?A lugar nenhum, Anísio bateu a cinza do cigarro. Eu venho aqui pra empresa,tomo conta da segurança, não atrapalho ninguém. E, se vocês precisarem dealgumacoisa,ésófalar.Ah,é?Eoqueagentedizparaosoutrosfuncionários,Alaorperguntou.Quevocêénossoguarda-costas?Anísioriu.

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Sabeoqueeuacho?Quevocêeo Ivanaindanãoperceberamqueagorasãoosdonos disto aqui. Desde quando dono precisa dar satisfação pra empregado?Donopodetudo,Alaor.(AQUINO,2011,p.77).

Dematadordealuguelperiférico,Anísiomudaráseustatusparasegurançade

empresários na Zona Sul da capital paulista, o que, para ele, abrirá um canal de

intimidadecomIvaneAlaor:“Vocênãoconfiamesmoemmim,né, Ivan?Eusouseu

amigo,porra.”EIvanrebate:“Eunãoqueroserseuamigo...”(AQUINO,2011,p.77).

Como já anotamos, a linguagem do romance traz uma inflexão coloquial, com

diálogos pontuados por palavrões: “Ele está fodendo a gente, Alaor falou [...]”

(AQUINO, 2011, p. 13), evidenciando a busca de adequação do próprio registro

linguísticoaoutros—nessecaso,nãocultos—eaformasdeexpressãoqueestejam

emsintoniacomoambienteeasituaçãocaóticasobasquaisestãovivendo.

Este tipo de projeto estético de reterritorialização nos remete a parâmetros

referentesàpossibilidadedeexistênciadeumaliteraturamenor.SegundoDeleuzee

Guattari(2014),emKafka:porumaliteraturamenor,estaliteraturanãoseriaaquela

queédeumalínguamenor,massimaqueumaminoriafazemumalínguamaior.Na

literatura menor, tudo é político, pois ela pega para si casos individuais que, em

cenáriosdemarginalidade,setornamrelevanteseoscolocaemfoco,diferentemente

doqueocorreemliteraturasmaiores.SegundoDeleuzeeGuattari(2014,p.26),“[...]O

queno seiodasgrandes literaturasocorreembaixoe constitui comoqueumacave

nãoindispensávelaoedifício,aquiocorreemplenaluz;oqueláprovocaumtumulto

passageiro,aquinãoprovocanadamenosqueumasentençadevidaoudemorte.”

Entretanto, não podemos negar que apesar de trazer à luz casos que são

individuais e que são invisibilizados, a literatura menor continua encarregada de

enunciar a partir de um olhar coletivo, destacando uma certa solidariedade e uma

certa sensibilidade para com esses sujeitos, o que pode ser caracterizado como um

movimentodedesterritorialização.

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Neste sentido, o que podemos dizer é que ao realizar esses movimentos a

própria literatura se desterritorializa, por meio da língua, a fim de dizer o que

usualmentenãopodeounãoquer serditonas literaturas já estabelecidas.O atode

pensaredeescreversobresujeitosqueemgeralnãoeramvistoscomoprotagonistas

fazcomqueencontremosnossasprópriasmazelasrepresentadas,aquiloquesempre

foijogadoparabaixodotapete.ÉoqueocorreemOInvasor.

Dessa forma, é necessário “[...] estar em sua própria língua como um

estrangeiro”(DELEUZE;GUATTARI,2014,p.48),descentralizandopoderesedizendo

o que não pode ser dito, seguindo rotas alternativas, causando, assim,

desterritorializaçõesconstantespormeiodalínguaedaliteratura.

EmOInvasor,Anísio,assassinocontratadoparamatarumdossócios(Estevão)

que, aparentemente, estava atrapalhando a ação dos demais (Ivan eAlaor) emuma

empreiteira,éapersonagemcentraldatrama.MoradordaperiferiadeSãoPaulo,em

um dia comum e movimentado de sua rotina, encontra-se com os sócios da futura

vítima em um bar para fazer a negociação. Nesse primeiro encontro, notamos o

primeiromovimentodentrodaenormeredequeéumamegalópolecomoSãoPaulo.A

propostafeitaaAnísioservecomoumpontodeacessibilidade,umaespéciedebrecha

paraqueumnovo fluxoseja iniciadoequenovas informaçõespercorramessanova

rota.ReiteramosqueossóciosAlaoreIvanpertencemaumaclassesocialdistintada

de Anísio, entretanto, estamos falando de territórios que passam a se conectar de

algumaforma,emrede,e,nessecaso,ossócioseomatadorconectam-seemprolde

ummesmoideal:ocometimentodeumcrimedemorte/violento.

Anísioserátidocomouminvasorecarregaessetítulodeformabastanteforte

durantetodaatrama.Contudo,comojáditoanteriormente,pormorarnaperiferiade

São Paulo e ter sido procurado por Ivan e Alaor, é preciso admitir que a invasão

primeiranão foi feitaporele,mas, concomitantemente,pelas relaçõesdepoderque

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mantémmilhõesdepessoasemzonasdeexclusãosocioeconômicaepelossóciosque

buscavamporseuspréstimos.

Durante toda a narrativa, Anísio é um homem de poucas palavras, sério e

bastantereservadoacercadesuaprópriahistória.Contudo,suasações,pormenores

que sejam, causam desconforto a quem vem de fora. Ele é incisivo, provocador,

silencioso,espertoedesprendido,tendoumaltopoderdepenetraçãosocial,oquefaz

com que os dois ambiciosos sócios, presos aos seus ideais de enriquecimento e ao

próprioterritório,percamocontroledasituação.

Anísio aproveita-se do ponto de acessibilidade, da abertura dada por Alaor e

Ivan,parademonstrarseusmodosdedesterritorialização.Comoelefazisso?Comoé

reterritorializar-se em um ambiente tão diverso e fluido? O que significa a

desterritorializaçãodoinvasor,deAnísio?

AdesterritorializaçãodeAnísiocomeçano instanteemqueeleprecisasairde

seu território nativo (a periferia de São Paulo), para "capturar" sua vítima, que

pertenceaumterritóriodistintoaoseu,ecumprircomocombinadocomIvaneAlaor.

Apósesseprimeiropasso,suareterritorializaçãocomeçaasermaisincisiva,vistoque

Anísio não somente cumpre o combinado, mas também decide adentrar/participar

aindamaisdocotidianodeambos.

Aprimeira atitudemais agressivadeAnísio em relação aodeslocamentopara

umnovoespaçoéainsistênciadoassassinodealuguelembuscaraparterestantede

seupagamentonaempresa,mesmoqueAlaoreIvaninsistamemlevaraquantiaaté

ele. Ele permanece relutante, forjando assim a persistência dos laços, a fimde criar

novosencontros,comolemosaofinaldocapítulo7:

Alaorencostou-senamesaerespiroufundoantesdefalar.Vamos fazeroseguinte:atéamanhãsemfaltaagentearrumaodinheiropratepagar.Anísioesmagouocigarronocinzeiro.Sorriu.Apressaédevocês.Mas,pormim,tudobem.Amanhãeupassoaqui.Alaorbalançouacabeça.

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Não,não,Anísio.Deixaquenóslevamosagranapravocê.Anísio se levantou e ergueu a cinturada calça.OlhouparaAlaor e depois paramim.(AQUINO,2011,p.71-72).

Maisàfrente,lemos:

Esperaaí,Anísio,eudisse.Ébomagentetomarcuidado,nãoé?Vocêéestranhoaquinaempresae...Anísiomeinterrompeu:Eusouamigodevocês.Nuncaprejudiqueinenhumamigomeu.Tábom,tábom,Alaorconsultouorelógio.Sóqueagoravocêmepegounomeiodeumareuniãoimportante...Amanhãagenteteprocuralánobar,levaodinheiroedaíconversamosmelhor,quetal?Eupassoaqui.Anísiodissea fraseolhandodiretonosolhosdeAlaor.Ficamosemsilêncioporalgunssegundos.Alaorabriuosbraços,serendeu:Tácerto.(AQUINO,2011,p.72).

Eesteésóocomeço.Apósorecebimentototaldopagamento,Anísioalegaque

IvaneAlaorpodemprecisardesuaajudanovamenteeseoferececomosegurançados

sócios. A atitude desagrada a Ivan, mas não impede que Alaor aceite a proposta,

mesmoquecomreceio.Podemosclassificaressaaçãocomoasegundamaiorinvestida

deAnísioemsuanovareterritorialização.

A terceira atitude astuta de Anísio diz respeito à filha do sócio morto. Após

estreitaraindamaisseucontatocomosempresários, trabalhandocomosegurançae

estando frequentemente na empresa, o invasor opta por investir na filha da vítima

assassinada.Porvezes,ambosflertam,saemeemumdadomomento,acabamsendo

flagradosporIvannoestacionamento.

Masnamanhãdoterceirodia,aochegaràconstrutora,eudescobriquenãoexistenenhumasituaçãoruimquenãopossapiorar.Eu estava atrasado, tinha passado a noite num motel com Paula. Assim quecheguei, vi um carro deixando um de nossos funcionários mais assíduos emfrenteàconstrutora,paramaisumdiadetrabalho.

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Oscabelosdeleeosdagarotaquedirigiaocarroestavammolhados.Comoseosdoistambémtivessemacabadodesairdeummotel.Elessebeijaram.Eleentrounaconstrutorasemmever.Elaarrancoucomocarro.AnísioeMarina.(AQUINO,2011,p.87).

AmaneiracomoAnísiosereterritorializaébastantepenetrante,deformaqueo

novoterritóriocriadoafetatantoosseusatoscomoosdaspessoasquejáestavampor

lá.Opoder, que antes se encontravanasmãosdos sócios, é descentralizado.Assim,

fazendousodaspalavrasdeHaesbaert(2006,p.301)o“[...]territorializar-sesignifica

também, construir ou controlar fluxos/redes e criar referenciais simbólicos num

espaçoemmovimento,noepelomovimento”,transformandoumúnicoterritórioem

umespaçotransfronteiriço.

4.CONCLUSÃO

Considerandotodonossopercursodeanálise,podemosdizerqueOInvasor,de

maneira incisiva, provoca um sistema já pré-estabelecido e procura inserir sujeitos

culturalmentemarginalizadosemcenáriosque,aprincípio,nãoforampensados,nem

projetadospor eles e para eles. Entretanto, ao avaliarmos anarrativa combasenos

conceitos de desterritorialização e de reterritorialização, notamos que as barreiras

impostasentreessasrealidadesnãoestãotãoafastadas;muitopelocontrário,elasse

ligamporummotivoemcomum.

A violência assume o papel de elo e, por estar fortemente relacionada às

relações de poder, preenche e ajuda a tecer redes que, conectadas, deixam brechas

para que sujeitos como Anísio se movimentem, causem perturbações e,

consequentemente,construamnovasramificaçõesnosistema.

PodemosverificarquenarrativasliteráriascomooromancedeAquino,alémde

mostrarprotagonistasdesterritorializados, tambémdesterritorializa a literaturapor

meio da língua, pois descentraliza poderes, indo contra a ideia da existência de um

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cânone que está, necessariamente, localizado no centro, reterritorializando assim

literaturasvistascomomarginaisoumenores.

REFERÊNCIAS

AQUINO,Marçal.OInvasor:novela.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2011.BOSI, Alfredo. "Situação e forma do conto brasileiro contemporâneo". In _____. O conto brasileirocontemporâneo.SãoPaulo:Cultrix,1975.p.7-22.CANDIDO,Antonio.AEducaçãopelanoite&outrosensaios.SãoPaulo:Ática,1989.(v.1).CHIAR.InGRANDEDICIONÁRIODALÍNGUAPORTUGUESA.Porto:PortoEd.,2010.DALCASTAGNÈ, Regina. “Ruídos, interferências e dissonâncias: o que há de novo na literaturabrasileiracontemporânea.” InPalavra.Literaturaemrevista,SESC,SãoPaulo,ano8,n.7,p.21-30,2016-2017.DELEUZE,Gilles;GUATTARI,Félix.Kafka:porumaliteraturamenor.Trad.CíntiaVieiradaSilva.BeloHorizonte:Autêntica,2014.(ColeçãoFilô)._____.Oque éa filosofia? Trad.BentoPrado Jr. eAlbertoAlonsoMunhoz.3ª ed. SãoPaulo:Ed.34,2010.(ColeçãoTrans)._____.1.“Introdução:rizoma.”.In_____.MilPlatôs:Capitalismoeesquizofrenia—Vol.1.Trad.AurélioGuerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. Disponível em:https://historiacultural.mpbnet.com.br/pos-modernismo/Rizoma-Deleuze_Guattari.pdf. Acesso em:28mar.2021.GOMES,FranciscoWellingtonBorges.“Aliteraturaemproduçõesaudiovisuais:umareflexãosobreadiferença.” In Tradução em Revista, v. 18, n. 1, p. 1-12, 2015. Disponível em:https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/24854/24854.PDF.Acessoem:23mar.2019.HAESBAERT,Rogério.OMitodaDesterritorialização:do“fimdosterritórios”àmultiterritorialidade.2ª.ed.RiodeJaneiro:BertrandBrasil,2006.RANCIÈRE, Jacques. “O efeito de realidade e a política da ficção.” Trad. Carolina Santos. NovosEstudos, CEBRAP, São Paulo, p. 75-90, mar. 2010. Disponível em:https://www.scielo.br/pdf/nec/n86/n86a04.pdf.Acessoem:28mar.2021.

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SILVERMAN,Malcolm.Protestoeonovoromancebrasileiro.Trad.CarlosAraújo.2ªed.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2000.Recebidoem:30/11/2020Aceitoem:18/03/2021

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SILVEIRA,A.H..AspectosdaNarração... 83

ASPECTOSDANARRAÇÃONOSCONTOSDEBERNARDOKUCINSKI:O

TESTEMUNHODADITADURAMILITARBRASILEIRA

NARRATIONASPECTSINBERNARDOKUCINSKI’STALES:THETESTIMONY

OFTHEBRAZILIANMILITARYDICTATORSHIP

AlexandreHenriqueSilveira1

RESUMO:Opresente trabalho investigaanarraçãoemdoiscontosdoescritorBernardoKucinski,“Vocêvaivoltarpramim”(2014)e“Ainstalação”(2014).AtravésdadiscussãoacercadoslimitesdarepresentaçãonanarraçãodotraumapropostaporMárcioSeligmann-Silva(2008)eJaimeGinzburg(2012), constata-se que há uma preocupação em inscrever a violência da ditadura de 1964 naescolhapornarradoressolidários,comomododeelaboraroeventotraumático.Palavras-chave:BernardoKucinski;narrador;testemunho.ABSTRACT:ThepresentworkinvestigatesthenarrationintwoshortstoriesbyBernardoKucinski,—“Vocêvaivoltarpramim”(2014)and“Ainstalação”(2014).Throughthediscussiononthelimitsof representation in the trauma narrative proposed byMárcio Seligmann-Silva (2008) and JaimeGinzburg(2012),itappearsthatthereisaconcerntoinscribetheviolenceofthe1964dictatorshipinthechoiceofsolidarynarrators,asawayofelaboratingthetraumaticevent.Keywords:BernardoKucinski;narrator,testimony.

“Caroleitor:Tudonestelivroéinvenção,masquasetudoaconteceu”(KUCINSKI,

2016, p. 11). Com esse aviso, o escritor brasileiro Bernardo Kucinski inicia sua

primeira obra,K.Relato de umabusca, publicada inicialmente em2011. Trata-se de

um romance que tematiza, a partir da ficcionalização de um evento factual, o

desaparecimentodaprópriairmãdeKucinski,AnaRosa,duranteoperíodorepressivo

daditaduracivil-militarde1964,feridanacionalqueaindasangra,semperspectivade

1Mestrando,UFOP.

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cicatrização, apesar dos esforços de governantes para fazê-la cair no esquecimento.

Temacaroaesseescritor,talpassadoaindaforneceriamaterialparaqueelepudesse

escrever outras obras sobre a violência ditatorial. Uma delas é a coletâneaVocê vai

voltarpramimeoutros contos, publicadaem2014pelaCosacNaify, comnarrativas

curtas que concentram-se em explorar a atmosfera de opressão dos anos 1970 e a

permanênciadador,dolutoedotraumanoperíodopós-ditadura.Emborabaseie-se,

como material para a escrita, em sua maioria, em eventos históricos, Bernardo

Kucinski repete, de modo semelhante, a advertência de seu primeiro romance na

abertura do livro de contos: “Aos leitores familiarizados com aqueles tempos, os

contos podem lembrar episódios de pessoas conhecidas. Mas não passam de

invenções, criações literárias sem nenhuma obrigação de fidelidade a pessoas ou

fatos”(KUCINSKI,2014,p.07).

Por que se dá essa repetição? Direcionando um olhar mais atento para as

narrativasdoescritor,verifica-sequeKucinskiestácolocandoaliteraturaemprimeiro

plano, embora sem deixar de lado a dimensão social. Trata-se de um aviso para

mostrarque,aoficcionalizareventosquefizerampartedahistóriaditatorial,permite-

se, pela obra de arte, “sentir um pouco a atmosfera de então, com nuances e

complexidades que a simples história factual não conseguiria captar” (KUCINSKI,

2014, p. 07). Dessa forma, a literatura, enquanto objeto estético, torna-se um

suplemento à história oficial da ditadura, presente nos arquivos. ConformeEurídice

Figueiredo, nas pegadas de Jacques Derrida, “arquivos, em sentido estrito, são

documentos de leitura árida reservados aos historiadores, enquanto a literatura

atingeumpúblicomaisamplo”(2017,p.46).Comefeito,naadvertênciadeKucinski

precedidaàshistóriasdacoletâneaVocêvaivoltarpramimeoutroscontos,etambém

deseuromancedeestreiaK.,percebe-sequeháumdesejodeexploraraquiloquese

torna possível pela ficção, isto é, elaborar os traumasde umperíodo ainda obscuro

paraahistóriabrasileira.

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A narração tem uma função primordial nessa escrita da dor. Nos contos da

coletâneadeKucinski,aformacomoosnarradoressecolocamnotexto,muitasvezes

demaneirairônica,marcaumolharcríticosobreopassadoditatorial.Percebe-seque

existe uma relação entre as narrativasdeKucinski e uma tendência encontradanas

obras de ficção brasileira contemporânea, pois a abordagem adotada pelo escritor

enfatiza, de acordo com JaimeGinzburg, em seu estudo sobre o narrador brasileiro

contemporâneo, “elementos narrativos contrários ou alheios à tradição patriarcal

brasileira. [...] Trata-se de um desrecalque histórico, de uma atribuição de voz a

sujeitostradicionalmenteignoradosousilenciados”(2012,p.200).

Para tecer a reflexão apresentada neste texto, partimos dos estudos

relacionados às teorias do narrador e dos estudos sobre o testemunho e suas

especificidades no contexto da ditadura brasileira, além de considerarmos o conto

enquantogêneroliterário.DasvinteeoitonarrativaspresentesemVocêvaivoltarpra

mim e outros contos (2014), duas foram selecionadas para nossa análise: “Você vai

voltar pra mim” e “A instalação”. Elas tratam das violências sofridas pelas vítimas

torturadaspeladitaduracivil-militar,asquaislidamcomeventostraumáticosquenão

podemserdescritosempalavras.Omotivodeescolhermosessescontosrelaciona-se

àspalavrasdeJaimeGinzburgsupracitadas,pois,aotrazeremcomotemaumperíodo

históricoviolentoparaoBrasil,denunciamnãosomentearepressão,mastambémo

esquecimentoinstitucionalperpetradopelasclassesdominantesequeencontraforça

emumdiscursomilitarhegemônico, o qual fica evidentenaobraLugarnenhum, de

LucasFigueiredo (2015). Figueiredodemonstra comoasForçasArmadas agiramde

forma constante para ocultar documentos sobre a ditadura, muitos deles

possivelmente contendo informações sobre desaparecidos políticos. O Poder Civil

também não agiu de maneira devida, mostrando-se, em diversos momentos,

indiferenteàquestão.MesmocomainstauraçãodaComissãoNacionaldaVerdade,em

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2012,osmilitaresseguiramnegandoquemantinhaminformaçõesemseusarquivos,

nãocolaborandocomotrabalhodeescavaçãodopassado.

Quando pensamos nas teorias do narrador, um estudo a que se costuma

recorrer é o de Norman Friedman (2002), que objetiva compreender o conceito de

pontodevistanaficção,tomandocomoparadigmasPlatãoeJamesJoyce.Seuestudo

categorizadiferentesprocedimentosnarrativosencontradosemromanceseuropeus,

principalmenteaquelespublicadosnoséculoXIXenasprimeirasdécadasdoXX.Como

pontua Jaime Ginzburg (2012), Friedman e outros pesquisadores semelhantes

preferemnarrativaslinearesemdetrimentodeoutras,essasfragmentadas,deixando-

asde foradesuasclassificações. Issonosmostrauma insuficiênciadedeterminadas

teoriasnarrativasemlidarcomobrasquefogemdessepadrão,especialmenteaquelas

quelidamcomcatástrofeshistóricas,comoguerras,genocídioseditaduras.

Aquestãodosefeitosdasguerras,eoutras formasdeviolênciaemmassa,nos

leva aWalter Benjamin, a propósito do declínio da narração, e a Theodor Adorno,

sobre a impossibilidade de narrar. Passemos, primeiramente, a Benjamin. Em seu

famosoensaio“Onarrador”,eleelaboraumacomparaçãoentreonarradortradicional,

queestáemviasdeextinção,eodoromance.Onarradortradicionalseriaaquelecuja

origemsedánatradiçãooral,atravésdasexperiênciasqueacumulaaolongodesua

trajetória de vida, enquanto o narrador do romance estaria ligado à ideia de

informação e de novidade. Para Benjamin, “são cada vezmais raras as pessoas que

sabemnarrardevidamente” (BENJAMIN,1985,p.197).Eledefendea ideiadequeo

narradortradicionalsedivideemdoistipos:omarinheiro,istoé,aquelequeviajapara

diversos lugarese acumulanarrativasdasdiferentes culturasaque teveacesso, eo

camponês sedentário, capaz de retratar o cotidiano, correspondente ao lugarejo em

que vive. Todos esses traços que distinguem os narradores tradicionais partem da

noção de sabedoria, pois, segundo Benjamin, “tudo isso esclarece a natureza da

verdadeiranarrativa.Elatemsempreemsi,àsvezesdeformalatente,umadimensão

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utilitária. [...]Onarradoréumhomemquesabedarconselhos”(BENJAMIN,1985,p.

200).Amortedasabedoria,essacapacidadedetransmitirexperiênciasparaaqueles

que ouviam as narrativas, estaria ligada, com efeito, aos avanços tecnológicos e à

PrimeiraGuerraMundial.

Benjamin deixa entrever — no fim de seu ensaio, a partir do narrador do

romance, que se difere do narrador da tradição oral— “uma outra narração, uma

narraçãonasruínasdanarrativa,umatransmissãoentreoscacosdeumatradiçãoem

migalhas” (GAGNEBIN, 2006, p. 53). Essa outra forma de narrar, na leitura desse

ensaio de Benjamin, feita por Jeanne Marie Gagnebin, estaria ligada à figura do

trapeiro,umnarrador/historiadorquenãocoletamaisgrandesaçõeshumanas,mas

queestáatentoaosrastrosdopassado,recolhendo

tudoaquiloqueédeixadodeladocomoalgoquenãotemsignificação,algoqueparecenãoternemimportâncianemsentido,algocomqueahistóriaoficialnãosabe o que fazer. [...] [O] narrador e o historiador deveriam transmitir o que atradição, oficial ou dominante, justamente não recorda. Essa tarefa paradoxalconsiste,então,natransmissãodoinenarrável,numafidelidadeaopassadoeaosmortos, mesmo— principalmente— quando não conhecemos nem seu nomenemseusentido.(GAGNEBIN,2006,p.54).

Conforme aponta Ginzburg (2012), o narrador que Benjamin trata,

prioritariamente, é aqueleda tradiçãooral enãoumdos componentesda estrutura

ficcional. Já Theodor Adorno, em seu “Posição do narrador no romance

contemporâneo”, discorre sobre o paradoxo da narração no romance enquanto

gênero: “não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narração”

(2003,p.55).ParaAdorno,oromanceperdeuseulugardedestaquequeocupavano

mundoburguêsemdetrimentodocinemaedareportagem.Acontemplaçãodavida,

presente na narração de romances do século XVIII, perde lugar para “um sarcasmo

sangrento,porqueapermanenteameaçadacatástrofenãopermitemaisaobservação

imparcial, enemmesmoa imitaçãoestéticadessa situação” (ADORNO,2003,p.61).

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Embora Adorno refira-se ao narrador de romances, percebemos que suas reflexões

são relevantes para a compreensão do procedimento narrativo diante da violência,

pensando também no conto como gênero literário. Tal como o romance, o conto

tambémprecisadanarração.

ComascontribuiçõesdeTheodorAdornoeWalterBenjamin,surgeainevitável

questão que move este artigo: como narrar a experiência de um trauma e, mais

precisamente, de um evento traumático coletivo que ainda permanece, no caso da

ditadura civil-militarbrasileira, semsolução?Não sedeseja aqui formular respostas

categóricas, uma vez que tais problemas não têm aparente solução. Porém, acolher

textosliterárioscontemporâneosconstituiumatarefa,e,noquetangeàliteraturacujo

temaéaditadurabrasileirade1964,trata-sedeumatarefaética.

Márcio Seligmann-Silva trata da narração em seu texto acerca do testemunho

dossobreviventesdoscamposdeconcentraçãonazistas,eapontaparaessaacolhida

de textos que abordam asmemórias traumáticas de quem sobreviveu a catástrofes

históricas. O autor afirma que “a memória do trauma é sempre uma busca de

compromisso entre o trabalho de memória individual e outro construído pela

sociedade” (2008, p. 67). Pensando tambémno conceitode testemunho, Seligmann-

Silva nos mostra, a partir de Primo Levi, conhecido sobrevivente do genocídio dos

judeus,oseucaráteraporético:quempodetestemunhar,comefeito,sãoosmortosou

aquelesqueGiorgioAgamben(2008)denomina“muçulmanos”,sujeitosquechegaram

aofundodohorrordoscamposdeconcentração.RecorrendoaotestemunhodeLevi,o

filósofo italiano discorre sobre uma zona cinzenta, na qual “o oprimido se torna

opressor e o carrasco, por sua vez, aparece como vítima. Trata-se de uma alquimia

cinzenta, incessante, na qual o bem e o mal e, com eles, todos os metais da ética

tradicionalalcançamoseupontodefusão”(AGAMBEN,2008,p.30).Nessesentido,a

zona cinzentamostra a incapacidade de julgamento, de responsabilizar os culpados

peloscrimescometidosnoscampos,dadaaincomensurabilidadedohorror.

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Dada a exceção dos fatos ocorridos nos campos de concentração, percebemos

quenoçõesjurídicastradicionaisnãoconseguemabarcartaisexperiências,inclusivea

própria ideiadetestemunho.Háumalacunanocasodastestemunhassobreviventes

doscampos,poiselasdevemnarraraquiloquesomenteosmortosexperienciaram:

Ossobreviventes,comopseudotestemunhas, falamemseulugar,pordelegação:testemunhamsobreumtestemunhoquefalta.Contudo, falardeumadelegação,no caso, não tem sentido algum: os submersos nada têm a dizer, nem têminstruções ou memórias a transmitir. [...] Quem assume para si o ônus detestemunhar por eles, sabe que deve testemunhar pela impossibilidade detestemunhar(AGAMBEN,2008,p.43).

Aqueles que sobreviveram conseguem apenas testemunhar parcialmente,

embora necessitem absolutamente do testemunho. Resta-lhes a imaginação para

narrar o inenarrável, o que não pode ser descrito pela linguagem. Nas palavras de

Seligmann-Silva, “[o] traumaencontrana imaginaçãoummeiopara suanarração.A

literaturaéchamadadiantedotraumaparaprestar-lheserviço”(2008,p.70).

Cabedestacarquea ideiade testemunhopodeser tanto testis como superstes.

Testis,palavraorigináriadolatim,remeteàesferajurídica,dacenadotestemunhoem

um julgamento, enquanto o superstes está ligado à história oral, ao sujeito

sobrevivente,assombradopeloevento limite.O testemunhorelaciona-seà literatura

justamenteporestarentreahistóriaeamemória,entreverdadefactualenarrativas.

Devemos, para Seligmann-Silva (2005), considerar o não lugar do testemunho,

reconhecendo sua dimensão paradoxal. O pesquisador também compara o

testemunhodaSegundaGuerraMundial,focadonaEuropaenosEstadosUnidos,com

o testimonio latino-americano, o qual é, de fato, um gênero literário, marcado pela

relaçãoentrepolíticaeliteratura.

EnquantoospaísespróximosaoBrasilbuscaram,atravésdemedidaspúblicas,

umareparaçãodeseupassadomarcadopelaviolênciaditatorial,nasegundametade

doséculoXX,nocasodaditaduracivil-militarbrasileira,constata-seumaausênciade

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testemunho, devido a mecanismos institucionais de esquecimento, como a Lei da

Anistia,promulgadaem1979:

Não temos o testemunho como testis, ou seja, o testemunho jurídico, nem otestemunhocomo superstes, o testemunhocomoa faladeumsobreviventequenão consegue dar forma à sua experiência única. Nossos testemunhos estãosufocados pelas amarras de uma “política do esquecimento” que nãoconseguimos até agora desmontar. De certa maneira, podemos dizer que asvítimas e aqueles que lutam pela verdade, pela memória e pela justiça ficamrelegadospelosdonosdopoderaumaposiçãomelancólica,difícildeaceitaredecomelaconviver.Eladestrói.Ograndedesafioquesecolocahoje[...]équebrarasbarreiras que até hoje impediram este trabalho de testemunho de entrar emfuncionamento(SELIGMANN-SILVA,2010,p.14).

Ao se estudar os testemunhos da ditadura civil-militar, a ausência de uma

culturadememórianoBrasildeve ser ressaltada.Nesse caso, asobras ficcionaisde

teor testemunhal que problematizam o período, como as narrativas de Kucinski,

acabampordenunciartaisaparatosdeesquecimentosobreoperíodorepressor.

No contoquedá título à coletânea, “Vocêvai voltarpramim”, anarrativa, em

terceira pessoa, centra-se em uma mulher, presa política, a qual é levada a uma

audiência,devidoànotíciadequehavia sidopresa.Duranteoprocessono tribunal,

apósumquestionamentodojuiz,apersonagemafirmaquefoitorturada,quebrandoa

recomendaçãodadapeloadvogadodocaso,emconluiocomostorturadores,paraque

elanãomencionasse,duranteoprocesso,aviolência infligidaaela.Os responsáveis

pelaaudiêncianegociameordenamqueelasejalevadapara“opresídiofeminino.Não

voltaráparaoDops”(KUCINSKI,2014,p.71).

Nesseconto,onarradorestádistantedoseventosetemacessoaospensamentos

eaossentimentosdaprotagonista.Apesardodistanciamento,essenarradornãopode

ser considerado imparcial e objetivo, pois nota-se a existência de uma empatia pela

presapolítica.Nacenaemqueelaélevadaparaotribunal,talsolidariedadeénotada

pelo fato de o narrador ressaltar a solidão e o desamparo da protagonista, frente à

situaçãodesumanaquelhefoiimposta:“Estavasóelanocamburão.Sóela,detantos

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companheiros, ainda viva e indo para uma audiência na JustiçaMilitar” (KUCINSKI,

2014, p. 69). Tal modo de narrar é pontuado por Ginzburg, ao comentar uma

passagemdeEmcâmaralenta,deRenatoTapajós.Emboranessaobraanarraçãodas

cenas de tortura sejam dadas de forma explícita e detalhada, um ponto em comum

comocontodeKucinskiéjustamenteapresençadessenarradorempático,atravésdo

qual tem-se um “alcance crítico” (2012, p. 207). Por meio dos sentimentos de

desesperoemedodaprotagonista,contadospelonarrador,formula-seumacríticaàs

práticasdetorturadoperíodorepressivo.

A tortura ocupa um lugar importante no conto e o caminho escolhido para

narraro traumasofridopelapersonagemé justamentenãodescrever,comdetalhes,

as sessões de violência sofridas por ela. O primeiro indício de que amulher estava

sendo torturada é dado nas primeiras frases do conto, de maneira sutil: “Era a

primeira audiênciado seuprocesso.Depoisque foimarcada,nãopendurarammais,

deixaramentrarcomida,pomadas,roupa.Hojeestádeblusanova,saiatambém.Todos

a querem bem-apresentada” (KUCINSKI, 2014, p. 69). Nota-se que não há uma

referência direta ao pau de arara, prática de tortura comum na ditadura brasileira,

mas essa relação é feita pelo uso do verbo “pendurar”. A verdade sobre a tortura

ocorre quando temos acesso à fala da protagonista, na forma de discurso direto,

duranteaaudiência,afirmandoquefoipenduradasetevezes.Emseguida,elaexpõeas

sequelas em seu corpo, denunciando a farsa tramada pelos algozes: “Mostrou os

hematomasnosbraçosenostornozelos,faloudaspalmadas,doschoquesnosseiose

navagina,daameaçadeestupro,dasimulaçãodefuzilamento,dosafogamentos,dos

onze dias na solitária” (KUCINSKI, 2014, p. 70). Nessa passagem, os eventos

traumáticosqueapersonagemsofreuestãoexplícitos,masonarradorrefere-seaeles

de formabreve, expondouma sucessãode cenasdeviolência semdescrevê-las com

detalhes.No fimda trama, verifica-seomesmoprocedimentodonarrador, aooptar

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por interromperahistórianomomentoculminantedoconto,quandoaprotagonista

percebequeestásendolevadanovamenteparaoDops/SP2:

Denovoestásónocamburão.Percebequeéomesmoqueatrouxeeseinquieta.Passa a observar o trajeto pela grade de ventilação. Vê, aterrorizada, entrarempelomesmoportãoatravésdoqualhaviamsaídoparaotribunal.Ocamburãopara,aportaseabre.Otorturadordiz,sorrindo:—Eudissequevocêiavoltarpramim,nãodisse?Vem,benzinho,vamosbrincarumpouco.Eleaagarrapelascanelaseaarrastaparafora.Osoutrosemvoltariem(KUCINSKI,2014,p.71).

Afaladotorturador,queiniciaeencerraoconto,correspondeaotítulo,oqual

poderia indicar,emuma leiturapreliminar,umahistóriadeamor,mastrata-se,com

efeito, da falado algozdaprotagonista, encerrando anarrativa com ironia. Leandro

Vasconcelos,emsua interpretaçãosobrea interrupçãodanarraçãonoconto,afirma

que “comoemmuitos casos,não se sabeoquehouveapósaprisãodapersonagem

principal.Ocontoseriaareproduçãododestinodemuitosquepassarampelasprisões

políticasdaditaduraenãovoltarammais”(2018,p.45).

Outropontoimportanteéacenadotribunalqueconstituioconto,remetendoao

testemunho.Se,porum lado,o testemunhodosafetadospeladitadurade1964está

impedido pelas classes dominantes de ocupar um espaço relevante na sociedade

brasileira,poroutro,háumapreocupaçãoemelaborar,atravésdeumnarradorsem

princípiosde imparcialidade,“umanovaculturadotestemunho.Otestemunhotanto

artístico/literáriocomoo jurídicopodeservirparase fazerumnovoespaçopolítico

paraalémdostraumas”(SELIGMANN-SILVA,2010,p.12).

Julio Cortázar, pensando especificamente no conto como gênero literário,

comparaoromanceaumfilmeeocontoaumafotografia.Enquantooselementosde

2ODepartamentodeOrdemPolíticaeSocialdaPolíciaCivildeSãoPaulofoiumdosmaistemidoslocais da repressãomilitar. Os presos políticos erammantidos em celas, submetidos a constantessessõesdetortura.

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composição do romance vão se acumulando de maneira mais lenta, no conto, a

construção ocorre de forma profunda desde as palavras iniciais. O contista, assim

comoofotógrafo,

sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou acontecimento quesejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas também sejamcapazesdeatuarnoespectadorouno leitor comoumaespéciedeabertura,defermentoqueprojete a inteligência e a sensibilidadeemdireçãoa algoquevaimuito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto(CORTÁZAR,2006,p.151-152).

Paraocrítico,nãoháummodoúnicodeconstruircontos.Porém,ummodode

averiguaraqualidadedessetipodetextoéatravésdotrabalholiteráriorealizadopelo

escritor apartirdaquiloqueCortázar chamade intensidadee tensão.A intensidade

ocorre a partir de um afastamento do estilo do romance, sem recheios da trama

principal, enquanto a tensão é a forma pela qual “o autor nos vai aproximando

lentamentedoque conta.Aindaestamosmuito longede saberoquevai ocorrerno

conto,e,entretanto,nãonospodemossubtrairàsuaatmosfera”(CORTÁZAR,2006,p.

158).Assim,nocasode“Vocêvaivoltarpramim”,verifica-sequeatensãoéorecurso

adotado,levandoonarradoracontarapenasoessencial.

Omesmopodeserpercebidoem“Ainstalação”(2014).Esseéoutrocontoque

toca no problema da tortura enquanto evento traumático para o sobrevivente. Na

trama,umamulher, chamadaNair,vítimade torturanaditadura,vaivisitaraprima

que nunca conheceu, filha do irmão de seu pai. Esse seu desconhecimento sobre a

famíliadopaiéoquemoveapersonagemaaceitaroconvitefeitopelaprima,aqual

sóaencontrouapósumapesquisana internet.O conto inicia-se comaprotagonista

subindoaescadariadacasadaprima,“umpalaceteerguidonaparteelevadadeuma

alameda tomada por chácaras. Estava circundado por um muro tão alto que mais

parecia uma fortaleza” (KUCINSKI, 2014, p. 136). Enquanto sobe as escadas, Nair

preocupa-se com as pontadas de dor que sentirá quando tiver de descê-las, pois

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“sentiriaasagulhadasnojoelhodireito.Dezanoshaviampassado.Otiquenervosona

sobrancelhaesquerda, reflexocondicionadodas cacetadas, sumira comdoisanosde

divã, mas a lesão no tendão, de quando a penduraram no pau de arara ficou para

sempre”(KUCINSKI,2014,p.135).

A narração do conto se dá em terceira pessoa, como em “Você vai voltar pra

mim”.Aqui,novamente,onarradorsecolocaemumaposiçãodeproximidadecoma

protagonista.QuandoaprimadeNaircomeçaamostrar-lheacasa,daqual“[p]arecia

seorgulhar”,aprotagonistapercebeummaugostonadecoração:“Nossapersonagem

nuncatinhavistotantokitsch3”(KUCINSKI,2014,p.136).Onarrador,aoreferir-seà

Nair utilizando o pronome possessivo “nossa”, parece estar aproximando a

personagemdoleitor,aomesmotempoemquetambémaconsiderasuapersonagem,

ressaltandosuaficcionalidade,afastando-sedeumanarraçãoobjetiva.

AprotagonistaécuradoradeartenaPinacotecadeSãoPaulo,cidadeemquea

açãodocontoacontece,e issoexplicaseuolharparaosobjetosdecorativosdacasa.

Elavêtudocomoummaugostodaprima,masaochegaraosfundosdocasarão,dando

para um pomar, Nair nota algo como “uma instalação de arte antropofágica.

Finalmenteumaobradebomgosto,pensou”(KUCINSKI,2014,p.137).

Ainstalação,quedátítuloaocontoeprendeaatençãodeNaircomoumaobra

deartedequalidade,éopaudeararaqueomaridodesuaprima,jáfalecido,ostentava

comorgulhodostemposemqueatuavacomopolicial.Eisodesfechodoconto:

Apeçaeracompostadecachosdebananacarnudoseabundantesenvolvendoumlongo vergalhãodemadeira envelhecida, erguido comoum totem.Os bagos debanana iamdoverdeprofundoaodouradovoluptuoso,passandopeloamarelo-ouro,olaranja,omarrom,umcompletoarco-íristropicalista.Curiosa,elaperguntou:—Eessacoisatãobonita,oqueé?—Sãopencasdebananaqueeudeixoaípramadurar.—Eaquelahastenomeio?

3Termoquepodesignificarumaqualidadeinferiornogostoartístico.

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— É lembrança domeumarido; é o pau de arara que o Oswaldo ganhou doscolegasquandoseaposentoudapolícia.Ela sentiu um frio subindo pela barriga e logo o beliscar pesado dos tiques nasobrancelha(KUCINSKI,2014,p.137).

Ostiquesrecuperadosemterapiavoltamquandoaprotagonistapercebequeo

falecidomaridodaprimaeraumtorturador,recordandootrauma,aparentementejá

superado. O narrador destaca as informações acerca do passado traumático da

personagemesuaatuaçãoprofissional,comocuradoradearte,paraconvergiremum

encerramento irônico. A narração causa um efeito crítico ao mostrar que um

instrumento de tortura era preservado com cuidado e deixado à mostra pelo

torturador como algo digno de ser exibido. O caminho escolhido para narrar a

violência comoeventomarcantedaditadurade1964, tantoem“A instalação” como

em “Você vai voltar pramim”, está justamente em não descrevê-la,mas expô-la de

formacrítica,comumtipodesarcasmosemelhanteaodestacadoporAdorno(2003).

AComissãoNacionaldaVerdadefoicriadacomointuitoderestauraramemória

doperíodoquecompreendede1940a1988,estabelecendoumahistóriaoficialdos

eventos ocorridos. De acordo com Leandro Vasconcelos (2018), a publicação dos

contosdeBernardoKucinski expande, pela ficção, os relatosdaComissão acercada

ditaduracivil-militar,vistoqueoautorsebaseouemalgumashistóriascomomaterial

para escrever as narrativas que formariam a coletânea Você vai voltar pra mim e

outroscontos.Assim,anarração,nosdoiscontosdeKucinskianalisados,comfocoem

personagensvítimasdetortura,evidenciaapossibilidadede“interpretaropaís,sem

movimentostotalizantes,semverdadesabsolutas”(GINZBURG,2012,p.219).

Temos também um ponto de contato importante com a forma como Walter

Benjamin (1985)expõeodeclíniodanarraçãooralatentando-separaosilênciodos

sobreviventes da Primeira Guerra Mundial e a dificuldade em narrar os

acontecimentos vividos nas trincheiras, constituindo uma experiência traumática

coletiva.Paraele,anarraçãopermanece,apesardisso,nafiguradotrapeiro,quebusca

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narraroinenarrável.OfocodeBenjaminestavavoltadoaonarradordatradiçãooral,

mas suas contribuições são relevantesparao entendimentodeumaerade traumas

coletivosedaincomunicabilidadedaexperiência.ComAdorno(2003), focalizamosa

narraçãocomoestruturaliterária,nãomaispautadaemprincípiosobjetivos.Procura-

se, por outro lado, destacar a impossibilidade de imitação literária, com uma voz

narrativacrítica.

Osnarradoresdos contosdeKucinski aqui analisadosmostram,pelo trabalho

comalinguagem,umcaminhoparaaelaboraçãodador,levando-nosarefletirsobreo

passadoditatorialbrasileironopresente,consolidandooatodenarrar.Emtemposde

negacionismos,emquepessoasvãoàsruaspedindoavoltadaditaduracivil-militar,

ostestemunhosliteráriossobreoperíodosãocruciaisnalutapelamemória.

REFERÊNCIAS

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ÁGUASQUEDESENHAMAHISTÓRIA:UMAPERSPECTIVASOBREOOLHAR

DEJOÃOMIGUELFERNANDESJORGEEMIACOUTO

WATERSTHATDESIGNHISTORY:APERSPECTIVEONTHEVIEWOFJOÃO

MIGUELFERNANDESJORGEANDMIACOUTO

AnaCarolinadosSantosLinhares1

RESUMO:OpresenteartigotemporobjetivoapresentarumaanálisecomparadaentreasproduçõespoéticasdoautorportuguêsJoãoMiguelFernandesJorge(1943)edoautormoçambicanoMiaCouto(1955).Aoanalisarpoetasdediferentesnacionalidades,podemosentenderseuspaísesdeorigem,que apresentam uma conexão histórica servindo de base para as produções poéticas, bem comoconstatara relaçãodediferentesculturasparacoma imagéticadaágua,maisespecificamente,domar.Ademais,serãotratadasasquestõesdanaturezaepaisagemnaescritadosdoisescritores.Paraestaanálise,serãoutilizadasasobrasBellisAzorica(1999)eObraPoética—1ºVolume(1987),deFernandes Jorge eRaiz de orvalho e outros poemas (2009),Tradutor de chuvas (2011) e Poemasescolhidos(2016),deMiaCouto. Palavras-chave:Memóriaehistória;Poesiaportuguesa;Poesiamoçambicana.ABSTRACT: This article aims to present a comparative analysis between the works of thePortuguesepoetJoãoMiguelFernandesJorge(1943)andtheMozambicanMiaCouto(1955).Whenanalyzingpoetsofdifferentnationalities,wecanunderstandtheircountriesoforigin,whichpresentahistoricalconnectionworkingasbasesfortheirpoeticproductions,aswellasseetherelationshipof different cultureswith the imagery ofwater,more specific, of the sea. In addition, nature andlandscapeissueswillbeaddressedinthewritingofthetwowriters.TheworksBellisAzorica(1999)andObra Poética— 1º Volume (1987), by Fernandes Jorge andRaiz de orvalho e outros poemas(2009),Tradutordechuvas(2011)andPoemasescolhidos(2016),byMiaCoutowillbeusedforsuchanalysis. Keywords:Memoryandhistory;Portuguesepoetry;Mozambicanpoetry.

1Mestranda,UFF.

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“Eupensoqueamemóriaentrapelosolhos”.

HerbertoHelder

1.INTRODUÇÃO

AssimcomoafirmaHerbertoHelder(2006)notexto“Memória,montagem”,de

Photomaton & Vox, a memória está correlacionada a uma questão visual, e é essa

visualidade que estará presente na obra dos dois autores examinados neste estudo.

Essamemória,queéconfiguradaereconfiguradapelotrabalholírico,seráumdoselos

queentrelaçamasobrasdeJoãoMiguelFernandesJorgeeMiaCouto.Umamemória

nãoapenasindividualcomotambémcoletiva,sendoapresentada,inclusive,apartirda

relação com o elemento aquático, sobretudo o mar, visto que é um grande marco

representativo na história, tanto de Portugal quanto deMoçambique. Pormais que

haja um distanciamento cultural e territorial entre tais produções, buscar-se-á

justamente,apartirdessesdistanciamentos,umaaproximação.Pararealizaraanálise,

serãoutilizadasasobrasBellisAzorica(1999)eObraPoética—1ºVolume(1987),de

JorgeeRaizdeorvalhoeoutrospoemas(2009),Tradutordechuvas(2011)ePoemas

escolhidos(2016),deCouto.

JoãoMiguelFernandesJorgenasceuemBombarral,Portugal,1943.Estreouem

1971como livrodepoesiasSobSobreVoz.Asuaobra,degrandefluidezderitmoe

efeitos sonoros, constrói-se a partir de referências narrativas pessoais e evocações

históricas. As imagens contidas em seus poemas libertam-se, muitas das vezes, do

sentidometafóricoatravésdeumadeslocaçãodosignificanteporlugaresetempos,e

emoutrasvezesacentuandoocaráterefêmerodosseresedascoisas.

Oseuinteresseporáreasartísticas,comoapinturaouaescultura,levouaque,

nasuaobra,oexercíciodoolharsobreascoisasseja tambémpontodepartidapara

muitos de seus poemas sobre a presença da arte nos espaços do individual e do

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coletivocontemporâneos.Valeressaltarqueoautorétambémcuradordeartes,sendo

assimjustificadaessaconexão.Esseolharimagéticoquantoaoslocaisérecorrenteem

suaprodução.Há livros emque são apresentados ambientesportugueses, comoé o

casodoBellisAzorica(JORGE,1999),emqueoautor,emalgunspoemascomo“Vilado

topo, Ilhéudotopo”descrevecaracterísticasdesse local:“Ovendedordepeixe;duas

caixascheiasde/chicharrosobrea roda traseiradabicicleta;/ sobea íngremerua

que vai do pequenoporto à / vila. Já é tarde, pescador, para venderes o que veio à

//rede.(...)”(JORGE,1999,p.25).Jáem1992,emTerraNostra,JoãoMiguelFernandes

Jorge tratoupelaprimeiravezdosAçores,oqueremeteàquestãodomar,umtema

que volta emBellis Azorica. Sobre isso, Alexandra Lucas Coelho (1999, s/p) em seu

texto“Oquesomosumdeushá-deampliar”afirmaque“[é]de1992oprimeirolivro

de João Miguel Fernandes Jorge (JMFJ) totalmente dedicado aos Açores, ou seja,

composto por poemas que surgiram do que o poeta viu, ouviu, viveu, pensou no

decorrerdeviagens(intercaladasentre1988e1991)nasnoveilhasdoarquipélago”.

JoaquimManuelMagalhães (1981), emOsDois Crepúsculos, produzumensaio

sobreJorgeesuaproduçãoliterária.MagalhãesafirmaqueapoesiadeJorgeapresenta

umarelaçãocomquestõespolíticas,masdeumaformanadaóbvia.Opoetaconsegue

apresentarumacríticaataisquestões,mas“semdeixarcairnousualmodoemocional

defazerpolíticaempoesia”(MAGALHÃES,1981,p.238).Umpoucoantes,Magalhães

também afirma que: “Esta poesia, que é uma das mais atravessadas de referências

culturais explícitas da nossa poesia depois de Jorge de Sena [...], não se transforma

nunca em poesia de cultura, nem a sua problemática se pode reduzir à da citação,

porquemaisdoqueissoelaproduzinscriçõesdepaixão”(MAGALHÃES,1981,p.237–

238).

Algosemelhante realizaAntônioEmílioLeiteCouto,mais conhecidocomoMia

Couto. Trata-se de um autor que aborda questões políticas, de uma forma bastante

críticaepoética.Coutonasceuem1955,nacidadedaBeira,emMoçambique.Aos14

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anospublicouosseusprimeirospoemasnojornalNotíciasdaBeira,iniciando,assim,

seu percurso literário dentro de uma área específica da literatura — a poesia. É

também biólogo e professor, e atuou como jornalista de 1974 a 1985, ocupando o

cargodediretordaAgênciadeInformaçãodeMoçambique(AIM)em1976.Pormais

quesuaproduçãomaisextensasejaemprosa,opróprioautorafirmaqueaquestãoda

poesianuncasaiudasuaescrita.EmentrevistaaoPortalRaízes,2eleafirma:“Eucreio

quenuncasaídesseuniversodapoesia,souumpoetainfiltradonomundodaprosa,

contandohistóriaspelousodapoesia.Euausonãoapenascomogêneroliterário,mas

comoumcertomododeolhar,umasugestãodeoutralógicaquesópodeservistapor

ela”(COUTO,2016,s/p).

Esse “certo modo de olhar” apresenta não só uma questão individual como

também coletiva. Assim como há em Jorge, é possível perceber que existe muita

memóriaehistórianaslinhastraçadaspeloautormoçambicano.IrinaMigliari(2018),

aoabordaraproduçãodeCouto,apresentaumaquestãorelevantesobreo iníciode

suapoética, sendo assimumadas possíveis justificativas tambémpara a escolhada

poesiapeloautor:

Durante o período colonial (1505-1975) em Moçambique, no âmbito daliteratura, o gêneromais praticado foi a poesia. Diversas razões explicam essatendência; entre elas, e talvez a mais relevante, está o fato de que as raízespopularesdapoesiaabremespaçoparaumgrupodeleitoresdeoutrascamadassociais que não apenas a elite. Ademais, a poesia é um gênero insidioso e,portanto,iludeacensuracommaisfacilidadeeédefácilpublicaçãoemjornaiserevistas(MIGLIARI,2018,p.236).

Migliari(2018,p.237)aindaafirmaqueépossívelidentificarnapoesiadeCouto

uma preocupação em contestar e questionar a realidade deMoçambique. E que ele

consegueresgatarahistória,discutindo,inclusive,apolítica,etestemunhaocotidiano

aomesmotempoquedialogacomasraízesdaculturaafricanaesuaespiritualidade,

2 Disponível em: https://www.portalraizes.com/1mia-couto-guimaraes-rosa/. Acesso em: 28 set.2019.

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servindo como agente transmissor das identidades africanas para o mundo. Vale

lembrarqueCoutoiniciasuaproduçãoanosantesdaIndependênciadeMoçambique3

(1975), sendo esse momento de conflitos usado como plano de fundo para a sua

produção.

Coutoganhoufamanãoapenasemseupaís,eessafamaéjustificada:sãomais

de vinte livros publicados, várias premiações internacionais e uma escrita muito

particularqueéaomesmotempopoéticaesocialmenteengajada.Ele foioprimeiro

autorafricanoaganharoPrêmioUniãoLatinodeLiteraturasRomânicas,em2007.Em

2013,foivencedordoprestigiadoprêmiodalínguaportuguesa,oPrêmioCamõesde

Literatura.Ademais,CoutoécorrespondentedaAcademiaBrasileiradeLetras.

NoprefáciodoseulivroRaizdeorvalhoeoutrospoemas,Couto(2009)nosdiz

que“[o]quemeligaaestelivronãoéapenasmemória.Masoreconhecimentodeque,

sem esta escrita, eu nunca experimentaria outras dimensões da palavra” (COUTO,

2009,p.07).Eéessamemória,essaescritadahistóriaqueseráabordadanesteartigo,

apartir, principalmente,deuma relação coma imagéticadaágua.Águaessaque se

relacionanãosócomaconstruçãodesuapátria,trazendoumametáforadomar,como

tambémserelacionaasuaconstruçãocomoindivíduo.Oautornossugere,naabertura

do livroTradutorde chuvas (COUTO,2011)—em formatodeepígrafe—,que “[o]s

meusprimeirosversosforamescritosparaomeupai/efalavamdarelaçãoqueele,

nasuapoesia,/criavaentreaspalavraseachuva./Aindahojeomeupaicontinua/

chovendodentrodosmeuspoemas”(COUTO,2011,p.04).

EmentrevistacitadanoestudoMiaCouto:espaçosficcionais,realizadoporMaria

CuryeMariaFonseca(2008),Coutorelatacomoapoesiapareciaonipresentenacasa

3AGuerrade IndependênciadeMoçambique, tambémchamadacomoLutaArmadadeLibertaçãoNacional,foiumconflitoarmadoentreasforçasdaguerrilhadaFRELIMO(FrentedeLibertaçãodeMoçambique) e as Forças Armadas de Portugal. Oficialmente, a guerra teve início em 1964 eterminou com um cessar-fogo em 1974, resultando em uma independência negociada em 1975,mesmoanoqueoMPLA(MovimentoPopulardeLibertaçãodeAngola)proclamouaindependênciaemAngola.

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emqueviviacomospaiseirmãos.Filhodeumtambémjornalistaepoetaportuguêse

de uma mulher que, segundo ele, carregava em si a poesia, ele cresceu em um

ambiente no qual a escrita e as histórias faziamparte da vida cotidiana. “Eu estava

cercado:emminhaprópriacasanãosóestavaolivro,masopoemaemcarneealma.E

estava, sobretudo, minha mãe que era, a meus olhos, a própria poesia” (CURY;

FONSECA,2008,p.19).Sendoassim,pormaisquesejatambémumescritordeprosa,

seráenfatizadaeanalisada,nesteartigo,aproduçãopoéticadesteautor.

2.AIMAGEMDAÁGUACOMOCONSTRUÇÃOPOÉTICA

SegundoMariadoCéuFialho(2006,p.397),“[t]odooimaginárioseexpandee

configura sem que dele seja possível alienar a referência original a um espaço e à

vivência humana desse espaço; todo o espaço a que o homem cria elos de ligação

tende a ser transfigurado pelo imaginário humano”. Para países como Portugal e

Moçambique, cujas fronteiras sãopredominantementemarítimas, a vastidãodomar

abre-se,desdesempre,comoespaçodetemores,espaçodeevasãoeliberdade,oude

invasãoeameaça,deinterrogação,mistério,fascínioerebeldia.Aexpansãomarítima

éumgrandemarconãosóparaPortugalcomotambémparaMoçambique,masnãoé

apenasapartirdessemomentoquea imagemdomarse fazpresentenascorrentes

literárias.ComoafirmaLuísMiguelQueirós(2012,s/p),“[a]poesiaportuguesaéuma

praia constantemente batida pelas ondas do mar”. Ou seja, é complexo abordar a

literatura portuguesa, assim como também a africana em geral e, em especial a

moçambicana,semabordaressaimagéticamarítima.AutorescomoCamões,Almeida

Garret,FernandoPessoaeSophiadeMelloBreynerAndersen, sem falardosdemais

nomes representativos dessa extensa lista, como também Agostinho Neto, José

LuandinoVieira,JoséCraveirinhaeJoséEduardoAgualusasãoalgunsdosdetentores

dessavozpoéticaqueapresentaaquestãodomar.

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Ummare,porextensão,todaaágua,tevesempreumsimbolismoambivalente.

Queirós(2012)afirmaqueomarrepresentaaomesmotempoaorigem,fecundidade,

vida,mastambémdistância,desastreemorte.NoromanceARainhaGinga,doautor

angolano José Eduardo Agualusa (2015), há uma das visões perante a imagética do

marquandoavozdarainhaéapresentada:

Nosdiasantigos—acrescentou—,osafricanosolhavamomareoqueviameraofim.Omareraumaparede,nãoumaestrada.Agoraosafricanosolhamparaomareveemumtrilhoabertoaosportugueses,masinterditoparaeles.Nofuturo—assegurou-me—,aqueleseráummarafricano.Ocaminhoapartirdoqualosafricanosinventarãoomundo(AGUALUSA,2015,p.10).

Eéessemar,querepresentaumadiversidadedesensações,queestábastante

presente nas poéticas de Jorge e Couto. Autores que nasceram em países cujas

histórias estão atreladas, interligadas por esse mar. A água, metaforicamente, está

interligadaaumaquestãohistórica,deconstruçãodeumaidentidadedosdoispaíses.

Sobreessa imagética,GastonBachelard(1997),emAáguaeossonhos,propõe

que “[n]o tocante aomeu devaneio, não é o infinito que encontro nas águas,mas a

profundidade”(BACHELARD,1997,p.09).Arespeitodisso,épossívelafirmarquehá

algodemuitoprofundoe,aomesmotempo,infinitonessaságuasqueiremosadentrar.

Assimcomoaquestãodaáguaéperceptívelnasobras,hátambémumlocalque

se relaciona bastante a ela: a questão da ilha. Como foimencionado anteriormente,

Jorgetemalgunsdeseuslivrosdestinadosaambientarlugaresespecíficos,sendoum

deles relacionado aos Açores:Bellis Azorica (1999). Essa conotação da ilha é parte

presentetambémnaproduçãodeCouto,quenopoema“AlágrimaeoBúzio(1)”,do

livroVagaseLumes,exemplificabemisso:

Emtudooquedesponta,/auspiciosoenovo,/perduraovelho,falsomorto./Éisso/quemedizaonda/agasalhandoamaresia./Éessa/aliçãodeinfinito/que recebo das ilhas. / Nada em nós / émais antigo que omar. / Eis porque

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nascemosnumpranto:/—alágrima/éumasementedeoceano(COUTO,2014,p.22).

Há nesse poema uma visão da água como representação de um início e, ao

mesmotempo,deumfim.Alágrimaquerepresentaumador,perda,“pranto”também

é“sementedeoceano”.Háaindaumaondaquepossuioseufim,masévistacomoum

recomeço, “uma lição de infinito”, um ciclo de vida. É aomesmo tempo o velho e o

novo.Uma ideiadequeonascimentorepresentaador,mas tambéma felicidadeda

renovaçãodomundo.Essaágua,representadanopoematranscrito,expõeaconotação

nãosóquantoaomar,mas,comoditoanteriormente,representa,inclusive,aquestão

dalágrima.Essaáguaéfrutodeumchorocoletivoequedetantochorar,cria-seum

oceano, metáfora para o excesso e o infinito. E, parafraseando Bachelard (1997), o

sofrimentodaáguaéinfinito.Ademaisdessaparáfrase,épossívelaindarelacionarmos

esseconceitoaosversosdeFernandoPessoa(1888–1935)nopoema“MarPortuguês”,

publicadonolivroMensagem(1934):“Ómarsalgado,quantodoteusal/Sãolágrimas

de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, / Quantos filhos em vão

rezaram.”4Essadorrepresentativadaperdacoletivaéfrutodeumabuscapelonovoe

desconhecido,nãosomentenopoemadePessoacomotambémdeCouto:“Emtudoo

quedesponta,/auspiciosoenovo,/perduraovelho, falsomorto”(COUTO,2014,p.

22).Umchoroquerepresentaaincerteza,alémdetodapossívelperda.

Assim como a poesia deCouto, a de Jorge é atentamente crítica de si própria,

alémdeseefetivaremconstantediálogocomomundo.SegundoIdaAlves(2012,p.

39), a relação em Jorge, “por exemplo, com a história coletiva e individual é uma

demandacontínua,nuncaignorada.”EmObraPoéticaVol.1,Jorgenosapresentaessa

conexão,como,porexemplo,em:“Naareiaoscaminhossãomuitos./Ospeixesvão

morrendocrianças./Longoéotempodestepoema”(JORGE,1987,p.27).Poemaeste

que está ali para abordar uma realidade a partir de um olhar crítico. “Peixes vão

4 Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/pe000004.pdf Acesso em: 9fev.2020.

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morrendo crianças”. É como se, pela falta de uma preservação ambiental, essas

criançasque representammetaforicamenteum futuro, tambémmorrerão.Ou ainda,

essespeixesquemalsedesenvolveram,morrem,semcondiçõesdeprogredir.Como

ele mesmo afirma “os caminhos são muitos”, demonstrando que o que está sendo

percorridopela sociedadenãoé,possivelmente,o caminhoquedevemosseguir.Em

umoutropoemadestemesmolivro,Jorgeafirma:“Otempoéqualquercoisa/quetem

avercomágua/comdeusdemasiado largo/explodindo” (JORGE,1987,p.14).Há

nesse trecho uma constatação dessa construção histórica perante a imagem desse

mar.Ummarqueestáligadoàexpansãoterritorial,mastambémaconflitospolíticos,

não somente perante os países europeus, como Inglaterra, Holanda e França, como

tambémapovosafricanos,comoadisputapeloReinodoDongo,daRainhaGinga.5Isso

é possível visualizar também na poética de Couto, em um poema presente no livro

VagaseLumes, emqueeleafirma: “Nocaminho/haviaumrio. /Eo rio/ tinhada

navalha/oapurado fio./Ecortouemdoisomundo”(COUTO,2014,p.15).Umrio

quenãoapenasinterligalocaisdistintoscomotambémossepara,poisele“cortouem

doisomundo”.Umaáguavista,maisumavez,comoambivalente,inícioefim,queliga

esepara.Emumoutropoema,presenteemTradutordeChuvas,Coutonosapresenta:

Nemflorinvejei:/oquemaisilumina/vemdeumoceanoescuro./Esperançastive:todasnaufragaram/antecansaçoseremorsos./Procureiilhasemares:/só havia viagens, / travessias de água / nos olhos de quem amei. (...) Meuspequenosdedos/rasgaramcéus,/masoensejoeralargo:/emmimsecaram/lembrançasdeummarantigo(COUTO,2011,p.14–15).

Esse mar que foi, em algum momento, sinônimo de escape, deixa de ser:

“lembranças de ummar antigo” (COUTO, 2011, p. 15). Ummar que representou a

esperança,nãomaisévistoassim:“Esperançastive:todasnaufragaram”(p.14).Sendo

5Utiliza-seaquiagrafiaescolhidapeloautor JoséEduardoAgualusa,oqualescreveuumromanceque tem como base os conflitos entre portugueses e africanos durante o século XVI e que foimencionadonesteartigo(AGUALUSA,2015).

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assim,éindubitávelessarelaçãoentreaimagéticadaáguaemrelaçãoàconstruçãode

umahistóriaquantoaospaísesdessesdoispoetas,históriaessaquenãoestápresente

apenasnasproduçõespoéticasdestesautores,trata-sedeumatradiçãomuitoantiga.

Por mais que em Moçambique a escrita como hoje existe não tenha ocorrido

simultaneamente ao ocorrido em Portugal, essa relação entre mar, construção

histórica e cultural é bastante antiga e está enraizada na produção dos dois países,

refletindo assim na produção tanto de Jorge quanto de Couto e de tantos outros

autoresportuguesesemoçambicanos.

3.ARELAÇÃOENTRENATUREZAEPAISAGEM

Arelaçãoentrepaisagemenaturezaencontra-sebastantepresenteemestudos

nãoapenasliterários.Háatualmentetodaumapreocupaçãoperantearepresentação

dessanatureza,aqualestácadavezmenospresenteemnossasvidas.Faremosaqui

umareflexãodecomoessanaturezaétranspostaparaopoemapormeiodeumolhar

extremamente crítico e subjetivo, transfigurando, assim, essa paisagem como uma

percepção, como dito anteriormente, não só pessoal como também coletiva. Essa

paisagem, representada por tais autores, resulta da junção de um olhar pessoal ao

olharsocialsobreanaturezacircundante.

Assim como dito anteriormente, Jorge é um autor extremamente ligado às

questões imagéticas. Há uma representação assim como uma alusão a questões do

mundoexternoquese fazempresentesemsuaescrita.Alvesafirmaque“Fernandes

Jorgemanifestaumaextremaatençãovisual.Osujeitolíricodetémoseuolharsobre

paisagens externas e internas, sobre as coisas do mundo e sobre as sensações

interiores,vendoemtudoafugacidade,aausênciaeaperda”(ALVES,2012p.42).

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No poema “Entre Fajãs”, presente no livro Bellis Azorica, torna-se possível

observar essa relação não apenas com o mar, mas também com uma paisagem de

“ausência”:

EntreaFajãdosCubreseaCaldeiradeSanto/Cristo ficaumapequenaaldeiaabandonada—/eusei,apalavraaldeianão fazparteda/geografiaaçoreana,mas é uma das palavrasmais / perfeitas do português—Fajã doBelo, / se omapadeS.Jorgequepossuonãoestá/errado.Obasaltodascasassemtelhae/murosderuínafaladoabandonodeséculos.De/muitosanosseráetudoparecesofrer o rescaldo / de um incêndio ateado entre o mar e a escarpa / da ilha.Escombros / e uma sensível flora de naufrágio / guardam a cruz do cemitério(JORGE,1999,p.111).

Essa ausência é representada, por exemplo, a partir da repetição do conceito

“abandonada”,“abandono”.Faltaumdono,nãohápopulação,a“pequenaaldeia”está

vazia. Essa imagem é criada também a partir da relação de contrastes entre locais

planosvazioseumaimensidãoqueérepresentadapelomar.Háumincêndio“entreo

mareaescarpa/da ilha”(JORGE,1999,p.111).Essarecorrênciadosentre-lugares

tambémse fazpresentenopoema.Alémdo trechoanteriormenteapresentado,háa

ideia: “Entre o Fajã dos Cubres e a Caldeira de Santo”, ou seja, há uma lacuna, um

espaço de ausência. Outros vocábulos reforçam essa falta: “sem telhas e muros de

ruína”,“naufrágio”,“cemitério”.

Lidiane Silva (2013, p. 02) afirma que, assim como a ligação com omístico é

relevante aos estudos das construções de identidades nacionais, a relação com o

espaço físico tambémexerceumpapel fundamental.Anatureza seria inserida como

cenário ou ainda como cúmplice de fatos históricos ou pessoais na literatura. Uma

paisagemquepodeserlidacomoamediaçãoentreanaturezaeohumano.Silvaainda

propõeque“[m]uitosautoresutilizamelementosdanaturezacomoformadedialogar

comouniversoíntimoecomomundoexterior.Napoesia,porhaverumalinguagem

mais sintética, é comum que seu apontamento seja revestido de maior simbologia,

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portanto, faz-se necessário recorrer a materiais diversos para que se elabore uma

interpretaçãoacercadetaiselementos”(SILVA,2013,p.02).

Essanatureza,queémediadapelohomeme transpostanapoesia,estánãosó

presenteemJorge,comotambémnaescritadeCouto.Esseolharsobreomarnaobra

doautormoçambicanoéextremamenteíntimoepessoale,aomesmotempo,coletivo.

Épossívelperceberisso,porexemplo,nopoema“Alágrimaeobúzio(2)”,presenteno

livroVagaseLumes.

Todo o nascer é um regresso: / quem nasce apenas renasce. // Em tudo quedesponta/háumrefluirde rio / inundandoumvazio espesso,umcoágulodemar/sobumcéudegesso.//Todooparto/éumdesdobrardeasas,/ terrabrotandodeáguaincerta,/sombrasdeave/sobreamãoaberta.//Tudooquebrota/éumecodoqueaindavainascer/umavozqueemcantosedesfez.//Tudofingeaprimeiravez/Antiga,/emnós,apenasavozdomar./Ealágrimaéumbúzio,/umfiodenada/seausentandodevagar(COUTO,2014,p.22).

Há,logodeinício,umaassociaçãoreligiosaperanteavida[“quemnasceapenas

renasce”(COUTO,2014,p.22)].Ouseja,háassimumavisãoquantoaociclodavida,

emqueháareencarnação.Umavisãonãosomentedoautor,pessoal,comotambém

umaquestãoculturaldeseupaís.Umavidaqueéfeitadeciclos,derenascimentos.Por

issoumrespeitoecarinhotãograndepelosmaisnovosassimcomopelosmaisvelhos.

Afinal, sãoessesqueestãopróximosdo “início” e “fim”davidamundana, tendoum

contatomaior comos seus ancestrais.O fimnãonecessariamente édefinitivo. Pode

serapenasumnovocomeço.“Tudooquebrota/éumecodoqueaindavainascer/

uma voz que em canto se desfez” (p. 22). Essa representação do ciclo está também

presentenametáforado“eco”.Bateevolta,acaba,masnãodefatotermina.Ademais,é

possível perceber a condiçãoque essa águapossui em relação a vidahumana: ela é

necessária: “Em tudo que desponta há um refluir de rio” (p. 22). Ou ainda “terra

brotandodeáguaincerta”(p.22).

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4.ACONSTRUÇÃODAMEMÓRIA

Em um contexto pós-moderno, em que teorias reforçam a ideia de uma

construçãohistóricapautadanaconvergênciacultural,épossívelassociaraprodução

e estruturação da história entre Portugal e Moçambique, sendo transposta pelas

escritas de Jorge e Couto. Parafraseando Martin Heidegger (1954), em Building,

Dwelling, Thinking, (apud BHABHA, 1998, p. 19), uma fronteira não é o ponto onde

algotermina,mas,comoosgregosreconheceram,afronteiraéopontoapartirdoqual

algocomeçaasefazerpresente.

Poéticasque,assimcomofoicolocadoanteriormente,trabalhamcomumolhar

críticoarespeitodeumarelação imagéticadaágua.Pormaisqueestejamos falando

emcontinenteseculturasdiferentes,hámuitodeumaintersecçãoentretaisescritas.

Em nossa contemporaneidade, é complexo tratar de questões pura e simplesmente

internas, sem levar em consideração o total, isto é, não se tem como tratar da

construçãodamemória,nãosóemrelaçãoaumpaíscomoaumescritor,sem levar

emconsideraçãoasquestõesquefogemdessecenáriomaisrestrito.Reforçandooque

foidito,HomiBhabhanosdizqueo “reconhecimentoquea tradiçãooutorgaéuma

forma parcial de identificação. Ao reencenar o passado, esse introduz outras

temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da tradição. Esse processo

afasta qualquer acesso imediato a uma identidade original ou a uma tradição

‘recebida’”(BHABHA,1998,p.21).Assim,arepresentaçãodeumamemóriahistóricae

cultural nada tem de totalmente isolada; há uma possível convergência entre tais

construçõespoéticas.

Couto,emTradutordeChuvas(2011,p.33),nopoema“Dugongues”,mostraessa

relaçãodeumaconstruçãodamemóriaatravésdapráticaescrita.

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Pormaisqueàterra/noscondenemos,/nãoseapagaemnós/alembrançadaágua/dequesomosfeitos.//Sobreapeleaflordesal/emnadanosacrescenta/aooceanoquejáfomos.//Promessa/deeternoretorno,/viagemfeitasóparaganhar saudade, / apenas em nós o mar é infinito. / Para os demais seresmarinhos, / o inteiro oceano / não é mais que um pátio de infância (COUTO,2011,p.33).

Logo no início do poema, fala-se sobre essa “lembrança da água” que “não se

apaga” (COUTO, 2011, p. 33). Assim, há uma imagética da água relacionada a uma

construçãodememóriacoletiva(“nãoseapagaemnós”).Paraoeulíricodestepoema,

esse mar é “infinito”, representando ainda essa questão histórica de um local de

passagem, demudanças. É através dele que viajam, não só osmoçambicanos, como

também os portugueses. Uma questão que reconstrói essa memória, de um fato

histórico que influiu na vida dessas pessoas. Uma “viagem feita só para ganhar

saudade”(p.33),apresentaessarelaçãosocialquantoàimagéticadomar.Alémdisso,

colocaessemarrefletindonavidadetodosaquelessereshumanosquealiestavamou

estão, contrapondo-os aos animaismarinhos, como é o caso do Dugongues, que dá

nomeaopoema.

AssimcomoafirmaAlves(2008,p.2),otratamentodapaisagemcomoestrutura

significativadeinteraçãocultural,permiteaindaumareflexãodebasesociológicaem

torno do conceito de fronteiras, diversidade cultural e entrecruzamento de

perspectivas identitárias. As quais são questões pertinentes para a análise de uma

literatura oriunda de um país periférico ou semiperiférico, com uma história

colonialista ainda em revisão, em confronto permanente com a brasileira e as

africanas.

Jorgenosmostra,emSobSobreVoz,que“[d]ascoisaspróximasdosvivos/ foi

construído este lugar. / Nem sequer imaginomeus joelhos / pousados nesta terra”

(JORGE,1987,p.18).Há,assim,aconstataçãodeumainegávelrelaçãoentrepassadoe

presente. O que há atualmente nadamais é do que o fruto do que foi cultivado no

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passado.Essepresenteérepleto, também,dememórias,memóriasessasquenãose

apagamemnós.Nãohácomoesquecerquemsomos, frutode tudoaquiloque já foi

realizado, construído e vivido. Em outro poema nomesmo livro, afirma-se que “[o]

tempo é qualquer coisa / que tem a ver com água / com deus demasiado largo /

explodindo” (JORGE, 1987, p. 14). Essaquestãoda água e construçãodamemória é

assimmais uma vez apresentada na poética do autor, com a água representando a

história, a memória da construção da nação e da cultura desses indivíduos. Dessa

forma, temosuma relaçãodessemar, dessa águaque vive constante na poética dos

doisautoresaquianalisados.

5.CONSIDERAÇÕESFINAIS

Asescritasdosdoisautores,pormaisquehajadiferençasespaciaiseculturais,

carregam em si afinidades que nos fazem refletir a respeito de questões históricas

fundidasàliteratura.Viajamosporcaminhosqueessaáguanospermitiutrilhar.Nãoé

umcaminhonovoemuitomenosinédito,vistoqueoutrosautoresqueantecederamà

escritadeJorgeeCoutoutilizaramtambémdessaimagéticadaáguapara(re)construir

umahistórialigadaaessemar,apresentarpoeticamenteumamemóriaqueperpassae

mergulhanessaságuas.Háummarquerepresentanãosomenteumaimensidão,como

uma ambivalência: é início, mas também fim; é invasão e liberdade; é mistério e

descobertas.

Por mais que a poética de Fernandes Jorge não seja puramente histórica, é

complexo dissociar sua escrita quanto à formação de seu país. Ainda que Couto

trabalheumpoucomaisdoqueFernandes Jorgeesseolharhistóricoemsuasobras,

tambémnãopodemostaxá-locomosendoumautorqueserestrinjaaesseconceito.

Há,assim,autoresextremamenteengajados,quebuscamapartirdesualíricacriticar

e,decertaforma,conscientizarequefazemistodeformabelaeintensa.Autoresque

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apresentamumariquezadeolhar,umaconstruçãopoéticamuito ligadaà imagética.

Como mote centralizador, tivemos contato com a escrita de um autor europeu em

comparação a um africano. Como já dito, autores com culturas, países e trajetórias

distintas,masquetiveramcomofiocondutorummarquefezcomqueessashistórias

eessasestóriasseinterligassem.

REFERÊNCIAS

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AJAGUNÇAGEMEMALGUMASOBRASREGIONALISTAS

JAGUNÇAGEMINSOMEREGIONALISTWORKS

DenisedeFátimaLessaAlves1

RESUMO: No Regionalismo, a violenta estrutura de poder autoritário dos coronéis é descrita emromancesbrasileiroscomoFogoMorto,deJoséLinsdoRego,OTronco,deBernardoÉlis,eChapadãodo Bugre, deMário Palmério. Todos narram as relações entre governo, coronel e jagunços. Nessaperspectiva, nosso objetivo é analisar as formas de representação da jagunçagem, traçando umparalelodesseaspectonessesromances.Palavras-chave:jagunçagem;representação;regionalismo.ABSTRACT: In Regionalism, the violent structure of the authoritarian power of the colonels isdescribed inBraziliannovelssuchasFogoMortobyJoséLinsdoRego,OTroncobyBernardoÉlis,andChapadãodoBugrebyMárioPalmério.Theyallnarratetherelationshipbetweengovernment,coloneland jagunços. Inthisperspective,ourobjective istoanalyzetheformsofrepresentationofthejagunçagembydrawingaparallelofthisaspectinthesenovels.Keywords:jagunçagem;representation;regionalism.

1. INTRODUÇÃO

Quando pensamos nas diversas formas de poder que circulam entre as obras

querepresentamaLiteraturaRegionalista,umadasquemaissedestacaéofenômeno

da formação e ação de jagunços, descrito em muitos romances brasileiros. Neste

artigo, especificamente, analisaremos as obras: Fogo Morto (1943), de José Lins do

1Mestranda,UFOP.

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Rego; O Tronco (1956), de Bernardo Élis; Chapadão do Bugre (1965), de Mário

Palmério; com o objetivo de entender as relações de similaridade e diferenças na

práticadajagunçagem,incluindonessaesteira,atítulodecomparação,GrandeSertão:

Veredas(1957),deGuimarãesRosa.

Este artigo pretende traçar um paralelo comparativo entre as práticas da

jagunçagem descritas pelos três autores regionalistas, para que, em certa medida,

possa se entender como a República brasileira funcionava em seumomento inicial,

vistoquehaviaumpactopolíticoentreoligarquiascomobaseparaocontrolepolítico

esocial,exercidopelafiguradocoronel,atravésdaaçãodosjagunços.

A intensa presença da violência na história do Brasil está intimamente

articulada com formas, temas, modos de produção, circulação e recepção de obras

literárias, e demonstra como essa sociedade foi construída desde a colonização por

meios violentos, em que a destruição, a barbárie, a escravidão, o autoritarismo e o

mandonismo,constituíramaspectosintrínsecosàformaçãodoBrasil.

A narrativa da violência descrita pelos autores regionalistas é caracterizada

comoparteintegrantedoprocessoqueconstituiaexploraçãocolonial,aorganização

predatóriaimperialista,ogenocídioindígena,aescravidãoaindapresentenoiníciodo

séculoXXemalgumasregiõesbrasileiras,opatriarcado,aspenalizaçõesemutilações,

osestupros,os linchamentos,osabusosdopoder,aexclusãosocial,atruculência,os

massacres,eosdesmandosdosgovernos.Pode,também,emalgunscasos,reverberar

mecanismosdecontrolesocialeeducacionale,porsuavez,osregimesdetransmissão

emqueobraseautorespodemserexpressõesdeinteressesautoritários.Portanto,não

estáausentenessasobrasointeresseemabriradiscussãodedicadaàsrelaçõesentre

literatura, violência e política, visto quemuitos elementos sociais são considerados

decisivosparaacompreensãodetaisobrasliterárias.

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2. OJAGUNÇONALITERATURAREGIONALISTA

Em uma complexa estrutura de poder, composta por bandos de homens

armados, arregimentados para obedecer às ordens dos coronéis locais, a figura do

jagunçoaparecia comoparte imprescindívelparaqueas engrenagensdesse sistema

funcionassem. A ausência de condições de sobrevivência fazia com que o jagunço

obedecesseaquemoconcedesseemprego,proteção,moradiaealimentoaindaquea

preçosaltos.Eraherói/bandido,dois ladoscontraditóriosdeumavisãoambíguaem

meio a um cotidiano absurdamente bruto, pois, apesar da religiosidade e da

supersticiosidade, o bem e o mal, o certo e o errado, o justo e o injusto estavam

misturados na vida de quem, mesmo sem querer, precisava se colocar em um dos

lados.Nestesentido,Hobsbawm(2017)caracterizaobanditismonomeioruralcomo

umaformadeexerceraliberdadeemumasociedadenaqualpoucospodemserlivres,

easpessoasestãopresasaoduplogrilhãodosenhoredotrabalho,umreforçandoo

outro.

A vida do bandido/jagunço era uma existência complexa, visto que matava

quase sempreporvingançae/oua fimdeaumentar a famadevalente edestemido,

escorando as vítimas em tocaias e atalhos. Embora não concordasse com as ordens

quecumpria,equeo faziamtrilharumcaminhoqueconsideravaerrado,cultivavaa

esperançadeumdia,talvez,poderterumavidatranquila,apesardasmásrecordações

edosremorsospelasaçõespraticadas.

O poder dos coronéis era exercido pormeio de seus jagunços. Nosmandos e

desmandospor terras tãoencharcadasde sangueelesassumiamdamesma formao

quemoviaoBrasildenorteasul:aambiguidadedobemedomalencarnadanasmais

variadasmicrorrelaçõesinterpessoaisdasociedadedoséculoXX.

AntonioCandidoforneceumconceitopossívelparaotermojagunço.Paraele,

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[o]termojagunçoestáligadoàideiadeprestaçãodeserviço,demandanteedemandatário, presentes em disputas de famílias e lutas políticas, às ameaças debandos rivais em eleições, ao uso de meios brutais para liquidar ladrões eassassinos,assaltosdefesaserepressões.(CANDIDO,2011,p.106-107).

Especialmenteosertãoestava"infestado"degruposdecangaceirose jagunços

espalhados pelo interior, e era uma estranhapátria semdono, ignoradapelas leis e

instituições.O que restava aos sertanejos era o jugo da servidão e da violência. Era

urgente a necessidade do país de integrá-los à vida nacional, ao invés de enviar

exércitosávidosparadevorá-los,comofoinarradoemOsSertões(1902),deEuclides

daCunha,emqueosertanejoserevoltacontraaopressãodaselites,ecomprovaque

aselitesbrasileirasestavamcompletamentedissociadasdopovo.

Essa separação é amplamente percebida em todo o processo relativo à

proclamaçãoesolidificaçãodaRepública,quefoiconsideradaumavançopelosgrupos

dirigentesqueaencabeçaram,masmostroudurascontradiçõesnarealidade.Porisso,

todo o processo de construção damemória e consequente confecção do imaginário

políticosocialficouacargodestesmesmosgruposqueaidealizaram.Assim,navisão

deCarvalho(1995),emseuestudosobreaimplantaçãodaRepúblicanoBrasil,oque

ocorreufoiamarcadaausênciadapopulaçãoemtodoesseprocessodeconstrução.E

quando o povo aparece, desempenha papéis decorativos ou que legitimam os

interessesdealgumgrupoespecífico.Nessesentido,pode-seafirmarqueaRepública

não foi uma aspiração popular, pois o povo não se constituiu em agente ativo no

processo, especialmenteohomemdo interior, excluídodas “inovações”do litoral.O

sertanejo continuou sendo vítima do atraso e do descaso das autoridades devido à

distânciaexistenteentreoEstadoearealidadedopovo.

EmADialéticadaMalandragem(1970),ensaiocentralparaacríticabrasileira,

Antônio Candidomostra a generalidade e aomesmo tempodelimita, restringindo o

âmbitoespecíficoda(des)ordemnocenáriopolítico-socialbrasileiro.Descreve,entre

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SILVEIRA,A.H.AspectosdaNarração... 119

vários arquétipos encontrados na obraMemórias de Sargento deMilícias (1854) de

ManuelAntôniodeAlmeida,umtipoespecíficoquedenotaatípica“malandragem”tão

relatadanasobrasregionalistas,nasquaisamovimentaçãoentreolícitoeoilícito,a

ordemeadesordem,semumaausênciadelimitesclarosentreasduasesferaseque

manifestamconcretamentenasrelaçõesdosistemadepoderdogovernoqueorbitam

entre o público e o privado, aspecto comum da vida brasileira de um modo geral.

Candidoaindadestaca:

[...] mas porque manifesta num plano mais fundo o referido jogo dialético daordemedadesordem, funcionando comocorrelativo aoque semanifestavanasociedade daquele tempo, Ordem dificilmente imposta e mantida, cercada detodososladosporumadesordemviva[...].(CANDIDO,1970,p.80).

Nesse aspecto, as relações entre o jagunço e o bandido, o coronel e o Estado,

foras da lei e defensores da lei, não se definem em sua simetria ambivalente. Na

verdade,não seopõem,masdividemumespaçoonde sepercebeuma região lusco-

fusco,quemanifestaumarelaçãoperigosaearbitráriaentreaordemeadesordeme

constitui a dialética da ordem e da desordem. Pode-se dizer que há dois polos, um

hemisfériopositivodaordemeumhemisférionegativodadesordem.Essadinâmica

pressupõeumagangorradosdoispolos.Demonstraaoscilaçãoconstanteemquenão

hácertaausênciadejuízomoralenaaceitaçãodo“homem”comoeleé,tendoemvista

as circunstâncias que o envolvem em certo poder de negociação e manifesta uma

relaçãoperigosaearbitráriaentreaordemeadesordem,entreoEstadoeoscoronéis,

acoisapública,osinteressesparticulareseogovernosemque,muitasvezes,sepossa

dizeroqueéumeoqueéoutro,porquetodoscirculamdeumparaoutrocomuma

naturalidadequelembraomododeformaçãodasgrandesfamílias,dosprestígios,das

fortunasedasreputaçõesnoBrasilonde,diferentementedassociedadesque,através

dasuaorganizaçãoedasideologiasqueasjustificam,temdificuldadedeestabelecera

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SILVEIRA,A.H.AspectosdaNarração... 120

existênciaobjetivaeovalorrealdessesparesantitéticoseafrouxaoschoquesentrea

normadecondutaetornamenosrígidososconflitosdeconsciência.

Na narrativa deO Tronco, publicado em 1956, de Bernardo Élis, PedroMelo,

coroneldaregiãodeSãoJosédoDuro,personagemcentraldeumatramabaseadaem

fatoshistóricos,construiuumgrandepatrimôniopormeiodaapropriaçãodosbensde

seusdevedoreseinimigos,tudosobapressãoeaviolênciadeseusjagunços.Nocaso

do conflito denominado “o massacre do Duro”, ocorrido em 1918, entre as tropas

enviadas pelo governo estadual de Goiás e a família Melo, seus jagunços aliados

formaramumnumerosoexército:

EmArraias,umtropeirovindodaBahiacontaraqueDuroerajagunçosó.TodoopessoalvalentedasfronteirasdeGoiás,Bahia,MaranhãoePiauíestavareunidonoDuro.AliestavamAbílioAraújo,maisconhecidoporAbílioBatata,eRobertoDourado,famososcabos-de-guerraquealgunsanosantesassaltarametomaramacidadedePedroAfonso,reduzindoascasasaummontãoderuínasfumegantes;Calixto Chapadense, tão valente quanto João Dias de Boa Vista, e MiguelUmbuzeiro,ocangaceiroqueatacavarezandoasexcelências.(ÉLIS,2008,p.65).

Apesar do relato da movimentação de jagunços contratados em ocasião ao

conflito,ojagunçonanarrativadeBernardoÉliséaforça,obraçodireitoearmadodo

coronel. No romance O Tronco, esses homens apresentam-se sem voz e quase

anônimos, numa clara sinalização narrativa da sua reificação. Obedientes e

subalternosaos interessesdocoronel,dequemsãoapenasinstrumento,os jagunços

sãoobrigadosasesubmeteremàslutasecolocaremriscoasprópriasvidas,temendo

os castigos praticados pelo coronel, que avisava que o meio singular de saída do

serviçodosMelosseriaunicamenteamorte.

OúnicodiálogoentrejagunçosemtodoromanceéodeBelisárioeCasimiro,em

quepodemos observar a recusa dos vaqueiros emvoltar ao serviço da jagunçagem,

pordesejaremapenascuidardogadoeporseremvaqueirosporofício,empregados

docoronelMelo.Osvaqueiroserammantidoscomoemumcativeirodevidoàsdívidas

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que eram obrigados a contrair para manterem a subsistência, criando assim uma

nítida relação escravocrata entre patrão e empregados. O narrador de O Tronco

destaca:

—Eucánumvou.Numvounessastropeliasdocoronel.Estouaquiparacuidardo gado e não para fazer arrelias. Se eu gostasse de cangaço, estava mais osjagunçosdePernambuco [...],nãovouobedecerde jeitonenhumochamadodocoronelArtur.Bemqueelemandounomeuretiro,faloupramimassimqueeraparacompareceragrota[...].Levarcavaloerepetição[...].Essenegócioderifle,eulogopenseicomigo,épraproeza,comoàqueleataquenoCartório,emquadradeReis[...],naquelaeudesconhecia,masnãomepegammais[...]. Jeitonenhum[...].CasemirotambémtinhasidochamadoparacompareceràGrotaetinhamedodeir.—Eunãogostodebriga,compadre.Nemnumseidartironenhumnada[...].—PoiséquasegritavaBelisário.—Tuvaiémorrerquenempassarinho.Vainãomenino.Largaissopralá!—Odiaboqueagentedeve[...].—Ecomoládiz:quemdeveécativo[...]sósepagar.—Pagar, pagar!Tu tábesta, sô! Sevocênão fizer feitooNorato, tunumpaganuncamais.Quementraparaoserviçodeles,quandosaiéparaacidadedospésjuntos.(ÉLIS,2008,p.44-45).

Dessa forma, Cassimiro e Belisário encontram-se como escravos em cativeiro

dos Melos sem possibilidade de mudança de vida, sendo obrigados a praticarem

crimesparasatisfazeremopatrão,apesardenãodesejarempermanecernessaprática.

Contrastando comesses jagunços locais submissos e amedrontados, aparecem

os jagunços aliados do coronel para o ajudarem no embate. Esses aliados eram

conhecidospelousodeextremaviolênciae impiedade,e foramosquesaquearama

cidadedePedroAfonso,quefoiocupadaporjagunçosecangaceirosvindosdaBahia,

Maranhão e Piauí, chefiados por Abílio Araújo (Abílio Batata). Após três dias dessa

ocupação,PedroAfonsofoitransformadaemummontederuínasfumegantes.

OconflitochamadodeoMassacredoDuroaconteceucomachegadadastropas

do governo, que já eram esperadas na Vila de São José do Duro, local que foi

transformadoemumquartelgeneral,oumesmoumapraçadeguerra.Obatalhãoda

polícia,mesmocomarmasdanificadasemuniçãovelha,marchoudurantemesesaté

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chegaraolocal.Paraoembate,juntaram-seosjagunçosdeArturMelo,filhodePedro,

eosqueforamcontratados,AbílioBatata,RobertoDorado,entreoutros,comoaliados

oriundosdaBahiaedoPiauí,estadosvizinhosdeGoiás.

Ajagunçagemlocal,compostaporhomenssimples,boiadeiroseagricultoresem

suamaioria,foimovidapelasameaçasdocoronelquedesejavaorestabelecimentoda

ordem das coisas. Para isso, lutariam por uma causa que não era própria,mas dos

patrões.Poroutrolado,obandodeAbílioBatataestavadispostoamatareamorrer

paraqueo inimigoemcomumfosseexterminado,porémteriaumaboarecompensa

pelo serviço prestado. A narrativa afirma que foi um grandemassacre, centenas de

soldadosede jagunços forammortos.Oconflitodurouanos,permanecendo,mesmo

depoisdofimdabatalha,ossaquesdebandidosnaspropriedadeslocaiseabuscapor

fugitivos.

Já no relato de Fogo Morto (1978 [1943]), de José Lins do Rego, o líder dos

jagunços, Antônio Silvino, em uma clara manifestação de indignação contra os

desmandosdaselites locais, soltaospresos, cortaos fiosdos telégrafos, importante

meiodecomunicaçãodaépoca,edistribuiosbensdoprefeitoaospobresdacidade.A

narrativa afirma que, como ele não estava na cidade, sua esposa foi coagida pelo

capitãoaentregaraschavesdocofre,masassegurou-lhequeestasestavamempoder

domarido:“Fizesseeleoquebemquisesse.Eficounasaladevisita,tranquila,muda,

enquantooshomensmexiamnosquartos, furavamoscolchõesatrásdodinheirodo

velhoNapoleão.”(REGO,1978,p.205).

O Capitão Antônio, irritado por não poder abrir o cofre que estava na sala,

resolveudescerparaacasadocomérciodoprefeito,abriuasportaslargasemandou

queospobrescuriosos,queobservavamacenadarua,entrassemparaganhar tudo

que tinhano estabelecimento pelasmãos do capitão: peças de fazenda, carretéis de

linhas, chapéus,mantas de carne, sacos de farinha, latas de querosene, entre outras

mercadorias.Eaindaafirmaàpopulação:

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Podem encher a barriga. Este ladrão que fugiu, me mandou denunciar aogoverno. Agora estou dando um ensino a este cachorro. Em seguida mandousacudir os caixões de níqueis na rua. O povo caiu em cima das moedas comogalinhaemmilhodeterreiro.(REGO,1978,p.206).

O bando do capitão Antônio Silvino demonstra a revolta com as oligarquias

locaisqueodenunciaramaogovernoestadual, tomandoosbensdo ricoprefeito e

comercianteda cidadeparadar aospobres, espoliadospelospoderosos.MestreZé

Amaro, que nasceu nas terras do Coronel Lula, dono do Engenho Santa Fé, em

decadência, representa bem o povo ordeiro, trabalhador e esquecido do Nordeste,

que, percebendo a exploração, alia-se a Antônio Silvino e procura ajudá-lo no que

fossepossível.Porisso,quandodescoberto,foiexpulsodaquelasterraspelocoronel

Lula.O jagunçoSilvinoeraconsideradoumheróipelopovoedefensordospobres,

mastambémeraimplacávelcomaquelesqueconsideravaseusinimigos.

Neste sentido, pode-se associar Antonio Silvino ao conceito de bandido social

propostoporHobsbawm(2017),umavezqueesseshomenseramosexcluídosrurais

queolatifundiárioeoEstadoencaravamcomocriminosos,masque:

continuam a fazer parte da sociedade camponesa, que os considera heróis,campeões, vingadores, pessoas que lutam por justiça, talvez até mesmo vistoscomolíderesdalibertaçãoe,sempre,comohomensaseremadmirados,ajudadosesustentados.(HOBSBAWM,2017,p.36).

EmOTronco,osjagunçosestavamfixadosnaterracomovaqueiros,agricultores,

sitiantesqueerameternosdevedoresdocoronelPedro,aquemobedeciam.EmFogo

Morto, Antônio Silvino era reconhecido como aquele quedefendia os interesses dos

maisfracos,especialmentepormuitoscolaboradores,comomestreAmaro,quesupria

atropacomalimentos,remédios,roupaseinformações.Osataqueseramanunciadose

aguardados pelos defensores, que viam o cangaceiro Capitão Silvino como uma

espéciedeRobinHooddosertão,ajustiçaqueogovernoarbitrárionãofazia.

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EmChapadãodoBugre(1965),deMárioPalmério,temosumahistóriadelutas

entrehomensdeumarudezaquaseprimitiva.JosédeArimatéiaéorapazsimples,de

boaíndoleetrabalhador,cheiodeprojetosdevida,quesetransformaemummatador

frio, solitário e silencioso, com um desejo de vingança inextinguível. O narrador do

romanceexplicaqueofatodeocoronellocalnãoterdadoapoiopolíticoaocandidato

vencedor, ou ter demonstrado pouco empenho na campanha eleitoral, redundaria

numa perseguição política. Nessa perseguição, todo pessoal indicado pelo dirigente

local seria tirado do cargo, visto que uma das atribuições do potentado local era

indicarosfuncionáriospúblicosmunicipais.Nessecontexto,todobenefíciofinanceiro

era suspenso, inclusive os favorecimentos advindos dos conchavos políticos e

partidários, podendo acontecer, como ocorreu no romance acima citado e no de

BernardoÉlis,umaintervençãoseveracomoenviodetropasmilitaresparaaregião.

SobreissoCandidodestacaque

ChapadãodoBugrecomeçapelahistóriadeumdestinoindividualparasealargarpoucoapouco,emdecorrênciadasvicissitudesqueoenvolvemeseenquadram,num panorama bem traçado do coronelismomineiro sob as suas formasmaisdrásticas,asquesuscitam,organizamedisciplinamocrimecomoinstrumentodedominaçãopolítica.(CANDIDO,2011,p.109).

OcernedanarrativaseconcentranopersonagemJosédeArimatéia,umdentista

prático,queétraídopelanoivacomofilhodopatrãoeprotetor.Arimatéia,revoltado

com a traição, o mata, foge e se torna jagunço do coronel Americão Barbosa. Os

capangasdocoronelTonhoInácio,paidomorto,seespalhamportodaparteàprocura

dorapazeacabamassassinandoopaiadotivode JosédeArimatéia.Umcrimepuxa

outros crimes e, com isso, são enviados para Santana do Boqueirão um delegado

truculento, policiais e um juiz corrupto, interessado na captura emorte do dentista

para uma missão de extermínio. Essa ação do governo se explica pelo

descontentamentocomocoronelAmericãoBarbosa,devidoaoresultadodaseleições,

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como fica claro no trecho a seguir em que Cloudulfo explica aos chefes locais que,

ainda que o candidato vencedor das últimas eleições tivesse ganhado na região

sudoestedeMinas,aquantidadedevotosobtidospoderiaindicarpoucoempenhopor

partedosaliados:“[...]lhefaleiCoronel,lhefalei...agora,achamquetraímos...quenão

fizemos empenho nenhum, que deixamos o Coronel Eusébio, mas o Dr. Filigônio

trabalharemlivres.”(PALMÉRIO,1965,p.158).

Atraídos pelo convite de uma reunião oficial para esclarecimentos com o

delegado, o sargento, alguns policiais, os líderes e o coronel Americão foram

assassinados sumariamente dentro da sala de audiências, no fórum da cidade. De

todososqueforamconvidadosparaareunião,umdeleschegouatrasadoe,vendoo

movimentosuspeitoeumalinhadesangueescorrerpordebaixodaporta,conseguiu

fugir,pulandoajanela.SeuCloudulfofoipresoetorturadoparafornecerosnomesque

pudesseminteressaràsautoridades.Eleforaescolhidoporseromaisbeminformado

de todososque trabalhavamparao coronel, alémdesaberoparadeirode todosos

jagunços,capatazeseguarda-costas,criminososprotegidospelocoronelAmericão.O

nomedeJosédeArimatéia,quegostavadeagirsozinho,eraoprincipaldentretodos.

AntonioCandidoressaltaque

[a]pesar da narrativa movimentar em torno do drama individual, o contextosocial de Santana do Boqueirão, nome possivelmente fictício de algumalocalidadedoTriânguloMineiro,elaapresentaoscostumessertanejoseapolíticadaviolênciajustificadapelaviolência,numaordemsocialtorcida,tendoporbasea imposição e a exploração do trabalho criminoso do jagunço individual.(CANDIDO,2011,p.112).

Essa característica de Chapadão do Bugre ressalta um princípio necessário

responsávelpelofuncionamentodegruposfamiliaresesuasclientelasnasinstituições

de poder, que se desmembram e organizam-se demodo que, do aspecto individual,

passa a uma ordem em que todos se voltam contra todos. O governo, com seus

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representantes, torna-se o tribunal do crime, conseguindo informações através de

torturaeosnomesdospossíveiscriminosos,assimconsideradospelogoverno,para

então exercer julgamentos, sem direito à defesa, condenando àmorte e executando

penas.Corroborandoessaideia,Candidoressalta:

A segunda reação é do oficial Evaristo Rosa, que, possuído pelo sentido quaseesportivodocaçador,cujafinalidadeéadestruiçãodacaça,terminaelevandoasua brutalidade ao nível dos princípios e nutrindo uma espécie de revolta dehomem justo contra os burladores da lei. No seu espírito bronco, trata-se demostrarquempodemais:mascomoajustificativadosseusatoséainfraçãodoadversário,elemisturaselvageriaesensodejustiça,comumfervorqueopoderálevaradesobedeceraossuperiorescivis.(CANDIDO,2011,p.112).

O jovem trabalhador foi transformado em jagunço pelas circunstâncias que o

envolveram.Aprincípio, sementenderporque suavida teveaquela reviravolta, ele

pode,aospoucos,refletircommaiscuidadoecompreenderque,atéocasamentocom

Maria do Carmo, que o antigo patrão propusera, acompanhado demuitas dádivas e

promessas,faziapartedeumplanoparalivrarofilho,Inacinho,deassumirecriaro

filho que a moça esperava. O patrão viu no novo morador da fazenda, um rapaz

corretoecumpridordeseusdeveres,umasoluçãoparaosproblemascausadospelo

filho. O desfecho da história se deu com amorte de Arimatéia em uma emboscada

realizadapelodelegadoEvaristoRosaesuatropa.

NellyAlmeida (1985) asseveraqueMárioPalmériodestacao tema comouma

grandeforçamotrizqueodirecionaparaarealidade,seprendeaolocal,aotempoeàs

figuras,buscandoarealidadequeobjetivaanarração.Dessaforma,entende-sequese

destacam na obra os traços psicológicos de Arimatéia, marcando-lhes o

comportamento,ocaráter,apontandoassituaçõesdequeparticipoueàsquaisreagiu.

Para efeito de comparação, citamos Guimarães Rosa (1908-1967), outro

romancista mineiro que resgata e reaviva o jagunço, na perspectiva de sua

humanidade, seusmedos, contradições, conflitos, angústias e crises existenciais, nos

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mostrando um jagunço vivo e latente, envolvido por um amor “impossível”, e que,

apesardeviveremguerra,desejavaterumavidatranquilanafazendaqueherdaria,

aoladodoamortranquiloecertodeOtacília.

Noromance,queécompostoporelementoscomoosertão,asdisputasdepoder,

as guerras entre bandos, a jagunçagem, o Diabo, Diadorim, a representação da

sociedade e a invenção de uma linguagem, Riobaldo é o chefe do bando que

enfrentariaHermógeneseseuscapangas.Eleeraaleieninguémousavacontestarpela

ausênciadaordemedapresençamoderadoradogoverno.Assim, ele impunha suas

ordens,comoserepresentasseoprópriogoverno.Sobreessepensamento,WilliBolle

afirma,emOBrasilJagunço;RetóricaePoética(2007),que“[a]encenaçãodebandode

criminososatuandonaregiãocentraldoBrasil,GuimarãesRosanãoretrataumpoder

paralelo,masopoder.GrandeSertão:Veredaséumretratoalegóricodopaís.”(BOLLE,

2007,p.144-145).

SobreGrandeSertão:Veredas,AntônioCandidodeclara:

No entanto, todos nós somos Riobaldo, que transcende o cunho particular dodocumento para encarnar os problemas comuns da nossa humanidade, numsertãoqueétambémonossoespaçodevida.Se“sertãoéomundo”,comodizeleacertaalturado livro,nãoémenoscertoqueo jagunçosomosnós. (CANDIDO,2011,p.117).

Essaafirmaçãotãocontundenteserefereaopensamentoqueocríticoapresenta

aoanalisaraformacomqueGuimarãesRosatrataaquestãodojagunço,vistoquefoi

umamaneiradiferentedasoutrasobrasbrasileiraserepresentaosproblemascomuns

da humanidade, assumindo o rosto de todos nós e conferindo a Riobaldo a

possibilidadedeexpressarsentimentosinerentesaossereshumanos,massilenciados

nosjagunçosdeoutrasnarrativas.

Riobaldo,fazendeiro,ex-jagunço,poetaeretórico,éonarrador-personagemque

apresentaorelatodesuavidaemumaposiçãodequempodecontarahistóriacomo

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distanciamentodotempo,oumelhor,dequematravessouotempoeahistória,como

seavisãodopassadojustificasseopresente,emumdiálogocomalguémaquemelese

refere como “senhor” ou “moço”, possivelmente o leitor, alguém interessado na

históriaequedesconheceosertãoeassuasleis.

ParaGustavoArnt(2013),oautorressaltaqueo“futurochefedobandocomeça

abuscarumnovocomeçoparasuavida,umcomeçoquepudessegovernarenãoser

governado,umcomeçoquefosse,emsuma,proprietárioenãopropriedade.”(ARNT,

2013,p.192).EsseéRiobaldoqueencontramosnaaberturadoromance,ofazendeiro.

Emalgunsmomentosdanarrativa,Riobaldodemonstraodesejodeterumavida

tranquila em um lugar belo e ao lado da futura esposa, longe da vida violenta que

levava.Oquesevêéaconcretizaçãodesseanseioapósaextinçãodajagunçagemdo

sertão pelas mãos do grupo do futuro fazendeiro, nem que para isso o jagunço

precisasserealizarumpactocomodiabo,tãocomumnoimagináriopopular.Opacto

dissipariaapossibilidadedepermanecerreduzidoàcondiçãodejagunçosubserviente

e elevar-se em honra em relação aos demais, além de trazer coragem, esperteza,

inteligência e capacidade para governar o bando e vencer a batalha final contra

Hermógenes.Eleofaz,porém,nãotemcertezaquantoàadesãododiabo.Comoafirma

Candido,“[o]pactodeixaverdemaneiramaisclaraoenxertodeumjagunçosimbólico

nojagunçocomum,easuafunçãotransformadoraenítidanocuidadocomqueoautor

baralhabruscamenteascondiçõesnormaisdoespaço.”(CANDIDO,2011,p.120).

Esse ato representaria um verdadeiro mergulho em sua insegurança e medo,

paraentãocaptar,nomaisprofundodeseuser,asegurançaqueprecisavaparaagir

como um verdadeiro líder. O Robaldo, indeciso e hesitante, passaria a agressivo e

inconsequente. “Agora, era que eume espirava só para arrelias e inconveniências.”

(ROSA, 2006, p. 427). A mudança de atitude foi notória a todos os companheiros,

inclusiveparaDiadorimqueesboçoucertodescontentamentoemalgunsmomentose

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emoutrospercebeuqueaquelasatitudespoderiam levarobandoàvitória contrao

piordetodososinimigos,Hermógenes.Nessesentido,Candidoindicaque

[o]segundotraçodojagunçocomomododeseréaalteraçãodocomportamentodeRiobaldodepoisdopacto.Sóentãopoderealizaroseualvodevingador,masdemaneiraestranha,poisnãoagediretamente,esóesboçaatosnãocumpridos,ordena sem fazer ele próprio e, afinal, apenas presencia. (CANDIDO, 2011, p.120).

Riobaldodeixaclaroquemoderavaaviolênciaporpartedeseuslideradospor

meio de regras claras, como acontecera no caso do sequestro da mulher de

Hermógenespelobando:elaerabemtratadaporordemdochefe,queprocuravaagir

com civilidade, como é descrito nesse trecho: “[e]u tinha era receio de que ela

adoecesse. Dei ordens de bom tratamento. Tanto a tanto, decidi disposto que não

entrasse com bruteza nos povoados, nem amolasse ninguém, sem razoável

necessidade.”(ROSA,2006,p.522).Ogrupoagoratratavaeeratratadocomcivilidade

pelos fazendeiros locais, ganhava presentes e obtinha benefícios. E, quando entrava

nas casas, nem o estupro, nem a violência desmedida eram utilizados ou mesmo

permitidos,paraquepudesseseevidenciarocontroleeoamadurecimentodo líder,

queentravaesaíademonstrandorespeitoatodos.Essasatitudesratificavamatroca

defavoreseinteressesmútuos.Nessesentido,MarcelMauss(2003)afirmaque

[a]s dádivas circulam [...] com a certeza de que serão retribuídas, tendo comogarantiaavirtudedacoisaqueédada...“tempo”énecessárioparaexecutartodaprestação. A noção de termo está, portanto, logicamente implicada quando setrata de retribuir visitas, contrair casamentos, alianças, estabelecer paz,participar de jogos e combates regulamentados, celebrar festas alternativas,retribuir serviços rituais e de honra, “manifestar respeitos” recíprocos, coisasessas que se trocam juntamente com coisas cada vez mais numerosas e maisricas.(MAUSS,2003,p.236-237).

O jagunçoseguesuanarrativaechegaaopontoemquesentequeoconfronto

definitivo com Hermógenes está próximo. Enfim chega o momento do embate.

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Riobaldovisualiza,doaltodosobradodaruaprincipal,olugaremqueseushomense

oshomensdeHermógenesguerreiam.AssisteàmortedeHermógenes,porDiadorim,

quetambéméferidoemortopelooponente.

Na lavação do corpo de Diadorim, colega do bando e amor “impossível” do

jagunço, descobre-se que ele, o homemde confiança do grupo, era na verdade uma

mulher, a única filha de JocaRamiro, que jurou vingá-lo e o fez,matandoo jagunço

responsávelpelamortedopai.Emboravencedordaguerra, caidoenteedeclara ter

acabado ali sua vida de jagunço. A decisão de abandonar a jagunçagem em um

momentodeglóriadobandotornapossíveladúvidasobreseRiobaldosentiu-seum

guerreirovitorioso,ouseconsiderou-selivredeumfardopesadoqueavidaviolenta

dejagunçolheatribuía.Tratava-sedeumamissãoasercumprida,e,aocontráriode

outros jagunços citados neste trabalho que viviam na prática da selvageria e

brutalidadedesmedida,mostravaquenem todosos jagunçoseramregidosporuma

vidaseméticaeausentedepropósitos.

3. CONSIDERAÇÕESFINAIS

Arnt (2013) afirma que seria precipitado afirmar que o romance de Rosa

encerrariaosistemajagunçoeapolíticaoligárquicadaRepúblicaVelha.Talafirmação

poderia, em parte, ser verdadeira, uma vez que, claramente, a ordem social e

econômica estruturada em torno do latifúndio foi de certa forma alterada,mas não

superada.Noentanto,quantoaessesistema,anarrativarosianapressupõeemcerto

sentidoumaespéciededialéticadiferente, jáqueo jagunço, edepois chefe jagunço,

Riobaldo, a despeito de sua ética “quase” cavalheiresca, pervertendo, portanto, o

modelo canônico de jagunço de “pau mandado do coronel”, torna-se ele mesmo

proprietárioelatifundiário,quandoherdaaSãoGregóriodopadrinho.

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Nãopodemosafirmarqueasobrasregionalistaspropiciaramumnovohorizonte

aopanoramadointeriordoBrasileseusproblemasnasociedade,vistoquenãohouve

mudançasradicais,porémprocessouemumlongoperíodoecontinuaaprocessar-se

ainda hoje, lenta e gradativamente. Está claro que ainda há um vasto campo de

manobraspara fugirdasoluçãonecessáriaeefetivaatravésdeumareformaagrária

queliquidecomolatifúndiosemifeudale,consequentemente,essaestruturadepoder.

Nestecenáriocomplexo,aliteraturaexerceueaindaexerceopapeldetrazeràtonaos

problemasdasociedade,mantendo-secomoumverdadeiroinstrumentodedenúncia

damarginalização,daviolência edamisériadas camadasmaispobresda sociedade

que apresenta o Brasil, unificando e revelando um país desconhecido para muitos

brasileiros.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA.ManuelAntôniode.MemóriasdeumSargentodeMilícias.SãoPaulo:Ática,1998[1854].ALMEIDA,NellyAlvesde.Estudosdosquatroregionalistas:BernardoÉlis,CarmoBernardes,HugodeCarvalhoRamos,MárioPalmério.Goiânia,EditoradaUniversidadeFederaldeGoiás,1985.ARNT,Gustavo.Sistemajagunço:adialéticaentrehomemprovisórioesujeitosdaterradefinitivosnoromance regionalbrasileiro. 231p.Tese (DoutoradoemLiteraturaBrasileira)―UniversidadedeBrasília, Brasília, 2013. Disponível em:https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/15973/1/2013_GustavoAbilioGalenoArnt.pdf. Acessoem:20jan.2021.BOLLE,Willi.OBrasil jagunço:retóricaepoética. InRevistaDoInstitutoDeEstudosBrasileiros,SãoPaulo,n.44,p.141-158,2007.CANDIDO,Antonio.DialéticadaMalandragem.RevistaDoInstitutoDeEstudosBrasileiros,SãoPaulo,n.8,p.67-89,1970._____.Váriosescritos.RiodeJaneiro:OuroSobreAzul,2011.CARVALHO, JoséMurilode.A formaçãodasalmas:o imagináriodaRepúblicanoBrasil.2ªed.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1995.

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CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 1902. Disponível em:http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000153.pdf.Acessoem17fev.2021.ÉLIS,Bernardo.OTronco.RiodeJaneiro:JoséOlympio,2008[1956].HOBSBAWM,Eric.Bandidos.Trad.DonaldsonM.Garschagen.5ªed.RiodeJaneiro/SãoPaulo.PazeTerra,2017.MAUSS,Marcel.SociologiaeAntropologia.Trad.PauloNeves.SãoPaulo:CosacNaify,2003.PALMÉRIO,Mário.ChapadãodoBugre.RiodeJaneiro:JoséOlympio,1965.REGO,JoséLinsdo.FogoMorto.RiodeJaneiro:JoséOlympio,1978[1943].ROSA,JoãoGuimarães.GrandeSertão:Veredas.RiodeJaneiro:NovaFronteira,2006.Recebidoem:21/01/2021Aceitoem:24/03/2021

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REPENSARHERÓIS:AREPRESENTAÇÃODASDISPUTASPELAPOSSEDE

TERRASNOPARANÁEMODRAMADAFAZENDAFORTALEZA(1941),DE

DAVIDCARNEIRO

RETHINKINGHEROES:THEREPRESENTATIONOFDISPUTESOVER

PARANA’SLANDINODRAMADAFAZENDAFORTALEZA(1941),BYDAVID

CARNEIRO1

JorgeAntonioBerndt2

ThianaNunesCella3

RESUMO:EsteartigoapresentaumaanáliseatualizadadoromancehistóricotradicionalOdramadaFazendaFortaleza(1941),deDavidCarneiro.Consideradooprimeiroromancehistóricoparanaense,apresenta como plano de fundo os controversos episódios desencadeados pela personagem deextraçãohistóricaJoséFélix,famosoeviolentosesmeiroquedominouabaciadoTibaginofinaldoséculo XIX. A narrativa, ainda permeada pelo viés positivista eurocêntrico, configura-se como umespaço emque o passado truculento contra as populações indígenas nos instiga à reflexão críticasobreahistóriatradicional.Palavras-chave:colonizaçãoparanaense;históriadoParaná;romancehistóricotradicional.ABSTRACT:ThisarticlepresentsanupdatedanalysisofthetraditionalhistoricalnovelOdramadaFazenda Fortaleza (1941), by David Carneiro. Regarded as the first Paraná’s historical novel, itpresents the controversial episodes triggered by the historical extraction character José Félix,famous and violent sesmeiro who dominated the Basin of Tibagi at the late 19th century, asbackground.Thenarrative,permeatedbytheEurocentricpositivistbias,configuresaspaceinwhichthe truculent past against indigenous populations instigates a critical reflection on traditionalhistory.Keywords:historyofParaná;Paraná’scolonization;traditionalhistoricalnovel.

1EsteartigoéresultadoparcialdeteseemdesenvolvimentonaUNIOESTE/CNPq.2Mestrando,UNIOESTE.3Doutoranda,IFPR/UNIOESTE.

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1. INTRODUÇÃO

Repensaropassado— e suasrepresentaçõesdiscursivas— temsidoumadas

práticas constantes da humanidade, seja ela realizada de forma saudosista, seja de

modo questionador, ou ainda em busca de repensar e melhor compreender o

presente. Nesse sentido, tanto a historiografia tradicional quanto as produções

literárias— em especial as narrativas híbridas de história e ficção— têm servido

comofontedeinformaçõesesolofértilàsproblematizaçõesdeeventospretéritos.

Frequentemente,essasnarrativas—sejamelashistoriográficasouliterárias—

apresentam os acontecimentos desde uma visada eurocêntrica, colonizadora e

(pseudo)burguesa. No espaço sociocultural latino-americano, essa tendência foi

replicadapelaselitesindependentistascriollas,neomonarquistaseseusdescendentes

que, no intuito de avalizar o status quo estabelecido, perpetraram as imagens

ficcionais e historiográficas provenientes dametrópole, as quais eram concebidas a

partir de posturas positivistas, centradas na ideia de progresso e na civilização

propiciada pelo homem branco. Em suas narrativas, essa postura causou o

alienamento ou o apagamento de sujeitos marginalizados e excluídos durante o

processo de conquista e dominação do continente, tal como os grupos autóctones

brasileiros.

Com a assinatura da Lei Imperial de número 704, que declarou o

desmembramentodoParanáemrelaçãoàSãoPaulo,encetou-seumprocessoanálogo

ao do continente: por vias oficializadas ou não, romancistas, poetas, historiadores e

jornalistas conceberam um movimento de construção identitária do Estado —

conhecido comomovimento Paranista. Como reflexo, uma imagem da trajetória do

estado é estabelecida, impregnada do sentido de progresso e modernização pela

ciência e condizente aos seus próprios princípios econômicos, sociais, políticos,

étnicos,eassimpordiante.Emtalcenário,autorescomoDavidCarneiro(1904–1990)

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deramespaço,emsuasnarrativashíbridas,àstemáticasdafauna,dafloraedahistória

do território, selecionando certos elementos em detrimento de outros, de modo a

narrativizaros“grandesacontecimentos”dapossedaterradoEstado.

É a partir desse panorama que propomos a análise do primeiro romance

históricoparanaense,OdramadaFazendaFortaleza,deDavidCarneiro,publicadoem

1941, com o intuito de, ao analisarmos sua composição ficcional, os deslindes

históricos,as circunscrições ideológicaseasproblemáticasdesseperíodo,possamos

favoreceracompreensãoeaproblematizaçãodoprocessodecolonizaçãoportuguesa

nointeriordoParaná.

Dessamaneira, buscamospropiciar a valorizaçãoda literaturaparanaense eo

reconhecimento da historiografia do estado, além de oferecer uma perspectiva de

leituraprovocadoradeelaboraçõescoerentessobrenossacompreensão individuale

coletiva do passado, bem como fortalecer os estudos voltados à potencialidade das

releiturasdahistóriapelaficçãocomoumarotacondutoraàdescolonização.

2. DISPUTAS PELA POSSE DA TERRA NO PARANÁ EM O DRAMA DA FAZENDA

FORTALEZA(1941),DEDAVIDCARNEIRO

Opassadoparanaenseépermeadoporepisódioscontroversoseviolentos,dos

quaisseenumeramosdiversosconflitosentreapopulaçãonativaeosbandeirantes

ou sesmeiros de terras que dominaram o território do estado até os anos finais do

séculoXIX.ComodesmembramentodaprovínciadoParaná, assinadaem1853por

DomPedroII,eaposteriorProclamaçãodaRepública,surgiramdiversosmovimentos,

autônomosounão, comoo simbolismoeoparanismo,quebuscaramconceberuma

identidadeculturaldo,agora,estadodoParaná,eaproximá-lodeumidealcivilizatório

e industrial. Nesse movimento, muitos intelectuais, sociólogos e historiadores se

evidenciaram,dentreelesestáDavidCarneiro.

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DavidAntonio da Silva Carneiro (1904–1990) foi um importante fundador da

historiografia paranaense. Descendente de família renomada, filho de coronel e

industrial da erva-mate, ele se destacou como historiador, romancista, poeta,

economista e engenheiro positivista. Escreveudiversos textos sobre a historiografia

doParaná,dentreelesOParanánaGuerradoParaguai (1941),OParanánahistória

militar do Brasil (1942) eO Paraná e a Revolução Federalista (1944), entre outros.

Também constam, entre seus textos não historiográficos, biografias, poemas,

memórias e as narrativas ficcionais Bárbara Heliodora (1945), Veralinda (1948) e

RastrosdeSangue(1971)4.

Representativodaprimeira fasedasnarrativashíbridasdehistória e ficção,O

dramadaFazendaFortaleza (1941)éoprimeiro romancehistóricoparanaenseque

encontramos até o momento. Após essa obra inaugural, David Carneiro publicou,

ainda, outras narrativas híbridas de história e ficção, tal como Rastros de Sangue

(1975), romance histórico tradicional que apresenta as disputas da Revolução

Federalista (1893–1895) como principal motriz da trama ficcional. Há, todavia,

especulaçõesdeoutrosromancesdeextraçãohistóricapublicadospeloautor,mas,até

omomento,nãofoipossívellocalizá-losparaumaclassificaçãoassertiva.

NaprimeiraediçãodeOdramadaFazendaFortaleza(1941),hátrêsparatextos

quecompõemofragmentoinicialdolivro:opanegíricoredigidoporDicesarPlaisant

aoautor,oprefáciodoescritorea introduçãodanarrativa.Noprefáciodoescritor,

após expor as razões biográficas e histórico-políticas que o levaram à escrita do

romance — mesmo sendo “mais como historiador do que como romancista”

(CARNEIRO, 1941, p. 08)—, o autor descreve as características que, segundo a sua

4NadissertaçãoOPercursoIntelectualdeumaPersonalidadeCuritibana:DavidCarneiro,defendidaem 2012, Daiane Vaiz Machado traça a trajetória intelectual de David Carneiro, investiga suanotoriedade e lista 89 obras publicadas de sua autoria, além de outras publicações em revistas,boletins e periódicos. Cf.: MACHADO, Daiane Vaiz. O percurso intelectual de uma personalidadecuritibana: David Carneiro. 2012. 167 f. Dissertação (Mestrado em História)— Setor de CiênciasHumanas,LetraseArtes,UniversidadeFederaldoParaná.Curitiba,2012.

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perspectiva, definiriam o romance histórico e, em um segundo lugar, expõe o seu

projetode figurar o casododramadaFazendaFortaleza, já relatado anteriormente

porAugustedeSaintHilaire (1779–1853),botânicoenaturalista francêsqueesteve

noestadoem1820:

Noromancehistórico,VERDADEEFANTASIAdevemestaremperfeitoequilíbrio,efoioqueprocureiestabelecernadescriçãodestedramasemsabersioconseguicomoesperava.[...]Verdadeiros,aqui,sãooenredo,sãoospersonagens,tantoosprincipaisquantoossecundáriose,bemassim,apsicologiadosatoresdessavidapassada, que foi vivida nos Campos Gerais do Paraná [...]. Imaginados são osvazios preenchidos da forma como fiz, subordinando-me, entretanto, aoscostumes da região, às tradições, colhidas no lugar, em diferentes épocas.(CARNEIRO,1941,p.08).5

Comopodemosabstrairdoexcerto,maisdoqueumainstânciacapazdeintegrar

osdiscursosdeextraçãohistoriográficaeficcionaldemaneirapolissêmica,oromance

históricoé,paraoautor,aharmoniadaverdadeobjetivamentetangíveledojogode

imagenscriadasapartirdocampoda“irrealidade”.Consequentemente,oseuprojeto

setornaumaestruturaestanqueemqueseencontram,nasentrelinhas,asnoçõesde

veracidade—quedevesercomprovadapelohistoriador—edeficcionalidade,cujas

nuancessãoimpostasporCarneiro(1941).

Nessesentido,destacamosqueanoçãodeverdadehistórica,apresentadapelo

autor,éatualmenteentendidacomopassíveldedeslocamentos,àmedidaemquese

modificajuntoàsperspectivasideológicas,lócusdiscursivo,momentohistórico.Além

disso, nossa intenção aqui não é distinguir o factual do ficcional, mas sim verificar

comoajunçãodessesdiscursosécapazdeproporcionarumanovaleituradopassado

ecolaboraremsuacompreensão,umavezque

5 Por incluirmos em nossas análises textos antigos, muitas vezes com linguagem arcaica,frequentementeháexcertoscomvocábulosemdesusooudesatualizados.Pornãoconsiderarmososmesmoscomoerrosortográficos,assimcomopelograndevolumedetermosobsoletos,optamospornãoutilizaratradicionalexpressãosic,masesclarecemosquetodasascitaçõesseguemfielmenteostextosoriginais.

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[a]verdadedahistóriasempremantémumladoescuro,nãoindagado.Aficção,suspendendoaindagaçãodaverdade,seisentadementir.Masnãosuspendesuaindagação da verdade. Mas a verdade agora não se pode entender como“concordância”.Aficçãoprocuraaverdadedemodooblíquo,i.e.,semrespeitaroqueparaohistoriadorsedistinguecomoclaroouescuro(LIMA,2006,p.156).

Com o objetivo de seguir os preceitos de uma história documentalmente

comprovada, cujas lacunas são preenchidas ficcionalmente, a narrativa é construída

por Carneiro (1941) com base na retomada de um cientificismo de teor

fundamentalmente colonial e positivista. Essa é uma característica própria dos

romanceshistóricosdaprimeirafaseestipuladaporGilmeiFranciscoFleck(2017),a

fase acrítica, em que são conservados as perspectivas e preceitos eurocêntricos

coloniais.

De acordo com Fleck (2017), a trajetória das produções literárias híbridas de

história e ficção pode ser dividida em três grandes fases: a primeira é a acrítica,

constituídapelasmodalidadesclássicaetradicional—nasquaisa ficçãosecoaduna

ao discurso historiográfico demaneira laudatória; a segunda émarcada pela crítica

desconstrucionista, formada pelo conjunto dos novos romances históricos latino-

americanos e a metaficção historiográfica — extremamente críticos e

experimentalistas; e, finalmente, a terceira fase, a críticamediadora, é representada

pelamodalidadedoromancehistóricocontemporâneodemediação—caracterizada

porumaconciliaçãoentreasduasfasesanteriores.

Cabe aqui assinalarmos que os exemplares da primeira fase são reconhecidos

por corroborarem com o discurso historiográfico hegemônico euro-branco-

falocêntrico. A modalidade romance histórico scottiano é estabelecida, como a

nomenclaturaprediz,apartirdosromancesdeWalterScott,aindanoiníciodoséculo

XIX,osquaisestabelecemosparadigmasbasilaresdaquiloquesetornariaaprimeira

modalidade do romance histórico: a narrativa apresenta ação em um passado

histórico muito anterior ao presente do escritor, no qual ocorre a inserção de um

relacionamento amoroso problemático na trama fictícia, cujos percalços se

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desenvolvem em uma atmosfera que integra eventos passados oficialmente

registradoseaçõesdepersonagenshistóricasmencionadasem fonteshistóricas.Ou

seja, o tempo, o espaço e a atmosfera dessas narrativas ficcionais são extraídos do

universo historiográfico tradicional e utilizados pela ficção, sem alterações

substanciais nas ações, nos seus agentes, nas causas e consequências, apontadas

anteriormentepelodiscursohistórico.Nessamodalidade, todosesseselementossão

pano de fundo para as ações inventivas em torno da relação amorosa dos

protagonistaspuramenteficcionaisqueocupamoprimeiroplanodadiegese6.

Jáparaamodalidadetradicionaldogênero,conformeFleck(2017),essaúltima

característicaédeterminante,poisnela“osfatoshistóricosnãomaisconstituem‘pano

defundo’,massãoelesoselementosprincipaisdadiegeseromanesca”(FLECK,2017,

p. 47). Logo, nos romances históricos da modalidade tradicional, os eventos e as

personagens de extração histórica passam ao primeiro plano narrativo e ocupam o

espaçodedestaquenouniversodiegético.Oseventosdopassadoeseusagentesnão

maisaparecemcomoconstituintessecundáriosaserviçodacontextualizaçãoparaas

ações de personagens centrais do universo ficcional, mas são narrativizados como

açõesprincipaisdadiegese.

A escritura deO drama da Fazenda Fortaleza (1941) se associa, portanto, ao

romancehistóricodamodalidade tradicional, pois os fatos epersonagenshistóricos

não mais habitam o pano de fundo narrativo. Na diegese, somos apresentados à

personagemdeextraçãohistóricaPadreAntônioPompeu,clérigodeCastro,nosanos

de1820.Oreligiosoéprocuradopelapersonagem,tambémdeextraçãohistórica,José

FelixdaSilvaPassos—eminentefazendeirodasterrasparanaenses—parafazer-lhe

umaconfissão.Nouniversoromanesco,aconfissão,quenãodeviadurarmaisdoque

6 Destacamos que, de acordo com Fleck (2017), apenas uma narrativa histórica na modalidadeclássica foi escritanaAmérica, trata-sedeMercedesOfCastile: or theVoyage toCathay (1840),deJames Fenimore Cooper, quem, ao seguir os parâmetros scottianos, deu início à temática do“descobrimento”daAmérica,iniciadanoromantismodosEstadosUnidos.

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poucashoras,estende-seporsemanas:passaporumvelório,ocorreduranteaviagem

atéaFazendaFortalezaeseprolongapelaestadiadoPadrenaFazenda.

A partir dessa confissão, a trama se desenvolve ancorada na verossimilhança

queoatoconfessionalimprimeàsaçõesrelatadas,aomesmotempoemque,mediante

encaixesnarrativosdeanalepseseprolepses,retomaaspectosdavidadapersonagem

protagônica, José Felix, como o fato de ele ser um reconhecido sesmeiro, Sargento-

mor,políticorígido,temidoerespeitado.

NaurdiduraficcionalnarradaporJoséFélix,esteenfrentaumdramaamoroso:

viveuumahistóriainfelizcomsuaesposa,Onistarda,eéessahistóriaqueoSargento

conta, em confissão, ao Padre Pompeu. É dessemodo que o protagonista inicia seu

relato, com explicações de sua vinda da Europa para o Brasil, como ficou órfão,

dependeu de familiares negligentes e foi salvo por um amigo, Antônio Ribeiro de

Andrade.

AvisãodeJoséFélixsobreopassadocolonialconfere,emumprimeironível,o

modo pelo qual o leitor recepciona as funções das personagens (como mulheres,

escravizados e indígenas), os acontecimentos extraídos da história do Estado e os

espaços e circunstâncias socioculturais figuradas. No romance de Carneiro (1941),

temos, assim,umaalternativaàvidadeuma renomadapersonalidadehistórica cuja

configuração, embora apresente traços ficcionais, não altera os feitos inscritos nos

discursoshistoriográficosapologéticosarespeitodeseuitinerárionoNovoMundo.

Assim,atrajetóriadeJoséFelixeseumalfadadorelacionamentocomOnistarda

—motivodaconfissãodoprotagonista—surgecomomotepararevelarumaespécie

de “retórica da modernidade” (MIGNOLO, 2020). Nessa construção discursiva, a

conquistadasterrasdaAméricaesobretudodoParanápromovidaspelotrabalhodos

europeus donos das sesmarias serve para, mediante a naturalização da relação de

exploração,civilizarosbárbarose incrédulosquehabitamtais localidades.Oprojeto

deCarneiro(1941)dáforma,então,aomitocentraldamodernidade:“omitofáustico,

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doprogressoinfinito,docontroledoplanetaemsuasdimensõesnaturaisehumanas

em favor de quem o controla.”7 (PALERMO, 2014, p. 99, tradução nossa). Posto de

outromodo,noromance,asfiguraçõesdaaçãodocolonizador—representativasdo

sistemacolonial—sãocapturadasemoldadasabalizandoumaimagemquenaturaliza

todo o processo de dominação, sob os termos de uma suposta contribuição à

modernidade.

A narrativização do passado paranaense, realizada em O drama da Fazenda

Fortaleza (1941), portanto, não cede espaço às visões indígenas — ativos

participantesdessepassadodasaçõesempreendidaspeloscolonizadoreseuropeusna

ocupação territorial —, cuja existência foi negligenciada no processo de registro

histórico da ocupação das terras do estado sulista brasileiro. Ao contrário, o

estrangeiroeuropeuéquemganhaavoz:dominadordosistemadelinguagemescrito,

eleinstauraeimpõeasuaversão.

A controversa figura de José Félix também é recuperada por Hellê Vellozo

Fernandes,emMonteAlegre,cidadepapel(1974)—umromancenoqualseefabulam

as atividades dos pioneiros da Indústria Klabin8, nas terras anteriormente

pertencentesaFélixedeixadasaosseusdescendentes.Emseutexto,cujasustentação

seencontranosapontamentosdeSaintHilaire(ocientistaeuropeuqueresidiucomo

exploradorportuguês,emCastro,noanode1820),HellêFernandescorroboracoma

produçãodaimagemapresentadaporCarneiro(1941)esalientaasuarelevânciana

historiografiadoEstado:

ComooSr.JoséFélixeratambémmauparaosescravos,eraporestesdetestadotanto quanto pela mulher e a filha, e várias vezes eles quiserem assassiná-lotambém. Este desgraçado chegou a tal ponto de desconfiança, que tinha sob

7 No original: “el mito fáustico, del progreso infinito, del control del planeta en sus dimensionesnaturalesyhumanasafavordequienesdetentansucontrolomitofáustico,doprogressoinfinito,docontrole do planeta em suas dimensões naturais e humanas em favor de quem o controla.”(PALERMO,2014,p.99).8AinstalaçãodaindústriadepapeleceluloseKlabindoParanáépontofundamentalnoprocessodepovoamentodaantigaregiãodeMonteAlegre,atualterritóriodeTelêmacoBorba.

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chavesuasmenoresprovisõesefazia-lheabarbaoseuneto,deoitooudezanos.[...]NãopartideFortalezasenãoquatrodiasdepoisdeminhachegada;durantetodoesse tempo seuproprietário teve comigo toda sortede gentilezas. [...] Eraumhomemdeespíritoebomsenso;haviaestudadoemSãoPauloeconversavamuitobem;mas,noteiqueevitavafalardesi,deseusnegócios,doquelhediziarespeito e mesmo de tudo o que se relacionava com a região. Falávamos daFrançaedoRiodeJaneiro.(SAINTHILAIREapudFERNANDES,1974,p.19).

A retomada apologética do conquistador português, peculiaridade cara aos

romances históricos da primeira fase, é relevante para a nossa classificação de O

drama da Fazenda Fortaleza (1941) como um romance histórico tradicional: o foco

narrativoestácentradonavidadeumapersonalidadereconhecidapelahistoriografia

eocenárioéelaboradojuntoàmençãodefigurasefatosconsideradosautênticosdo

passado nacional e paranaense, inseridos na ficcionalização de um caso de amor

problemático. Esses elementos de extração histórica colaboram na contextualização

datramaenarepresentaçãoverossímildatrajetóriadeJoséFelix:

Quando me decidi a ir buscar ONISTARDA, já era um homem rico. Foram-meconfirmadasassesmariasdoTIBAGÍedoIAPÓ.BOAVISTAeucompráracomodinheirotrazidodosSANTOS.DepoiscompreimaisPIRAÍ-MIRIMquejustificariameu posto de capitão das ordenanças dos bairros em que está. Tinha 3.000alqueiresdaFAZENDINHA,4.000daFORTALEZA,14.000daTAQUÁRA,6.500deMONTE ALEGRE. Todas elas cheias de bois, dos quais forneci muitas rezes àexpedição de GUARAPUAVA. Já paramim não era necessário que o juiz viessecom sua vara brasonada com escudo das quinas, dar-me posse, repetindo aspalavrassacramentais,emnomedeEl-Rei,porqueD.JOÃOmesmo,confirmavaasminhas sesmarias e me louvava pelo exemplo que dava na entrada e noestabelecimento da minha FORTALEZA. Atrás de mim, fundaram-se logo,GUARTELÁ,afazendadoFUGAÇA,oCARAMBEÍ,oCAXAMBÚ...(CARNEIRO,1941,p.72,destaquedoautor).

Alémdeconferirverossimilhançaàtramaficcional,omodocomqueessesreferentes

históricos são apresentados confere o tom saudosista à narrativa, e servem para

“autentificararealidadedoreferente,paraenraizaraficçãonoreal”(BARTHES,2001,

p. 121), tanto no nível da história quanto do discurso. Essas estratégias também

mantêmaficcionalidadedatramaromanescaemsegundoplano,comoafirmaAlexis

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Márquez Rodríguez sobre essa modalidade, atendendo à veracidade dos fatos e

lugarescontemplados,“[...]semconcederàficçãonadamaisqueonecessárioparaque

seudiscursofosseconsideradoromanescoenãocrônicahistóricaouhistoriografia.”9

(MÁRQUEZRODRÍGUEZ,1996,p.39,traduçãonossa).

Frequentemente,ouniversoromanescosevoltaaopassadodePortugal,ainda

quedemaneirasuperficialesucinta,eabordaelementoslusitanosenvolvendodesdea

suaconstituiçãoatéosanosdogovernodeDomJoãoVI.Assim,quandoretomaosseus

feitosouaquelesdeseusantepassadoseuropeus,JoséFelixreconstróiopretéritode

formapatrióticaelaudatória,comopodemosverificarapartirdapassagememqueo

personagem-narrador começa a relatar o percurso de vida de seu pai e as

consequênciasdasaçõestomadasemsuainfância:“—Quandofoidaguerraentreos

doispaísesirmãosdapenínsula,ESPANHAePORTUGAL,ainvasãopeloladodanossa

província causou pânico em toda a população fronteiriça. Meu pai, JOÃO JOSÉ DA

SILVA, patriota exaltado, ardoroso e valente, partiu com as primeiras forças, como

livreatirador.”(CARNEIRO,1941,p.22,destaquedoautor).

Osexcertosacimacomprovamcomooselementosdahistoriografiaoficial são

inseridosnouniverso ficcionaldeOdramadaFazendaFortaleza(1941)edialogam,

assertivamente, com a perspectiva do discurso histórico hegemônico, voltado ao

enaltecimento dos sujeitos considerados modelos do passado para o presente,

conformeexpressaFleck(2017)seropropósitodosromanceshistóricostradicionais

daprimeirafasedogênero:“aintençãodaconstruçãodeumdiscursoqueexaltae/ou

mitificaoheróidopassado,pela aclamaçãode suasqualidadesepelovalorde suas

ações, revelando-o como modelo de sujeito do passado para o cidadão/leitor do

presente”(FLECK,2017,p.50).

Outra estratégia escritural empregada para garantir essa representação

supostamentefidedignadahistóriaéainserçãodenotasderodapénotranscorrerdo

9 No original: “[...] sin conceder a la ficción mas allá de lo estrictamente necesario para que sudiscursofueranovelísticoynocronísticoohistoriográfico.”(RODRÍGUEZ,1996,p.39).

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romance.Elasindicamfatoshistóricos,explicaçõese/oudocumentosquecomprovam

as informações apresentadas no texto ficcional, tal como “Documentos históricos

textuais, existentes no Museu Cel. DAVÍ CARNEIRO” (CARNEIRO, 1941, p. 48). A

aplicação desse princípio, além de se correlacionar ao princípio construtivo de

obediênciaàverdadeexpostopeloautoremseuprefácio, confereaoromanceoseu

alto grau de verossimilhança e sua disposição didática, próxima ao romance de

formação,aquelequebuscaensinaraoleitoraversãooficialdopassado(FERNÁNDEZ

PRIETO,2003;FLECK,2017).

EssamesmacaracterísticaéapresentadaemRastrosdeSangue(1971),naquala

personagem puramente ficcional Carlos Antonio Balster, conforme vários outros

jovens durante a Revolução Federalista, junta-se aos maragatos, para lutar como

sargento no episódio do Cerco da Lapa. Nesse romance histórico tradicional, o tom

didático é outorgado por meio do narrador em nível extradiegético que, com um

profundoconhecimentodas fontesdocumentais,descrevedetalhadamenteosplanos

de batalha, indica as principais movimentações militares e opina sobre essas,

construindoumquadroverossímildoepisódioedesuaspersonagens.

Em O drama da Fazenda Fortaleza (1941), José Felix é depreendido como o

típicoheróidesuaépoca, capazdearquitetaro seupróprio futuro, talqualumself-

mademanestadunidense:órfãorefugiadoquesetornoupolíticomilitarealcançoua

glória mediante a conquista de terras paranaenses que pertenciam aos povos

autóctones.TalascensãodoprotagonistaéobservávelporintermédiodoqueGérard

Genette (2017) denomina de a estrutura da duração dos grandes movimentos

narrativos da vida da personagem, e sujeita-se à caracterização da escritura

tradicional,comoenunciaCéliaFernándezPrieto(2003):

[…]osromanceshistóricosquecontinuamajornadainiciadaporScottmantêmorespeito pelos dados das versões historiográficas nas quais se baseiam, averossimilhançana configuraçãodadiegesee a intençãodeensinarhistória aoleitor. Mas eles fornecem interessantes inovações formais e temáticas que os

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separamdomodeloclássico,equeseconcretizamnasubjetivaçãodahistóriaenadissoluçãodasfronteirastemporaisentreopassadodahistóriaeopresentedaenunciação.(FERNÁNDEZPRIETO,2003,p.150,traduçãonossa).10

Assim, no relato de Carneiro (1941), a personagemde extração histórica José

FélixexpõeaoPadrePompeuoseudramaamoroso:casou-secomOnistarda,mesmo

acreditandoqueela amavaAntônioRibeirodeAndrade, eque comele jáhavia tido

relaçõessexuais,motivopeloquala julgava,maltratavaesupunhaquesua filhanão

fosselegítima.Onistarda,porsuavez,rebatiasuamaldadeeoinsultava.Ela,conforme

revelaodesenvolvimentodatrama,planejou,pormaisdeumavez,amortedomarido.

RessaltamosqueorelatoéiniciadopelavozautodiegéticadapersonagemJosé

Félix,sendointerrompido,frequentemente,pelavozhomodiegéticadePadrePompeu.

No entanto, quando chegam à Fazenda Fortaleza, instala-se, também, uma terceira

perspectivaextradiegética, comavozdeumnarradorheterodiegéticoqueassumea

enunciação, apresentando versões diversas da trama romântica, e passa a expor o

caráterviolentoesanguináriodograndeproprietáriodeterras.

Nesse sentido, algumas reflexões de Padre Pompeu são expressivas, pois a

personagem religiosa, cumprindo a sua função, passa a questionar o Sargento-mor

que,atéentão,eramuitorespeitadoeenaltecidoporele:

A conversa parou.O silêncio prolongou-se, tendo ficado ambos ameditar. PelocérebrodeANTÔNIOPOMPEUpassarammuitas hipóteses. Tinha, entretanto, aimpressãodequeoSargento,sinadalheocultava,quantoaosfatosdasuavida,ocultavanaquelemomento,ofundodoseucoração.Teriaconcebidoumapaixãodoentiapelafilha,desdequeasupuzeraestranhaaoseusangue?[...](CARNEIRO,1941,p.148-149).

10Nooriginal:“[…]lasnovelashistóricasquecontinúaneltrayectoiniciadoporScottmantienenelrespecto a los datos de las versiones historiográficas en que se basan, la verosimilitud en laconfiguraciónde ladiégesis,y la intencióndeenseñarhistoriaal lector.Peroaportan interesantesinnovaciones formales y temáticas que las separan del modelo clásico y que se concretan en lasubjetivación de la historia y en la disolución de las fronteras temporales entre el pasado de lahistoriayelpresentedelaenunciación.”(PRIETO,2003,p.150).

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Essa dúvida do padre, no entanto, é dissipada no transcorrer do enredo, pois

Félixdescobreumenganocometidoeperdoaaumescravo, fazendocomquePadre

Pompeureconsidereasuaavaliação:

Já estava inclinado a dar a dona ONISTARDA razão plena, e achar que ela,somente ela, era vítima, nesse estranho drama doméstico, quando a atitude dearrependimento sem restrições, daquele que era o orgulhoso e duro senhordaFortaleza,ofeznovamentecairemdúvida.Não,pensavaele,nãopoderiasertãomau um homem que descia do seu orgulho, da ira, do acastelado dospreconceitos,às lágrimasescaldantesdearrependimentomaiscompletoemaissincero. Mas decerto o mal se patenteava nas ocasiões em que tinha seusarrebatimentos; dessas explosões, por sem dúvida, teriam surgido o drama daFazenda Fortaleza, esse que estava vendo desenrolar-se sob seus olhos, emocasiãodecisiva.(CARNEIRO,1941,p.201).

ApersonagemPadrePompeué,aliás, figuraque,porapresentaraspectosmais

humanizados, veicula em seu discurso imagens e concepções que poderiam ser

considerados críticos em uma leitura anacrônica, mas que, no discurso ficcional,

reforçam as inter-relações entre a historiografia tradicional e a representação

ficcional, tal como pode ser certificado no trecho reproduzido a seguir, em que a

brutalidadeeaviolênciacontraosindígenassãoquestionadaspeloclérigo:

Fez-seumavalaprofunda,eaíforamjogadososcorpos.Porcimadeles,calviva,edepois, os sete palmos de terra; ficavam assim, por cima desses anônimosselvagens, que menos de meio século antes da vinda de JOSÉ FELIX para aFortaleza,eramosdonos,edonossemcontraste,detodasascircunvizinhanças,uns torrões de terra abundante que haviam possuido. Não é justo, pensava opadrePOMPEU,mastinhareceiodemanifestaraltoessasidéiasrevolucionárias;nãoé justoqueseespulsedoterritórioqueédeles,essagentenãoviveforadacivilização cristã somente porque lhe falta a instrução. E os civilizados, osbrancos, os cristãos, que é que lhes damos? Paz? Amor? Doçura? Instrução?Lealdade?(CARNEIRO,1941,p.218).

Contudo, aopermanecerapenasnoníveldopensamento,não se configurando

emqualqueraçãonanarrativa, taisquestõesservemapenaspararevelarao leitora

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“justiça”presentenointeriordorepresentantedopodereclesiásticonoromance,em

oposição ao sujeito comum, homem pecador. Esse enfrentamento entre as

personagens, emmaior oumenor intensidade, também é habitual nasmodalidades

textuais da primeira fase do gênero. Consoante a Fleck (2017, p. 44), é a partir do

enfrentamento entre as personagens principais e as secundárias que “se originam

algunsdosargumentosfundamentaisdatrama.Assim,umleitormaisatentopercebe

queosgrandeseventoshistóricostêmrepercussõesdiretasnocotidianodossujeitos

comuns”.

DentreosepisódioshistóricosrepresentadosnodeslindamentodeOdramada

Fazenda Fortaleza (1941), estão os constantes conflitos entre José Félix — e seus

homens—contraascomunidadesindígenas.Esseselementoshistóricossãotrazidos

constantementeà luz, sejapelas anedotas contadasaPadrePompeu: “Foidepoisde

uma batida forte, contra os índios, que resolvi esperimenta-los, arriscando-me.”

(CARNEIRO, 1941, p. 124); “Perto havia um capão de araucárias onde os índios às

vezesseescondiam.”(CARNEIRO,1941,p.125);e“ÉacasadoAçorianoquenoano

passadoos índiosmataram,deixandoaviúvadesolada...” (CARNEIRO,1941,p.130);

seja por meio das divagações de suas personagens, como podemos acompanhar

durante uma enumeração de preocupações do próprio Padre Pompeu: “[...] a luta

contraoscaingangueseaameaçacontínuadelesàfazendaondeoscivilizadostinham

uma tranquilidade apenas superficial” (CARNEIRO, 1941, p. 143). Essas alusões e

comentáriostambémtornamexplícitootomapologéticoàperspectivadocolonizador,

tomandoosindígenascomoseresnãocivilizados,quasedesumanizados.Apósumdos

embates,JoséFélixseguecomessatônicaaorefletir:

JOSÉ FELIX tambem pensava, durante a inhumação dos caingangues, na tristesorte daqueles homes, achando injusto que não tivessem uma consagraçãofúnebre,sóporqueeraminimigos.Achavabomedireitoquefossemespulsosdassuas terras; que fossemdominados, arrazados até.Mas faltava, segundo estava

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pensandonaquelemomento,aele,comovencedor,representantedosbrancosedosvencedores,edeD.JOÃO,reidePORTUGAL,umaconsagraçãocavalheiresca,àmoda antiga, um apresentar armas da vitória, ao herói infeliz, tombado parasempre,nainglórialuta...(CARNEIRO,1941,p.218-219).

TantoassuposiçõesdeFélixnotrechoacima,quantoasconsideraçõesdePadre

Pompeu sobre a vida dos escravizados, se coadunam ao que Marilene Weinhardt

(2004, p. 134) já identificou emRastros de Sangue (1971) como ummovimento de

atenuação ou defesa frustrada de episódios controversos e, muitas vezes, dúbios,

realizadosporpersonalidadeshistóricasdoParaná.Emdecorrência,aspersonagens

se irmanam a uma figuração que, apoiada pela postura positivista eurocêntrica,

encobreo teorcolonizadoreapologéticodaconstruçãodeuma imagemparanaense

pautada em heróis do passado responsáveis por incorporar os valores pátrios da

modernidade,dacivilizaçãoedoprogresso,mesmoqueparaissotenhamlançadomão

datruculência,dolatrocínioedomassacredegruposétnicosinteiros.

No mesmo sentido, podemos estender as considerações finais feitas por

Weinhardt (2004) sobreRastros de Sangue (1971) aOdrama da Fazenda Fortaleza

(1941), ao anunciar que, apesar de suas falhas, ela deve ser enunciada, estudada e

revisada,

[...]porrepresentarumtipodenarrativaque,malgrétout,temseupúblico,aindaque restrito entre indivíduos que, de alguma forma, por razões familiares oucircunstâncias geográficas, sentem-se ligados ou próximos aos episódiosrelatados.Comojáseobservou,o interessepelopassadonãoégratuito.Mesmoqueafaturaestéticadeixemuitoadesejar,aobrapodeterleitoresentrepessoasque identificam no discurso aquele universo que tem eco em suas evocaçõesparticulares, que apresenta um mundo ao qual estão atadas emocionalmente,aindaquesejaparacobrar fidelidadeàquiloqueacreditamserveraz,buscandonotextoescritooreflexodasimagensqueforjaramparaseusantepassadosedoespaçoemquevivem.(WEINHARDT,2004,p.134-135).

À continuação da narração, Padre Pompeu retorna para Castro, após diversas

tentativasdecolaborarparaaresoluçãodadifícilrelaçãoentreJoséFélixeOnistarda,

bem como entre sua filha Ana Luiza e o índio Maha-min. Depois de dois anos, o

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escravo Antão vem dar-lhe a notícia damorte de José Félix, a qual, não se sabe ao

certo, pode ter ocorrido por envenenamento ou por uma situação natural, cardíaca,

sendoaprimeirainsinuadapelapersonagem,queinclusiveacusaafiguradePompeu

decumplicidade.

Odesfechodahistória não é esclarecedor, o clérigo—e a tramanarrativa—

permanece na incerteza sobre o que aconteceu na Fazenda Fortaleza e a quem a

verdadepertence:

—Sim,pensavaopadre, eunãoseiquemtem,quemteve razãonesta tragédiaquehojeterminoupelavitóriadaastúciaoprimidacontraaforçaopressora...Nãosei,nãosaberei,nemninguémsaberájamaisqualdosdoisfoivítima,ouentreosdoisqual foimaisvítima,qualdosdoismais culpado...Doisdesgraçados foramvivendojunto.Elaviverádaquipordiante;sim,mascomodesinteressedeumafelicidadecomum,mortaparaacuriosidadedoshomens...Issofoioquepensou,encaminhando-se para a igreja, o padreAntônioPompeu. (CARNEIRO, 1941, p.249).

Dessaforma,ahistóriadeJoséFélixéfinalizadaeopercursodopadrecontinua:

“[...]foicaminhandoparaoaltarmórdeSANT’ANA.Quemoouvisseresmungar,nesse

momento,saberiaquefalavado[sic]malguardadosqueandamnaspequenasvilas,os

segredos grandes...” (CARNEIRO, 1941, p. 251). E a esses grandes segredos, cabe ao

discursoliterário,peloartificiodaficcionalização,recriá-los,resolvê-los,imaginá-los...

3. ALGUMASCONSIDERAÇÕESFINAIS

O artigo ora apresentado realiza uma análise do primeiro romance histórico

paranaense,OdramadaFazendaFortaleza,publicadoem1941,deautoriadeDavid

Carneiro,importantehistoriadordoestado.Anarrativa,pornósclassificadacomoum

romance histórico tradicional, narrativiza o processo de colonização da bacia do

Tibagi, a instalação do maior sesmeiro dessa região, e a personagem de extração

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históricaJoséFélixdaSilvaPassos,reconhecidoporsuaviolênciaeferocidadecontra

apopulaçãoautóctone.

Emsuanaturalizaçãodasrelaçõesdaexploraçãoindígena,oromanceperpetua

a postura enaltecedora da historiografia convencional, que é apresentada de forma

verossímil, juntoaodesenvolvimentodaproblemáticatramaamorosa.Nãopodemos

deixarde frisar,noentanto,queessaperspectivaconservadoraéconiventecomum

passadode violência, imposições arbitrárias, inúmeras chacinas e abusos cometidos

contra a população autóctone nacional, especificamente, nesse caso, contra as

comunidadesindígenasqueprimeirohabitavamoterritórioparanaense.

Nesse sentido, apoiamo-nos nas afirmações de Carlos Mata-Induráin (1995) ao

defender o papel exemplificador das narrativas híbridas de história e ficção, que

trabalhacomoindutoràreflexãodohomemcontemporâneosobresimesmoesobreo

percursodotempo,pois“aperspectivadopassadoseiluminacomosconhecimentos

do presente e, por sua vez, a compreensãodopassado enriquece a domundo atual

[...]11”(MATA-INDURÁIN,1995,p.59,traduçãonossa).Assim,tomamosasnarrativas

tradicionais mencionadas como propulsoras de reflexões e questionamentos

profundos, os quais convergem para a interpelação do passado paranaense e suas

implicaçõesnopresente.

Finalmente, verificamos que O drama da Fazenda Fortaleza (1941),

representativodasnarrativashíbridastradicionaisdehistóriaeficção,nosapresenta

umadasmuitasfacetasdopassadoparanaense.Possibilita-nos,pois, familiarizarmo-

noscommomentoslastimáveisdenossahistória,masquesãoimprescindíveisparaa

melhor compreensão de nossa realidade, instigando-nos à reflexão crítica sobre o

nosso passado, e os caminhos que, no presente, devem ser trilhados rumo à

descolonização.

11 No original: “la visión del pasado se ilumina con los conocimientos del presente y, a su vez, lacomprensióndelpasadoenriqueceladelmundoactual[…]”(MTA-INDURÁIN,1995,p.59).

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REFERÊNCIAS

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ACONDIÇÃODACLASSETRABALHADORANOTEATRODEJOEORTON

THEWORKING-CLASSCONDITIONINTHETHEATREOFJOEORTON

JonathanRenandaSilvaSouza1

RESUMO:EsteartigotemporobjetivoanalisarapeçacurtaTheGoodandFaithfulServant,de1967do dramaturgo britânico JoeOrton. Partindo do estudo dos temas e da forma utilizada, almeja-seressaltar a atualidade da obra, que dialoga com as condições de trabalho dos trabalhadores, emespecial na Grã-Bretanha do pós-Guerra. Propõe-se enfatizar a ligação entre teatro e sociedade,abordando aspectos políticos coletivos, especialmente a exploração dos trabalhadores no sistemacapitalistadeprodução.Palavras-chave:teatrobritânico;JoeOrton;mundodotrabalho.ABSTRACT:ThisarticleaimstoanalysetheshortplayTheGoodandFaithfulServant,from1967,bythe British dramatist JoeOrton. Departing from studying the themes and formused, it intends tohighlight the currentness of this play,which converseswith theworkers’ conditions, especially inpost-war Britain. It aims at emphasizing the connection between theatre and society, coveringcollective political aspects, especially the exploitation of the workers in the capitalist system ofproduction.Keywords:Britishtheatre;JoeOrton;worldoflabour.

1. INTRODUÇÃO

Dentreosmaisexpressivosdramaturgosdoteatrobritânicomoderno,a figura

de JoeOrton (1933-1967) sempre foi controversa, sejapelaspolêmicas geradaspor

suaspeças, sejaporsuavidaparticular trazidacomfrequênciaà tona.Chamadopor

Arthur Marwick de “escritor de farsas negras surpreendentemente originais”

(MARWICK, 1991, p. 118)2, sua morte prematura causou grande furor e atrai

1Doutorando,USP.2Todasascitaçõesdeobrasnãopublicadasemportuguêssãodenossatradução.

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curiosidadeatéosdiasatuaisporcontadacrueldadedocrimecometidoporKenneth

Halliwell,seuparceirodetrabalhoenamorado.

Ortoninsere-senumcontextodegranderenovaçãoteatral,notadamenteapósa

virada que representou a montagem da peça de John Osborne Look Back in Anger

(traduzidanoBrasilcomoGeraçãoemRevolta)noRoyalCourtTheatredeLondresem

1956. Toda a geração subsequente ficou notabilizada como osAngry YoungMen, os

“jovens irados”, referindo-se à juventude revoltada que protagonizava a obra de

OsborneeasdemaispeçasdaformateatraldenominadaKitchen-sinkdrama(“drama

de pia de cozinha”, em tradução livre), isto é, um realismo que se contrapunha ao

dramatradicionaldasaladevisitasburguesa,passandoacolocaremcenatambémas

classesmaisbaixaseseusproblemas.

Deacordocom JohnRusselTaylor (1962),umadas característicasdessanova

geração era o fato de seus dramaturgos pertencerem às camadasmais populares, o

que ajuda a explicar seu interesse por retratar as problemáticas das classes

trabalhadoras. Joe Orton, por exemplo, não finalizou os estudos na RADA (Royal

AcademyofDramaticArts)etinhaproblemasdeortografia,contrapondo-seaoscultos

escritores do passado. Dentre os expoentes dessa nova fase, destacam-se Arnold

Wesker,EdwardBond,HaroldPinter,JohnArden,PeterBarnes,entreoutros.

EssecenáriodemudançasocialeteatraléresumidoporJohnRussellBrown:

Não é acidente que JimmyPorter seja primeiramente visto lendo os jornais dedomingo e que fale de T. S. Eliot, Vaughan Williams, Estados Unidos, Ulysses,Emily Brontë, André Gide, Dante e um conjunto de ídolos culturais da moda,novasdistinçõessociaisequestõespolíticaspotentes.ArealidadedavidatinhaavançadoparaalémdosclichêsteatraiseOsborneestavalevantandotemasquepoderiam alcançar consciência no presente. Politicamente, intelectualmente esocialmente,eraummundoemmudança.(BROWN,1982,p.04-05)3.

3Nooriginal:“ItisnoaccidentthatJimmyPorterisfirstseenreadingtheSundaypapersandthathetalks aboutT. S. Eliot, VaughanWilliams,America,Ulysses, EmilyBrontë,AndréGide,Dante and ahostof fashionablecultural idols,newsocialdistinctionsandpotentpolitical issues.The realityofliving had moved ahead of theatrical clichés, and Osborne was raising topics that could achieve

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Em meio a esse cenário, já nos anos 1960, Orton escreveu, em sua breve

carreira, peças de destaque, como Loot (1964), que recebeu o prêmio Evening

StandardAward,montada tambémnoRoyalCourt em1967;EntertainingMr. Sloane

(1964),traduzidaparaoportuguêsporGertMeyercomoOVersátilMr.Sloane;eWhat

theButlerSaw(1969),montadapostumamente.NoBrasil,suapeçaLootfoitraduzida

pelaimportantecríticateatraleestudiosaBarbaraHeliodoraemontadaem1967sob

o títuloO Olho Azul da Falecida, no auge da Ditadura Militar, recebendo parecer e

cortesporpartedacensura.Mais recentemente,apeça foimontadapelaCia.Limite

151.NacoletâneadepeçascompletasdeOrton,TheGoodandFaithfulServant,escrita

em 1964 e exibida pela primeira vez na televisão em 1967, é a peçamais curta do

dramaturgo.

AobradeJoeOrtonatraiugrandeatençãoemuitorapidamenteoautoralcançou

sucesso dentro e fora da Inglaterra, tendo as peças Loot e Entertaining Mr. Sloane

montadas em Nova Iorque ainda durante a vida do dramaturgo. No Brasil, houve

relativointeresseporsuaspeças,provavelmenteemdecorrênciadopontodecontato

queamontagemdepeçasdeHaroldPinterproporcionouaoutrosautoresdageração

britânicapós-1956.

Diantedoexposto,esteartigo temporobjetivoanalisarTheGoodandFaithful

Servant (1998, [1967]), peça pouquíssimo estudada ou mencionada por teóricos e

críticos, tendo por norte seus elementos formais e temáticos. Inicialmente, serão

abordadasalgumaspeçasbritânicasque tematizamomundodo trabalhoe, ao final,

pretende-se ressaltar a atualidade da peça de Orton, com o intuito de apontar

desdobramentos e reflexões que a conectam com a situação vivida pela classe

trabalhadora.

presentawareness.Politically,intellectuallyandsociallyitwasachangingworld.”(BROWN,1982,p.04-05).

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2. OMUNDODOTRABALHOINVADEASALADEVISITASBRITÂNICA

Nocontextobritânico,arepresentaçãodaexploraçãodaclassetrabalhadoranão

é um fenômeno recente. As condições precárias de trabalho— cuja descrição e

documentação consta de forma abrangente nos escritos de Marx e Engels,

notadamente O Capital (1867) e A situação da classe trabalhadora na Inglaterra

(1845)—aparecemnomomentopós-Guerra,porexemplo,naconhecidapeçadeJ.B.

PriestleyEstáaíforaoinspetor,de1945,montadanessemesmoanopelaprimeiravez

emMoscou.Nessapeça,o suicídiodeuma jovemdaclasse trabalhadoravemà tona

quandouminspetorpassaainvestigaraconexãodeumafamíliadeindustriaiscoma

jovem e seus percalços em semanter empregada e sobreviver sob as condições de

trabalho do início do século XX. Postando-se ao lado do inspetor e do filho Eric, o

ponto de vista da obra tece uma crítica à exploração dos capitalistas sobre os

trabalhadores, considerando que a primeira demissão da moça advém de sua

conscientização e envolvimento na demanda por um aumento de salário através de

umagreve.

Emlinhasgerais,aobraLookBackinAnger(1956),deJohnOsborne,colocaem

cenaum jovemda classe trabalhadora e sua revolta diante da situaçãoprecária em

quevive.ApeçacausouumfurornaépocaprecisamenteportrazeraopalcodoRoyal

Courtasituaçãodasclassesbaixas,retratandonãoapenassuavidaapequenada,mas,

sobretudo, a linguagem dessa classe, constituindo uma afronta aos frequentadores

burguesesdoteatro,acostumadosaseveremnashistóriasalirepresentadas.

PeçascomoSerjeantMusgrave’sDance,escritaporJohnArdenem1959,trazem

tambémuma temáticaessencialàvidadaclasse trabalhadora:agreve.Esse tema já

aparece vagamente na peça de Priestley; entretanto, para esse autor, a greve é um

acontecimentopassadoque,aomodoibseniano,vemàfalaparaserdiscutidoerevelar

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algosobreaspersonagensnopresente,desdobrandoasconsequênciasdeeventosque

sepassaramnumtempoanterioràação—nocaso,acontribuiçãodaclasseburguesa

paraamortedeumatrabalhadora.

EmArden,porém,agreveestáacontecendoduranteoentrechoeasdemandas

dos trabalhadores, paralelas à ação principal, chocam-se com os propósitos do

sargentoMusgrave e seus subordinados, que vão a uma cidade do interior da Grã-

Bretanhaparadesmascararasatrocidadesdasguerrascoloniais.Apeça,considerada

sua obra de maior sucesso, emprega expedientes épicos à luz do uso feito pelo

dramaturgo alemão Bertolt Brecht anteriormente. No enredo, os trabalhadores

aprendempelavianegativaqueauniãocomasautoridades(umaaliançadeclasses),

aquioprefeito—donodaminaemquetrabalhame,portanto,seuinimigopolítico—,

opastoreopolicial,nãobeneficiasua luta,pelocontrário:desmobilizaosgrevistas.

Contudo, conforme relatado por uma das personagens, a taverneira Sra. Hitchcock,

essesmesmostrabalhadores,quesofremcomafome,poderãofuturamenteperceber

o erro cometido de terem traído a sua classe no enfrentamento ao contraditório

Musgraveeseumessianismo.

Temadecertarecorrêncianoteatrobritânicoemgeralecommaisdestaqueno

momentoderenovaçãodeformasetemaspós-1956,asituaçãodaclassetrabalhadora

apareceemváriasobrasdoperíodo,deArnoldWeskeraEdwardBond.Osexemplos

citadossãoapenasilustrativosdecomoointeressepelascondiçõesdostrabalhadores

emergem como assunto em Priestley, por exemplo, para, em Osborne, trazer os

trabalhadores à cena e, finalmente, em Arden, romper com o drama tradicional na

utilizaçãodeexpedientesépicosaolevaraopalcoumasituaçãodegreve.

Não se pode, porém, dizer que o tema e seus desdobramentos na forma

dramatúrgica tenham sido foco de Joe Orton. Ainda que se possa afirmar que suas

personagensemgeralpertencemaosestratoseconômicosmaisbaixosdasociedade,a

figura do trabalhador e suas condições de trabalho passam ao largo das peças de

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Orton.Entretanto,demaneiracômica,mascomcríticaácidaàexploraçãoperpetrada

sobreostrabalhadores,essetematambém“invade”aobradodramaturgocomapeça

TheGoodandFaithfulServant(1998, [1967]), focodenossaanáliseapósessebreve

preâmbulo.

3. AEXPLORAÇÃODOTRABALHADORNOPÓS-GUERRA:THEGOODANDFAITHFUL

SERVANT(1998,[1967])

EmpeçascomoTheGoodandFaithfulServant(1998,[1967]),Ortonsedebruça

sobre omodo como o indivíduo se encontra àmercê do sistema capitalista em sua

facetadomodernomundoempresarial.Percebendoaproduçãopós-1956,estavano

horizontedosAngryYoungMenretratarumarevoltadecorrente,entreoutrosfatores,

da exclusão das classes mais baixas da chamada sociedade afluente, a qual trouxe

acessoàsclassesmédiaealtaoquehaviademaisavançadonomundocapitalista.A

Ilha, recuperadadaguerra,desfrutavadeumperíododecrescimentoeconômico,no

qualobritânicomédioviajavamaise tinhaacessoaeletrodomésticoseautomóveis,

situação bastante diversa da carestia dos tempos da guerra. Porém, os jovens das

classes inferiorespoucoparticipavamdessenovopanorama, sendoexemplos Jimmy

Porter,deLookBackinAnger,osadolescentesdaemblemáticapeçadeEdwardBond,

Saved(1965),ouopróprioJoeOrton,umjovemproletáriodeLeicesterdeaspirações

literáriaseteatrais.

AocontráriodasdemaisobrasdeOrton,TheGoodandFaithfulServant (1998,

[1967])atraiupoucaatençãoporpartedacrítica.Emumabuscaembasesdedados,

inclusiveemindexadoresabrangentes,comooGoogleAcadêmico,épossívelencontrar

poucosestudosquecitemapeça.Emartigode2011/2012,apesquisadoraisraelense

YaelZarhy-Levo,ancorando-senasanálisesdeMauriceCharney(2008/2009)sobrea

peça—umartigoeumcapítulo—,defendeatesedequeacrítica,aoalçarumautor

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ao cânone, atribui-lhe um estilo particular e aquilo que se afasta dessa espécie de

padrão é postode lado. Em seus exemplos, elenca os casosdeHaroldPinter eTom

Stoppard.Oprimeiroérepresentativo,poisenvolve,assimcomoOrton,acriaçãode

umtermoquedefineumestilopróprio:Pinteresque—esse, inclusive,dicionarizado.

Em se tratandodeOrton,Ortonesque corresponderia emgeral ao farsesco,marcado

porhumornegroeapeloàsreferênciasgrotescasesexuais.

Seguindoaleituradaestudiosa:

Em concordância com a visão de Charney, parece provável, especialmenteconsiderandoquenãohácríticasdisponíveissobreaexibiçãodapeça,queaobranãoatraiunenhumaatençãodoscríticos.Porcontadafaltadeinteressenapeça,possivelmente advinda da percepção de que era incompatível com o recenteconstructodeOrton, e considerandoquea carreiradeOrton foi finalizada logodepois, o destino de The Good and Faithful Servant foi aparentemente seladocomodeumapeçaesquecida.(ZARHY-LEVO,2011/2012,p.93-94)4.

Investigar esse desconhecimento da peça, presumivelmente em decorrência,

entre outros fatores, de destoar do estilo de Orton, é também nosso objetivo neste

artigo. Em The Good and Faithful Servant (1998, [1967]), George Buchanan é um

trabalhadorquededicou50anosdesuavidaàempresa;apeçaseiniciacomsuaida

aosrecursoshumanosparaaassinaturadospapéisdesuaaposentadoria.Nocaminho,

encontra-se com a senhora da limpeza, Edith, que ele descobre ser uma antiga

namorada com quem teve um filho. Pondo em xeque a tese de que a peça foge do

constructodeOrton,temosdesdeoinícioascoincidênciastípicasdesuadramaturgia,

bem como as tiradas cômicas de humor negro que o notabilizaram: “EDITH. Eu era

4 No original: “In line with Charney’s view, it seems probable, especially given that there are noavailable reviews of the play’s broadcast, that the work failed at the time to attract any criticalattention.Becauseofthecritics’ lackof interest intheplay,possiblyderivedfromtheirperceptionthatitwasincompatiblewithOrton’srecentlyemergedconstruct,andsincetheplaywright’scareerwascutshortsoonthereafter,thefateofTheGoodandFaithfulServantwasseeminglysealedasanoverlookedplay.”(ZARHY-LEVO,2011/2012,p.93-94).

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atraente até os trinta. BUCHANAN. Durou tanto assim? EDITH. Daí eu tive minha

primeiradoença.”(ORTON,1998,p.154)5.

SeuencontrocomaSra.Vealfoy,responsávelpelosrecursoshumanos,também

dáotomdotipoderelaçãoqueaempresatemcomseusempregados.Porumlado,há

umtratamentofrioevazio:“Nósnãotemosabsolutamentenenhumaresponsabilidade

sobre seus outros membros. Se eles se deteriorarem, de nenhummodo a empresa

podeserresponsabilizada”(ORTON,1998,p.157)6—emreferênciaaobraçoperdido

deGeorge,provavelmentenumacidentedetrabalho.Poroutrolado,diantedamenção

dadescobertadeumneto,odomínioeocontroledaempresasobreotrabalhadorvêm

à tona: “BUCHANAN.Éumassuntopessoal.Minhavidaprivadaestáenvolvida.SRA.

VEALFOY. Se sua vida privada estiver envolvida, nós seremos os primeiros a lhe

informar sobreo fato” (ORTON,1998,p. 159)7. Considerandoa formadramatúrgica

escolhida, umapeça curta,Ortonvai direto aoponto epõe em funcionamento, cena

apóscena,umacríticamordazaocapitalismotraduzidonocorporativismomoderno,

articulandoseuhumorácido,quebeiraogrotescoemcertosmomentos.

Apósaassinaturadospapéis,aSra.Vealfoyapresentaaosdemaisfuncionárioso

recém-aposentadonumapequenacerimônia:

SRAVEALFOY.[...]Eleestáansioso,eusei,porumaaposentadoriaativa.Eécomaaposentadoria em mente que o pessoal de seu departamento, George, tem oprazerdelhepresentearcomestamaravilhosatorradeira,queeuacreditoseroque você queria [...]. E, como presente de despedida da empresa, eu tenho agrandesatisfaçãodelhedaresterelógioelétrico[...].Quandovocêolharparaele,selembrarádenós,tenhocerteza.(ORTON,1998,p.159-160)8.

5Nooriginal:“EDITH.IremaineddesirableuntilIwasthirty.BUCHANAN.Youlastedsolong?EDITH.ThenIhadmyfirstillness.”(ORTON,1998,p.154). 6Nooriginal:“Weareinnowayresponsibleforyourotherlimbs.Iftheydeteriorateinanywaythefirmcannotbeheldresponsible.”(ORTON,1998,p.157).7Nooriginal:“BUCHANAN.It’sapersonalmatter.Myprivatelifeisinvolved.MRSVEALFOY.Shouldyourprivatelifebeinvolved,weshallbethefirsttoinformyouofthefact.”(ORTON,1998,p.159).8Nooriginal: “MRSVEALFOY. […]He is looking forward, Iknow, toanactiveretirement.And it iswithretirementinmindthatthemenofyourdepartment,George,havepleasureinpresentingyouwith this very lovely electric toaster.Which I believed, iswhat youwanted. […]And, as a parting

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AconhecidaironiadeOrtonéutilizadaparalevaraoextremodoabsurdoedo

cômicoalgoquecertamentepoderia teracontecidona realidade:o relógioque faria

comqueBuchananselembrassedoscolegasdetrabalhoéexatamenteaqueleque,sob

o capitalismomoderno após a Revolução Industrial, rege religiosamente a vida dos

indivíduosno trabalho, suaprodutividadee seus esparsosmomentosdedescansoe

lazer.

Após seu pequeno discurso, a Sra. Vealfoy deseja encerrar prontamente a

cerimônia.AsrubricasdeOrtondemonstramporsisóacrueldadecomqueomundo

empresarialmoderno,travestidodegentilezas,trataaquelesqueomovem:

[SRAVEALFOYolhaparaorelógio.Émeiodiaemeia.]Bem, eu tenhoque terminar agoraporque imaginoque as senhorasda cantinaestãoimpacientesparacomeçaraserviroalmoço.Então,umavezmais,obrigada.Deusabençoe.E—obrigada—muitoobrigada.[...]. [A AUDIÊNCIA empurra BUCHANAN e SRA VEALFOY. BUCHANAN e SRAVEALFOYestãosozinhosaoladodamesa.]SRAVEALFOY. Certifique-sedeque entregará seuuniforme.Depois do almoço,vocêestálivre.Nãotemosmaisnecessidadedevocê.[Ela sorri e sai.BUCHANAN está sozinho. Ele pega os pacotes, se junta à fila doalmoço. Ninguém fala com ele, ou percebe sua presença. A fila anda] (ORTON,1998,p.160-161,grifosnooriginal)9.

Ortonnãoperdeaoportunidadededemonstrarasofisticaçãodessacrueldade.

DesdeapequenaexpressãodaSra.Vealfoy(“Deusabençoe”)eseusorrisologoapós

descartá-lo até a imagem da fila que “anda” e do relógio regulador de todos os

presentfromthefirm,Ihavegreatdelightingivingyouthiselectricclock.[…]Whenyoulookatit,you’llthinkofus,I’msure.”(ORTON,1998,p.159-160).9Nooriginal:“[MRSVEALFOYlooksattheclock.Itistwelve-thirty].Well,Ihadbettercometoanendnow,as I thinkthecanteen ladiesare impatient tobeginservingdinner.Soonceagain, thankyou.God bless. And― thank you― thank you. (…) [The AUDIENCE push past BUCHANAN and MRSVEALFOY.BUCHANANandMRSVEALFOYarealonebesidethetable.]MRSVEALFOY.Makesureyouhandinyouruniform.Afterlunchyou’refree.We’venofurtherneedofyou.[Shesmiles,andgoesout.BUCHANANisalone.Hepicksuptheparcels,joinsthelunchqueue.Noonespeakstohim,orisawareofhispresence.Thequeuemovesforward.]”(ORTON,1998,p.160-161).

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movimentosdosfuncionários,ossímbolosdaordenaçãoeregramentodomundodo

trabalho,nomomentopós-Guerra,seapresentamcomumaconfiguração“amigável”,

“cordial”.RepousaaquiadiferençaentreoqueevidenciaOrtoneaquiloqueosrelatos

de Engels retratam em se tratando do século XIX: a vileza do modo de produção

capitalista adquire agora uma face de pretensa “preocupação” com o trabalhador e

com seu bem-estar, pois evidentemente isso é condição para que se retire dele o

máximodeprodutividade.

Diantedadescobertadeumneto,Raymond,Buchanandesejaqueogarotodeixe

suavidadediversõescomoskatee“seendireite”,oquenapráticasignificaseguiros

passosdoavô.AalienaçãodeGeorge,quefoilevadoaacreditarqueapenasotrabalho

evidenciaovalordeumapessoa, transpareceempequenosdiálogoscomEdith,que

proporcionammomentos de humor bastante particulares da dramaturgia de Orton:

“BUCHANAN.Nãotrabalha!?[Eleencara,boquiaberto.]Oquevocêfazentão?RAY.Eu

curto.BUCHANAN.Issoéumacoisaterríveldesefazer.”(ORTON,1998,p.167)10.

Buchanan,comaajudadaSra.Vealfoy,garantiráqueogarotovoltea“andarna

linha”— “BUCHANAN. (…)Minha antiga firma ficaria feliz em te empregar por um

pequenosalário”(ORTON,1998,p.172)11—,especialmenteagoraquesuanamorada

Deborah está grávida. Sem que recorra ao expediente de suspense, o dramaturgo

deixaclarodesdeoprincípioqueRaynãopoderáseguirporoutrocaminhoquenãoo

do avô. Isso não impede, porém, que Orton coloque em funcionamento um humor

negroquemostrao futurosombrioqueaguardao jovem—tornar-se,aexemplodo

avô,acometidoporumquadrodeinvalidezedepressão:“BUCHANAN.Estoutentando

temostrarumavidadiferentedaquevocêestá levandoatualmente.Umavidaútile

construtivacomoaqueeuvivie—[Elecomeçaatossir.EDITHbatenassuascostas.]

10 No original: “BUCHANAN. Not work!? [He stares, open-mouthed.]What do you do then? RAY. Ienjoymyself.BUCHANAN.That’saterriblethingtodo.”(ORTON,1998,p.167).11 No original: “BUCHANAN (…) My old firm would be delighted to employ you for a smallremuneration.”(ORTON,1998,p.172).

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Oh,Cristo!Meuspulmõesvãoestarnotapetedaquiapouco”(ORTON,1998,p.175)12.

AdiscrepânciaentreodiscursodeBuchananesuacondiçãodesaúdeporumladosão

fontedehumore,poroutro,umacríticaàalienaçãoaqueotrabalhadorésubmetido.

Orton dispõe de situações cômicas ad absurdum para enfatizar o quanto o

trabalhadorétratadodemododescartável,comperversidadeedescaso:

EDITH.Ésuatorradeira.Funcionadeumjeitoestranho.Eorelógioétãoinútilquanto.Dizahoraquequer.[BUCHANANvaiparaaprateleiraepegaorelógio.]BUCHANAN.Estáindopratrás!Algumacoisaestáerradacomaspeças.[Eleviraorelógioeoderruba.]Oh!EDITH.Oquefoi?BUCHANAN.Medeuumchoque.Subindonomeubraço.[...]EDITH[comumencolherdeombros].Elesparecemmaisarmasmortíferasdoquepresentesdeumpatrãoagradecido.(ORTON,1998,p.177)13.

Enquantonoplanosimbólicoospresentesvindosdaempresamostram-secomo

mercadoriasbaratasquesevoltamcontraBuchanan,dopontodevistareal,davidade

George, a empresa também lhe relegou agravamentos físicos e psicológicos. Cada

detalheparecereforçarqueavidadeBuchananfoiextremamenteprejudicada,tanto

dentrodaempresa—quelhefezperderummembro—quantoforadela,emqueaté

orelógio,aquisimbolizandosuaprópriavida,andaparatrás.

Ortonteceinúmerosdessesparalelosnapeça,quepoderíamosatécaracterizar

como similares a gestus brechtianos — cenas, gestos ou falas de personagens que

12Nooriginal: “BUCHANAN. I’m trying to showyou adifferent life from theone you’re leading atpresent.Auseful and constructive life such as I’ve led and― [Hebegins to cough. EDITHpats hisback.Oh,Christ!Mylungs’llbeontheruginaminute.”(ORTON,1998,p.175).13Nooriginal: “EDITH. It’s your toaster. It carrieson in amost eccentric fashion.And the clock isaboutasuseful.Tellswhatevertimeitfancies.[BUCHANANgoestotheshelfandpicksuptheclock.]BUCHANAN.It’sgoingbackwards!Something’swrongwiththeworks. [Heturnstheclockoveranddropsit.]Oh!EDITH.Whatisit?BUCHANAN.Gavemeashockitdid.Rightupmyarm.[…]EDITH[witha shrug].Theyseemmore likemurderweapons thangifts fromagratefulemployer.”(ORTON,1998,p.177).

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contêm em si a representação de uma questão coletiva. Dentre eles, encontra-se a

representação material de que, para o sistema, o valor do trabalhador se equipara

verdadeiramente ao desses utensílios, isto é, quando estão velhos ou quebrados,

devem ser descartados e trocados rapidamente por novos, exatamente a dinâmica

observadaalegoricamentenasubstituiçãodeBuchananporseunetoRaymond.

AironiadeOrtonquepermeiaotextoapresenta-sedesdeaepígrafedapeça—

elemento paratextual que o dramaturgo usa com frequência— “‘Muito bem, servo

bome fiel’Mateus. 25:21” (ORTON, 1998, p. 151)14. Essa pequena frase retiradado

textobíblico,alémdeapresentaraorigemdotítulodaobra,concentrapartedoque

Orton propõe com essa pequena peça. Se por um lado remete à figura de Mateus,

chamadoporJesusCristoparadeixardeserumcobradordeimpostosesegui-lopor

toda a vida, aqui se refere a umempregadoque tambémdedicou sua vida inteira a

umacausa,ageraçãodelucrodomundoempresarial.

Naparábolaquemotivaotítulo,Jesuscontaahistóriadeumadministradorque

viajou ao estrangeiro, relegando aos seus servos “talentos” (valores em dinheiro),

sobre os quais eles deveriam retornar ao patrão o que lucraram. Um por um eles

devolvemoqueconseguiramesãoelogiados.Oúltimodeles,porém,devolveotalento

semlucrarnada,aoqueoadministradorochamade inútilemandaqueseja jogado

nastrevas.Amoraldaparábolaésintetizadanaideiadequeaquelequetemreceberá

aindamais,masoquenãotem,mesmoopoucoquetemlheserátirado.Oleitorque

conhece tal referência bíblica encontra nesse elemento extratextual uma pista de

interpretação.AexemplodoquefoipropostoporErwinPiscatoreBertoltBrecht,no

propósito de fazer o teatro “narrar”, o dramaturgo insere aqui um expediente que

comentaaaçãoaserlida/encenadaeantecipadoquesetrataapeça.

Revertendo a moral bíblica, Orton sinaliza que o destino de Buchanan é

exatamente o do servo infiel, apesar de ter se comportado como o servo fiel da

14Nooriginal:“‘Welldone,thougoodandfaithfulservant’Mateus.25:21.”(ORTON,1998,p.151).

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parábola,dedicando-sepor50anosparamultiplicaros“talentos”—leia-selucros—

do patrão, tendo no caminho inclusive perdido um membro provavelmente num

acidentedetrabalhoe,apesardisso,desejandoqueonetosigaseuspassos.Todavia,

nada disso importa dentro da lógica capitalista; seu destino é, mesmo assim,

implacável, terminando pouco valorizado, com um quadro depressivo e, no fim da

peça,morto,apesardaidadede65anos.Nessesentido,oprópriotítulodaobraparece

serirônico,poisemboraBuchananaparenteseroservobomefiel,étratadocomoo

servomaue infiel, jogadoàstrevasdoabandono,reservadopelomododeprodução

capitalistaealógicaempresarialmodernaàquelesquenãotêmmaisnadaaoferecer,

chamados,portanto,de“improdutivos”economicamente.

A acidez de Orton é candente e, ao longo da peça, vai desmascarando essa

“religião” que os trabalhadores são levados a professar, defendendo e expressando

gratidão incondicional aos seus empregadores. Tal caráter do capitalismo como

religiãofoiexploradodopontodevistateóriconoséculoXXporWalterBenjaminem

seu ensaio de 1921, O capitalismo como religião. Partindo do trabalho de outros

pensadores, como Max Weber, que caracterizou a religião como nascedouro do

capitalismo, Benjamin, postando-se da perspectiva dos explorados, aponta que o

próprio capitalismo é uma religião, tendo por característica definidora seu próprio

culto,decaráterpermanente.Talapontamentoécongruentecomoqueseobservaem

Orton:aspersonagens,emespecialSra.VealfoyeBuchanan,parecemestarencantadas

por tal doutrina. O uso ritual que se observa no fim da peça vem para reforçar a

alienação dos trabalhadores, afundando-os ainda mais no destino inexorável que é

professartal fé.OrtoncertamentenãotevecontatocomessetextodeBenjamin,que

passouacircularmaisrecentemente;aindaassim,colocaemfuncionamentonoplano

artístico aquilo que o pensador circunscreve do ponto de vista teórico, isto é, o

“capitalismodeveservistocomoumareligião”(BENJAMIN,2013,p.21),enoquala

culpa (em alemão Schuld, tanto culpa quanto dívida) cumpre também papel

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importante, levando os indivíduos a um “estado de desespero universal”, tornados

autômatosdasociedadeindustrial,aqualBenjamintantocriticavaemsetratandode

suaideologiadoprogresso.

Sabendo da situação a que os ex-funcionários estão expostos, a Sra. Vealfoy

lança então uma espécie de grupo de apoio que pretende fazer com que os idosos

aposentados socializem entre si. O anúncio ditado por ela novamente escancara a

desumanidadeaqueessestrabalhadoresestãosujeitosea“benevolência”daempresa

emosajudar:“PESSOASSOZINHAS.(…)Apessoaoupessoasdequalquersexodevem

ser velhos, sozinhos e ex-funcionários da empresa. Nenhuma outra qualificação é

exigida.”(ORTON,1998,p.177)15.

Senumprimeiromomentoseuscolegasnãoopercebemnorefeitório,aotrazer

Georgeparao grupo,maisumavez ele é submetidoà situaçãodedesconhecimento

porpartedeseusantigoscolegas:“SRAVEALFOY.(...).AlguémselembradoGeorge?

[TodosencaramBUCHANAN.Ninguémdiznada.]Ninguém?Têmcerteza?Eletemum

rosto bem característico. Certeza de que ninguém mesmo conhece nosso novo

membro?” (ORTON, 1998, p. 183)16. Após um colega reportar que o conhece, a Sra.

Vealfoyosdeixaconversandoe,depoisdedispersaramultidãoapósamortedeuma

das senhoras presentes, ela retorna para saber sobre o que os dois homens

conversam.Primeiramente,chamaaatençãodoleitormaisatentooquantoamortede

uma das pessoas presentes é absolutamente banalizada ironicamente pela

responsávelpelosrecursoshumanos,designaçãoessaquejásinalizaoestatutoqueos

humanosdetêmnomundoempresarial.

Nodecorrerdaconversa,atémesmoaatuaçãonaguerra,tãocaraparaaqueles

quealutaram,édesprezadadentrodocontextodaempresa.AosaberqueBuchanan

15Nooriginal:“LONELYPEOPLE.(…)Thepersonorpersonsofeithersexmustbeold,lonelyandex-membersofthefirm.Nootherqualificationsareneeded.”(ORTON,1998,p.177).16 No original: “MRS VEALFOY. (…) Does anybody remember George? [Everybody stares atBUCHANAN.Noonesaysanything.]Nobody?Arewesure?Hehasadistinctiveface.Arewequitesurewenoneofusareacquaintedwithournewmember?”(ORTON,1998,p.183).

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atuouduranteaguerracomosentinela17,aSra.Vealfoy insisteemqueele falesobre

isso,expressando-sedeformadepreciativasobreaexperiênciadovelhosenhor:“SRA

VEALFOY.Quemsolicitouquevocêfizesseisso?BUCHANAN.Porque—[confuso]nós

todos fizemos isso. SRA VEALFOY. Que bom pra você! Você aproveitou? Ficava no

telhado?”(ORTON,1998,p.187)18.

O arremate do dramaturgo em expor a frieza com que Buchanan — e por

associaçãoosdemaisex-funcionários—étratadovemlogoaofinaldaconversacomo

outrosenhor,oqualBuchananacreditavaqueoconhecia.Chamaaatenção também

que o suposto colega é a única personagem que não tem nome, já evidenciando

formalmentequesetratadeumapersonagemtipo,podendoserqualquerindivíduo:

HOMEMVELHO[paraBUCHANAN,comcuriosidade].SeunomeéHyams?BUCHANAN.Não.HOMEMVELHO.Nãoé?[Pausa.]CertezaquenãoéGeorgieHyams?BUCHANAN.Não,essenuncafoimeunome.MeunomeéBuchanan.HOMEMVELHO[selevantando.]Achoquenãoteconheçoentão.BUCHANAN.Mas—[Chocado.]vocêdissequeconhecia.HOMEM VELHO [indo em direção ao grupo em volta da SRA VEALFOY.] Meenganei.Acheiquevocêeraumantigocolegameu.OnomedeleeraHyams.BUCHANAN [segurando a manga do HOMEM VELHO.] Você não me conheceentão?HOMEMVELHO.Não.BUCHANAN.Maseu trabalheiaqui.Eu ficavanaentradaprincipal.Temcertezaquenãoselembrademim?HOMEMVELHO.Medesculpe.[EleselivradeBUCHANANevaiparaogrupoaoredordaSRAVEALFOY.]BUCHANAN.Ninguémmeconhece.Elesnuncameviramantes.(ORTON,1998,p.188-189)19.

17 Sobre a atuação de fire watch (aqui traduzido por sentinela) durante a Guerra, ver:https://www.bbc.co.uk/history/ww2peopleswar/stories/10/a3032010.shtmlhttps://web.archive.org/web/20160316141000/https://firefightersmemorial.org.uk/index.php/in-memoriam/fire-watchers-fire-guards.Acessoem:30abr.2021.18Nooriginal:“MRSVEALFOY.Whorequiredyoutodothat?BUCHANAN.Why–[Puzzled.]wealldidit.MRSVEALFOY.Good foryou!Didyouenjoyyourself?Wereyouon the roof? (ORTON,1998,p.187).19OLDMAN[toBUCHANAN,withcuriosity].IsyournameHyams?BUCHANAN.No.OLDMAN.Isn’tit?[Pause.]Surelyyou’reGeorgieHyams?

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Em suma, além de ser considerado uma mercadoria, similar aos

eletrodomésticosbaratosque lhegratificaramtantosanosdetrabalho ininterruptos,

Buchananéabsolutamenteumdesconhecidodetodos,eaúnicaqueopercebeafinalé

aSra.Vealfoy, representantedosrecursoshumanose,portanto,amaior interessada

emtudoqueeletinhaacontribuir.

O mencionado caráter de culto religioso do capitalismo, aqui traduzido no

modusoperandidaempresa,aparecenovamentequandoaofinaldapeçaaSra.Vealfoy

reúne seu grupo de convivência para cantar, quase como num ritual religioso. Sua

proposta é “Nósvamospassarpor todasasmúsicas comapalavra ‘Feliz’.” (ORTON,

1998,p.189)20.Arubricaaponta:

[O pianista entoa ‘Here We Are Again, Happy As Can Be’. Os ex-funcionários sejuntam em volta do piano. A SRA VEALFOY no centro, vislumbra-se o rosto deBUCHANAN. Ele começa a cantar. Para. Canta novamente. Vários rostos velhos,cansadosedeprimidossãovistos.OrostosorridentedaSRAVEALFOYévistoassimqueamúsicamudaabruptamentepara‘HappyDaysAreHereAgain’(...)](ORTON,1998,p.189)21.

BUCHANAN.NO,that’sneverbeenmyname.MynameisBuchanan.OLDMAN[gettingupfromhisseat].I’mafraidIdon’tknowyouthen.BUCHANAN.But–[Shocked.]yousaidyoudid.OLDMAN[movingtowardsthegrouparoundMRSVEALFOY].Imadeamistake.Ithoughtyouwereanoldmateofmine.HisnamewasHyams.BUCHANAN[catchingholdoftheOLDMAN’ssleeve].Youdon’tknowmethen?OLDMAN.No.BUCHANAN.ButIworkedhere.Iwasonthemainentrance.Areyousureyoudon’trememberme?OLDMAN.I’msorry.HeshrugsBUCHANANoffandmovestothegrouparoundMRSVEALFOY.BUCHANAN.Nobodyknowsme.They’veneverseenmebefore.(…).(ORTON,1998,p.188-189).20Nooriginal:“We’regoingtorunthroughallthesongswith‘Happy’inthem.(ORTON,1998,p.189).21Nooriginal:“[Thepianiststrikesup‘HereWeAreAgain,HappyAsCanBe’.Theex-employeescrowdroundthepiano.MRS.VEALFOYinthecentre,BUCHANAN’sfaceisglimpsed.Hebeginstosing.Stops.Singsagain.Severalold,tiredanddepressedfacesareseen.MRS.VEALFOY’Slaughingfaceisseenasthemusicabruptlychangesto‘HappyDaysAreHereAgain’(…)].(ORTON,1998,p.189).

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ASra.Vealfoyécaracterizadaquasecomoumafigurareligiosaoudivinaquese

propõeadefenderainstituiçãoaquepertence,capazdesolucionare“curar”osmais

diversosproblemas,inclusiveadepressãoqueBuchananestáenfrentando.Comefeito,

segundoa rubrica, elaéaúnicaque sorri, sinalizandoao leitorquea felicidadeque

aparecenotítulodasmúsicasnãoalcançaostrabalhadores.Pelocontrário,essesestão

“velhos,cansadosedeprimidos.”(ORTON,1998,p.189).Essacaracterizaçãoqueexibe

duassituaçõesdiametralmenteopostas—atristezaeodesesperodosex-funcionários

eaauradefelicidadedaSra.Vealfoy—atingeseuápicealgumasfalasàfrente,quando

ela convence o aposentado a se juntar ao grupo, que entoa cantos “positivos” e, na

visãodela,quase“curativos”:

SRA.VEALFOY.[...]Entãovamoslá,anime-see,sevocênãosouberaspalavras,ésóacompanharamelodia.[Elaoconduzdenovoaocentrodogrupo,entreosdoishomens de cadeiras de rodas. BUCHANAN se junta ao canto. (A voz dela sesobrepõeàsdemais conformeamúsicamuda.)]. ‘Euquero serFeliz,MaseunãopossoserFeliz,AtéqueeutenhatefeitoFeliztambém’.(ORTON,1998,p.189)22.

Quaseemcaráterpremonitório,Ortontratadotipodeexploraçãoradicalqueo

sistemacapitalistaadotariaanosdepoiscomoaparecimentodoqueficouconhecido

comoneoliberalismo,sobaliderançadopresidenteestadunidenseRonaldReaganea

primeira-ministrabritânicaMargaretThatcher.Nesseestágiodochamadocapitalismo

tardio, o corporativismo e ideias como eficiência e otimização no âmbito individual

ganham força, junto com a defesa liberal do estado mínimo e livre-comércio no

espectromaisamplo.Dentrodessaideologia,otrabalhador—alémdeexplorado—é

levado a se comprometer com a empresa, “vestir sua camisa” e se dedicar ao seu

crescimento, o qual supostamente corresponderia ao enriquecimento do próprio

empregado,chamadoagorade“colaborador”eque,dentrodaideiado“trickledown”

22Nooriginal:“MRSVEALFOY.[…]Socomeon,cheerup,andifyoudon’tknowthewordsjusthumthe tune. [She leads him back to the centre of the group, between two old men in wheelchairs.BUCHANANjoinsinthesinging.(Hervoicesoaringabovetherestasthemusicchanges.)]‘IwanttobeHappy,ButIcan’tbeHappy,TillI’vemadeyouHappytoo’”.(ORTON,1998,p.189).

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(“economia do gotejamento”), seria beneficiado com a riqueza dos empresários. Em

que pese o novo termo, percebe-se a permanência da exploração do modo de

produção capitalista na Inglaterra que vemos de um ponto de vista crítico

documentada, analisada e historicizada desde Marx e Engels, apesar da nova

roupagemesofisticaçãodasformasdecontroleeexploraçãodaforçadetrabalho.

Nãosomenteavidadotrabalhador—emsuasdimensõesfísicaepsicológica—

é totalmentedispostaparausodoempregador,maseleéainda levadoaproversua

posteridadeparaseualgoz.Portanto,nemserianecessárioqueOrtondescrevesseem

detalhe o destino de Raymond, o que ele o faz com expressivo uso de expedientes

épicos de montagem e projeções. Epicamente se apoiando num contexto externo à

peça, emquea juventudepossuipoucasoportunidades alémde se conformaremao

sistemaouserebelarematravésdacriminalidade,odramaturgoreforçaqueRaymond

reproduzirá o caminho de seu avô num círculo vicioso, algo reafirmado na fala

seguinte àquela que menciona que Ray se regenerou, revelando o falecimento de

Buchanan,substituídonosistemapelojovem,fadadoàmesmasina.

Nacenafinal,encerrandoacríticaferozaointeressedescaradodaempresana

exploração indiscriminadada forçade trabalhodo indivíduoe,porconsequência,ao

emergente mundo empresarial neoliberal no berço do capitalismo — e hoje

naturalizadonomundointeiro—,amortedeBuchananéanunciadapelaSra.Vealfoy

numafestadaempresa.Damorte,rapidamenteparte-separaadança,poisBuchanan

jáfoisubstituídopeloneto,atendendoassimaointeressemaiordaempresa:

Antes que nós continuemos com nossa diversão, eu tenho que anunciar umatristemorte.GeorgeBuchananfaleceusemanapassada.Suaesposadesejaqueeuexpressesuagratidãoatodosdaempresaqueenviaramfloresemseutristeluto.Eagora,continuemoscomadançaevamostorcerporumbomtempoduranteatemporada de férias. [A banda toca ‘On the Sunny Side of the Street’]. (ORTON,1998,p.191-192)23.

23Nooriginal:“BeforewecarryonwithourfunIhavetoannounceasaddeath.GeorgeBuchananpassedaway lastweek.Hiswifewishesme toexpress thanks toall in the firmwhosentbeautiful

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Faz-se importante mencionar que, ao modo épico, a música final coloca em

evidência uma contradição entre a letra e a própria ação da peça. Tecendo um

comentário irônico,o textodamúsicaqueevocao “ladoensolaradodarua”aparece

logoemseguidaaoanúnciodamorteprematuradeumtrabalhador,denotandoqueo

narradorépicodesejaescancararexatamenteodiscursovaziodaempresa,paraaqual

talfalecimentoéuma“fatalidade”equedeveserprontamentesubstituídadasmentes

dos funcionários pela menção às férias e uma música “positiva”, empregada como

entorpecente e meio de se fugir da dura realidade de exploração de muitos que a

mortedeBuchanandesvela.

4. CONCLUSÃO

Procuramos ressaltar que a peça de Joe Orton guarda em si um expressivo

potencialcríticoequeasualigaçãocomarealidadeatualsedá,dentreoutros,porque

asquestõesqueoautortematizounãoforamsuperadashistoricamente, justificando,

assim,oretornoàTheGoodandFaithfulServant(1998,[1967]),eaagudacríticaque

fazàexploraçãodotrabalhadornomododeproduçãocapitalistamoderno.

REFERÊNCIAS

BBC. British Broadcasting Corporation. WW2 People’s War: Memories of Fire Watching.https://www.bbc.co.uk/history/ww2peopleswar/stories/10/a3032010.shtml. Acesso em: 30 abr.2021.BENJAMIN,Walter.Capitalismocomoreligião.Trad.NélioSchneider.SãoPaulo:Boitempo,2013.

floraltributesinhersadbereavement.Andnow,onwiththedanceandletisprayforgoodweatherduringtheholidayseason.[Thebandplays‘OntheSunnySideoftheStreet’]”.(ORTON,1998,p.191-192).

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BROWN, John Russell. A Short Guide to Modern British Drama. London: Heinemann EducationalBooksVIII,1982.CHARNEY,Maurice.JoeOrton’sLaodiceanTragedy:TheGoodandFaithfulServant.Connotations:AJournalforCriticalDebate,v.18,p.01-03,2008/2009.MARWICK,Arthur.CultureinBritainsince1945.OxfordeCambridge:Blackwell,1991.ORTON, Joe. “TheGoodandFaithfulServant”. In _____.Orton:CompletePlays.London:Bloomsbury,1998(1967].SZONDI, Peter.Teoria do dramamoderno (1880-1950). Trad. Luiz Sérgio Repa. São Paulo: Cosac&Naify,2001.TAYLOR,JohnRussell.AngerAndAfter:AGuideToTheNewBritishDrama.London:Methuen&Co.,1962.THE FIREFIGHTERS MEMORIAL TRUST: Fire Watchers and Fire Guardshttps://web.archive.org/web/20160316141000/https://firefightersmemorial.org.uk/index.php/in-memoriam/fire-watchers-fire-guards.Acessoem:30deabr.2021.ZARHY-LEVO, Yael. Reconsidering Orton and the Critics: The Good and Faithful Servant.Connotations:AJournalforCriticalDebate,v.21.1,2011/2012.Recebidoem:09/03/2021Aceitoem:21/04/21

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CÂNDIDO,DEVOLTAIRE,ESUASAPROXIMAÇÕESPOSSÍVEISCOMAS

ETIÓPICASDEHELIODOROECOMOROMANCEGREGOANTIGO

VOLTAIRE’SCANDIDEANDITSPOSSIBLESIMILARITIESWITH

HELIODORUS’SAETHIOPICAANDANCIENTGREEKNOVELS

FranceliseMárciaRompkovski1

RESUMO:Esteartigosepropõe investigaras influênciasdasEtiópicasdeHeliodoroedoromancegrego antigo sobre o Cândido de Voltaire. Assim, tomaremos as características marcantes dasEtiópicastraçadas,porexemplo,notrabalhodeFusillo(2006)eateorizaçãosobreaconstruçãodasnarrativasantigasetrazidaporBakhtin(1973/2018)eBrandão(2005),comafinalidadedeapontaros topoi comuns às obras e analisar como as funções da týkhe, da morte aparente e doreconhecimento,nelasoperam.Palavras-chave:týkhe;reconhecimento;morteaparente.ABSTRACT: This article proposes to investigate the influences ofHeliodorus'sAethiopica and theancient Greek novel in Candide by Voltaire. Thus, we will take Aethiopica's most strikingcharacteristicsasoutlined, forexample, in theworkofFusillo (2006), and the theorizationon theconstructionofoldnarrativesbroughtbyBakhtin(1973/2018)andBrandão(2005),aimingtopointout thecommon topoionbothworksandanalyzehowthe functionsof týkhe,apparentdeathandrecognitionaffectthem.Keywords:týkhe,recognition,apparentdeath.

As Etiópicas, romance grego composto por Heliodoro de Émesa ao redor do

séculoIIIouIVd.C.,exerceulargainfluêncianaliteraturaeuropeiaduranteosséculos

1Pós-graduanda,UTFPR.

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XVIeXVII,emgrandemedidadevidoàsuadifusãopelatraduçãoparaolatimeparaas

línguasvernáculasocorridanodecorrerdosanos1500(CRESPOGÜEMES,1979).

Heliodoronãosó fascinouautores célebresda literaturaocidental,dentreeles

Cervantes, Rabelais, Racine e Mademoiselle de Scudéry, como suas Etiópicas foram

também consideradas origem e modelo expresso quando da ainda incipiente

teorizaçãodessegêneroquenãoéépica,nãoétragédiaenemécomédiaequeviráa

serdenominadoromance(BRANDÃO,2005;THOREL-CAILLETEAU,2006). Issopode

ser observado, a título exemplificativo, no prefácio de Huet para a Zaíde: história

espanhola (1670). Conformeexplica SylvieThorel-Cailleteau (2006), nesse tratadoé

exposto que “as aventuras de Teágenes e Caricléia são tão necessárias e uma

referência capital para o romance quanto a Ilíada e a Odisseia” (p. 66, tradução

nossa).2

Nãoseriadeseestranhar,portanto,queAsEtiópicaschegasseatéVoltaire,senão

comofontedireta,emboraelepossuísseemsuabibliotecaumatraduçãodoromance,

aomenos comoparadigma (LYNCH, 1985). Parece pacificado, contudo, queCândido

parodie as convençõesdo romance grego antigo tomadonumâmbitomais genérico

(BAKHTIN,1973/2018;FUSILLO,2006;THOREL-CAILLETEAU,2006).

Nessesentido,oquenospropomosnestetrabalhoéprocurarreverberaçõesdas

Etiópicas deHeliodoronoCândido deVoltaire, lançandomãodeumaanáliseque se

debruce sobre algumas das características marcantes desse romance antigo e

apontadas,porexemplo,notrabalhodeMassimoFusillo(2006),masqueigualmente

envolva a teorização sobre a construçãodasnarrativas antigas e trazida, sobretudo,

porMikhailBakhtin(1973/2018)eJacynthoBrandão(2005).

AsEtiópicasnarraasaventurasdeCaricléiaeTeágenes,doisjovensdeextrema

belezaevirtudequeseapaixonamàprimeiravistaequesãosubmetidosaumasérie

2Nooriginal:“theadventuresofTheagenesandCharicleaareasnecessaryandcapitalareferenceforthenovelastheIliadandtheOdyssey”(THOREL-CAILLETEAU,2006,p.66).

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de provas e aventuras, encontros e desencontros, em uma viagem que começa em

DelfoseterminanaEtiópia.

Éumanarrativa,portanto,quecontémváriosdostopoidoromanceantigo,esse

definido, grosso modo3, justamente como histórias de viagens, aventuras e amor

românticoquesedesenrolaemumcenáriovagamenterealistadoMediterrâneooudo

Oriente próximo e que envolvem um rapaz e uma moça de berço nobre e

excepcionalmente atraentes. O destino os separa, os expõe a naufrágios, raptos,

cortejos indecorosos de bandidos e senhores a que jamais se sujeitam, preferindo a

morte a sacrificar sua castidade. Ao fim de uma série de tribulações, enfim se

reencontram,contraemnúpciasevivemfelizesparasempre(HÄGG,2006).

Cândido,porsuavez,seguedepertooprotagonistademesmonome,expulsoa

pontapésdo castelodobarãodeThunder-ten-TronckhnaWestfália por ter trocado

beijos comCunegunda, a filha desse último. É o seu amor por ela que omove num

caminho também de aventuras e desventuras, guerras, viagens pela Europa e pelas

Américas; igualmente, para, ao final, reencontrá-la e com ela se casar em

Constantinopla.

À primeira vista, não podemos deixar de notar que há uma semelhança de

enredoentreasduasobrasjáquealgumasdesuastemáticassãocompartilhadas.São

duasnarrativasdedeslocamento,nasquaisocasalprotagonistaenfrentafigurascomo

piratas e bandidos, sofre diversos reveses que o separam e que culminam no seu

encontro e em seu casamento. Entretanto, essa aproximação não basta. Devemos

olhar, domesmomodo, para o queAs Etiópicas possuem de particular nessa vasta

abstraçãoeobservarquaisligaçõespodemostecercomoCândido.

O romance de Heliodoro, mesmo que sentimental, comporta uma série de

reinvenções,dentreelasovastoempregodametadiegese,ouseja,dehistóriasdentro

3Umaprofundamentodadiscussão sobre aproblemáticadessadefiniçãopode ser encontradonotrabalhodeTomasHägg(2006).

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da história principal, que aparece em algumas passagens, elevada ao fator três

(FUSILLO,2006).

Omistériodacenaquedescortinaoromance,porexemplo,emquebanquetee

guerra se confundem, dominada pela figuramisteriosa de umamoça comparável a

umadeusa e armada como tal, aparentemente inexplicável, será desvelado, pouco a

pouco, a partir do livro 2 e terminando no início do livro 5, não pelo narrador

principal, mas por um dos personagens do romance, o sacerdote Calasiris, cuja

trajetóriaconvergiucomadeCaricléiaeTeágenes,protagonistasdessequadroinicial

(FUSILLO,2006).

EmCândido,porsuavez,aindaqueasnarrativasdospersonagensnãoocupem

tanto espaço como nas Etiópicas, a técnica do encaixamento se observa,

ilustrativamente,norelatodeCunegunda,feitonocapítulo8,sobrecomoescapouda

morteechegouaPortugal.OtestemunhodaVelha,porseuturno,éamaiornarrativa

engastadaquetemosnaobraeaelaéconcedidooespaçodedoiscapítulos(11e12)

paracontarsuahistóriadedesgraçaseparaelucidar,dentreoutrosfatos,odepoder

cavalgarcomumanádegasó.

Aconcessãodapalavraaospersonagensporpartedosnarradoresprincipais,de

modoquesigamosofiodoqueécontadoapartirdopontodevistadaqueles,porum

lado tem o efeito de gerar maior proximidade deles conosco, dado que temos a

impressão de acessarmos sua subjetividade diretamente, sem intermediários.

Contudo,devemosteremmentequeopersonagemnoscontarásóoquesabeouoque

quer e, ainda, do modo que lhe pareça mais conveniente, gerando uma série de

parcialidades e lacunas, essas últimas que serão preenchidas paulatinamente no

decorrer da narração. Como sintetiza Massaud Moisés (2012) “o emprego da

[narraçãoem]primeirapessoaacarretaumalimitaçãodohorizontenarrativo[...]em

contrapartida, empresta verossimilhança e intensidade ao enredo [...]mais atento à

experiência.” (p. 367) Ademais, o próprio narrador em terceira pessoa tanto nas

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Etiópicas quanto emCândido, coloca-se comumente em uma posição que escolta os

personagensemcenae,assim,desvia-sederevelartudooquesabe.

Vinculadoaisso,trazemosumafunçãonarrativaimportantedoromancegrego

(BAKHTIN, 1973/2018; BRANDÃO, 2005), que se presta a gerar suspense e que é

compartilhada pelas obras: a damorte aparente. NasEtiópicas há um episódio que

emprega esse artifício no livro 2, em que Teágenes é tomado por um profundo

desespero (e nós, leitores, pela surpresa) ao descobrir(mos) um corpo assassinado

que imagina(mos) ser o de Caricléia. Como o narrador em terceira pessoa segue

Teágenes e Cnêmon na descoberta desse corpo, sem revelar qualquer outra

informaçãoqueessesnãopossuam,produz-seochoque,neleseemnós.

OCândido, por suavez, está repletodeeventosdesse tipo,oquepermite crer

queVoltairelevaessaconvençãoaumaespéciedepontoderupturaecontribuipara

destacar a compleição paródica da obra (LYNCH, 1985). A notícia das mortes de

Cunegundaedeseuirmãopelosbúlgaros,porexemplo,chegaaCândidopormeiode

Pangloss (que possui, portanto, um entendimento parcial do que ocorreu), mas os

irmãos,emmomentosdiferentes,aparecemàvistadoprotagonistamuitobemvivos.

Emoutroepisódio,opróprioCândidoatravessaocorpodeseufuturocunhadocoma

espada,masvaireencontrá-lomaisparaofimdahistória.OpontodevistadeCândido

acompanhadopelonarradorprincipal,redunda,domesmomodo,numconhecimento

limitadodosfatos.

Nessemesmo sentido, Panglossmorre diante dos olhos do nossowestfaliano

numespetáculoinauditodaSantaInquisiçãoemPortugal,paradepoisserencontrado

inesperadamentenas galerasdaTurquia. Elehavia sido enforcado (ou, antes,muito

mal enforcado) embora não fosse o costume, pois esse determinava que o acusado

fossequeimadonafogueira.Éapartirdamortedomentor4,queCândidopoderáser

4Háumavinculaçãodamorteaparentecomatýkhe,umafunçãoqueseráexplicadaposteriormenteneste trabalho.Épormeioda separaçãodePangloss,umeventoaparentementedesfavorável,queCândido estará livre para experienciar omundo e fazer contato com outros personagens que lhe

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guiado por outros personagens e colher evidências, por si mesmo, exposto a mais

acontecimentosdomundo(docapítulo7ao26)doabsurdodafilosofiapanglossiana.

Essa,queacompanhaorapazdurantetodoseupercurso,professaqueoseventosque

sesucedemresultarãonecessariamentenomelhordosmundos,oquenotranscorrer

daspáginassemostrabastantequestionável.

A narrativa, entretanto, é construída para tornar plausível a ressurreição de

Pangloss.Ofilósofo“morre”nocapítulo6esóvamosreencontrá-lono27,noqualse

explicaráoquesucedeu,emespecialquechoviaacântaros,circunstânciaqueimpediu

suaexecuçãopelaschamas,essaquepoderiaculminarnumamorteverdadeira.Além

disso, aumidadeatrapalhouaperformanceda cordaedoexecutor: “o executordas

sentençascapitaisdaSantaInquisição[...]queimavamuitíssimobemaspessoas,mas

não estava acostumado a enforcar: a corda estava molhada e escorregou mal,

formandoumnó”(VOLTAIRE,2012,s/p).

E por falar em sentenças incomuns, lembremos que no livro 8 de Etiópicas,

Caricléia é, ao contrário de Pangloss, condenada justamente às chamas por ter sido

acusada (e ter confessado que de fato o fizera, consumida pelo desespero de não

vislumbrarumfuturocomTeágenes)deterassassinadoporenvenenamentoaserva

de Ársace,mesmo que a fogueira não fosse a punição costumeira para esse tipo de

crime. Ela escapa da pena mais cruel que se executa na Pérsia, pois sua beleza e

juventudeenternecemos juízesque “se contentaramemcondená-laa serqueimada

viva”(HELIODORO,1979,p.367,traduçãonossa).5

Ora, issoeraabsolutamentenecessárioparaqueapedrapantarba,queamoça

carregava consigo, mostrasse suas propriedades e a salvasse do fogo (aqui,

novamente, o inesperado), mas essa explicação, obviamente, só nos é dada depois,

apresentarãooutrasvisõessobreesse.Pormeiodisso,aliadoàprofusãodeadversidadesdeváriostipos,anarrativasedesdobraeécolocadaemfuncionamentoparaprovaratesedequesistemassãoquestionáveis.5Nooriginal:“secontentaronconcondenarlaaserquemadaviva”(HELIODORO,1979,p.367).

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preservando-se, como no Cândido, a atenção do leitor e transmutando a punição

bárbaranasalvaçãodosenvolvidos.

OutropontoemcomumquepodemosidentificarnasEtiópicasenoCândidoéa

tendênciaderetomadadoque já foinarrado,aindaque issopareçacumprir funções

diferentesemHeliodoroeVoltaire.Noprimeiro,alémdeseprestaraauxiliaroleitora

sesituarnessanarrativa longa,emquecoisasestãoatodomomentoacontecendo;a

estratégia contribui para essa articulação em suspense, pois preenche as lacunas,

lançauma luzdiferente àquiloque já foi objetodeatençãoeo coloca sobreopalco

maisumavezparasalientarsuaimportância6(CRESPOGÜEMES,1979).

JánoCândido,arecapitulação,feitabasicamentedemodoparatático7,colabora

também para exacerbar a velocidade de ritmo que o romance possui e para criar

humor.ÍtaloCalvinoassimexplicaesseefeito:

OgrandeachadodeVoltairehumoristaé aqueleque se tornaráumdosefeitosmaissegurosdocinemacômico:oacúmulodedesastresagrandevelocidade.Enão faltam as imprevistas acelerações de ritmo que conduzem ao paroxismo osentidodeabsurdo:quandoasériedasdesventuras jávelozmentenarradasemsua exposição “por extenso” é repetida num resumo de provocar tonturas(CALVINO,1974/2014,p.111).

Agora,iremosnosdeterbrevementesobreoassuntoqueénarrado,sobreoque

noscontamessesnarradoresnasEtiópicasenoCândido.Seriapossívelsublinharum

temaquelhessejacaro?

Michael Wood (2012) no prefácio escrito para a edição do Cândido utilizada

nestetrabalho,trazumaideiaquetalveznosforneçaalgumaspistasparadeterminar

mais um dos pontos de contato com as Etiópicas: a vanglória do sofrimento, uma

6Ver,porexemplo,livro5,4-3.(HELIODORO,1979,p.237).7 Por exemplo: “amenos que a senhora tenha sido violada por dois búlgaros, que tenha recebidoduasfacadasnabarriga,quetenhamdemolidodoisdosseuscastelos,quesetenhamdegoladodiantedosseusolhosdoispaiseduasmães,equetenhavistodoisdeseusamadoschicoteadosnumautodefé,nãovejocomoasenhorapossamesuperar”(VOLTAIRE,2012,s/p).

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espéciedecompetiçãoquevisadeterminarqueméalvodemaisagrurasda fortuna,

acentuada pelo emprego do encaixamento das narrativas dos personagens em

primeirapessoa,quepodem,àvontadeexagerarnadramaticidadedasadversidades

pelasquaispassaram.

Sobre isso, Cunegunda e aVelha têmumabreve altercação a respeitodequal

delasteriasofridomais(veranota7),oqueaslevaaumaapostasumarizadanestes

termosporessaúltima:“sehouverumsó[homem]quenãotenhaamaldiçoadoavida

comfrequência,quenãotenhaditomuitasvezesqueeraomais infelizdoshomens,

atirai-meaomardecabeça”(VOLTAIRE,2012,s/p).

Cândido, inspirado por essa aposta e saturado da maldade dos homens,

promove,noCapítulo19,umcertameparaescolherumcompanheirodeviagempara

siquepossaconsolá-lodealgumaforma,poisacondiçãoimpostaaoscandidatoseraa

de que “fosse o mais desgostoso de seu estado e o mais infeliz da província”

(VOLTAIRE,2012,s/p).

Ora,asEtiópicas igualmenteestá recheadadessashistóriasde infelicidades8, o

que corrobora a leitura de mundo da Velha, e que ouvidas, funcionam como uma

espéciede consoloparaquemas escuta, comonoepisódio emqueCnêmoncontao

quepassouemrazãodasmaquinaçõesdesuamadrastacontraele9.Mastambémhá

ummomentoemquetaishistóriasseapresentamemdisputa,emtermossemelhantes

aoqueocorreemCândido,entreeleeTeágenes:“emdesgraças,Teágenes[...]éincerto

8“―Óvicissitudesdodestinohumano,sempreinstávelesujeitoatodasasmudanças!Quegrandevaivémde desgraças recai sobremuitos outros e sobremim!”No original: “¡Cuán gran vaivén dedesgraciastienesabienprecipitarsobreotrosmuchosysobremí!”(HELIODORO,1979,p.285).9 “[Caricléia e Teágenes] pediram-lhe demilmaneiras para falar, porque pensaram que seria umgrandeconsoloouvirpenassemelhantesàsdeles.”Nooriginal:“[CaricléiaeTeágenes]lepidierondemilmanerasquehablara,puespensabanqueseríaungranconsuelooírpenassemejantesa lasdeellos”(HELIODORO,1979,p.77).

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quem tem a vantagem, porque a fortuna também me cobriu generosamente de

misérias”(HELIODORO,1979,p.77,p.132,traduçãonossa).10

Relacionadoa isso,olhemosnestemomento,maisdetidamente,paraogrande

fio condutor das narrativas analisadas, as peripécias dos protagonistas. Bakhtin

(1973/2018) expõe, notadamente sobre o romance grego, que “a maioria das

aventuras [...] organiza-se precisamente como provações do herói e da heroína,

predominantementecomoexpressõesdesuacastidadeedafidelidadedeumaooutro.

Mas, além disso, são provadas sua nobreza, coragem, força, intrepidez e mais

raramentesuainteligência”(BAKHTIN,1973/2018,p.40).

Taisprovações,comoexplicaBrandão(2005),sãoviabilizadasnaorquestração

doromancegregopelafunçãodatýkheque,maisdoquemeroacasoouumavontade

caprichosadeorigemdivina,éentendidacomo“oencaixequepermiteaevoluçãoda

narrativa como o elemento que, introduzindo nela o inesperado, tanto prende a

atenção do leitor quanto fornece os instrumentos para que o narrador possa

desdobrarsuahistória.”(p.224)Eleaindaesclarecequeatýkhetrazambivalênciaao

romancegrego,jáquealgumfatoaparentementebenéficopodeseroiníciodegrandes

provações, ao passo que algum acontecimento desfavorável pode culminar num

desfechosatisfatório.11

NasEtiópicas Caricléia e Teágenes são submetidos a diversas provas que vão

desdeoraptoporpiratasebandidos,todosmuitoinclinadosadesposarCaricléia,até

aangustiantetorturaaquesãosubmetidosporÁrsaceemMênfis,elaquedenenhum

modo logrou seduzir Teágenes. Isso sem mencionar as provas atléticas bem

executadas e vencidas pelo rapaz. Todos esses episódios corroboram que os

10 No original: “en desgracias, Teágenes [...] es incierto quién lleva la ventaja, porque la fortunatambiénamímehacolmadogenerosamentedemiserias”(HELIODORO,1979,p.77,p.132). 11Atýkhe,ainda,écaracterizadapeloseuamoraonovo.EmCândido,essasnovidades(amaiordelas,talvez,oencontrodeEldorado)emgrandepartedasvezessãohorrivelmentedesfavoráveisealheiasa probabilidades, mas que acontecem assimmesmo: “’Mas’, disse Cândido, ‘aí está uma aventurapoucoverossímilquetivemosemVeneza.[...]’‘Issonãoémaisextraordinário’,disseMartinho,‘doqueamaioriadascoisasquenosaconteceram’”(VOLTAIRE,2012,s/p,grifonosso).

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protagonistas, como se espera em razão das convenções do gênero, são fiéis e

equivalentesemnobrezae,maisespecificamentenocasodamoça,sagazes.

EmCândido,umafunçãosemelhanteàtýkhecolocaàprova,pormeiodafigura

de seu protagonista e das situações extraordinárias que se apresentam a ele e aos

demais personagens e que vão se acumulando exponencialmente, num carrossel de

desgraças,comosintetizouÍtaloCalvino(1974/2014),nãoanobrezaouacastidade12,

masqualquerespéciedesistema,nãosóodoOtimismoleibnizianodePangloss,como

poderiasesupornumaprimeiraanálise:

No entanto, não são apenas às particularidades do sistema de Leibniz a queVoltaire se opõe, mas, sobretudo, à crença que ele sentiu ser característica doracionalismo de sua época, de que a lógica e a razão podem de alguma formaexplicaramisériacaóticadaexistênciaeignorarmetafisicamenteosfatos.[...]comosistemafilosófico,ootimismoédesacreditadonãotanto(e,certamente,nãoapenas)porqueseusprincípiossemostramimplausíveisàluzdasevidências,masessencialmenteporqueéumsistema.Comotal,é tãodesumanoeperigosoquantotodososoutrossistemasquesãoimplacavelmentesatirizadosnahistória:osistemamilitar,osistemadaIgreja,osistemacolonial,osistemadecastase,defato,oprópriosistemadalógica(PEARSON,2006,xixexxii,traduçãonossa).13

ÉclaroqueanaturezadatýkhenocasodeVoltaire,alémdepôràprovaalgoque

vai além dos personagens, apesar de empregá-los para provar sua tese, parece

enviesar exageradamente no sentido da má-sorte, já que temos, ao lado de

12 O heroísmo e a castidade como lugares-comuns do romance são também alvos de ironia noCândido. O horror da guerra, por exemplo, é caracterizado como heroico e seus soldados quesaqueiam vilas e violam as mulheres são ditos heróis. Cunegunda, por seu lado, não possui acastidadecomoumdeseuspontos fortes (LYNCH,1985).Cândido, igualmente,não lheé fiel,poiscedeàseduçãodamarquesanoCapítulo22.13Nooriginal:“YetitisnotjusttheparticularsofLeibniz’ssystemwhichVoltaireobjectsto,butevenmore so the belief, which he felt to be characteristic of the rationalism of his age, that logic andreason can somehow explain away the chaotic wretchedness of existence by grandly andmetaphysically ignoring the facts. [...] as a philosophical system, Optimism is discredited, not somuch (and certainly not only) because its tenets are shown to be implausible in the light of theevidence,butessentiallybecauseitisasystem.Assuchitisasinhumanandasdangerousasalltheothersystemswhichareruthlesslysatirizedinthestory:themilitarysystem,theChurchsystem,thecolonialsystem,thecastesystem,andindeedthesystemoflogicitself”(PEARSON,2006,xixexxii).

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contingênciascomotempestadese terremotos,encontroscomsujeitosquecometem

crimes e não cumprem com a palavra. Todavia, o que poderia parecer uma regra

nefasta que nos satura de desencanto, é quebrada pelo caráter inesperado e

ambivalente da týkhe em ao menos um momento: o fiel Cacambo, apesar de

permanecer desaparecido durante sete capítulos, gerando certa dúvida sobre sua

lealdade, semostra de fato fiel como seu epíteto sugere e leva Cândido a encontrar

Cunegunda, conforme prometido, o que contribui para demonstrar que mesmo o

sistemapessimistadeMartinhoéquestionável(PEARSON,2006).

E derivadas das vicissitudes do destino humano estão as andanças dos

personagens nas duas obras. Caricléia e Cândido fazem suas jornadas sempre

acompanhados,senãoporsábiosstrictosensucomonocasodela,aomenosporfiguras

experimentadas, para defini-las todas num sentidomais geral. Amoça é guiada por

Sisimitres, Caricles eCalasiris; já nossowestfaliano, porTiago, Pangloss, pelaVelha,

porCacamboeMartinho.

Aqui, novamente, nesta semelhança vale apontar uma diferença. Caricléia

adquire relativamente rápido certa astúcia, fruto da experiência advinda dessas

andançasedaconvivênciacomCalasiris.Empregaemalgunsepisódiosaficçãocomo

arma14,ouseja,menteparaprotegerasieaTeágenes,dizendo,porexemplo,quesão

irmãosaopirataTíamis,àservadeÁrsaceeaHidaspes.

Cândido,porseu turno,apesarde tersofridoe testemunhadoosreveses (eas

maldades) domundopor treze capítulos,mostra-se obstinado e ingênuo emnão se

utilizar dos mesmos subterfúgios a que recorre Caricléia, embora fosse óbvio que

perderiaCunegundaparaD.Fernando:

14“estaficçãodeveserguardadacomoumaarma,edevesermantidaemsegredodetodos[...].”Nooriginal:“Hayqueguardar,pues[...]estaficcióncomounarma,yhayquemantenerlaensecretoatodos[...]”(HELIODORO,1979,p.104).

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nãoousoudizerqueelaeraasuamulher,porquedefatoelanãoera;nãoousavadizer que era sua irmã, porque tampouco não o era; e embora essa mentiraoficiosa tivesse estadooutroramuitonamodaentreosantigos epudesse serútilaosmodernos,asuaalmaerapurademaisparatrairaverdade(VOLTAIRE,2012,s/p,grifonosso).

Onarrador,notrechoemdestaque,parececriticaressaconvençãoromanesca,

contudo, ao trazer o sentido de utilidade dessa para os modernos, sugere que tais

mentiras úteis sãomais práticas do que a fidelidade ingênua de Cândido à verdade

(LYNCH, 1985). Todavia, é claro que no decorrer da narração, nosso protagonista,

alémdegradualmenteirabandonandoossistemasdePanglossedeMartinho,vaise

tornandomais prático como a Velha e Cacambo, que, ao contrário de filosofar, dão

conselhosqueresultamemação.15

Aindasobreascaracterísticasdessetoposcomumdoromanceantigoquesãoas

viagens, importante mencionar que As Etiópicas possuem algumas que lhe são

peculiares.Podemos,porexemplo,percebernesseromanceosincretismoculturaleo

multiculturalismo que se refletem, por um lado, na preocupação do autor com o

aspectolinguísticonosdiálogosentreospersonagens,quemuitasvezesseutilizamde

intérpretes e, por outro, na caracterização desses pontos geográficos. Enquanto em

outros romances antigos não é observada qualquer valoração dos lugares, em

Heliodorotemosumsistemadeculturascomplexoquesevinculatambémàpolifonia

dasvozesnarrativas(FUSILLO,2006).

A Pérsia representaria um polo negativo, ligado à figura de Ársace, déspota e

entregueaoerosdaloucura;AtenasévinculadaàdeCnêmon,personageminspirado

15 “Cacambo, que sempre dava tão bons conselhos quanto os da velha, disse a Cândido: ‘Nãoaguentamos mais; já caminhamos bastante; estou vendo uma canoa vazia ali na margem; vamosenchê-la de cocos, lancemo-nos nessa barquinha, deixemo-nos levar pela correnteza; um rio leva sempreaalgumlugarhabitado’”(VOLTAIRE,2012,s/p).CompararcomoqueacontecenoCapítulo5,emquePanglossexplicaaorigemdosterremotosaoinvésdeajudarCândidoaserecuperardosferimentoscausadosporessemesmofenômeno.

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nomitodeFedra;Delfoséolugardaantigasabedoriadosoráculos,personificadoem

Caricles; o Egito está na intersecção da Grécia com a cultura oriental, tal como o

Homero de Heliodoro e o próprio Calasiris. O degrau mais alto desta hierarquia

pertenceria à Etiópia, espécie de lugar utópico e origem da antiga sabedoria dos

gimnosofistas, onde ocorre o casamento também sincrético de Caricléia e Teágenes

(FUSILLO,2006).

EmCândido, igualmente, temosumapreocupaçãocomas línguas faladasentre

ospersonagens. Cândido, apesarde serumpoliglotahabilíssimo, de línguamaterna

alemã, capaz de se expressar em holandês, português, italiano, espanhol, francês,

inglêseturco,lançamãodeCacambocomointérpretenopaísdosorelhinhase,claro,

emEldorado(WOOD,2012;apudPOMEAU,1980,p.195).

AEuropaeasAméricassemostramanálogas16emtermosdeguerras,traiçõese

exploração do ser humano pelo ser humano, apesar de Cândido ter certeza,

inicialmente, dequenonovo continente tudo estariabem, “pois épreciso confessar

quesepoderiagemerumpoucopeloquesepassanonosso[Europa]emfísicaeem

moral”(VOLTAIRE,2012,s/p).

Fazemos aqui a ressalva de que a ingenuidade extrema do protagonista no

começo da narrativa faz daWestfália uma espécie de paraíso, algo não inerente, é

claro,masfrutodesuaextremainexperiência.Suaterranataleratudooqueconhecia

atéentãoe,alémdisso,estavacontaminadapelafilosofiapanglossiana.

O único lugar de Cândido em que de fato tudo está encadeado em função do

melhoréEldorado.CândidoeCacambo,entretanto,seresolvemadeixaressautopia

onde ouro é lama dourada, pedras preciosas são cascalho, prisões e tribunais não

existemeondeserezaparaagradecer,nuncaparapedir.Afelicidadenivelaeanulaa

diferença,nosfazcomotodososoutros:“gosta-setantodecorrer,desevalorizarna

própriaterra,defazeralardedoqueseviunasviagens,queosdoisfelizesresolveram

16 “‘O senhor está vendo’, disse Cacambo a Cândido, ‘que este hemisfério não valemais do que ooutro:acredite-me,voltemosàEuropaomaisbrevepossível’”(VOLTAIRE,2012,s/p).

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nãomaissê-lo”(VOLTAIRE,2012,s/p).OnarradordasEtiópicas,porseuturno,teria

dito “é que a natureza humana é incapaz de receber prazer puro e sem mistura”

(HELIODORO,1979,p.237,traduçãonossa).17

CândidoterminasuajornadaemConstantinopla,ondeenfimsereúnemtodosos

personagens principais da trama (o irmão de Cunegunda, entretanto, é excluído

posteriormente,dadasuaintransigênciadeimpedirocasamentodelacomCândido).A

fazendaemqueseinstalaméumparaísopragmático.Ali,cadaumcontribuicomoque

faz demelhorpara o funcionamento orgânico e eficiente dapropriedade, aindaque

taistalentossejamdistribuídospelonarradordemodoparticularmentedesfavorável

paraasmulheres(PEARSON,2006).Nãoéumfinaltãosatisfatóriocomoaquelequese

dánaEtiópiadorei-modeloHidaspes;entretanto,nãoétambémtãoruimcomoasérie

defatosadversosquefoiseacumulandonodecorrerdahistóriapoderianossugerir.

OpercursodeCaricléiaculminanadescobertadesuaorigemfamiliar(FUSILLO,

2006), mas ela não muda. Sua beleza, castidade e nobreza são corroboradas no

desenrolar dasdurasprovações a que é submetida. Já Cândido, no ínterimdas suas

aventuraspelaAméricaeEuropa,vaiabandonandopoucoapoucotodosossistemas,

dootimismodePanglossaopessimismodeMartineadotaomesmopragmatismode

seu jardim,queé, emcerto sentido, equivalente aodaVelha,deCacamboedobom

velhinhodeConstantinopla.

Bakhtin (1973/2018) aponta como outro dos elementos cruciais do enredo

romanescogregoaoladodasmortesaparentes,oreconhecimentoeotravestimento,

nosquaispodeserobservado“ojogodiretodoenredocomossinaisdaidentidade”(p.

39).NasEtiópicasomovimentoédenãoreconhecimentoparaodereconhecimentoe

de confirmação de identidade. Caricléia no livro 7, após se travestir comomendiga,

não é reconhecida por Teágenes, que necessita da senha anteriormente combinada

parasedarcontadequequemoabraçaésuaamada.Ainda,nofimdoromance,graças

17Nooriginal:“lanaturalezahumanaes incapazderecibirplacerpuroysinmezcla”(HELIODORO,1979,p.237).

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ao testemunho de Sisimitres, ao relato escrito presente no cinturão com que fora

abandonada e a seu cotejamento como retrato deAndrômeda, é reconhecida como

verdadeirafilhadePersinaeHidaspeseprincesadaEtiópia.

No Cândido, ao contrário, temos cenas de reconhecimento que se mostram

falsas.Quando,naFrança,CândidorecebeumacartadeCunegundalhedandonotícias

de que estaria hospedada ali perto, apesar de ela nunca ter lhe enviado nenhuma

carta,onarradoranuncia,mesmoassim,quesetratariadefatodela:“[...]elepegaseu

ouroeseusdiamantesefaz-seconduzircomMartinhoaohotelondeaSrta.Cunegunda

se hospedava” (VOLTAIRE, 2012, s/p, grifo nosso). Um parágrafo depois,

surpreendidos pela guarda e ameaçados de prisão, Cunegunda não é mais

Cunegunda.18AverdadeiraCunegundatambémnãoémais,aofimdanarrativa,oque

era― “corada,fresca,gorda,apetitosa”19―,gerandoestranhamentoquandoCândido

a vê: “O terno amante Cândido, ao ver a sua bela Cunegunda amorenada, de olhos

rajados,comocoloressecado,asfacesenrugadas,osbraçosvermelhoseescamados,

recuou três passos tomadodehorror e avançouemseguida, porbomprocedimento”

(VOLTAIRE,2012,s/p,grifonosso).

Apesar de manter sua palavra e ao fim desposá-la, Cândido igualmente está

diferenteemrelaçãoa seuamorporela,pois justificaocasamentodizendoqueseu

deveréamá-lasempre.Bem,devernãoéomesmoquequerer.

Registramos, por fim, a tendência enciclopédica das duas obras, outra

característicainerenteaogêneroantigosegundoBakhtin(1973/2018).

Tanto Heliodoro quanto Voltaire trazem à narrativa temas como história,

filosofia, literatura e mesmo explicações científicas de fenômenos naturais. Com a

intençãodeilustrar,citamosateoriaquevisavaelucidaromotivosubjacenteàscheias

18 “Martinho, tendoretomadoosangue-frio,achouqueadamaquese faziapassarporCunegundaeraumagatuna”(VOLTAIRE,2012,s/p).19ComoLynch(1985)aponta,abelezadeCunegundaéterrena,aocontráriodadivinadeCariclea,eseassemelhaàdeumprodutodepâtisserie.

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periódicas do Nilo, dada no livro 2 das Etiópicas, e uma para a existência dos

terremotos fornecida no capítulo 5 do Cândido, ainda que estejam longe de serem

essesosúnicosexemplosdesseenciclopedismo.

Nosaspectosabordadosnestetrabalho,esperamosterconseguidodemonstrar

tantoavinculaçãodeCândidoaoromancegregoantigo,nogeral,quantoàsEtiópicas,

emparticular.

Para além das semelhanças de enredo, vimos que Voltaire se utiliza desse

recurso bastante comum nas Etiópicas que são as narrativas engastadas, que

contribuempara enfatizar as tribulações sofridas pelos personagens e operampara

aguçaracuriosidadedoleitoremanterseuinteressenahistória.

Apontamos, da mesma forma, a preocupação em ambas as narrativas de

preservar a verossimilhança, seja por meio do expediente enciclopédico ou em

situações mais pontuais, como nos episódios em que Pangloss e Caricléia são

condenadosàmorte.Ressaltamos,contudo,quedevemosreconhecerquenoCândido

há uma profusão de eventos nefastos que colocam em dúvida que um jogo de

probabilidadesestejaoperando.

Neste diapasão, colocada, igualmente, como uma obra que parodia as

convenções romanescas, procuramos indicar que a função semelhante à týkhe em

Voltairenãoatuaparacorroborarpormeiodaprovação,comonoromanceantigo,a

nobreza e a castidade do casal protagonista, mas para provar a tese voltairiana do

descréditodossistemas,vinculadaaesseconjuntodedesgraçasquesereitera.

A função da morte aparente, elevada a um nível exagerado, assim como a

utilização da retomada narrativa, comuns aos romances antigos, mas, em Voltaire,

empregadas de forma condensada, ressaltando os infortúnios que acometem os

personagens,causaumefeitodevelocidadeehumor.

A inversão da função do reconhecimento, para a de não reconhecimento, por

fim, tambémparodia os lugares comunsdanarrativa romanesca e leva, senão a um

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final infeliz, aomenosmelancólico. Cândido, que não reconhecemais sua amada, a

quem busca esperançosamente durante grande parte da história, encontra-a

extremamentemaltratadaporessatýkhequeaquiédúbia,poispermiteocasamento,

mas enviesa ainda uma vez para a má-sorte. A aparência da moça se constitui no

último golpe contra o sistema panglossiano, vez que tudo o que aconteceu com ela

definitivamentenãoculminounomelhor.Cândidoadesposaporqueédebomtomque

ofaça.Comoseujardim,aofimeaocabo,precisacultivarsuamelancolia,naspalavras

deVictorHugo,“afelicidadedesesertriste.”

REFERÊNCIAS

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ROMPKOVSKI,F.M.CândidodeVoltaire... 189

THOREL-CAILLETEAU, Sylvie. “The poetry of mediocrity.” In MORETTI, Franco. The Novel, v. 2.Princenton:PrincentonUniversityPress,p.64-94,2006.VOLTAIRE.Cândido,ouoOtimismo.Trad.MárioLaranjeira.SãoPaulo:PenguinClassics/CompanhiadasLetras,2012.Ebook.WOOD,Michael.“IntroduçãoaoCândido,ouoOtimismo.”InVOLTAIRE.Cândido,ouoOtimismo.SãoPaulo:PenguinClassics/CompanhiadasLetras,2012.Ebook.Recebidoem:28/02/2021Aceitoem:05/04/2021

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APOLÔNIA,P.E..Abuscade... 190

ABUSCADEUMASOCIEDADEAFRICANATRADICIONALEAFIGURA

FEMININANAOBRAPOÉTICADEPAULATAVARES

THESEARCHFORATRADITIONALAFRICANSOCIETYANDTHEFEMALE

FIGUREINTHEPOETICWORKOFPAULATAVARES

PaulaEsterApolônia1

RESUMO:OpresenteartigoprocuraevidenciardequeformaelementosconsideradosprópriosdassociedadesafricanastradicionaisaparecemnaobrapoéticadePaulaTavares.Tendoemvistaopapeldapoesiaparaaautora,entende-sequeelaautilizaparacompreenderaspectosdessassociedades,asquaiselamesmadiznão“compreenderinteiramente”.Atravésdocomentáriodealgunspoemasselecionadosdapoetaangolana,destacamostambémoquãorelevanteéofrequenteaparecimentodafigurafemininaemsuapoesia.Palavras-chave:PaulaTavares;poesiaangolana;sociedadesafricanas;figurafeminina.ABSTRACT:ThisarticleseekstoshowhowelementsconsideredtobetypicaloftraditionalAfricansocietyappearinthepoeticworkofPaulaTavares.Inviewoftheroleofpoetryfortheauthor,itisunderstoodthatsheusesittounderstandaspectsofthesesocietieswhichsheherselfsaysshedoesnot “fullyunderstand”.Through thecommentaryofsomeselectedpoemsby theAngolanpoet,wealsohighlighthowrelevantitisthefrequentappearanceofthefemalefigureinherpoetry.Keywords:PaulaTavares;Angolanpoetry;Africansociety;femalefigure.

PaulaTavares,escritoraangolanaquepublicaoseuprimeiro livroem1985,é

umapoetaqueprocuraseaproximardemodosdeveresentirquesepodeimaginar

seremprópriosdeumuniversoafricano,oqual remeteasociedades tradicionaisdo

continente,emespecialdaregiãoondehojeficaAngola.Emalgumamedida,aautora

buscarecuperarumamemóriaquefoiarrancadacomacolonização,oquerefleteem

1Graduanda,UFOP.

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APOLÔNIA,P.E..Abuscade... 191

suaescritapoética,naqualépossível identificarelementosatinentesa culturasnão

ocidentais, historicamente objeto de repúdio e desprezo por parte da perspectiva

eurocêntricadoscolonizadores.

Tavares surge no cenário das letras angolanas em ummomento de inovação,

quando se abandona o que ela própria identificou como um “chamamento

cantalutista”, associado aos ideais do movimento de libertação nacional, com sua

vontade de criar um “‘homem novo’” (TAVARES, 2008, p. 44). Segundo Laura

Cavalcanti Padilha (2012), desde o primeiro livro, Ritos de passagem, a poesia de

Tavares representa, “umamudançade rumododizer lírico femininoemAngola” (p.

217). Hoje, já se pode dizer que sua obra faz parte não apenas do cânone literário

angolano,masdo“espaçoalargadodas literaturasemlínguaportuguesa”(PADILHA,

2012,p.220).

Padilha,umadasbasescrítico-teóricasqueutilizamosnestetrabalho,étambém

quemafirmaqueaobradapoetatransita“pelospolosdatradiçãoedamodernidade”,

como fazia jáumantecessor importante,RuyDuartedeCarvalho,ao “interseccionar

os bens simbólico-culturais das populações que habitavam o lugar ‘achado’ pelos

navegantes portugueses e a herança também simbólico-cultural por estes

transplantada”(PADILHA,2012,p.219).Nomesmosentidovaiaafirmaçãodeoutra

de nossas referências, Carmen Lucia Tindó Secco (2011, p. 263), quando diz que

Tavarestrabalhacom“culturas”,noplural:“Éumapoesiaque[...] [faz interagir],em

tensão,ossentidostelúricoseoespólioadvindodeculturasque,atravésdosséculos,

habitaramAngola”.

No texto que segue, faremos comentários ou análises de alguns poemas

selecionados de quatro dos seis livros de poesia da autora, quais sejam: Ritos de

passagem (1985), Dizes-me coisas amargas como os frutos (2001), Manual para

amantes desesperados (2007)eComo veias finas na terra (2010). Para entender um

poucomelhorouniversotradicionalafricano,faremosusodeHampatéBâ,comseu“A

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tradiçãoviva”(2010),sempretomandocuidadoparanãoencararocontinentecomo

“umblocounoemonolítico”(PADILHA,2012,p.209).Outrosautorestambémserão

citados,comoIsabelCastroHenriques,ManuelFerreiraeBernardoAmorim,quenos

ajudarãoapensaremalgumasdasespecificidadesdapoesiaemquestão.

Tendoemvistaaideiadequeapoesiadaautoraécapazde“entrançar[...]duas

heranças” (PADILHA, 2012, p. 219), pode ser interessante pensá-la como uma

“mulher-de-dois-mundos”, que teve contato com duas culturas bem distintas, duas

sociedades bem diferentes, considerando-se também as diferenças entre o espaço

urbanoeoespaçorural.DeacordocomManuelFerreira,emseutexto“Umaaventura

desconhecida” (1975), a sociedade africana sofreu um processo de hibridização

cultural,queafetademaneiraparticularosescritoresquealiproduzemassuasobras.

Em seus termos, mesmo poetas “de genuínas raízes africanas” nesse espaço são

“possuídosdeumaculturafortementeeuropeia”,demodoquea“suapoesia,mesmo

quando orientada comdeterminaçãopara as fontes originais deÁfrica, terminapor

acusar a cargade todoumprocesso culturalmistoouhíbrido” (FERREIRA,1975,p.

41).

Neste sentido, a autora representaria uma figura que se pode aproximar do

mestiço,talcomodescritoporFerreira(1975,p.44):“Odestinodomestiçoseráodo

homem-de-dois-mundos,quesecumpriráumpoucodeharmoniacomopesocultural

de cada um destes dois mundos”. Seria, nas palavras de Bernardo Nascimento de

Amorim(2019,p.40),emartigosobreaautora,“umafigurainfluenciadapela‘cultura

da potência colonial’,mas interessada em se aproximar, emparticular, das ‘grandes

massasrurais’,cujo‘patrimôniocultural’[...]pretenderiavalorizar”.ComodizAmorim

(2019, p. 39-40), o escritor, em situações assim, teria que realizar uma espécie de

travessia,embuscadasfontesdeumaculturaafricanapropriamentedita:

Acontece que o escritor, o intelectual, pertencente aos ‘grupos letrados’ de suanação, sendo um membro da ‘pequena burguesia autóctone’, deve,

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necessariamente, fazerummovimentode travessia, sequiser seaproximardas‘massas populares trabalhadoras do campo e dos centros urbanos’. (AMORIM,2019,p.39-40).

Aprópriapoetafalasobrecomosuaexperiêncianaregiãodeorigemcondizcom

asafirmaçõesanteriores:

AHuíla,talqualeranaminhajuventude,eraolimiteentreduassociedadesbemdistintas; a sociedade europeia ― é uma cidade com muitas característicaseuropeias:umacidadedeplanalto,ondefazfrioeverde...E,poroutrolado,umasociedade africana que era ignorada pela cidade europeia. (TAVARES, 1991, p.849).

Tavares(1991,p.949) falada importânciadaHuíla,suaregiãonatal,paraseu

fazerpoético,marcadopelo “limiteentreduas sociedades completamentedistintas”.

Elaadmiteque“só fala línguas imperiais”,masadverteque issonãoaseparadesua

terra:“Eueaminhaterranãonosseparamos.Ouéissoqueeuprocuronãoseparar”

(TAVARES, 2008, p. 49). Tendo “no ouvido o som de outras línguas”, que não as

africanas,eladizqueseutrabalhoseconstituicomoumacanibalização,devoraçãode

diversasreferências: “eunão façocópias: trabalho,canibalizoedevorocomomuitos

outrosafricanosfizeram”(TAVARES,2008,p.49).

Outro ponto muito explorado na obra de Tavares diz respeito ao universo

feminino. Em sua poesia, predomina um sujeito lírico frequente e destacadamente

feminino,oqualrealizadiversasfunçõesepapéisnostextos.Sobreseuinteressepela

figurafeminina,Tavaresafirma:

[...] a situação damulher em particular chamou-me a atenção desde sempre: asituação da mulher na sociedade africana, da mulher enquanto unidade deproduçãofundamentalnessamesmasociedade,damulheremtornodaqualtudogiravaeque,aomesmotempopareciaserumnadaimportanteemrelaçãoaessamesmasociedade.Apartirdessapreocupação,veio-meavontadededescobriroqueéquesepassavarealmentenavidadessasmulheresnessasociedadenaqualeunãotinhacrescidoedaqualeunãosabiacompreendermuitascoisas.Assimquisescrever,conhecercoisascomotodososrituaisdeiniciação,apuberdade,a

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preparaçãodamulherparaomatrimónio,ocasamento,a relação-mulher,mãe-filhoquerdizer:opercursodamulheratéàmorte.(TAVARES,1991,p.850).

Opoemaaseguirseencontrano livroRitosdepassagem,publicadonoanode

1985, inaugurando a obrapoética da autora.Na visãode Secco (2011, p. 265), esse

livro se diferencia dos posteriores da poeta por possuir um eu lírico com atitudes

peculiares:“Saltandoocercadoebuscandoaosulaliberdade,afigurafeminina,nesse

primeirolivrodePaulaTavares,persegueoscheirosesaboresdaterra,redescobrindo

asuaprópriasexualidade”.

O poema, sem título, é antecedido por uma epígrafe, na qual se encontra um

provérbio da filosofia de Cabinda, região localizada no norte de Angola. Como

manifestação da tradição oral, o provérbio já indica a vontade da poeta de dar

visibilidadeàculturaangolana:

Ascoisasdelicadastratam-se comcuidado FILOSOFIACABINDA

Desossaste-me cuidadosamente inscrevendo-me noteuuniverso comoumaferida malditanecessária

conduzistetodasasminhasveias paraquedesaguassem nastuas semremédio meiopulmãorespiraemti ooutro,quemelembre malexiste

Hojelevantei-mecedo pinteidetaculaeáguafria ocorpoaceso nãobatoamanteiga nãoponhoocinto VOU paraosulsaltarocercado.(TAVARES,2011,p.55).

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Acerca da epígrafe, é possível notar uma relação entre ela e o conteúdo do

poema,tendoemvistaaideiadecuidado,presenteemambos.Nopoema,observa-se

umcontrasteentreoquesediznocorpodopoema,comoquesediznoprovérbio.A

epígrafe utiliza o substantivo “cuidado” de modo a aproximá-lo das ideias de

delicadeza, cautela, atenção, enquanto o advérbio “cuidadosamente”, no corpo do

poema,carregasignificadosopostos,poisestáassociadoaumatodeviolência.

Há no poema claras referências ao que se acredita ser natural ao universo

africano e umpoucoda rotinadamulher tradicional africana.Aprimeira estrofe se

iniciacomoeulíricodescrevendoaçõesquesofreudeumasegundapessoa,um“tu”.

Pelostermosutilizadosnosversos,desdeoinício,como“desossaste-me”,depreende-

se que se trata de ações negativas e nocivas ao sujeito poético.Na última estrofe, é

possível identificar uma revolta por parte dele, que se infere ser feminino, uma vez

queasfunçõesdescritasnamesmaestrofesãodesempenhadastradicionalmentepor

mulheres.

Na última estrofe do poema, acontece, de fato, uma mudança, uma quebra,

fenômenomarcadopelainsatisfaçãodoeulíricoque,atéentão,mostrava-sepassivo.A

movimentaçãodosversoseestrofesdopoema,característicabempeculiardaescrita

poéticadeTavares,emparticular,emRitosdepassagem,acompanhaasatitudesdoeu

lírico, de maneira que a passividade é então substituída pela necessidade de se

revoltar.EssefatovaiaoencontrodopensamentodeTavares(1991,p.858),expresso

atravésdaseguintefala:“[...]mesmonesseuniversotradicional[...],eupensoquehá

muitos gritos de revolta nessa máquina que não funciona assim tão bem”. Aqui, a

insatisfaçãoseconcretizacomainiciativade“saltarocercado”,oqueevidenciaqueo

cercadoéumlugardeopressãoelimitação.

OpróximopoemaseencontranolivroDizes-mecoisasamargascomoosfrutos,

terceirolivrodaautora,publicadonoanode2001.Secco(2011,p.269)destacacomo,

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nesselivroeemoutrosdaautora,osujeitopoéticoassume“umaatitudederesistência

noquedizrespeitoàpreservaçãodastradições”,mesmoemmeioàs“desilusõescom

opresente”.

Dequecoreraomeucintodemissangas,mãefeitopelastuasmãosefiosdoteucabelocortadonaluacheiaguardadodocacimbanocestotrançadodascoisasdaavóOndeestáapaneladoprovérbio,mãeadastrêspernaseasapartidaquemedesteantesdaschuvasgrandesnodiadonoivadoDequecoreraaminhavoz,mãequandoanunciavaamanhãjuntoàcascataedesciadevagarinhopelosdiasOndeestáotempoprometidop’raviver,mãesetudoseguardaerecolhenotempodaesperap’raládocercado.(TAVARES,2011,p.133).

Nessepoema, intitulado“Ocercado”,expressãobastantehabitualnapoesiada

escritora angolana, temos o eu lírico feminino dirigindo questionamentos a uma

segunda pessoa, nomeada e identificada como “mãe”Os questionamentos giram em

torno de sua identidade, o que pode levar a que se pense em uma espécie de crise

existencial da voz poética, a qual levaria o sujeito a um desconhecimento de sua

própriapersonalidade.

A primeira estrofe apresenta o questionamento sobre qual era a cor de um

objetoimportanteparaoeulírico:oseucintodemissangas,elementoqueapareceem

outrospoemasdaautora, constituindo-secomoobjetoqueseriaprópriodeculturas

africanas.Aqui,ficaevidentequesetratadeumobjetofabricadodemaneiraartesanal,

pelasprópriasmãosdafiguraqueoeu líricochamademãe.Avozpoéticarecorreà

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mãeparaencontrarpertencesque,decertaforma,constituemasuaidentidade,oseu

sentido de pertencimento. Na estrofe em questão, aparece, ainda, a figura da avó,

reforçandoapresençadouniversofemininonapoesiadeTavares.

Épossívelencontrar,nasegundaestrofe,outrotermomuitousadoporTavares

em sua poesia, qual seja, a palavra “provérbio”, que também remete às culturas

africanaseàsuacaracterísticaoralidade.Nuncaédemaisrelembrar,comefeito,como

a tradiçãooral,daqualprocuraseaproximarapoesiadaautora,éelementocentral

paraascomunidadesafricanas.Em“Atradiçãoviva”,HampatéBâafirma:

Quando falamos de tradição em relação à história africana, referimo-nos àtradiçãooral,enenhumatentativadepenetrarahistóriaeoespíritodospovosafricanosterávalidadeamenosqueseapoienessaherançadeconhecimentosdetoda espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre adiscípulo,aolongodosséculos.(BÂ,2010,p.167).

Osegundoquestionamentodopoemagiraemtornodeoutroobjetomanuseado

com frequênciapelasmulheres. Comonaprimeira estrofe, esseobjeto, a “panelado

provérbio”,relaciona-seaosafetosdoeulírico,poiséumpresenterecebidonodiade

seu noivado. O cuidado na escolha da panela, com características tão singulares (a

panela“dastrêspernas/easapartida”),relaciona-seaumritual,odonoivado.

A terceiraestrofeapresentauma linguagemmaismetafóricae,decerta forma,

retomaaprimeiraestrofe,aorepetirasprimeiraspalavrasdeseuprimeiroverso,que

tambémsustentaametáforaresponsávelporexpressaracriseexistencialdoeulírico

(“De que cor era a minha voz, mãe”). A maneira do correr da água (“descia

devagarinhopelosdias”),porsuavez,éutilizadaparacaracterizararotinaeoritmo

dosdiasdesseeupoético,nopassado,quandoascoisaspareciamcorrersemgrandes

contratempos.

Aquartaeúltimaestrofe,porfim,apresentaumafigurapoéticainsatisfeitacom

sua situação presente, marcada por promessas não realizadas e expectativas não

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satisfeitas.Odirecionamentodosquestionamentosaumafiguranomeadacomomãe

evidenciatambémoquão íntimossãoospensamentosesentimentosexpressospelo

sujeitodopoema,quemaisumavez semostradesejosode sairdoespaço limitante

queocercadorepresenta.Em“Ocercado”,Tavaresexploraaspossibilidadesdepapéis

a serem desempenhados pelas mulheres africanas, enfatizando as três principais

opçõesmais frequentes, isto é, os de esposa,mãe e filha. Como no poema anterior,

aquitambémocercado,associadoaolugareaospapéisdestinadosàmulher,aparece

comoumlocaldeopressão,queimpedeumavivêncialivreporpartedoeulírico.

Sobre o quinto livro da autora, intituladoManual para amantes desesperados,

publicado no ano de 2007, Secco aponta algumas peculiaridades. Uma delas diz

respeito à sua suposta função de orientar, sugerida pela palavra “manual”:

“Colocando-secomomanual,olivroseinstituicomoguia,comoalgoasertocadopelas

mãos,comoorientaçãoparalidaramorosamentecomocorpo”(SECCO,2011,p.273).

Depois,ressalta-seasualinguagemambígua:“[...][os]poemasdolivroemquestãosão

perpassados por profunda ambiguidade, oscilando entre a tranquilidade e a

tempestade[...]”(SECCO,2011,p.274).E,ainda,masnãomenosimportante,destaca-

se como o sujeito lírico dos poemas do livro “reinventa ritos e rituais de povos

pastores do sudoeste angolano” (SECCO, 2011, p. 273). “Otyoto”, que a seguir se

transcreve, é uma das composições em que mais transparece a preocupação de

Tavaresemrelaçãoàsituaçãodamulher.

OTYOTO(oaltardafamília)TodasasmãesdacasaredondadisseramGuardaostesourosOstelhadosdevidroOsilêncioCuidadocorpodacasaedastrançasDesfaz-teemleiteParaafomedascrianças.

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NinguémfaloudedorAbandonosolidãoAloucuraéinterditaFicamossonhosavoarPássarosnabocadovento.(TAVARES,2011,p.203).

Sobre a palavra que se encontra no título do poema, o primeiro significado

disponível diz “se tratar de um lugar onde as pessoas se reúnem para realizar

cerimôniasoufalardeassuntosrelacionadosàcomunidade”;eosegundoaponta“ser

umlocalondesetransmiteensinamentos,nofinaldodia,emvoltadeumafogueira”

(REM’S,2015,s/p)2.Ambosserelacionamaosubtítulodopoema,queapareceentre

parênteses, abaixo do título: “o altar da família”. O poema se constitui por duas

estrofes. Na primeira, aborda-se a educação tradicional da mulher africana, sendo

possívelperceber,emespecial,duasdas funçõesque lheeramdestinadas:cuidarda

casa e das crianças. Nessa mesma estrofe, podemos perceber alguns aspectos

considerados próprios de sociedades africanas tradicionais, como a ideia de

coletividade e a transmissãodos ensinamentospormeioda oralidade. São aspectos

quepossuemumamarcanterelevânciaparaosafricanos,comoafirmaHampatéBâ,no

jácitado“Atradiçãoviva”:“Atradiçãooraléfundamentalparaacomunidadeafricana,

nãosóparaasobrevivênciadesuacultura,mastambémdesuahistória”(BÂ,2010,p.

167).

Nasegundaestrofe,evidencia-sequãosolitáriaéa rotinadamulher.Comono

primeiro poema que comentamos, tem-se um eu lírico feminino falando de seus

sentimentos mais íntimos, destacando-se um sentimento de angústia, devido à

interdiçãodosonharedaprópriamanifestaçãodoquesesenteepensa.Aescolhada

expressão“loucurainterdita”sugerequetodaadoreosentimentodessasmulheres,

cujas mães se reúnem na casa redonda para transmitir as normas e costumes do

grupo,fazempartedascoisassobreasquaisnãosedevefalar,sobreasquaissedeve

2“Otyoto:osvaloresdaculturaafricanaeangolanaparanovageração”(REM’S,2015,s/p).

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guardarosilêncio.AcomummovimentaçãodapoesiadeTavaresaparecenovamente;

dessa vez, esse fenômeno não ocorre na estrutura do poema, mas sim em seu

conteúdo:avontadedevoar(“Ficamossonhosavoar/Pássarosnabocadovento”),

deselibertar,marcaoimpulsodosujeitopoético.

Oúltimopoemaacercadoqual faremosumcomentárioseencontranoúltimo

livro da poeta,Como veias finas na terra, publicado no ano de 2010. Segundo Secco

(2011, p. 276), nesse livro, tem-se um “sujeito poético [que] ‘tece’ e ‘retece’ sua

históriaeadeAngola”,reelaborando“memóriasesonhosrelacionadosàspaisagens

dainfâncianaterra[...]”.Segueacomposição,semtítulo:

AmulherdepalavrasantigasMoveuasmãosparaamarrarosolDeixounapraiaasmarcasdospésInventouumtextoParacruzarasfibras.ArdemdenovooslíriosNosilênciodasdunasOsriosdeseivaengordamAárvoredosvelhospelasraízesAmulherdaspalavrasantigasEnchedeáguanovaaspanelasondeosespíritossereconhecemematamasededosdiasedasnoitesAguardiãdofogocomeçaavidaPelossetecaminhosLêaspalavrasiguaisEcomeçadenovoAmemóriadotempoEstáinscritanosseusgestospequenosQuetornamoavessodaterraTãoperfeitocomoilhaQuesemovelentaPordentrodocerco.Assimserasgamosdias

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ÀforçadevozesPequenasmulheresemfilaRecolhendoospeixesAssimseinscrevemnomapadanoiteOsgritosdasmulheresOchorodascrianças.(TAVARES,2011,p.255-256).

O poema se inicia com uma apresentação de uma terceira pessoa, cujas

“palavras antigas” remetem à importância dos antepassados para as culturas

africanas. Ainda nessa primeira estrofe, destaca-se algo que pode ser associado a

saberes africanos, nomeadamente, a arte de se tecer cestos, uma atividade muito

valorosa na África e que se integra a todo um sistema próprio de suas sociedades

tradicionais. SegundoHampatéBâ (2010,p. 185), em tais sociedades, “as atividades

humanaspossuíamfrequentementeumcarátersagradoouoculto,principalmenteas

atividadesqueconsistiamemagirsobreamatériaetransformá-la,umavezquetudoé

consideradovivo”.Osofíciosartesanais,vistostambémcomo“osgrandesvetoresda

tradiçãooral”,deveriamrepetir“omistériodacriação”(BÂ,2010,p.185).

A figura da mulher é caracterizada como uma potência de grande força e de

grandesabedoria,oquevaiaoencontrodoqueaautorapensaeprojetaparaamulher

africana. Paula Tavares (1991, p. 852) comenta que, em Angola, logo após a

independência, em 1975, podia-se encontrar “mulheres em quase todas situações”,

“mulheresquetiveramumpapelmuitoimportantenoprocessodelutadelibertação

nacional,mulherescomumapalavramuitofortemesmononovoGoverno”.

A segunda estrofe, que expõe as consequências das ações da “mulher das

palavras antigas”, citadas na estrofe anterior, aborda a revitalização da vida, a

renovação de energias, destacando-se também a ligação do homem africano com a

natureza.Onovoeovelhoseconectam,emumcicloqueépartedapróprianatureza.

O plano místico faz parte dos costumes do continente africano, sendo

considerado algo natural. É esse planoque aparece na terceira estrofe do poema.A

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presençados“espíritos”,quesereconhecemnaspanelascheiasdeáguanova,comque

matam a sua sede, denota como o mundo apresentado no texto é tocado por uma

dimensãometafísica. É Hampaté Bâ, novamente, quem chama a atenção para outro

ponto importante: “Deve-se ter emmente que, demaneira geral, todas as tradições

africanas postulam uma visão religiosa do mundo.O universo visível é concebido e

sentidocomoosinal,aconcretizaçãoouoenvoltóriodeumuniversoinvisívelevivo,

constituídodeforçasemperpétuomovimento”(BÂ,2010,p.173).

Naquartaenaquintaestrofes,reforça-searelaçãoentreovelhoeonovo,que

aparece,nopoema,desdeoinício,comovimos,quandosefalada“mulherdepalavras

antigas”,aqualapareceagoracomoumaespéciedesacerdotisa,a“guardiãdofogo”,

capaz de dar começo à vida. A quinta estrofe, em particular, com a referência à

memória, remete à importância dos antepassados para a África. Para Hampaté Bâ

(2010, p. 25), existe, no africano, “uma vontade constante de invocar o passado”, a

qual,todavia,“nãosignificaoimobilismoenãocontradizaleigeraldaacumulaçãodas

forças e do progresso”. Diz ainda o autor sobre o “tempo africano”: “[...] o tempo

africanotradicionalenglobaeintegraaeternidadeemtodosossentidos.Asgerações

passadasnãoestãoperdidasparaotempopresente.Àsuamaneira,elaspermanecem

semprecontemporâneasetãoinfluentes,senãomais,quantooeramduranteaépoca

emqueviviam”(BÂ,2010,p.25).

Nasextaestrofe,aparecenovamenteumareferênciaà importânciadatradição

oralparaasobrevivênciadahistóriaedasculturasafricanas,muitodevedorasdaação

de “pequenasmulheres”, cujas vozes rasgam os dias: “Assim se rasgam os dias / À

forçadevozes”.Conectadaàs açõespresentesnaestrofe anterior, a sétimaeúltima

estrofes apresentam, entretanto, uma ambientação sombria, marcando também o

universofemininocomdoresofrimento.

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Nopoemaque estamos comentando, a expressão “memóriado tempo”parece

remeternãoapenasaoqueéprópriodouniversoafricano,mastambémaoquetrouxe

acolonizaçãodocontinentepeloseuropeus.DeacordocomIsabelCastroHenriques:

[...] colonizaréumexercícioquevisadesmemoriaraspopulaçõesemrelaçãoàsuaprópria história, introduzindo a história do colonizador e construindoumanovamemória,ondeunseoutrossãohierarquizadosdeacordocomaordemdocolonizador, marcando de forma definitiva a valorização do mesmo, adesvalorizaçãoearecusadooutro.(HENRIQUES,2014,p.49).

NapoesiadePaulaTavares,avalorizaçãodoqueseriaprópriodassociedadese

culturas africanas tradicionais, em particular daquilo que está ligado ao universo

feminino,é tambémummododecontrariaroprocessocolonialesuaviolência,que,

como diz Henriques, sendo “inerente à dominação”, “foi sempre uma constante dos

processos de colonização” (HENRIQUES, 2014, p. 49). Marcada pela hibridez,

permeadapelotrânsitoentremundosbemdistintos,queforamcolocadosemcontato

porforçadacolonização,apoesiadaautoraencontranaexperiênciadeintegrantesde

clãsecomunidadesdomeiorural,bemcomonaexperiênciadasmulheresaíinseridas,

uma formadeseaproximardeumuniversoculturalpormuito tempoapagado,mas

cujovalorreconheceeconfirma.

REFERÊNCIASAMORIM,BernardoNascimentode.“Escrever,conhecer:aprocuradasociedadeafricananapoesiadePaulaTavares.”InMulemba,RiodeJaneiro,v.11,n.21,p.35-49,jul.-dez.2019.BÂ,A.Hampaté.“Atradiçãoviva.”InKI-ZERBO,J.(Ed.).HistóriageraldaÁfrica,1:Metodologiaepré-históriadaÁfrica.2ªed.rev.Brasília:Unesco,2010.p.167-212.FERREIRA, Manuel. “Uma aventura desconhecida.” In _____ (Org.). No reino de Caliban: antologiapanorâmicadapoesiaafricanadeexpressãoportuguesa.V.1.Lisboa:SearaNova,1975.p.16-64.

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HENRIQUES, Isabel Castro. “Colónia, colonização, colonial.” In SANSONE, Livio; FURTADO, CláudioAlves (Orgs.).Dicionário crítico das ciências sociais dos países de fala oficial portuguesa. Salvador:UBUFBA,2014.p.45-58.PADILHA,LauraCavalcante.“Sobremulheres,cânones,silêncioseenfrentamentos.”InDiadorim.Riode Janeiro, v 11, p. 209-223, jul. 2012. Disponível em:https://revistas.ufrj.br/index.php/diadorim/article/view/3965/15629.Acessoem:05abr.2021.REM’S,Capitão. “Otyoto:OsvaloresdaculturaAfricanaeAngolanaparaanovageração.” In JornalAngolano de Artes e Letras. 23 nov. 2015. Disponível em: http://jornalcultura.sapo.ao/eco-de-angola/otyoto-os-valores-da-cultura-africana-e-angolana-para-nova-geracao/. Acesso em: 18 fev.2021.SECCO,CarmenLuciaTindó.“Asveiaspulsantesdaterraedapoesia.”[Posfácio].InTAVARES,Paula.Amargoscomoosfrutos:poesiareunida.RiodeJaneiro:Pallas,2011.p.259-281.TAVARES,Paula.Amargoscomoosfrutos:poesiareunida.RiodeJaneiro:Pallas,2011._____.“Contarhistórias.” InPADILHA,LauraCavalcante;RIBEIRO,MargaridaCalafate(Orgs.).LendoAngola.Porto:Afrontamento,2008.p.39-50._____. “EncontrocomPaulaTavares [Entrevista].” InLABAN,Michel (Comp.).Angola:encontrocomescritores.V.2.Porto:FundaçãoEngenheiroAntóniodeAlmeida,1991.p.845-861.Recebidoem:28/02/2021Aceitoem:05/04/2021

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UMACRÍTICAÀSVÍTIMASDEVIOLÊNCIAURBANANOCONTO“ZAÍTA

ESQUECEUDEGUARDAROSBRINQUEDOS”

ACRITICISMOFVICTIMSOFURBANVIOLENCEINTHETALE“ZAÍTA

ESQUECEUDEGUARDAROSBRINQUEDOS”

JúliaSilveiraSoares1

RESUMO:Esteartigotemcomoobjetivoanalisaroconto“Zaítaesqueceudeguardarosbrinquedos”,presentenacoletâneaOlhosd´água,deautoriadeConceiçãoEvaristo(2016),abordandoostemasdedesigualdadesocial,depreconceitoracialedeviolênciaurbana.Amanutençãodecomportamentosautoritários revela a herança de uma mentalidade escravista e colonialista. Serão utilizadas asabordagens teóricas de Marilena de Souza Chauí (2017), Lilia Moritz Schwarcz (2019), JaimeGinzburg(2012)edadosestatísticosdoIBGE.Palavras-chave:desigualdade;violência;ConceiçãoEvaristo.ABSTRACT:Thisarticleaimstoanalyzetheshortstory“Zaítaesqueceudeguardarosbrinquedos”,presentinthecollectionOlhosd´água,writtenbyConceiçãoEvaristo(2016),addressingthethemesofsocialinequality,racialprejudice,andurbanviolence.Themaintenanceofauthoritarianbehaviorrevealsthelegacyofaslaveryandcolonialistmentality.ThetheoreticalapproachesofMarilenadeSouzaChauí(2017),LiliaMoritzSchwarcz(2019), JaimeGinzburg(2012)andIBGEstatisticaldatawillbeused.Keywords:inequality;violence;ConceiçãoEvaristo.

Espera-sequeamulhernegrasejacapazdedesempenhardeterminadasfunções,comocozinharmuitobem,dançar,cantar,masnãoescrever.Àsvezesmeperguntam:‘Vocêcanta?’.Eeu

digo:‘nãocantonemdanço’.

ConceiçãoEvaristo

1Mestranda,UFES,BolsistaCAPES.

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1. INTRODUÇÃO

Avozdonegro,pormuitasvezes,foisilenciadadurantelongotempoe,aindaem

temposatuais, sua trajetóriae lutassão ficcionalizadaserroneamente.Opovonegro

buscaarduamenteseusdireitosafimdecombaterasdesigualdadessociaisquesofre

na sociedade brasileira e, principalmente, o preconceito racial.Há uma acomodação

emrelaçãoàresistênciaaoracismoestrutural,quegera,obviamente,distinçõesentre

raças em variados aspectos. Essa problemática é preocupante, pois,

consequentemente, acarreta muitos problemas sociais que são, infelizmente,

interiorizadosnocotidianocomum.

Noâmbito literário,oproblemase repete,poisasnarrativas retratamonegro

sob umolhar subalternizado e, raramente, ele aparece comoprotagonista. Em vista

disso, é necessário reivindicar as devidas mudanças e compartilhar a verdadeira

condição dos afrodescendentes, para que, assim, ele deixe de pertencer a um grupo

marginalizado e consiga o reconhecimento de atingir a representatividade na

literaturabrasileira contemporânea.ConceiçãoEvaristomanifestagrandiosamentea

temática apresentada, denunciando as questões no que tange ao indivíduo negro e

suas batalhas diárias. A autora transforma essas experiências e traduz em forma

literária, domesmomodoqueprovocaodebate sobrea importânciadoMovimento

Negro como meio de recuperação de memórias e identidades da população afro-

brasileira.

AobraOlhosD’água(2016),constituídapor15contosbreves,procuradaravoz

aos protagonistas, excluídos sociais, todos negros, que enfrentam dificuldades e

sofrem cotidianamente os vários tipos de violências nas favelas brasileiras. São

históriasnarradastantoporpersonagensfemininas,quantomasculinaseinfantis,ou

seja,nãoháumpadrãoquantoaogêneroe faixaetária.Entretanto,háumaconexão

entreambos:araça,aclassesocialeosdesfechosinfelizes.Preconceito,desigualdade

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social,vivênciasemcondiçõesprecárias,vidasde inocentesperdidas,sãoalgunsdos

temasprincipaisnoscontosdeEvaristo.Aautora,negra(ouseja,tambémpertencente

aessecoletivo),descrevetaisexperiênciaspessoaispormeiodeumaescritapoéticae

subjetiva e converte-as em obra literária. Evaristo caracteriza essa ação como

escrevivência.

Em uma entrevista à BBC News Brasil2, Evaristo explica a concepção da

expressão ideadapor ela e a relevânciada subjetividadedoescritornoprocessode

transmitirrecordaçõespessoaisaumaobraliterária:

BBC Brasil — A senhora usa a expressão "escrevivências" para falar na suaescrita, feita a partir de suas vivências como mulher, negra, de origem pobre.Achaqueestáaíaforçadesuaobra?ConceiçãoEvaristo—Nãoéqueohomemnãopossa escrever sobre amulher.Pode.Nãoéqueobranconãopossaescreversobreonegro.Pode.Masquandoessediscursofaladoouescritocarregaanossasubjetividade,justamenteporqueelenascenumlugarsocial,numlugardegênero,numlugarracialdiferente,eletrazdeterminadaspeculiaridadesqueaquelequeescrevede fora,pormaisqueseja competentedopontode vista intelectual ou emocional, não vai trazer. Elenão trazumacargadequemescrevededentro.Aquinão temnenhum juízodevalor,dequererdizerqual textoémaisbonito.Nãoé issonão.Mas trata-sedeapontar esse local diferente onde esse discurso nasce e é desenvolvido. (BBCNEWSBRASIL,2018).

Evaristochamaaatenção,indiretamente,paraodesafioemenfrentarocânone

literário, emgeral, brancoemasculino.Assim, sãonecessáriasoutras apresentações

de lugaresde fala, preferencialmentenegras e femininas. Esse tipodediscurso, que

sempre esteve às margens, ganha voz e espaço na contemporaneidade através de

outrasescritorasalémdeEvaristo,taiscomo:MariaFirminadosReis,CarolinaMaria

de Jesus, Djamila Ribeiro, Paulina Chiziane, Noémia de Sousa, Alice Walker,

ChimamandaNgoziAdichie,entreoutras.

2Paraacessoàentrevistaintegral,ver:https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43324948.Acessoem:01set.2020.

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Aindaa respeitoda limitaçãodasproduções literáriasdoscoletivosoprimidos

emdiscussão,JaimeGinzburg(2012)explicaomotivoprincipalpeloqualissoocorre:

apriorizaçãodosinteressesdatradiçãopatriarcaleelitesdominantes.

A sustentação do cânone funciona como uma política da memória, apontandopara o que deve ser lido e lembrado, de acordo com intelectuais a quem éatribuída a autoridade para escolher. Um historiador da literatura respeitadoforma opiniões, estabelece padrões de gosto e, ao definir o que deve serlembrado, compõe uma pauta para a memória social. Seus critérios de valorinfluenciarão os critérios de outros. A memória de uma sociedade, entendidacomo memória coletiva, deve ser permanentemente posta em debate. Ela nãopode ser concebida como totalidade fechada, mas como dinâmica aberta.(GINZBURG,2012,p.221).

O autor ressalta a importância da literatura de testemunho, dos estudos

oriundos de grupos excluídos; aborda, também, o problema da padronização do

cânone literário brasileiro e explica como a imagem unificada provoca exclusões

quando são selecionadas, pois, se há uma predefinição do que será lembrado como

“memóriasocial”,logo,criam-sehierarquias.Vejamoscomoissoacontecenocontexto

docontodeEvaristo.

2. APRESENTAÇÃO DO CONTO E ANÁLISE SOBRE AS REPRESENTAÇÕES DAS

INFÂNCIASPERDIDASPROTAGONIZADAPORZAÍTA

Em “Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos” (2016), Evaristo constrói uma

tramaque,comoosdemaiscontos,acontecenasfavelasbrasileiras.Asdificuldadesda

rotina dessa realidade conturbada são vivenciadas por personagens da família de

Zaíta,umacriançaqueprotagonizaoenredo.Afamíliaécompostapelamãe,Benícia,

pela irmã gêmea de Zaíta, Naíta e pelos dois irmãos mais velhos. O pai não é

mencionado frequentemente na narrativa, tampouco está presente na vida das

meninas,eessaausênciaéexplicadapeloexcessodetrabalho.

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Omodo como o ex-casal é descrito reflete suas respectivas lutas diárias e as

tentativas de resistência aos problemas financeiros. As poucas informações são

retratadasda seguinte forma: “AmãedeZaítaestava cansada.Tinha trintaequatro

anosequatrofilhos”(EVARISTO,2016,p.45)e“Opaidasgêmeas,queduranteanos

moroucomsuamãe,trabalhavamuitoenuncatraziaobolsocheio”(p.46).

No que tange aos irmãos, também poucomencionados, nem seus respectivos

nomessãofornecidos.Aausênciadessaúltimainformaçãoindica,possivelmente,uma

crítica:elessãorepresentativosdostantosjovenstrabalhadoresdebaixarendaquese

esforçamporumespaçonomercadodetrabalho,masnãoconseguemoquealmejam

pela falta de oportunidades, de não terem experiências ou por não terem concluído

cursostécnicosousuperiores.

Queria seguir carreira, buscava outra forma e local de poder. Tinha umquererbemfortedentrodopeito.Queriaumavidaquevalesseapena.Umavida farta,um caminho menos árduo e o bolso não vazio. Via os seus trabalharem eacumularemmisérianodiaadia.[...]Opaideleedoirmãomaisvelhogastavaseupouco tempo de vida comendo poeira de tijolos, areia, cimento e cal nasconstruçõescivis.[...]Omoçoviamulheres,homenseatémesmocrianças,aindameio adormecidos, saírem para o trabalho e voltarem pobres como foram,acumuladosdecansaçoapenas.(EVARISTO,2016,p.46).

O fato de tanto o mais novo quanto o mais velho não terem seus nomes

indicadosfuncionacomodenúnciadapoucarelevânciaqueasociedadedáparaessa

parcela dapopulação, que resiste e tenta sobreviver às duras jornadasde trabalhos

informais. No que se refere, especificamente, ao mais novo, ele procurava outras

realidadesmaissatisfatóriasfinanceiramentee,dessaforma,nãoresisteàstentadoras

propostasdevidaedinheiro“fáceis”,istoé,dotráficodedrogas:

Queria, pois, arrumar a vida de outra forma. Havia alguns que trabalhavam deoutromodoeficavamricos.Erasóinsistir,sótercoragem.Sódominaromedoeir adiante. Desde pequeno ele vinha acumulando experiências. Novo, criançaainda, amãenemdesconfiava e ele já traçava o seu caminho. Corria ágil pelosbecos,colhiarecados,entregavaencomendas,edisplicentementeassobiavauma

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músicainfantil,somindicativodequeoshomensestavamchegando.(EVARISTO,2016,p.46).

OenredoatraiumaatençãoespecialparaaspersonagensinfantisZaítaeNaítae

suasingenuidadesemmeioaumcontextoproblemático.Osfrequentestiroteiosentre

policiais e traficantes causam preocupações aosmoradores e, no trecho a seguir, é

retratadaumasituaçãoemqueaspersonagensvivenciamperíodosdemedo:

Zaítapercebeuqueavozdamãetremiaumpouco.Denoitejulgououviralgunsestampidosdebalaaliporperto.Logodepoisescutouospassosapressadosdoirmãoqueentrava.Elaseachegoumaisparajuntodamãe.Airmãdormia.Amãesemexeunacamaváriasvezes;emumdadomomentosentouassustada,depoissedeitounovamentecobrindo-setoda.Ocalordoscorposdamãeedairmãlhedavamcertoconforto.Entretanto,nãoconseguiudormirmais,tinhamedo,muitomedo,eamãelhepareceuterpassadoanoitetodaacordada.(EVARISTO,2016,p.46).

As descrições são importantes para melhor compreensão do contexto

sociocultural, pois são um pano de fundo para a trama que gira, especialmente, em

tornodasirmãsque,emumdiaaparentementenormal,saemdecasasemapermissão

desuamãe,deixandoespalhados,nochão,algunsbrinquedos.

Zaíta, quando percebe a ausência de Naíta, sai à sua procura, com muita

angústia. Inicia a busca visando às possibilidades de locais em que a irmã poderia

estar: “Zaítasaiudecasaemcasapor todoobeco,perguntandopela irmã.Ninguém

sabiaresponder.Acadaausênciadeinformaçãosuamágoacrescia.Foiandandojunto

comadesesperança.Chorava.”(EVARISTO,2016,p.46).

OnarradorinformaaoleitorqueNaítaestavasimplesmentenacasadavizinha:

“Aoutramenina,Naíta,queestavanobarracoao lado, escutandoosberrosdamãe,

voltouaflita.Foi recebidacomtapasesafanões.SaiuchorandoparaprocurarZaíta.”

(EVARISTO, 2016, p. 47). O andamento dos fatos segue até o desfecho: amorte da

protagonista. Contudo, antes do clímax, são apresentados o contexto social e as

últimasatribulaçõesocorridas:

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Nos últimos tempos na favela, os tiroteios aconteciam com frequência e aqualquer hora. Os componentes dos grupos rivais brigavam para garantir seusespaços e freguesias. Havia ainda o confronto constante com os policiais queinvadiamaárea.[...]Obarulhosecodebalassemisturavaàalgazarrainfantil.Ascrianças obedeciam à recomendação de não brincarem longe de casa, mas àsvezes sedistraíam.E, então,nãoexperimentavamsomenteasbalasadocicadas,suaves, que derretiam na boca, mas ainda aquelas que lhes dissolviam a vida.(EVARISTO,2016,p.48).

Nota-seorecurso linguísticodoeufemismo,noempregoredundantede“bala”,

utilizadopelonarradorparasreferiràscriançasassassinadasevítimasdetiroteiopor

balas perdidas. Assim, para amenizar a desagradável morte de inocentes, traz a

palavra “bala”, istoé, amuniçãoque, aoentraremcontato comocorpohumano, se

“dissolve”,eéumaformadefazerreferênciaà“bala”guloseimaquetantoéapreciada

pelascrianças.

Zaítaperdesuavidadeumamaneiramuitotrágica,mesmocomoutraspessoas

demonstrando tentativas de ajudá-la a sair do ambiente onde acontecia o tiroteio.

Observa-senodiscursodonarradorapresençadametáforaaocompararoefeitoda

“bala”(munição)nocorpocomodesabrochamentodasflores:

Zaíta seguia distraída em sua preocupação. Mais um tiroteio começava. Umacriança,antesdefecharviolentamenteajanela,fezumsinalparaqueelaentrasserápido em um barraco qualquer. Um dos contendores, ao notar a presença damenina,imitouogestofeitopelogaroto,paraqueZaítaprocurasseabrigo.[...]Emmeio ao tiroteio a menina ia. Balas, balas e balas desabrochavam como floresmalditas,ervasdaninhassuspensasnoar.Algumasfizeramcírculosnocorpodamenina. Daí um minuto tudo acabou. Homens armados sumiram pelos becossilenciosos,cegosemudos.Cincoouseiscorpos,comoodeZaíta,jaziamnochão.(EVARISTO,2016,p.48).

AssimcomoZaíta,outros indivíduosmorreramemmeioao tiroteio.O finaldo

conto é construído pela reação de Naíta e de alguns moradores diante da infeliz

surpresadeencontraremameninasemvidaeestendidanochão:“Osmoradoresdo

becoondehaviaacontecidootiroteioignoravamosoutroscorposerecolhiamsóoda

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menina.Naítademorouumpoucoparaentenderoquehaviaacontecido.”(EVARISTO,

2016, p. 48). Em meio a um momento desolador, causado pelo confronto entre

gangues rivais, a fala final deNaíta demonstra o prevalecimento de sua inocência e

faltadenoçãodoocorrido.Aseguir,oseucomportamentoarespeitodatragédia:“E

assimqueseaproximoudairmã,gritouentreodesespero,ador,oespantoeomedo:

—Zaíta,vocêesqueceudeguardarosbrinquedos!”(p.48).

3.TEORIADO“MITODANÃOVIOLÊNCIABRASILEIRA”SEGUNDOMARILENACHAUÍ

DeacordocomafilósofaeescritoraMarilenadeSouzaChauí,emseulivroSobre

aviolência (2017),o “mitodanãoviolênciabrasileira”correspondeà ideiadequeo

povo brasileiro não tenha, em sua essência, aptidão para atitudes violentas. Há um

ocultamento na sociedade sobre fatos históricos que, segundo a história política

nacional,foramrealizados“semsangue”,istoé,“[a]narraçãopolíticada‘históriafeita

semsangue’operacomoalicerceparaconstruçãomíticadasociedadebrasileiracomo

aboasociedade,una,indivisa,pacíficaeordeira.”(CHAUÍ,2017,p.37).

Essamistificaçãoocorrehámuitotempo.Segundoaautora,épreocupante,pois

assim são naturalizadas ações autoritárias sob o outro de modo que se repitam

frequentementeaolongodosanosesemquestionamentos,ouseja,essasatitudessão

conservadas na sociedade a ponto de serem admitidas tranquilamente. A filósofa

expõe situaçõesde comoummitopode ser refletido e os impactosdequandoele é

praticado:

Ummitocristaliza-seemcrençasquesão interiorizadasdetalmaneiraquenãosão percebidas como crenças e sim tidas não só como uma explicação darealidade,mascomoaprópriarealidadeexistente;[...]Ummitoresultadeaçõessociaiseproduzcomoresultadooutrasaçõessociaisqueoconfrontam,istoé,ummitoproduzvalores,ideias,comportamentosepráticasqueoreiteramnaepelaação dos membros da sociedade. Em suma, um mito não é um simplespensamento,masumaformadeação.(CHAUÍ,2017,p.38).

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Como explicado pela escritora, um mito não é somente uma ideia fixa, mas,

certamente,resultaemaçõesdevariadasmaneiras,eumadelaséanaturalizaçãodos

tiposdevocabuláriosusadospelamídiaparanegaraviolência realocorrida.Assim,

informações são ocultadas no momento da divulgação dos acontecimentos. Chauí

(2017)ressaltaaimportânciaquesedevedaraesseproblemafrequenteeaindafaz

umalistagemdostermosusadosconformeosveículosdecomunicação:

Se fixarmos nossa atenção ao vocabulário empregado pelos meios decomunicação observaremos que os vocábulos se distribuem sempre de umamaneirasistemática:• Fala-seemchacinaemassacreparareferir-seaoassassinatoemmassadepessoasindefesas,comocrianças,favelados,encarcerados,índios,sem-terra;• Fala-seemindistinçãoentrecrimeepolíciaparareferir-seàparticipaçãode forças policiais no crime organizado, particularmente o jogo do bicho, onarcotráfico,ocontrabandodearmaseossequestros;• Fala-seemguerraciviltácitaparareferir-seaomovimentodossem-terra,aos embates entre garimpeiros e índios, policiais e narcotraficantes, aoshomicídios e furtos praticados em pequena e larga escala, mas também parareferir-seaoaumentodocontingentededesempregadosemoradoresdasruas,eparafalardosacidentesdetrânsito;• Fala-se em vandalismo para se referir a assaltos a lojas, mercados,supermercadosebancos,adepredaçõesdeedifíciospúblicoseaoquebra-quebradeônibusetrensdotransportepúblico;• Fala-se em fraqueza da sociedade civil para referir-se à ausência deentidadeseorganizaçõessociaisquearticulemdemandas,reivindicações,críticasefiscalizaçãodospoderespúblicos;• Fala-se em debilidade das instituições políticas para referir-se àcorrupçãonostrêspoderesdarepública,àlentidãodopoderjudiciário,àfaltademodernidadepolítica;• Fala-seemdesordemparaindicarinsegurança,ausênciadetranquilidadeeestabilidade,istoé,parareferir-seàaçãoinesperadaeinusitadadeindivíduosegruposqueirrompemnoespaçopúblicodesafiandosuaordem.(CHAUÍ,2017,p.38-39).

Essas ações revelam a existência de uma imagem consolidada em torno da

violência e em decorrência disso, segundo Chauí (2017), um núcleo é formado: “O

conjunto dessas imagens indica a divisão entre dois grupos: de um lado, estão os

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grupos portadores de violência, e de outro, os grupos impotentes para combatê-la.”

(CHAUÍ,2017,p.39,grifosnooriginal).Apartirdessadivisãoentredoisladosopostos,

esses tipos de condutas permitem a continuação e naturalização deste mito na

sociedadebrasileira.Segundoacrítica,deumlado,nocaso,o“portadordaviolência”,

érepresentadopelaspessoasdesprovidasderecursosfinanceiros.

A autora exploramais profundamente o assunto e afirma quais são os efeitos

causados contra aqueles considerados os “agentes violentos”. Ela nomeia isso de

“mecanismojurídico”:

Essemecanismopermite,porumlado,determinarquemsão“agentesviolentos”(demodo geral, ladrões e assassinos pertencentes às classes populares) e, poroutro lado, legitimar a açãopolicial contra a populaçãopobre, os sem-terra, osnegros,osindígenas,ascriançasseminfância,osmoradoresderua,osfavelados.Aaçãopolicialpodeser,àsvezes,consideradaviolenta,recebendo,comovimos,onomede “chacina”ou “massacre”quando,deumasóveze semmotivoclaro,onúmero de assassinados é muito elevado. No restante das vezes, porém, oassassinato policial é considerado normal e natural, uma vez que se trata deprotegero“nós”contra“eles”.(CHAUÍ,2017,p.40).

Ouseja,a lutaentre“nóscontraeles”caracterizaarelaçãocomose fosseuma

luta entreobemomal, e, no geral, a açãopolicial é aprovada: “[...] ‘Eles’ (vândalos,

desordeiros,bandidos)não fazempartedo ‘nós’, estãoexcluídosdagentebrasileira.

[...] isto é, por essência, os brasileiros não são violentos e, portanto, a violência é

acidental.” (CHAUÍ, 2017, p. 40). O “mecanismo jurídico”, de acordo com Chauí,

legitimaaaçãopolicialcontraapopulaçãopobre,comoseospobresfossemosúnicos

violentosnasociedade.Nocontoemanálise,umadasvítimasdeviolênciadessetipoé

ameninaZaítaeacríticarealiza-sepelafaltadeimportânciaqueanaçãobrasileiradá

àsmortes,decriançasounão,oriundasdeummeiosocialdebaixarenda.

Chauí(2017)apontaoutroscomportamentosviolentos,quenãosãovistosdessa

forma, mas, certamente, como atitudes acidentais, ou que não “deviam acontecer”.

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Para ela, eles estão interiorizados na nossa estrutura, portanto, são por nósmuitas

vezesignoradosou,então,dissimulados.Estemecanismochama-se“inversãodoreal”.

Por exemplo, o machismo é colocado como proteção à natural fragilidadefeminina,proteçãoqueincluiaideiadequeasmulheresprecisamserprotegidasde si próprias, pois, como todos sabem, o estupro é um ato feminino deprovocaçãoesedução;opaternalismobrancoévistocomoproteçãoparaauxiliara natural inferioridade dos negros e dos indígenas; a repressão contra oshomossexuaiséconsideradaproteçãonaturalaosvaloressagradosdafamília.Asociedade brasileira não percebe que as próprias explicações oferecidas sãoviolentasporqueestácegaparaolugarefetivodeproduçãodaviolência,istoé,aestrutura da sociedade brasileira. Dessamaneira, as desigualdades econômicas,sociaiseculturais,asexclusõeseconômicas,políticasesociais,acorrupçãocomoformade funcionamentodas instituições,oracismo,omachismo,a intolerânciareligiosa, sexual e política não são consideradas formas de violência, isto é, asociedadebrasileiranãoépercebidacomoestruturalmenteviolentaeaviolênciaaparececomoumfatoesporádicodesuperfície.(CHAUÍ,2017,p.41).

Na citação, Chauí (2017) expõe outros tipos de distinções sociais, além da

questão racial, como a de gênero, a diversidade sexual e religiosa, que usualmente

reduzemumsujeitoacoisaesemoreconhecimentodeseusdireitosdevidosdireitos.

Emsíntese, a filósofanospropõe reflexões sobre “omitodanãoviolência”,os

variados modos de violência interiorizados no cotidiano, comuns aos brasileiros,

sendoaqueles,ainda,nãotãopercebidosoupoucoquestionadosemdecorrênciados

fatos históricos ocorridos durante a época da escravatura. Por esse motivo, são

conservadosvestígiosdeumasociedadeautoritáriaehierarquizada,eummodelode

família patriarcal que leva em sua herança os rastros de uma mentalidade

escravocrataecolonialista.

AsreflexõesdeChauí(2017)sãoimportantesparaoentendimentodocontoem

análise,emespecialnoquetangeao“mecanismojurídico”,quelegitimaaaçãopolicial

contra a população pobre, visto que Zaíta, uma menina inocente, representa uma

moradora da favela vítima de violências que são tão comuns nesse contexto social.

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Vejamosas contribuiçõesdeoutraestudiosaquevãoaoencontrodas colocaçõesde

Chauí.

4. RESISTÊNCIAS DE DISCURSOS CONSERVADORES E AUTORITÁRIOS SEGUNDO

ESCRITOSDELILIASCHWARCZ(2019)

Lilia Schwarcz, professora e historiadora, apresenta em Sobre o autoritarismo

brasileiro (2019) conformidades de ideias com as de Chauí (2017). Ela expõe os

comportamentos desde a época do sistema escravocrata à do século XXI, para

comprovar como eles ainda continuam. Para fundamentar sua discussão, são

utilizadasteoriasedadosestatísticos.Aautoradescreve indiretamenteasdefinições

de “omitodanãoviolência”,ouseja, tambémconfirmaqueobrasileiroacreditaser

essencialmente pacífico, e viver em uma nação com um histórico civilizado, mas,

muitasvezes,ignoraouamenizaasconsequênciasterríveiscausadaspelaescravidão:

[...] A escravidão foi bem mais que sistema econômico: ela moldou condutas,definiu desigualdades sociais, fez de raça e cor marcadores de diferençafundamentais,ordenouetiquetasdemandoeobediência,ecriouumasociedadecondicionadapelopaternalismoeporumahierarquiamuitoestrita.Alémdisso,ediferentementedoqueseprocuroudifundir,nãoseconfirmaanoçãodequenopaís teria existido uma escravidão “mais branda”. Um sistema que prescreve apropriedade de uma pessoa por outra, não tem nenhuma chance de serbenevolente.(SCHWARCZ,2019,p.27-28).

Comumpassadoviolentoesangrento,osresultadosapósoperíodocolonialista

provocamaindaumadesigualdadeestrutural,padrõesquepersistemnaconservação

de hierarquias entre um superior e um inferior. Esse tipo de relação é usado pela

autora com os termos “mando e obediência”. No trecho a seguir, Schwarcz (2019)

exibecomofoiocontextohistórico,políticoesocialdaépoca,alémdeseusefeitosde

exclusãocontraosnegros:

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[...] Se a presença de negros em espaços de prestígio social já era basicamentevedada,oumuitodificultadapelaescravidão,permaneceubastanteincomumnocomeço de nossa história republicana. Por isso, o sistema escravocrata sóaparentemente restou fincado no passado. Tal configuração social, que levou àexclusão de boa parte da população das principais instituições brasileiras,produziu ainda um apagamento dos poucos intelectuais negros que haviamlogrado se distinguir na época colonial e especialmente durante o Império.Tambémocultou a formação de uma série de sociedades, associações e jornaiscomunitários negros, idealizados na Primeira República, que procuravam, nabasedacoletividade,lutarpelanecessáriainclusãosocial[...].(SCHWARCZ,2019,p.31).

O tipo de discriminação discutido se mantém até os tempos da

contemporaneidade,poisacomparaçãofeitadonegrocomoinferiorestáconcretizada

nas culturas e hábitos; logo, ele temmenos acesso aos seus devidos direitos como

cidadão,ouseja,segundoSchwarcz(2019):“essassãohistórias‘persistentes’,quenão

terminamcomameratrocaderegimes;elasficamencravadasnaspráticas,costumes

e crenças sociais, produzindo novas formas de racismo e de estratificação.”

(SCHWARCZ,2019,p.32).

Asatitudesentre“mandoeobediência”sãorealizadasnanormalidadedodiaa

dia, portanto, elas são, segundo Schwarcz: “uma sociedade acostumada com

hierarquiasdemando,queusadeumadeterminadahistóriamíticadopassadopara

justificar o presente, e que lida muito mal com a ideia da igualdade na divisão de

deveresmasdosdireitostambém.”(SCHWARCZ,2019,p.35-36).

Schwarcztraznúmerosestatísticosdascondiçõesdiscrepantesentreobrancoe

onegroparaembasarseuargumento.Sobreaexpectativadevida:

[...]Segundoorelatóriodo Ipea,adespeitodoaumentogeraldaexpectativadevidaentreosbrasileiros,osindicadoresquecobremoperíodoquevaide1993a2017mostramcomoapopulaçãobrancacontinuavivendomaisdoqueanegra.Nesseperíodo,ogrupodehomensbrancosemtornodesessentaanosdeidadepassou de 8,2% para 11,1%, ao passo que o de negros namesma faixa etáriaaumentoude6,5%para8%.(SCHWARCZ,2019,p.32).

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Eemrelaçãoaosíndicesdemortalidade:

Maispreocupantessãoosíndicesdemortalidadedehomensdeumaformagerale, em particular, de jovens homens negros: as maiores vítimas da violênciaurbana edo acessoprecário a recursosmédicos. Se, no anode2010, a taxadehomicídiofoidaordemde28,3acada100miljovensbrancos,adejovensnegroschegoua71,7acada100mil,sendoqueemalgunsestadosataxaultrapassacempor100miljovensnegros.Porsinal,segundoaAnistiaInternacional,umjovemnegro no Brasil tem, emmédia, 2,5 vezesmais chances demorrer do que umjovembranco.NaregiãoNordeste—ondeastaxasdehomicídiosãoasmaisaltasdopaís—essadiferençaéaindamaior: jovensnegroscorremcincovezesmaisriscodevida.(SCHWARCZ,2019,p.33).

Podeserobservadoqueosnúmerossãoexorbitantesetaisíndicesdemonstram

o quanto a nação brasileira é desigual e, principalmente, violenta. Em relação à

temáticadaalta taxadehomicídiosde jovensnegrostrazidapelacrítica,noconto,é

realizadaumaanalogiacomarealidade,vistoquesenarramcontextosdeviolências

urbanascomoprotagonismodameninanegranoqualsetemcomoodesfechouma

mortetrágica.

5.DISCUSSÕESSOBREASDESIGUALDADESSOCIAISEMFORMATOSDEGRÁFICOSE

TABELAS

O gráfico e as tabelas que serão expostos a seguir resultamde levantamentos

informadospelositedoIBGE(InstitutoBrasileirodeGeografiaeEstatística)3.Alguns

temasforamescolhidosafimdecomprovarasdesigualdadessociaispresentesentre

as populações, especificamente, entre o negro ou pardo e o branco no Brasil, tais

como:condiçõesdemoradia,educaçãoeporúltimo,astaxasdehomicídiosdeambos.

3 Paraacessoaositeoficial,ver:https://www.ibge.gov.br/.Acessoem:01set.2020.

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GRÁFICO1—PROPORÇÃODEPESSOASRESIDINDOEMSETORESDEAGLOMERADOSSUBNORMAIS,PORCOROURAÇA,SEGUNDODADOSDE2010.(AAUTORA,2021).

O gráfico 1 foi criado a partir de números somados entre os municípios das

capitaisbrasileiras,deacordocomoCensoDemográfico2010doIBGE.Eleapresenta

uma proporção de pessoas residindo em setores de aglomerados subnormais: a

população branca, representada pela cor azul, possui 261,2 pessoas, enquanto a

populaçãonegraouparda,450,4.

Níveldeinstrução Populaçãobranca PopulaçãonegraoupardaSeminstrução 4,3 9,1

Fundamentalincompleto 28,4 37,2Fundamentalcompleto 8 8,2Médioincompleto 3,7 5,2Médiocompleto 27,0 26,9

Superiorincompleto 4,7 3,3Superiorcompleto 24,0 10,1

TABELA1—PROPORÇÃODEPESSOASSEGUNDOSEUSNÍVEISDEENSINOECOROURAÇANOBRASIL,2018.(AAUTORA,2021).

Osdadosacima,informadospelatabela1,sãoresultadosdeumasomadacoleta

da pesquisa realizada com pessoas na faixa etária entre 25 anos, em 5 regiões

brasileiras:Norte,Nordeste,Sudeste,SuleCentro-Oeste.Atabelarefleteclaramentea

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desproporçãonosníveisdeensinoemqueapopulaçãobrancasobrepõenapopulação

negra,especificamentenaEducaçãoBásica.

Sexoecorouraça Númeroabsoluto TaxaHomembranco 12902 30,2

Homempretooupardo 46217 82,5Mulherbranca 1492 3,2

Mulherpretaouparda 3288 5,7TABELA2—NÚMEROETAXADEHOMICÍDIOS(POR100MILHABITANTES),SEGUNDOSEXOE

COROURAÇA,2017.(AAUTORA,2021).

A pesquisa apresenta números e taxas de homicídios ocorridos no Brasil,

segundo diferentes faixas etárias (IBGE, 2017). A diferença de números e taxas

apresentadastantopelográfico1,quantopelastabelas1e2,énotável,eindicativado

racismoestruturalexistentenopaís.

Teve-secomoobjetivo,atravésdatabela2,indicarocontrasteexplícitoentreos

números de homicídios de pessoas brancas e negras ou pardas. No conto, a

personagemZaítaéumacriançanegraqueperdeprecocementeavidaporcausada

violência urbana e, assim como no meio literário, os casos na realidade são muito

semelhantes.

6.CONCLUSÃO

Atravésdesuaarteliterária,ConceiçãoEvaristoconseguedenunciarasdurase

precárias realidades demuitos brasileiros pertencentes a uma classemarginalizada

que,muitas vezes, são silenciadas. Ela realça osmeios de vivências tristes em seus

contosprotagonizadospornegroserealizacomêxitooobjetivodeprovocarreflexões

edebatessobreaproblemáticaentreosleitores.

Nopresenteartigo,pretendeu-seanalisaroconto“Zaítaesqueceudeguardaros

brinquedos” (2016), no qual se observa a crítica da autora em relação às violências

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existentesnasfavelas,àspoucasoportunidadesdevidaoferecidasaosjovensnegros,

dopreconceitoraciale,especialmente,acercadasvítimasdebalasperdidasdurante

tiroteios,sejamelasvitimadastantoporganguesrivais,quantoporaçõespoliciais.

Os escritosdeMarilenaChauí (2017), Lilia Schwarcz (2019) e JaimeGinzburg

(2012) promovem questões outras sobre como determinados comportamentos

autoritários e hierarquizantes, frutos de uma tradição patriarcal e escravista do

passado,aindaestão interiorizadosesãoreproduzidoscomnaturalidadeemtempos

modernos.Algumasdessas atitudes foram identificadas em levantamentosdedados

estatísticos do IBGE e transformadas em imagens ilustrativas de forma a facilitar o

entendimento.

Os teóricos e as pesquisas utilizados foram de suma importância para se

compreender o contexto sócio, histórico e cultural brasileiro, assim como os

comportamentos da sociedade. Na narrativa, a garotinha negra, uma moradora da

favela,morreemmeioaumcontextoviolentoe,porconseguinte, trazàtona,paraa

discussão,ainsignificância,ouopoucocasoqueasociedadedemonstraemrelaçãoàs

violências urbanas e comominimiza as precárias condições sociais enfrentadas nas

favelas.

Aspesquisas tiveramo intuitodemostrara contínuadiscriminaçãoestrutural

noBrasilqueéresultadodeumlongoprocessohistóricoemquetrataramaraçanegra

com inferioridade.O racismoéuma temáticaemergentequedeve serdebatidapelo

cidadão brasileiro a fim de que se desmistifique a ideia, o mito, de que ele não é

violentoporessência,conformeapresentadoporChauí(2017).Étambémnecessário

reprimir o movimento de denegação do preconceito e desigualdades vigentes, pois

claramente existem e são refletidas nas práticas cotidianas. As camadas populares

merecemoreconhecimentodosseusdireitoscomosujeitosparaseremdevidamente

incluídosnasociedade.Paraqueessesquestionamentosocorrameresultememações

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SOARES,J.S.Umacríticaàs... 222

de valorizaçãodas culturas, é fundamental que se conheça a história dopaís e seus

desdobramentos.

REFERÊNCIAS

BRASIL.INSTITUTOBRASILEIRODEGEOGRAFIAEESTATÍSTICA.CensoDemográfico.Disponívelem:https://www.ibge.gov.br/.Acessoem:1set.2020.______. CensosBrasileirosde2010-2018.DesigualdadessociaisporcorouraçanoBrasil.Brasília:IBGE.Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/25844-desigualdades-sociais-por-cor-ouraca.html?=&t=resultados/.Acessoem:1set.2020.CHAUÍ,Marilena.“Omitodanãoviolênciabrasileira”.InCHAUÍ,M.Sobreaviolência.BeloHorizonte:AutênticaEditora,2017,p.29-50.DIASCARNEIRO,Júlia.Éprecisoquestionarasregrasquemefizeramserreconhecidaapenasaos71anos, diz escritora. In BBC News Brasil. 9 mar. 2018. Disponível em:https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43324948.Acessoem:5set.2020.EVARISTO,Conceição.“Zaítaesqueceudeguardarosbrinquedos.”InEVARISTO,C.Olhosd’água.RiodeJaneiro:Pallas;FundaçãoBibliotecaNacional,2016,p.45-48.GINZBURG,Jaime.“Aviolênciaconstitutivaeapolíticadoesquecimento.”InGINZBURG,J.Críticaemtemposdeviolência.SãoPaulo:EditoradaUSP;Fapesp,2012,p.217-238.SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Escravidão e racismo.” In SCHWARCZ, L. M. Sobre o autoritarismobrasileiro.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2019,p.27-40.Recebidoem:05/03/2021Aceitoem:05/04/2021

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ESTUDOSDATRADUÇÃO

TRANSLATIONSTUDIES

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QUADROS,E.H.;CORDEIRO,L.B.deL.;SILVA,S.B.da;POLCHLOPEK,S.A.Imprensa&Tradução... 224

IMPRENSA&TRADUÇÃO:JORNAISINTERNACIONAISENACIONAIS

NOTICIANDOOTESTEPOSITIVODEBOLSONAROPARAACOVID-19

JOURNALISTICTRANSLATION:NATIONALANDINTERNATIONAL

PERSPECTIVESWHENBOLSONAROTESTEDPOSITIVETOCOVID-19

ElisaHeiermannQuadros1LuizaBenettideLemosCordeiro2

SabrinaCostadaSilva3SilvanaAyubPolchlopek4

RESUMO: Em julho de 2020, o presidente Jair Bolsonaro testou positivo para a covid-19, fatoamplamente noticiado por diferentes narrativas na imprensa local e internacional e quemotiva oestudo deste artigo no âmbito da tradução-jornalística. Analisamos, portanto, escolhas lexicais ecampos semânticos que configuram a tradução do fato por jornais norte-americanos, europeus ebrasileiros. Buscamos comprovar que essas escolhas representam culturalmente e constituemdiferentestraduçõessobreoevento,atuandocomoprocessosformadoresdesentidoereiterandoojornalistacomotradutordefatos.Palavras-chave:traduçãojornalística;léxico;covid-19.ABSTRACT: In July2020,President JairBolsonarotestedpositivetocovid-19,somethingthatwasbroadly releasedby themediaworldwideand thatmotivated this researchwithin the journalistictranslation interface. It focuses on lexical choices and semantic fields depicted from a corpuscomposed ofNorthAmerican, European andBrazilian papers. Thus,we seek to demonstrate thatdifferent choices culturally represent the news and instantiatemeaningful reading processes thatbroadenthescopeofthetextsandplacethejournalistasthetranslatorofnewsreports.Keywords:journalistictranslation;lexicalchoices;covid-19.

1GraduandaemLetras-Inglês,UTFPR2GraduandaemLetras-Inglês,UTFPR.3GraduandaemLetras-Inglês,UTFPR.4UTFPR.

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QUADROS,E.H.;CORDEIRO,L.B.deL.;SILVA,S.B.da;POLCHLOPEK,S.A.Imprensa&Tradução... 225

1.INTRODUÇÃO

Desde a institucionalização dos estudos tradutórios como área acadêmica, a

partir do desenvolvimento domodelo de James Holmes em 1970, as pesquisas em

tradução ou envolvendo o processo tradutório vêm ganhando ares cada vez mais

diversificadoseampliados.Umdoscaminhosparaessavisibilidadetemsidoacriação

de interfacesdepesquisa, na tentativadebuscarmos respostasparaquestõesque a

traduçãoapenasnãoconsegueresponder.Entreteóricos,asinterfacessão,porvezes,

criticadaspordiluiraidentidadedaáreadetradução,mas,poroutrolado,estudiosos

veemessadiversidade comoumnovoolhar, umnovo frescorpara aspesquisas e a

possibilidade de os estudos tradutórios efetivamente ganharem ainda mais

visibilidade.Esseéocasodainterfacetradução-jornalismo,focodesteartigo.

Falaremtraduçãoejornalismoatuandojuntosparecenãoserpossível,emum

primeiro momento, mas a interface existe já há mais de 10 anos e é altamente

produtiva,comodesenvolvimentodedissertações,monografias,teses,artigos,livrose

cursos na área. Dentro dessa abordagem, discute-se a visão consensual de que os

profissionais que redigemasnotícias para os veículosde comunicação emgeral e a

imprensa escrita emparticularmantêmumapostura de neutralidade frente ao fato

noticioso,tendoaobjetividadecomoseualicercedetrabalho.Nesseaspecto,traduzir

uma notícia é interpretado como uma ação de fidelidade ao texto-fonte, ou seja, à

reportagem, visto que o texto jornalístico deve, por obrigação, retratar a realidade

com isenção,distanciamentoe credibilidade.BillKovacheTomRosenstiel (2004,p.

61)apontamaobrigaçãocomaverdadecomoumdospilaresdojornalismo,vistoque

“cria uma sensação de segurança que se origina da percepção dos fatos e está na

essênciadasnotícias”.

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QUADROS,E.H.;CORDEIRO,L.B.deL.;SILVA,S.B.da;POLCHLOPEK,S.A.Imprensa&Tradução... 226

Esse vínculo entre notícia e realidade existe de fato, no sentidode as notícias

retrataremasmaisdiversassituações,desdeatentadosterroristas,resgatesdereféns,

fugasdeprisioneiros,atéavançosnaciênciae tecnologia,política,economia,apenas

para citar alguns exemplos. Contudo, estão longe de ser isentos, um dos pilares de

sustentação do jornalismo, pelo simples fato de encontrarem na linguagem e no

jornalistaseuspontosdeancoragem.Omesmoocorrecomatradução,queencontra

nalinguagemenotradutorseusalicercesdeação,resultandonosprimeirospontosde

aproximaçãoentreasáreas.

Assim,nossoobjetivo,nestetexto,éabordarosprincípiosteóricosqueregema

interface, bem como a dinâmica de atuação dos fatores que influenciam a prática

jornalística e a prática tradutória e explicar esses argumentos discutindo aspectos

lexicais e semânticos em um corpus de estudo constituído por headlines e leadsde

periódicos online nacionais e internacionais sobre um tema em comum: o fato de o

presidentedoBrasil,JairBolsonaro,tercontraídoacovid-19.

2.AINTERFACE―CONSIDERAÇÕESTEÓRICAS

Como primeiro passo para a compreensão das variáveis geradas na interface

aquidescritaeparaquepossamosdefatoenfocareentenderatraduçãojornalística,

partimosdeumanoçãoampliadadetextoquesedeslocaparaumpontoanteriorao

texto-fonte(TF), istoé,ofatogeradoroufato-fonte(FF),queseconstituinopróprio

eventonoticioso,ouseja,o fatoqueoriginaanotícia.Essaperspectiva,ancoradaem

HansVermeer(1986),resultaemumaproduçãoescritainseridaemumcontextoreal

de comunicação que é determinada por meio da interferência de valores

culturalmentemarcadoseatreladosaosindivíduosintegrantesdessacomunicação,no

caso,ojornalista,otradutoreo(s)leitor(es).

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QUADROS,E.H.;CORDEIRO,L.B.deL.;SILVA,S.B.da;POLCHLOPEK,S.A.Imprensa&Tradução... 227

A associação do jornalismo a valores culturais nos remete ao que dizMayra

Rodrigues Gomes (2000, p. 19, grifo nosso), que, antes de registrar e informar, “o

jornalismoéelepróprioumfatodelíngua”,cujopapeloufunçãonainstituiçãosocialé

organizá-la discursivamente, ou seja, dar visibilidade a outras instituições (história,

saúde, esportes, política, governo) integrantes dessa situação comunicativa e,

determinantesdesi,demuitasvariáveisinerentesaoprocessodeproduçãotextual.

Nesse sentido, as reportagens, traduzidas ou não, não estão imunes à sua

condição geográfica, histórica e à hierarquia existente nas redações (editores,

redatores,chefesderedação,porexemplo),mas,sobretudo,pressupõemaexistência

do que chamamos de “filtros culturais”, isto é, elementos naturais integrantes do

sistema de comunicação intercultural, pautados nos valores culturais da sociedade

paraaqualo textosedestina,encurtando,assim,adistânciaentreo fatoocorridoe

aquele veiculado pela imprensa, principalmente quando as notícias ultrapassam

fronteirasinternacionais.

Esses filtros influenciam o processo de constituição de sentido dos textos,

auxiliandooleitorquantoàcompreensãodosacontecimentos,resultandonapossível

variação lexical, temática e estrutural das notícias quando traduzidas para outros

leitores.Issoocorreemrazãodequesempreháumrecortenoqueserefereàmaneira

de abordar o fato, considerando o(s) leitor(es) emprospecção, as características do

veículo e critérios de valores-notícia (FRANZON, 2004) determinados pelo público,

pela redação,peloveículo,pelaculturaepelopróprio jornalista: “Talprocessonada

mais é doqueum correlato, nouniversoda imprensa, das leituras que se fazemde

uma realidade, de um fato. Trata-se, enfim, de uma leitura e não da leitura desse

mesmofato”(ZIPSER,2002,p.3,grifonosso).

Assim,épossíveldiscutirostrêseixosqueconstituemainterfacedatradução

jornalística: o funcionalismo alemão (NORD, 2016), os fatores de influência para o

jornalismo(ESSER,1998)earepresentaçãoculturaldenotícias(ZIPSER,2002).

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3.ADINÂMICANASSISTEMATIZAÇÕESDEESSERENORD

FrankEsser(1998)desenvolveuseumodelodeestudocomparandoasformas

de atuação do jornalismo inglês e alemão, trabalhando com o conceito de

interculturalidade nas várias instâncias (ou esferas, conforme o autor) que

influenciamofazerjornalísticoemcontextointernacional.Segundoessasistemática,o

jornalismo de cada país é emoldurado por condições sociais e culturais que

possibilitam e direcionam a formação da sua identidade social e cultural. Nesse

sentido,ofazerjornalísticointegraosistemasocial,atuandocomo“osolhoseouvidos

danação”,eé,também,partediferenciadadessesistema,porterprincípiosenormas

de atuação próprias. Esses princípios, porém, não atuam independentes do sistema

social, pois estão vinculados a ele. Portanto, apesar da defesa de constante

neutralidade frenteaorelatode fatosnoticiosos,o jornalismoatua, invariavelmente,

direcionado ao público-leitor, e faz da informação e formação de opinião suas

principaisfunções.

AsesferascondicionantesdofazerjornalísticosãoorganizadasporEsser(1998)

no que o autor denomina “Modelo Pluriestratificado Integrado” ou “metáfora da

cebola”,classificando-opormeiodasesferassocial,estrutural,institucionalesubjetiva

queatuamdentrodeumasituaçãode recursividade,ouseja,de influênciamútua.A

dinâmica existente entre esses fatores condicionantes interfere no texto final da

reportagemquenoschegaàsmãosporintermédiodasmídiasimpressasedigitais,ou

seja, pressupomos a existência de um filtro entre o fato e a reportagem que passa

pelasesferas:i)socialehistórica;ii)estruturasnormativasdaimprensa;iii)estrutura

das redações,profissãoeprincípiosda imprensa; e iv)pela esfera subjetivanaqual

atuaoprópriojornalista.

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QUADROS,E.H.;CORDEIRO,L.B.deL.;SILVA,S.B.da;POLCHLOPEK,S.A.Imprensa&Tradução... 229

DinâmicasemelhanteéobservadanomodeloestruturadoporChristianeNord

(2016)paraatradução.Ancoradanofuncionalismoalemão(WEININGER,2000)ena

skopostheory (VERMEER, 1986), o funcionalismo nordiano compreende a tradução

comoumaaçãocomunicativaintercultural,emumcontextodesituaçãoreal,comosão

oseventosnoticiosos.Jáotradutorexerceoseupapelnoconfrontoentreasculturas

envolvidas, articulandoo seuespaçoeatuandonele comomediador.Aexemplodas

esferasdeatuaçãoexternaseinternasaojornalismo,Nord(2016)tambémsistematiza

fatoresdeinfluênciaexternoseinternosaostextos;traduzidosounão.

Os fatores extratextuais dizem respeito ao contexto, isto é, à situação de

produçãodoTFederecepçãodotextotraduzido:emissor; intenção;receptor;meio;

lugar; tempo; propósito e função textual. Esses fatores aproximam-se das seis

perguntasbásicasdo leadquedevemserrespondidasnaelaboraçãodareportagem:

“O quê?”, “Quem?”, “Quando?”, “Onde?”, “Como?” e “Por quê?”. Desses fatores,

destacamos a função que, de acordo comNord (2016), é determinada pela atuação

conjunta dos outros seis itens externos nomomento da recepção (leitura) do texto

traduzido. Jáos fatores intratextuais tratamdos fatores linguísticos, istoé,domodo

comooautor (tradutore jornalista)escreve,ouseja,domodocomoa linguagemse

articula para veicular a mensagem: tema, conteúdo, pressuposições, estruturação,

elementosnãoverbais,léxico,sintaxe,elementossuprassegmentaiseoefeitodotexto.

A dinâmica entre esses fatores faz com que qualquer mudança externa exerça

influênciadiretasobreos fatores internos,sendoarecíproca igualmenteverdadeira.

Esse caráter de recursividade e interdependência configura a situação comunicativa

como um evento único, isto é, os textos e a comunicação não são situações

padronizadas e precisam ser ajustadas às suas condições de produção e recepção

(públicoleitor).Comojornalismoissonãoédiferente.

Assim,combasenassistematizaçõesdeEsser(1998)eNord(2016)e,dentroda

abordagemfuncionalista,ainterfacesematerializapormeiodosseguintescritérios:i)

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tradução e jornalismo estão intimamente ligados às esferas de influência social e

cultural; ii) o fator intercultural é inerenteà sistematizaçãopropostapelos teóricos,

resultando em leituras diferenciadas para um mesmo fato; iii) tais sistematizações

resultam ainda emuma dinâmica comparável entre si; iv) os textos são produzidos

considerando-seoleitor-destinatáriosempreemprospecção;v) jornalistaetradutor

estãonocentrodesuaspráticas;evi)o leitoréumafigura(in)diretamenteativano

processodeproduçãotextual.

4.OJORNALISTACOMOTRADUTORDEFATOSNOTICIOSOS

Pormeio da dinâmica estabelecida entre a tradução e o jornalismo, podemos

entendero jornalista como tradutorde fatosnoticiosos. Sustentadopelosprincípios

queregemaimprensa,o jornalistaassumeafunçãodetradutorcombaseemalgum

trabalhofeitoequetenhaobtidobonsresultadosjuntoaopúblico(CULLETON,2005).

Nesse sentido, o jornalista se submete às instâncias influenciadoras do jornalismo,

geralmentepriorizandoumatraduçãofielaotextooriginaldareportagem.Poroutro

lado, existem situações em que o fato gerador da notícia acontece em condições

culturaisdistantesdocontextode recepção, exigindoajustesmaispontuaisno texto

midiático. A partir disso, surgem as escolhas lexicais, semânticas, e os diferentes

enfoques, isto é, perspectivas diferentes de abordagem para o fato relatado, que

demandammudanças estruturais no corpo da notícia, a fim de que o público leitor

finalconsigaconstruirefeitosdesentidocomotexto.

No processo de tradução, o jornalista tende a considerar quais informações e

detalhesdo fatodevemser ressaltados, expandidos, reestruturadosouatéomitidos,

tendo em vista o contexto de recepção da notícia e os valores-notícia agregados ao

fato.Muitasvezes,tem-seanecessidadedeancorarareportagemculturalmente,isto

é, buscar no contexto de chegada fatos históricos e/ou situações que auxiliem a

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compreensão do leitor e permitamque ele experimente efeitos de sentido análogos

àquelesprovocadosno leitoremseucontextodeorigem.Issoresultanoconceitode

tradução como representação cultural (ZIPSER, 2002), ou seja, quando há filtros

culturais atuantes nas abordagens, ao passo que a notícia transpõe fronteiras

internacionais.

Arepresentaçãoculturalseestabeleceemoposiçãoànoçãode“transcodificação

isenta” (literalidade), como incentivado pelosmanuais de jornalismo, segundoMeta

Zipser(2002)epelaprópriaprática.Atraduçãocomorepresentaçãodeumacultura

admiteaatuaçãodevaloresexternos,docontexto,sobreaproduçãotextualebusca

ancorarofatonoticiosoemreferênciasdaculturadechegada,paraqueo leitor-alvo

consigacompreenderosacontecimentoseosefeitosdestesobreosleitoresdacultura

emqueo fatoocorreu.Nesse sentido, segundoZipser (2002), a interfacepressupõe

paralelos de que i) essas áreas são “essencialmente interculturais” e determinam o

instrumentaldo trabalhodo tradutoredo jornalista; ii)aautoconsciênciaculturalé

atuante nas tarefas do jornalista e do tradutor, determinando as diferentes

perspectivas de abordagem do fato; iii) tradutor e jornalista são intermediadores

culturais:a traduçãorepresentaumaculturaeo jornalistaatuacomo“tradutor”dos

fatos.

Para exemplificar esses argumentos, analisamos reportagens nacionais e

internacionais de quando o presidente Jair Messias Bolsonaro contraiu a covid-19.

Paraaanálise,nossofocosãoasescolhaslexicais(fatoresinternos)queconfigurama

narrativa do fato nas manchetes (headlines) e lides (leads) das notícias. Em um

segundo momento, essas escolhas são agrupadas em campos semânticos que

sinalizam as diferentes angulações dadas para o fato por parte dos jornais

selecionados.

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5.METODOLOGIA

Em julhode2020,opresidente JairBolsonaroanunciouà imprensaquehavia

contraídoacovid-19,fatonoticiadonacionaleinternacionalmenteequegerougrande

repercussão pelas falas e atitudes do presidente. Esse acontecimento nos levou a

definir o corpus da pesquisa, composto por seismanchetes e suas respectivas lides

referentes à testagem positiva do presidente Bolsonaro para a covid-19. Para isso,

fizemos uma busca online por reportagens sobre o fato e selecionamos cinco

periódicos representativos de seus países de origeme umportal de notícias online,

tambémdegrandealcancejuntoaopúblicoleitor,asaber:

• periódicos norte-americanos: The New York Times, The Washington Post e

Bloomberg;

• periódicossul-americanoseeuropeus:oargentinoClaríneosfrancesesLeFigaro

eLeMonde;

• periódicosnacionais:FolhadeSãoPaulo(FSP),EstadodeMinas(EM)eUOL.

Comonãoanalisamosotextodasreportagens,nossocritériodeescolhadesses

veículosfoiapenasoimpactodasmancheteseaqualidadeinformativadosleads,pois

essessãoorientadosporperguntasgeradorasqueresumemamatériaparaoleitor:“O

quê?”,“Quem?”,“Quando?”,“Onde?”,“Como?”e“Porquê?”.Poressarazão,temosum

portaldenotíciaseapenasumperiódicosul-americano,emvezdeummesmonúmero

eamesmacategoriadeveículosmidiáticos.Essedetalhemereceexplicaçãopelofato

dequeumadasprerrogativasdateorianordianaéoestudodetextosquetenhama

mesmanatureza,ouseja,apenasperiódicosouapenasportaisdenotícia,demodoa

facilitaracomparaçãodefatorestextuaisexternoseinternosaotexto.

O passo seguinte à definição do corpus de estudo foi a leitura e seleção das

escolhas lexicaismaisrecorrentesnasmanchetesenos lides.Dareleituradestas, foi

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possível categorizar alguns campos semânticos representativos do fato noticioso e

denominadospornóscomo:“atitude”(dopresidenteemrelaçãoàpandemia);“vírus”

(termosempregadosparasereferiràcovid-19), “infecção” (termosparasereferira

testagem positiva), e “outros” (termos adjacentes, tais como hidroxicloroquina). A

possibilidade dessa categorização é o que nosmostra os caminhos da tradução em

meio jornalístico, especialmente quando as notícias ultrapassam as suas fronteiras

geradoras e que comprovam a tradução do fato dentro dos estudos da interface

tradução-jornalismo.Sendoassim,umaúltimaconsideraçãose faznecessária: textos

jornalísticos satisfazem uma condição inerente à proposta: são textos autênticos,

segundoNord(2016),ouseja,textosemcontextodesituaçãoreal.

6.BOLSONAROEACOVID―LÉXICONASMANCHETESELIDES

Escolhas lexicais e campos semânticos constituemumdos caminhos possíveis

para analisarmos mudanças de enfoque, angulação e a consequente representação

cultural dos fatos noticiosos em tradução (ZIPSER, 2002). Em Lawrence Venuti

(1995), encontra-se uma aproximação para a compreensão de escolhas lexicais

quando o teórico comenta sobre a influência de condicionantes culturais e sociais

atuando sobre a produção e leitura do texto e viabilizando a prática tradutória. Na

tradução jornalística, isso não é diferente, lembrando que o fato noticioso sofre a

influência direta de condicionantes externas e internas ao fazer jornalístico (ESSER,

1998), da mesma maneira como ocorre com a prática tradutória, conforme Nord

(2016).

No caso dasmanchetes e lides que compõemos periódicos norte-americanos,

observamos que não há uma variação significativa nas escolhas lexicais. Os termos

recorrentes são: “Bolsonaro”, “Presidente do Brasil” (President of Brazil), “testou

positivo” (tested positive) e “Coronavirus/covid-19”, todos citados duas vezes. O

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propósito e, consequentemente, o efeito dessas escolhas, é o de familiarizar o leitor

finalcomoconteúdodanotícia,leitoresteentendidocomoqualquerpessoafalantede

língua inglesa,emqualquerpaísdomundo,nãoapenasnorte-americanosresidentes

nos EUA. O enfoque das reportagens está nas escolhas que designam a atitude do

presidente frente à pandemia: “protestou contra” (railed against); “minimizou”

(downplayed); “procurou” (sought to); “incita o país a voltar ao trabalho” (urges

countrybacktowork)e“menosprezou”(belittled).Todossãovariaçõessobreomesmo

tema e traduzem o descaso do presidente brasileiro frente à doença que está

enfrentandoequejáhaviamatadomilhõesdebrasileirosàépoca.Acovid-19é,então,

abordadapelostermos:“ameaça,casos,mortes,pandemia”,respectivamente,“threat,

cases, deaths, pandemic”, sendo que o termo “ameaça” (threat), produz um efeito

intencionalmenteaflitivo,hostiledoloroso.Essasescolhascontrastamcomostermos

“infectado”(infected)e“testoupositivo”(testedpositive)quesereferemaofatodeo

presidentetercontraídoovírus,cujaaçãodevastadorainsisteemminimizar.Dessas

escolhas, categorizamos os campos semânticos (Figura 1) como “atitude”, “vírus” e

“infecção”, grupos que se repetem nos demais periódicos e demarcam as fronteiras

tradutóriasdanotícia.

FIGURA1―CAMPOSSEMÂNTICOS―PERIÓDICOSNORTE-AMERICANOS(AsAutoras,2020).

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Quantoaosperiódicoseuropeus,asmanchetesidentificamprimeiramentequem

é Jair Bolsonaro, de forma a suprir o distanciamento dos leitores do noticiário

brasileiro.Asescolhas lexicais recorrentessão: “presidente” (leprésident), “anuncia”

(annoncé), “testou” (testé) e “covid” ou “coronavírus”, todas citadas duas vezes, a

exemplo dos periódicos norte-americanos. Essa questão sugere provável

intermediaçãodeagênciasdenotíciascomoReuterseAFP(AssociatedFrancePress),

quecedemreportagenspadrãoaperiódicosdomundointeiro,queascomplementam

comdetalhesdeinteressedoseupúblicoleitoralvo.

Umavezidentificandoopresidentebrasileiro,osperiódicosfrancesesinformam

sobre a testagem positiva, empregando os termos: “testou positivo” (testé positif),

enquanto o sul-americano Clarín emprega o termo “foi infectado” (fue infectado),

conferindoumtommaisdramáticoàquestão.Nessecaso,oLeMonde éoúnicodos

três periódicos a complementar o fato informando o leitor sobre “sintomas”

(symptômes)ea“radiografiadospulmões”(radiographiedespoumons),detalhesnão

repassadosaoleitorbrasileiro,porexemplo.DiferentementedoLeMonde,oLeFigaro

nãomencionasintomas,masenfatizaopresidenteterminimizadoapandemiaecitao

númerodevítimaspeladoençanoBrasil.Aênfasemaior,portanto, estános termos

que contextualizam a contaminação. No caso do argentino Clarín, temos apenas o

sobrenomedopresidente,informandosuaconfirmaçãosobretercontraídoacovid-19

e seu próprio prognóstico de estar “perfeitamente bem” (perfectamente bien). O

periódico menciona, ainda, que o presidente voltou a subestimar a doença e a

incentivar o uso da hidroxicloroquina, sobre a qual reitera não haver comprovação

científicadesuaeficácia.

Aomissãodessasinformaçõesnosperiódicosbrasileirosgerou,posteriormente,

acriaçãodeumconsórciodeveículosda imprensapara informarapopulaçãosobre

dados da covid-19 não divulgados pelo governo brasileiro. O efeito dessas escolhas

sobreoleitoréclaramentefactualeinformativo,refletindoumdistanciamentosocial

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epolíticodosperiódicoseuropeus(ESSER,1998)quepermiteabordare traduziros

fatosdeformamaisclaraeobjetiva,quandocomparadosàcarênciainformacionaldos

periódicosbrasileiros,provavelmenteporrazõespolíticaseideológicas.

Umúltimodetalhe,aindasobreosjornaiseuropeusesul-americanos,resideno

modocomoabordamaatitudedopresidentebrasileiroaoserinfectadopelacovid-19.

OLeMondeempregaostermos“anunciou”(annoncé),“revelou”(révélé),“apresentou”

(présentait);jáoLeFigaroempregaostermos“anunciou”(annoncé)e“nãoparoude

minimizar” (n’a cessé de minimiser), enquanto que o Clarín detalha “informou”

(informó), “voltouasubestimar” (volvióa subestimar)e “promoveu”(promocionó) [a

cloroquina]. Vale ressaltar que o verbo “anunciar” traz consigo uma semântica

positiva, no sentido de “anunciar uma boa notícia, fazer publicidade, anunciar o

futuro”. Por outro lado, os termos “subestimar” e “minimizar” reiteram seu descaso

comapandemiaque,porsuavez,étraduzidapelostermos“doença”(enfermedad),no

Clarín, e “pandemia”(pandémie)e “mortes” (morts),nocasodoLeFigaro,únicoque

apresentanúmeros(65milmortes).

Dessas escolhas, podemos designar osmesmos campos semânticos (Figura 2)

anteriormente definidos para os periódicos norte-americanos “atitude, infecção,

vírus”,comumadendodenominadopornóscomo“outros”paradesignarinformações

adjacentesequecompõem,masnãosãoofocodanotícia.

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FIGURA2―CAMPOSSEMÂNTICOS―PERIÓDICOSEUROPEUS

ESUL-AMERICANOS(AsAutoras,2020).

Por fim, temososperiódicosbrasileirosque,aexemplodosdemais,mantêmo

foco em escolhas lexicais recorrentes: “Bolsonaro”, “quarentena”, “contrair”, “vírus”,

“cloroquina”, todos citados ao menos duas vezes, nas manchetes. Aqui, podemos

contrastar as escolhas nacionais com a pretensa neutralidade dos periódicos norte-

americanos; “presidente” (president), “Bolsonaro”, “vírus” (virus), “testou positivo”

(tested positive); e uma quase indignação de europeus e sul-americanos “anuncia”

(annoncé), “subestimar” (subestimar). Diferentemente dos demais, os periódicos

nacionaisparecemseenvolvermaiscomatestagempositivadopresidenteemrazão

deofatoterocorridonoBrasil.

A diferençamaior está na categoria “atitude” do presidente perante a doença

(Figura3).OportalUOL,porexemplo,empregatermoseexpressõescomo“anunciou”,

“admitiu”,“nãoaguentamaisficaremcasa”,indodeencontroàsreaçõesdemilhares

debrasileiros,mascomcerto tomdecríticapelo fatodessa informaçãotersidodita

pelo presidente que deveria dar o exemplo e permanecer em isolamento. Em

contrapartida,aFolhadeSãoPaulo(FSP)empregaoverbo“afirmar”,queassumeum

tom assertivo e de pretenso distanciamento, ao passo que o Estado de Minas (EM)

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utiliza “contar”, “disse”, ao que parece dar pouca importância, como algo comum,

corriqueiro, de forma similar à atitude recorrente do presidente ao banalizar o

númerodemorteseinfectadospelacovidnopaís.

FIGURA3―CAMPOSSEMÂNTICOS―PERIÓDICOSNACIONAIS

(AsAutoras,2020).

Já sobre a infecção, os periódicos empregam os termos: “infectado; testar

positivo” (UOL); “contraiu” (FSP) e “diagnosticado, febre” (EM). Percebemos aqui o

distanciamento total dado pelo portal UOL e pela FSP, veículos que integram o

consórciodeimprensaquebuscatrazerdadosobjetivossobreoscasosdeinfecçãoda

covid-19, enquanto o EM é o único periódico que confere certa humanização ao

presidente, mencionando sintomas da doença. Por fim, e a exemplo do argentino

Clarín, temos uma terceira categoria para os campos semânticos denominada como

“outro” e que aparece no EM: “tomar cloroquina, passou a se sentir melhor”. Essa

escolha reitera a defesa do presidente sobre o uso do referidomedicamento e nos

remeteaoTheWashingtonPostquandomenciona“incitaopaísavoltaraotrabalho”

(urgeshis countryback towork), bastando,para isso, fazerusodomedicamentoem

questão.

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Entende-se que as escolhas lexicais que constituem os campos semânticos

possíveis,mas nempor isso inertes, dasmanchetes e lides analisados neste estudo,

mostramdiferentescaminhosdeleituraparaummesmofatonoticioso,umavezque

essefatoreverberapróximoaoseureferente,casodosperiódicosnacionaisoulonge

desse foco. Essas diferentes angulações, que atuam com traduções para o fato na

interface da tradução jornalística, configuram as escolhas lexicais como elementos

pertencentes às esferas social e subjetiva para o jornalismomencionadas por Esser

(1998) e aos fatores textuais internos, em especial, léxico e efeitos de sentido,

mencionadosporNord(2016).Adinâmicaentreessescondicionanteséoquealçaa

figura do tradutor e, também, a do jornalista, bem como suas escolhas lexicais, ao

centrodoprocessotradutórioejornalísticodemaneiraativaecontundente.

Em outras palavras, mesmo que condicionado pela esfera social, na qual a

instituiçãojornalísticaatua,pelosprincípiosquesustentamofazerjornalísticoepela

própria estrutura das redações, o jornalista assume o protagonismo e torna-se o

centrodasuapráxis,tecendoescolhassintáticas,estruturais,lexicaisquedeterminam

o olhar interno, do jornalismo como instituição social, e externo, do leitor final que

impulsionaessasescolhas,aindaqueindiretamente.Omesmoocorrecomafigurado

tradutorquetambémassumeumprotagonismonecessárioeinerenteàsuacondição

deintermediadorcultural,vistoqueotradutor,assimcomoojornalista,tambémtece

suasescolhas linguísticaspormeiode fatoresculturaisdeterminantes,ressaltandoo

princípiodainterculturalidadequepermeiaosprocessosjornalísticoetradutório.

CONSIDERAÇÕESFINAIS

Emépocadefakenews,quemsabelerumareportagemérei!Certo,sabemosque

esseditadoéumaadaptação,masessaideiapassaaexistireaadquirirsignificaçãoa

partirdomomentoemquealinguageméarticulada,pelotradutor,pelojornalista,de

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forma a dar vida a um texto, a um fato noticioso. Essa é a proposta da tradução

jornalística:revelaralinguagemquearticulaasnotícias,trazeràtonaosignificadodas

escolhas lexicais, sintáticas, pragmáticas feitas pelo jornalista-tradutor e propor um

novoolharparaasreportagensquerecebemos(lemos)todososdias.

Saber ler e compreender o noticiário, em especial os fatos que ultrapassam

fronteiras e ganhamdimensão internacional, amplia o alcance e o entendimento da

realidade. Além disso, buscar o que a imprensa noticia sobre um mesmo fato

comprovaqueasreportagensquelemosconstituemapenasumaleituraenãoaúnica

possível para ummesmo acontecimento, segundo Zipser (2002). São essas leituras

quenospermitemargumentarqueessescaminhosconstituemdiferentestraduçõese

representamculturalmenteummesmofatonoticioso.

Nessesentido,ainterfacecolocaalinguagemcomoprodutodeummeiosociale

como um processo formador de sentidos que difere entre culturas. Em outras

palavras, a transcodificação isenta, isto é, a transferência de sentidos estáveis, que

correspondem a uma tradução literal, e a pretensa neutralidade jornalística não se

sustentam. Sendoa linguagemumamanifestação cultural, omodo comoa imprensa

internacional noticia a testagem positiva do presidente para a covid-19 representa

culturalmente a sociedade na qual a imprensa atua e se sustenta, gerando as

diferentestraduçõesdadasparaanotícia.

Outro ponto a ser considerado é a possibilidade de trabalhar com textos

jornalísticosemsaladeaula.Váriasescolastêmseuprópriojornalinstitucionale,em

sala,osalunosaprendemogênerodotextojornalístico,suascaracterísticasefunções.

Os próprios alunos produzem o material publicado no jornal da escola e, nesse

contexto,sãoconfrontadoscomestiloecaracterísticasespecíficasdaredaçãodotexto

jornalístico, com a maneira de diagramar conteúdo para portais online e material

impressoetambémpodemaprenderalerdefatoojornal,aentenderaestruturada

notícia, a entender e identificar oque são fakenews. Aspossibilidades sãomuitas e

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atuais, além de que, como professores, podemos ainda identificar nesses alunos

qualidades e talentos que podem ajudá-los a descobrir futuras profissões, como

jornalistas,repórteres,redatores,tradutoreserevisores.

Oprocessotradutóriosecoloca,portanto,comoumaferramentaamaisparaauxiliaro

professor a diversificar o processo de ensino-aprendizagem de LE. Nesse sentido, a

tradução é vista como uma ferramenta pedagógica, um exercício que possibilita a

reflexãosobreousoeosignificadodaspalavrasemdiferentescontextoseculturas.O

exercício de comparação de estruturas entre línguas aguça, ainda, a percepção de

comoaslínguasrefletemomeiosocialnoqualsãoempregadas.Assim,oalunotema

oportunidadede aprender a ler “as entrelinhas”, saber quemescreveu o texto, para

quem, porque e como, tornando-se um cidadão mais consciente da diversidade

linguísticaecultural,dentrodasuaprópriaculturaeparaalémdela.Nessesentido,a

interfacedatraduçãojornalísticaconstituimeiodeinteraçãoeconscientizaçãosobre

o papel do jornalista, do tradutor e do leitor em sociedade, em uma dinâmica que

implicasairdesi,olharparao“outro”e,sóentão,olhardevoltaparasimesmo.

REFERÊNCIAS

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QUADROS,E.H.;CORDEIRO,L.B.deL.;SILVA,S.B.da;POLCHLOPEK,S.A.Imprensa&Tradução... 243

Leprésidentbrésilien JairBolsonaro testépositif au covid-19.LeFigaro, França, 2020.Disponívelem: https://www.lefigaro.fr/flash-actu/le-president-bresilien-jair-bolsonaro-annonce-etre-contamine-par-le-coronavirus-20200707.Acessoem:14dez.2020.LONDOÑO, Ernesto; ANDREONI, Manuela; CASADO, Letícia. President Bolsonaro of Brazil TestsPositive for Coronavirus. The New York Times, 2020. Disponível em:https://www.nytimes.com/2020/07/07/world/americas/brazil-bolsonaro-coronavirus.html?smid=tw-nytimes&smtyp=cur.Acessoem:14dez.2020.MARTINS,Humberto.ComCOVID-19,Bolsonarocontacomosesenteevoltaafalarsobrecloroquina.Estado de Minas, 2020. Disponível em:https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2020/07/13/interna_nacional,1166541/com-covid-19-bolsonaro-conta-como-se-sente-e-volta-a-falar-cloroquina.shtml.Acessoem:14dez.2020.MAZUI, Guilherme. Bolsonaro anuncia resultado positivo de teste de covid-19 e diz que está'perfeitamente bem'. G1, 2020. Disponível em:https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/07/07/bolsonaro-diz-que-seu-exame-para-covid-19-deu-positivo.ghtml.Acessoem:14dez.2020.MCCOY, Terrence. Brazil’s Bolsonaro tests positive for coronavirus. The Washington Post, 2020.Disponível em: https://www.washingtonpost.com/world/the_americas/coronavirus-brazil-bolsonaro-tests-positive/2020/07/07/5fa71548-c049-11ea-b4f6-cb39cd8940fb_story.html. Acessoem:14dez.2020.NEJAMKIS,Guido.JairBolsonaroconfirmóquetienecoronavirus,dijoqueestá“perfectamentebien”y volvió a subestimar la enfermedad. Clarín, 2020. Disponível em:https://www.clarin.com/mundo/coronavirus-brasil-jair-bolsonaro-coronavirus_0_gOLTaQTnF.html.Acessoem:14dez.2020.Recebidoem:27/01/2021Aceitoem:16/02/2021

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OPARATEXTOPREFACIALDETRADUÇÃOLITERÁRIA:OCASODOS

HAMLETSBRASILEIROS

THEPREFATORYPARATEXTOFLITERARYTRANSLATION:THECASEOF

THEBRAZILIANHAMLETS

PedroLuísSalaVieira1

RESUMO:Opresenteartigoconstituiumareflexãocríticadafunçãodoparatextoprefacialdotextotraduzido de quinze traduções da peça Hamlet, de William Shakespeare. Esta pesquisa parte dopressuposto de que paratextos de tradução contribuem para a compreensão de fenômenosrelacionados ao texto traduzido e para a recepção de obras literárias em culturas diversas(BATCHELOR, 2018; TAHIR-GURÇAGLAR, 2002). Este estudo pretende, portanto, ampliar adiscussãoa respeitododiscursoprefacial comoobjetodepesquisa fundamentalparao estudodetraduções.Palavras-chave:paratextos;tradução;Hamlet.ABSTRACT: This article is a critical reflection of the function of the prefatory paratext of thetranslated textof twelveBrazilian translationsofHamletbyWilliamShakespeare.Thisresearch isgrounded on the assumption that the paratexts of translation contribute to understand thephenomena related to the translated text and the reception of literary works in diverse cultures(BATCHELOR,2018;TAHIR-GURÇAGLAR,2002).Thisstudyintendsthustobroadenthediscussionontheprefatorydiscourseasacrucialresearchobjectforthestudyoftranslations.Keywords:paratexts;translation;Hamlet.

1Doutorando,UFF.

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1.INTRODUÇÃO

Na concepção de André Lefevere (1992), a tradução constitui um tipo de

reescritado texto-fontenaqualeste incorporaa ideologiaeapoéticadominantedo

contexto imediato da nova cultura em que se inscreve. A partir desse princípio, é

possívelafirmarquecadatraduçãodeumamesmaobrarevelaumaformadistintade

apresentar determinado texto literário ao leitor. Os paratextos, na condição de

componentes textuais que apresentam a obra e asseguram sua presença nomundo

(GENETTE, 1997), assumemumpapel fundamental no contexto do texto traduzido,

poissãoresponsáveisporconstruiramediaçãodotextoliteráriocomanovacultura

receptora.

Opresenteartigo,combasenaanáliserealizadaemdissertaçãodeMestradoa

respeito do tema (VIEIRA, 2018) e emdiálogo comoutras pesquisas que tratamda

temática,refletesobreafunçãodoparatextoprefacialdetraduçãoliteráriapormeio

da análise de doze traduções brasileiras de Hamlet2, de William Shakespeare. A

denominação “paratexto prefacial” engloba neste artigo não apenas os prefácios

propriamente ditos, mas também outros textos situados no entorno do livro, como

introduções,posfáciosetextosdeorelhadelivroecontracapa.

2.APARATEXTUALIDADEDETRADUÇÃOLITERÁRIA

GérardGenette(1997),autordeParatexts:thresholdsof interpretation3,situao

paratexto como um fenômeno transtextual4 que assegura a presença da obra no

2 Como o presente artigo aproveita o corpus e os resultados obtidos na pesquisa de Mestradorealizada em 2018, não foi incluída a tradução de Geraldo Carneiro publicada pela ManeiraAdvogadosem2019.3TítulodatraduçãoinglesadeSeuils(títulooriginaldaobraemfrancêspublicadoem1987).

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mundo,influenciandoasuarecepçãoeconstituindo-seemumazonafronteiriçaentre

otextoeoreceptor.Essadefiniçãoatribuiaoparatextoafunçãodeestimularoleitora

usufruir a obra, destacando seus elementospositivos e justificandoa sua relevância

cultural. Essa característica contribui para que ele seja um espaço de promoção

comercialdolivro,delimitandoopúblico-alvoedefinindooobjetivodapublicação.

Notextotraduzido,afunçãodoparatextonosistemareceptorlevantadiversas

questões. Na concepção de Kathryn Batchelor (2018), autora de Translation and

Paratext, oparatextonão compõeapenasespaçode introduçãoe/oumediação,mas

também intervenção e transformação, constituindo um espaço com potencial de

modificar a recepção de determinado texto na cultura receptora. Şehnaz Tahir-

Gürçaglar (2002), por exemplo, aponta que a análise de paratextos de tradução

constitui uma forma de elencar conceitos e definições diferentes a respeito de

traduçãoemdeterminadocontextoculturalehistórico:“Oestudodestematerialpode

nosproverpistasvaliosasarespeitodecomoatraduçãofoiconcebidaetambémdas

condições sob as quais as traduções foram produzidas e consumidas”5 (TAHIR-

GÜRÇAGLAR, 2002, p. 58-59, traduçãominha). Nesse sentido, os paratextos podem

constituirfontessistemáticasderecriaçãodasnormastradutórias.

Márcia Martins (2015) aplica essa reconstrução em seu artigo “A voz dos

tradutores shakespearianos em seus paratextos”, no qual coteja o discurso dos

tradutoresnoselementosparatextuaisarespeitodoprocessotradutóriocomotexto

traduzido, buscando observar se as decisões e escolhas tradutórias correspondem

àquiloqueforaporelesproposto.Empesquisasemelhante,CarmenToledanoBuendía

(2013)caracterizaoparatextocomoartifícioparaqueavozdotradutorsejaouvida,

4 Além da paratextualidade, Genette também aborda relações transtextuais de intertextualidade(relaçãoentretextos),metatextualidade,arquitextualidadeehipertextualidade.Paraaprofundar-senotema,consultaraobraParalimpsestes:lalittératureauseconddegré.5Nooriginal:“Thestudyofsuchmaterialmayofferusefulcluesnotonlyabouthowtranslationwasdefined, but also about the conditions under which translations were produced and consumed”(TAHIR-GÜRÇAGLAR,2002,p.58-59).

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alémdealegarqueoestudodenotasdetraduçãoeoutrostiposdeparatextopodem

fornecer informaçõesrelevantesparaacontextualizaçãodosprocessostradutóriose

compreensãodasnormasepolíticasvigentesnaépocadapublicaçãodatradução.

Teresa Dias Carneiro (2014), ao discutir o prefácio de tradutor como gênero

autônomo, argumenta que esse tem como objetivo realçar a importância do texto

traduzido e da qualidade da obra, evocando um discurso modesto perante o texto

“original”, cuja intenção e verdade são inalcançáveis pela tradução. Essa atitude

“amplificadora”queenalteceotextoliterárioseconjugaaumaposturaescusatóriana

qualotradutorserefugianomantodaobraoriginalparaimpedirpossíveiscríticasao

seutrabalho.

São diversos os ângulos pelos quais se pode analisar e discutir a função do

paratextoprefacialnatraduçãoliterária.Nocasodopresenteestudo,ofocoresideno

discurso construído no paratexto prefacial — doravante denominado discurso

prefacial—das traduções brasileiras deHamlet como intuito de demonstrar como

esses componentes abordaram o autor, a obra e a própria tradução sob uma

perspectivadiacrônica.

3.ASTRADUÇÕESDEHAMLETNOBRASIL:UMAANÁLISEDIACRÔNICA

A história das traduções da peça shakespeariana no Brasil se inicia com a

publicação da primeira versão em forma integral da peça, traduzida pelo poeta e

advogadoTristãodaCunhaepublicadaem1933pelaEditoraSchmidt, intitulada “A

tragédiadeHamleto,PríncipedaDinamarca”(SHAKESPEARE,1933).Trata-sedeuma

daspoucasobrasqueinformaemsuafolhaderostootexto-fonteutilizado:TheWorks

ofWilliam Shakespeare, editadoporWilliamAldisRight e publicadopelaMacmillan

emLondreseNovaYorkem1904.Tantooprefácioquantoo texto traduzido foram

redigidosemprosaseiscentista, revelandouma tentativadeadaptara linguagemda

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obra ao tempode Shakespeare.O prefácio, de autoria de Cunha, se caracteriza pela

exaltação à figura de Shakespeare, expressa nas palavras de louvor atribuídas ao

bardo inglêscomo“gênio literário”e “excessivocomoosol”, situandoodramaturgo

em um patamar inalcançável no panteão dos grandes escritores em virtude de sua

“incomparávelmagiadeexpressão”.

O prefácio de Cunha também apresenta uma avaliação crítica de sua própria

tradução, resumida na seguinte passagem: “Traduzi sem esquecer aquele aviso de

Rivarol6,paraquemmuitavezéprecisosacrificarapalavraparanãotrairoespírito”

(p.06).Acrescentatambémqueamelhortraduçãoéaquelaquemaisseaproximado

original, o que revela uma visão tradicional de tradução, pois é preciso “sacrificar a

palavra”, istoé,abster-sedafidelidadetextualparatransmitira intencionalidadeea

mensagemdoautor,imbuídasdasupostaverdadesobreaobra.

O caráter laudatório no discurso voltado a Shakespeare e sua obra também

marcaobreveparatextoprefacialdasegundatraduçãodapeça,dopoetae tradutor

paulista Oliveira Ribeiro Neto (SHAKESPEARE, 1960), publicada originalmente em

19487 pela editorapaulistaMartinsFontes. Essa versão apresenta apenasumbreve

textointrodutórionaorelhadolivrocomcaráterpromocionalesemautoriadefinida.

Nessa apresentação, Shakespeare é exaltadode formagenérica, sendo tratado como

umafiguradecaráteruniversal:“AtéosregimespolíticosrespeitamShakespeare,que

érepresentadoemtodasasnações,sejaqual foroseuregimeou ideologia”(s/p).O

paratexto também chama a atenção para uma espécie de eternidade da obra

shakespeariana, destacando que sua ampla aceitação no mundo político e literário

garantem sua “perenidade” e “indestrutibilidade”, constituindo um “ponto de

6AntoinedeRivarol(1753-1801)foiumescritorepolemistafrancês.NoBrasil,aobradeRivarolfoiacolhidaexatamenteporTristãodaCunha.EmCoisasdoTempo (1922),Cunhadedicaoensaiodeintroduçãoaoautorfrancês,intituladoNoJardimdeRivarol(CUNHA,Tristãoda.ObrasdeTristãodaCunha.RiodeJaneiro,LivrariaAgirEditora;Brasília:INL,1979,p.28-56).7 A edição utilizada no presente corpus, da mesma editora, é a reimpressão publicada em 1965,acompanhadadastraduçõesdeRomeueJulietaeOtelo,domesmotradutor.

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referência permanente”. Em suma, o breve paratexto de Ribeiro Neto se dedica a

exaltardeformaacríticaafiguradoautor,semmençãoaoutrasquestõesrelacionadas

àobraouàprópriatradução.

AtraduçãodePériclesEugêniodaSilvaRamos,publicadaem1955pelaEditora

José Olympio (SHAKESPEARE, 1955), contém paratextos mais elaborados. Em uma

apresentação extensa intitulada “Introdução”, de autoria do próprio tradutor, são

tratados diversos aspectos do texto de Shakespeare e de sua biografia. Trata das

fontesdoenredodapeça,discutindoaorigemdocontodopríncipedinamarquêsna

obra Gesta Danorum, compilado de contos antigos do erudito dinamarquês Saxo

Grammaticus, e que teria chegado ao bardo por meio da adaptação francesa da

história de François de Belleforest. No aspecto da tradução, limita-se a apresentar

justificativasrelacionadasaousodaversãodotexto-fonteedequestõesconcernentes

àalternânciaentreoversoeaprosanatradução.

Na tradução posterior, de Carlos Alberto Nunes, publicada originalmente pela

EditoraMelhoramentos,(SHAKESPEARE,1956),assimcomonaversãodeSilvaRamos

(SHAKESPEARE,1955),permaneceapreocupaçãoemprover informaçõesdaobrae

doautoraopúblico.Naediçãoutilizadanestecorpus,publicadapelaEdiouroemano

indefinido, a sua tradução ― intitulada Hamleto, Príncipe da Dinamarca ― é

acompanhada de suas traduções das outras tragédias shakespearianas. O primeiro

paratexto, intitulado “Introdução ao Plano do Teatro de Shakespeare”, serve como

introdução geral à obra, discutindo variados aspectos em torno da obra

shakespeariana:acomparaçãoentreacríticashakespearianaromânticaeamoderna,

acusandoestadebuscarreduziroautoraumaanáliseobjetiva“parareconduzi-laao

domínioestritamentehumano”(NUNES,s/d,p.04),enãopoupaodiscursolaudatório

quando ressalta que “depois da leitura de tantos estudos igualmente proveitosos,

sentimo-nosaindamaisamesquinhadosdiantedagrandezadopoeta”(p.04).

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Apóstratarbrevementedabiografiaedacronologiadesuaobra,Nunesrealçaa

relevância de traduzir Shakespeare para outras culturas, a ponto de sustentar que

“nãoseráexageroafirmarqueovalordessas literaturassecalculapelamaneirapor

que têm reagido com relação a Shakespeare” (NUNES, s/d, p. 08), acrescentando

posteriormenteque“a influênciadeShakespearesobreuma literatura independeda

excelênciadatradução.BastaquesejaShakespeare”(p.09).Nunesargumentaquese

manteve fiel ao textoem inglêsaooptarpelodecassílaboheroiconaspassagensem

verso por considerar esta forma mais próxima do padrão poético shakespeariano,

mantendo a uniformidade do estilo nas passagens em verso branco. Em relação à

prosa,afirmaquebuscou“fazerjustiçaàopulênciadooriginal”(p.10).

Osoutrosdoisparatextos,semautoriadefinida,assemelham-seemmatériade

conteúdo: o primeiro consiste em uma introdução intitulada Hamleto que retoma

elementosrelacionadosàobracomofonteshistóricaseasinopsedoenredo,alémde

proverbrevesreflexõescríticasarespeitodapeçaeenaltecê-lacomoa“obra-primade

Shakespeare”(s/d,p.543).Oautordestacaaprofundidadedospersonagens,semos

quais a peça não passaria de uma “vasta carnificina sem interesse” (s/d, p. 543). O

segundo texto é um breve ensaio intitulado “Prefácio”, que retoma algumas

informações contidas no prefácio anterior, novamente trazendo ênfase aos

personagens cujas características únicas e peculiaresmoldama relevância artístico-

literáriadapeça.

Em 1968, a Editora Agir publica a tradução da professora e escritora Anna

Amélia Carneiro de Mendonça, reeditada posteriormente em 1995 pela Nova

Fronteira (SHAKESPEARE, 1995). Essa reedição apresenta dois prefácios, ambos

escritos pela filha da tradutora, Bárbara Heliodora, crítica e especialista de grande

notoriedadedaobra shakespeariana.Noprimeiro, correspondente à ediçãodaAgir,

Heliodoracontaquepediuàmãequetraduzisseapeçaparaumasériedeaulasque

ministraria na época para a Conservatório Nacional de Teatro, pois necessitava de

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“uma tradução para o teatro, emque atores e diretores pudessem sentir o fluxo da

ação”(HELIODORA,1995,p.07).

Nesse prefácio, Heliodora também comenta que a linguagem shakespeariana,

populareacessívelaopúblicoelisabetano,refletiaamodernidadequeseexpandiade

forma contemporânea ao dramaturgo, e discorre a respeito das características

elementares da dramaturgia elisabetana, destacando a união dos traços do teatro

medieval, dominado pelas histórias associadas à moral humana, com elementos do

Renascimento, como a busca de autoconhecimento pelo indivíduo. Ao final desse

prefácio, Heliodora engrandece a peça como a “mais fascinante” para atores e

diretores, e um símbolo da evolução do homem diante das tarefas que lhe são

impostas.

No prefácio posterior, Heliodora apresenta um discurso mais objetivo e

igualmente didático, tratando essencialmente da biografia do autor, da história da

publicação da peça, da origemdo enredo e das diferenças entre as versões. Conclui

essetextocomaseguinteafirmaçãoarespeitodaspossibilidadesdeleituradaobra:

“Éprivilégiodo leitor fazerasuaprópriamontagemimagináriaerefazê-la,alterá-la,

aprimorá-la, segundoasdescobertasque irá fazendoacadanova leituradesse texto

inesgotável”(HELIODORA,1995,p.23).

Umanodepois da publicação dessa tradução, a Editora JoséAguilar publica a

obracompletadeShakespeare traduzidaem formadeparceriaporFernandoCarlos

deCunhaMedeiroseOscarMendes8(SHAKESPEARE,1988).Aediçãoanalisadaéuma

reimpressãode1988 e conta comquatroparatextosprefaciais.Oprimeiro é a nota

editorialassinadapor JoséAguilarqueseencarregasumariamentedeapresentaros

tradutores,destacandotambémqueoobjetivodaeditoriaconsistiuemalcançar“uma

traduçãomaisfielpossívelaotextodoautor”(AGUILAR,1988,p.12).

8 De acordo comMárcia Martins (1999), embora essa informação não esteja explícita na ediçãoanalisada, Cunha Medeiros ficou encarregado de verter as passagens em prosa enquanto OscarMendestraduziuascanções.

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O prefácio seguinte, intitulado “Shakespeare”, é de autoria de C. J. Sisson,

reconhecido crítico britânico da obra shakespeariana, e traduzido por Cunha

Medeiros. É o primeiro paratexto assinado por um especialista na obra

shakespeariana presente em uma tradução da peça. A presença de um texto crítico

indicaumapreocupaçãocomoleitorquepretendeseinformarsobreoautoremum

panoramamaiscríticoeintelectual,semlimitar-seatratargenericamentedeaspectos

biográficos ou elementos do enredo. Entre outras questões, Sisson trata da era

elisabetana e do desenvolvimento do pensamento shakespeariano no decorrer dos

séculos.

Oparatextoseguinte,intitulado“AvidadeShakespearenavidadoseutempo”,

de autoria deOscarMendes, apresenta brevemente o contextohistórico vividopelo

dramaturgo,destacandoqueoavançosocioeconômicoquesedesenhavanaInglaterra

daquela época ecoa em toda a obra shakespeariana: “Na sua obra, lida com a

necessária atenção, descobre-se o retrato, a descrição, a paisagem humana, da

Inglaterraelisabetana[...]”(MENDES,1988,p.46).

Antes da seção dedicada às tragédias, somos apresentados a uma nota

introdutória, também de autoria de Oscar Mendes, que ressalta a relevância das

tragédias para o cânone shakespeariano, além de discutir aspectos inerentes a esse

gênero.Hamletécaracterizadocomoa“tragédiadadúvida”,poisohomemsetortura

parajustificaremsuaconsciênciaseusatoseomissões.QuantoaShakespeare,exalta

seu gênio criador por insuflar vida a seus personagens a ponto de conferir a eles

imortalidade.Porfim,cadapeçadovolumepossuiumparatextoprefacialqueconsiste

deduassubseções intituladas, respectivamente,de “Sinopse”e “DadosHistóricos”:a

primeiraapresentaumabrevedescriçãodoenredodapeça,enquantoasegundatraz

aspectosbiográficosehistóricosrelacionadosàobraeaoautor.

Depois de um hiato de quinze anos, é publicada a tradução de Geraldo de

Carvalho Silos, pela Editora JB (SHAKESPEARE, 1984). Nessa versão, todos os

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paratextos prefaciais são de autoria do tradutor. O primeiro, intitulado “Prefácio”,

constituiumbreverelatosobreoprocessotradutório,descrevendodetalhescomoos

cinco anos de pesquisa na Biblioteca Nacional do Canadá. No segundo paratexto,

intitulado “Introdução”, Silos recapitula diversos aspectos relacionados à obra e ao

autor já assinalados por paratextos anteriores, como as fontes do enredo, o “Ur-

Hamlet”,asdiferentesversõesdapeçaeocontextohistóricodesuaprodução.Entre

todos os elementos trazidos por Silos neste extenso paratexto, podemos destacar o

fato de ele mencionar o uso do Oxford English Dictionary para “decifrar” o que o

próprio denomina “inglês elisabetano” de Shakespeare, linguagem por ele

caracterizada pela indisciplina e extrema flexibilidade.Destaca a relevância de ler a

peça de acordo com o seu tempo para “entender com clareza o que o público

elisabetano ― formado mais pelo povo do que pela classe alta ― ouvia dos

personagens”(SILOS,1984,p.XXV).

Silosdedicaumaseçãodoparatextoparatratardotemadatradução,limitando-

se a afirmar que, diante das escolhas que o trabalho lhe impõe, “o tradutor por

necessidade transforma-se em crítico, tomando partido pela escolha que insira a

decodificaçãonoqueelepensanãosódapalavra,dafrase,masdetodaapeça”(SILOS,

1984, p. XXVI). Na seção intitulada “Notas”, no posfácio, Silos argumenta que o

tradutor de Shakespeare se depara com dilemas interpretativos e ambíguos em

virtude dos variados sentidos atribuídos a seus textos por especialistas norte-

americanos e ingleses, concluindo que o tradutor deve manter-se na incerteza e

buscarreproduzirosentidoverticaldotexto.Noresumobiográfico,detalhaaspectos

da vida de Shakespeare ainda não tratados em outros paratextos, como a origem

familiardospais,hipótesessobreasuainstruçãoacadêmicanainfânciaejuventude,a

inspiraçãonamortedeKatherineHamletnorioAvonparaescreveracenadaOfélia,o

casamentodeShakespearecomAnneHathaway,onascimentodesuafilhaSusannae

deseusfilhosgêmeoseamorteprematuradeseufilhoHamnet.

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Em 1988, a L&PM publica a tradução de Millôr Fernandes. A versão de

Fernandes apresenta um número reduzido de paratextos prefaciais, que se

caracterizam pelo caráter breve e objetivo. O prefácio, intitulado “William

Shakespeare (1564-1616)”, fornece informações biográficas sobre o autor, o

panoramahistóricodesuaspeças,umabrevecontextualizaçãohistóricadesuaépoca

ecomentasobrecaracterísticasestruturaisdoteatroelisabetanoquepermitiamuma

proximidadefísicadosatorescomopúblico.Naconclusão,oautoréenaltecidocomo

umdosmaioresautoresde todosos temposemvirtudedagrandezapoéticade sua

linguagem,daprofundidadefilosóficadesuasobrasedacomplexacaracterizaçãodos

personagens.Na contracapa, umbreve texto editorial define a peça comoumaobra

que trata da condição humana e compõe uma dimensão trágica. Por fim, elogia a

traduçãodeMillôrFernandes,destacando seuposicionamento críticoemrelaçãoao

eruditismopresenteemtraduçõesanterioresqueprejudicariaocaráterdramáticodo

textoeasuacompreensãonalínguadechegada.

Atraduçãoposterior,deMarioFondelli,publicadapelaNewtonComptonBrasil

(SHAKESPEARE, 1996) apresenta apenas um breve paratexto prefacial intitulado

“Notabibliográfica”,que trataprincipalmentedapublicaçãodoFirstFoliode1623e

da despreocupação de Shakespeare em publicar as suas peças, tarefa empreendida

postumamenteporseuscolegasHemingeseCondell.Traçaumpanoramahistóricodo

cânonedramáticoshakespeariano,trazendobrevescomentáriossobreaestruturade

seustrabalhospoéticos:osdoispoemasnarrativos—TheRapeofLucreceeVenusand

Adonis — e seus 154 sonetos. Na conclusão, fornece informações bibliográficas da

crítica shakespeariana. Na contracapa, um texto editorial sem indicação de autoria

promoveaobraeoautor.CaracterizaapeçaHamletcomo“umdosêxitosmaisfelizes

doextraordinário talentodeShakespeare”edefineapersonagemAmleto(conforme

grafiadoprópriotexto)comoumafiguradedoisperíodoshistóricosdistintos,em“sua

enigmáticaporémgrandeeloqüenteinação[sic]”e“umhomemeternamenteemluta

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comasantinomiasdamoralecomanecessidadedeescolheracadadiaoseupróprio

modode agir” (1997, quarta capa).Ao fimdanota, apresentaumaminibiografiado

bardo.

Atraduçãoseguinte,deElvioFunck,voltaaconferirumpapelpreponderanteao

paratextoprefacial.ProfessordeLiteraturaInglesadaUnisinos,noRioGrandedoSul,

a sua versão foi originalmente publicada pela editora da universidade em 2003 (a

ediçãodopresentecorpuséumareimpressãode2005)esedestacaporsuaproposta

detraduçãointerlinear,ondeotextoeminglêséseguidoporsuaversãoemportuguês.

No paratexto prefacial intitulado Introdução, Funck define Shakespeare como

“profundoconhecedordanaturezahumana”, cujas consideraçõesescapamao “leitor

comum”(FUNCK,2005,p.07).Denominatraduçõesanteriorescomo“narrativalinear

e superficial do enredo” (FUNCK, 2005, p. 07) e define a sua tradução como uma

“tentativa de dar aos leitores deHamlet a oportunidade de ler esta obra-prima da

literatura universal com um pouco mais de profundidade” (FUNCK, 2005, p. 07),

destacando que a decisão de publicar uma tradução interlinear teve o objetivo de

agradaraquelesqueapreciamcompararasduasversões.

Funck salienta que o objetivo original de sua tradução— segundo o próprio,

umatradução“pragmáticaesempretensõespoéticas”,apósdeclararqueapenasum

poetapodetraduziroutropoeta—erafornecerumtextodeleituramaisfluidaaseus

alunos de graduação, tratando as notas explicativas como essenciais para a

compreensãodedeterminadaspassagensdapeça.Nessesentido,otradutordistingue

leitoresqueapenasseinteressampeloenredodos“verdadeirosleitores”,queseriam

aquelesde fato interessadosnaobrae,portanto,devembuscarumamparocríticoe

históricoparaacompanharaleitura.Emrelaçãoàtradução,Funckselimitaajustificar

determinadas decisões tradutórias na subseção Questões gramaticais, explicando

aspectosrelacionadosàcorrespondêncialinguísticanoportuguêsdospronomesthou,

theeethy,deusocomumnalinguagemoralnaépocadeShakespeare.

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Em 2010, a Editora Hedra publica a tradução de José Roberto O’Shea

(SHAKESPEARE,2010),professordaUniversidadeFederaldeSantaCatarina.Aversão

deO’SheaconstituiatraduçãodoPrimeiroIn-Quartodapeça,publicadaem1603.O

paratexto inicial consiste em um texto de introdução dividido em três blocos,

começandocomumresumobiográficodeShakespearedetomlaudatório,realçandoa

profundidadedosseuspersonagens, responsáveispordescreveracondiçãohumana

quegarantiuauniversalidadedesuasobras.Asegundaparteapontaqueadiferença

entre as três versões reside na extensão, estrutura, caracterização, nos nomes das

personagens e nas rubricas, alegando que todas essas diferenças devem ser vistas

como resultadode “impulsos criativosquevisamà construçãode textosdramáticos

comfunçõesespecíficas”(O’SHEA,2010,p.05).Oúltimoblocoapresentaumresumo

biográficodotradutor,destacandoasuatrajetóriaacadêmicaeosseusinteressesde

pesquisa.

O segundo paratexto prefacial, intitulado “Introdução”, de autoria do próprio

tradutor,tratadecaracterísticaspeculiaresdessaversãodapeça.O’Sheadestacaque

elacontémmaisaçãodoqueintrospecção,constituindoumaversãoresumidadeuma

peça extensa com qualidades dramáticas que superam as versões mais conhecidas.

TraçaumpanoramahistóricodasperformancesdestaversãonoBrasil enomundo,

ressaltando que se trata de uma obra mais teatral que literária devido às suas

qualidades dramáticas. Lança, por fim, uma proposta a diretores teatrais do país:

“Nesse particular, já é hora de os contextos lusófonos serem contemplados com

traduções e encenaçõesdoHamletde1603,mais curto e enxuto” (O’SHEA,2010, p.

31).

A tradução de Lawrence Flores Pereira (SHAKESPEARE, 2015), professor da

UniversidadeFederaldeSantaMaria,completaocorpusdestaanálise.Publicadapela

CompanhiadasLetrasem2015epremiadapeloJabutinomesmoano,oparatextoda

versão de Pereira apresenta elementos em comum com traduções anteriores, como

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discussão das fontes do enredo e as diferentes versões da peça, mas também traz

informaçõesnovasdebasebiográficaebibliográficaao longodosquatroparatextos

prefaciaisqueseencontramnoseuconjunto.

No primeiro texto, intitulado “Introdução”, Pereira realça que Shakespeare

desvia o tema de vingança diante da hesitação do protagonista em agir, embora a

temática ainda permeie todo o enredo. Realça a cisão histórica que representa o

contraste temporal entre o Rei Hamlet e o Príncipe Hamlet: “[...] o pai encarna o

mundoarcaico,baseadono costumeenapalavra,nãopenetradopelohumanismoe

sua sutil visão demundo na qual a consciência do filho parece habitar” (PEREIRA,

2015,p.16).Esteparatextoéseguidopeloensaio“Hamleteseusproblemas”,deT.S.

Eliot,traduzidopelopróprioPereira,noqualEliotclassificaapeçacomoumfracasso

artístico por conta da “ausência de um equivalente objetivo aos sentimentos do

personagemdeHamlet”(ELIOT,2015,p.38),deficiênciatambémapontadapelopoeta

norte-americano nos sonetos do Bardo. Pereira dedica um espaço breve para

comentar a respeito da tradução na “Nota sobre a tradução”, ecoando as ideias de

Haroldo de Campos sobre tradução de poesia, para quem essa constitui um “canto

paralelo”queabarcariaoutrasvozesalémdadita “original”. Justificaousodoverso

dodecassílabo como correspondente ao pentâmetro iâmbico, buscando evitar uma

“ritmaçãoexcessivamenteaudível”:“Oalexandrinopresta-seperfeitamenteàsformas

conversacionais,reflexivasedisruptivas”(PEREIRA,2015,p.47).

As traduções da obra, portanto, além de apresentar diferentes propostas

interpretativas da peça shakespeariana, contêm diferentes formas de apresentar a

obra e o autor, selecionando determinados assuntos e excluindo outros, além de

conter variações em suas temáticas. Os paratextos, assim como o texto literário, se

originam em determinado contexto socio-histórico, contendo um discurso — ou

discursos — que remete a enunciados que adentram uma corrente histórica e são

moldados por suas condições de produção (BRANDÃO, 2015). Esse discurso,

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denominado discurso prefacial, forma temas e padrões que refletem a recepção

históricadafigurashakespearianapelaculturareceptora.

4.ODISCURSOPREFACIAL:TEMASEPADRÕESPREDOMINANTES

A análise evidencia o propósito introdutório do paratexto prefacial,

privilegiandoaapresentaçãodaobraedoautorpormeiodedeterminadospadrões

temáticos: biografia do autor e seu contexto histórico; a origem da obra,

principalmentenoquetangeaoseuenredo;comentárioscríticosarespeitodapeça,

seja para tratar das diferentes versões, seja para caracterizar a trama e os

personagens.Todosessestemassãotratadosoradeformamaisbreve,oradeforma

mais aprofundada e específica, repetindo informações já presentes em outros

prefácios,mastambémreformulandooutrazendoelementosnovos.

O discurso prefacial com fins introdutórios também pode conter o caráter

laudatóriomencionadonoiníciodesteartigo,tendocomopropósitoenaltecertantoas

qualidades da obra quanto a figura do escritor. Esses discursos podem ser

alimentados por vozes críticas, seja do próprio tradutor, seja de outros autores e

estudiososdaobra.NocasodatraduçãodeCunhaMedeiroseMendes,temosumtexto

crítico de Sisson. Pereira, por sua vez, trouxe a visãodeEliot comouma espécie de

contrapontoàvisãoenaltecedoradaobraedoautor.O caráter laudatório começaa

diminuirapartirdoparatextodeHeliodoraque,naposiçãodeestudiosaecríticada

obra, inicia a desconstrução paulatina da imagem monumental do autor que se

desdobra em um discursomais crítico e objetivo no decorrer do tempo, observado

principalmentenastraduçõesmaisrecentes.

Otemadatradução,porsuavez,ganhamaisespaçoeprofundidadeaolongodos

anos.Antesatreladoaumavisãotradicionalqueapregoaanecessidadedeatradução

alcançaro“sentido”dotextooriginal,comonocasodosparatextosdeCunhaeNunes,

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essa concepção se modifica nas versões posteriores. Heliodora, no prefácio da

traduçãodeMendonça,preocupa-semais coma linguagemdramáticadoque coma

necessidade de reproduzir a originalidade de Shakespeare na língua-alvo. Silos, por

sua vez, associa a sua tradução a uma tarefa de pesquisa e a um trabalho crítico,

alertando,maisdeumavez,quantoàsdificuldadesqueotextoshakespearianoimpõe.

Na traduçãodeFernandes,odiscursosecontrapõeà linguagemeruditacomumente

associadaaobardo.A traduçãodeFunckassociaa traduçãoaummododidáticode

apresentar Shakespeare a um público não especializado, enquanto Pereira realça o

caráterpolifônicodatraduçãodepoesia.

Quando tratam do tema da tradução, notam-se dois padrões nos paratextos

prefaciais. O primeiro, nos termos do presente estudo, se denomina “ideologia de

tradução”,emqueoautordoparatextoevidenciaasuaprópriavisãodetradução.Os

exemplos dos paratextos das traduções de Mendonça, Silos, Fernandes e Funck

denotam esse padrão: Heliodora deixa clara a necessidade de traduzir o texto

shakespearianotendoemmenteaperformanceteatral;Silosrelacionaatraduçãoao

estudo crítico e aprofundado da obra como ummodo de alcançar a sua verdade; o

paratexto da tradução de Fernandes enfatiza a importância do uso coloquial do

portuguêsparaexprimiralinguagemshakespearianaealcançarumpúbliconamesma

amplitudequeShakespearenoseutempo;Funckcritica traduçõesdeHamletquese

assemelham a uma leitura superficial do enredo, conferindo importância às notas

explicativas para mediar a leitura para compreensão do receptor ou mesmo do

“verdadeiro leitor”. Podemos também citar a tradução de Cunha, cujo uso do

português seiscentista evidencia a suaposiçãodeque a traduçãodeve reproduzir a

linguagemdaépocadapublicaçãodaobra.

A outra face da abordagem tradutória nos paratextos diz respeito à discussão

sobre as estratégias tradutórias e/ouo juízoque o prefácio cria a respeitodo texto

traduzido, assemelhando-se a uma análise crítica da própria tradução. Esse padrão

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denomina-se,nostermosdesteestudo,“discursosobreatradução”.Trata-sedeuma

abordagem mais concreta e descritiva em que se enumera e discute aspectos e

característicasrelacionadosàprópria tradução.Cunhaoferece indíciosdessepadrão

em seu prefácio, mas Silva Ramos é o primeiro a se dirigir ao leitor a respeito de

decisõestradutóriasderelevância.Nunestambémcomentaseuprocesso,emboranão

entreemdetalhes.Silos,conformeobservadonaanáliseapresentada,éoprimeiroa

discutiroseuprocessotradutóriodeformamaisaprofundada,fornecendodetalhesde

sua experiência de pesquisa e como os resultados obtidos influenciaram o produto

final. As traduções mais recentes, principalmente as três últimas que compõem o

corpusdesseestudo,tratamaquestãodatraduçãocommaisnaturalidade,emboraa

reflexãoemrelaçãoaoprocessoestejampresentesnasnotasexplicativas.

O paratexto prefacial de tradução literária, com base nos temas principais

destacados acima, cumpre duas funções primordiais: apresentar a obra à cultura

receptora,sejaintroduzindoelementosrelacionadosàobraeaoautor,sejamediando

arelaçãocomoleitorpormeiodainduçãodarecepçãodaobra—muitasvezescom

finspromocionais;ediscutiraspectosdetradução,noqualseapresentaumaposição

teórica sobre o tema e/ou se trata de questões práticas relacionadas ao processo

tradutório.

5.CONSIDERAÇÕESFINAIS

Opanoramaapresentadoapontaqueosenunciadosparatextuaissemodificam

nodecorrerdosanos, indicandoumaevoluçãodiscursivadoparatextoprefacialque

sealinhaàsmudançasnocontextosócio-histórico.Anecessidadedeapresentaraobra

literária permanece latente no decorrer dos anos, alternando apenas os temas e a

constituição do discurso. Quanto ao outro tema predominante, a análise indica a

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evolução de determinada visão sobre a prática em questão, adquirindo espaço nos

paratextoseapresentandoumadiscussãomaissofisticadasobreotema.

O estudo do discurso no paratexto prefacial de tradução literária ainda pode

trazermuitascontribuiçõesaosestudosdatraduçãoliteráriaedarecepçãodeobras

na cultura-alvo. O foco no paratexto de tradução permite uma compreensão mais

aprofundada dos aspectos que influenciam o texto traduzido e a sua relação com a

cultura receptora. É fundamental, portanto, que haja desdobramentos relevantes

acercadacompreensãodosdiscursosconstruídosnosparatextosesuarelaçãocoma

recepçãodaobraemdiferentesmomentosdahistória.

REFERÊNCIAS

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VIEIRA,PedroL.S.Oparatextoprefacial... 263

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Curitiba,Vol.9,nº16,jan.-jun.2021ISSN:2318-1028REVISTAVERSALETE

VIEIRA,PedroL.S.Oparatextoprefacial... 264

TAHIR-GÜRÇAGLAR,Şehnaz.“Whattextsdon’ttell:theusesofparatextsintranslationresearch.”InHermans,T.(Ed.).CrossculturalTransgressions:ResearchModelsinTranslationStudiesII:HistoricalandIdeologicalIssues.Manchester:St.Jerome,2002.p.44-60.VIEIRA, Pedro. As traduções de Hamlet no Brasil: um estudo diacrônico dos paratextos. 124 f.(Dissertação)MestradoemLinguísticaAplicada.UniversidadeFederaldoRiodeJaneiro,2018.Recebidoem:05/03/2021Aceitoem:19/04/2021

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MENEZES,J.P.J.Ocaçadorde... 265

OCAÇADORDEPIPASCOMOROMANCEMULTILÍNGUE:OBSERVAÇÕES

SOBREATRADUÇÃOBRASILEIRA

THEKITERUNNERASAMULTILINGUALNOVEL:OBSERVATIONSONTHE

BRAZILIANTRANSLATION

JuliaPinheroJudiceMenezes1

RESUMO:Opresenteestudotemcomoobjetivocentralanalisaraspalavrasestrangeirasmantidasnatraduçãobrasileiradobest-sellerTheKiteRunner(2003),deKhaledHosseini,publicadonoBrasilcomoOCaçadordePipas(2005).Aoverificaropossívelsignificadodessaspalavrasnocontextoemque aparecem e a quantidade de línguas citadas, parte-se da hipótese de que os estrangeirismospodem não familiarizar o leitor com a cultura afegã,mas confundi-lo, reforçando a impressão doOrienteMédiocomoumlugarexótico.Palavras-chave:OCaçadordePipas;traduçãobrasileira;estrangeirismos.ABSTRACT:ThisstudyanalyzesforeignwordskeptintheBraziliantranslationofthebestsellerTheKite Runner (2003), by Khaled Hosseini, published in Brazil as O Caçador de Pipas (2005). Bysearchingthemeaningofthewordsincontext,besidesthenumberoflanguagescited,thisanalysisassumesthehypothesisthattheirpresencemaynotfamiliarizereaderswiththeAfghanculture,butratherconfusethem,reinforcingtheimpressionoftheMiddleEastasanexoticplace.Keywords:TheKiteRunner;Braziliantranslation;foreignwords.

1.APRESENTAÇÃO

O romanceO Caçador de Pipas, do afegão-estadunidense Khaled Hosseini, foi

publicado nos Estados Unidos em 2003 e lançado no Brasil pela editora Nova

Fronteiraem2005,comtraduçãodeMariaHelenaRouanet.Livrodeestreiadoautor,

1Graduanda,UFU.

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MENEZES,J.P.J.Ocaçadorde... 266

retrataquestõesétnicas,raciaisereligiosasnoAfeganistãodadécadade1970eseus

impactosfuturosnavidadedoisamigos.Alcançougrandesucessocomercial,comoito

milhões de exemplares vendidos no mundo e um milhão apenas no Brasil

(GONÇALVES FILHO, 2014, s/p). Em 2007, foi adaptado para o cinema e, em 2011,

adaptadoparaumromancegráfico.

O livro narra a história de Amir e, em segundo plano, de Hassan. Amir é um

garotopashtun,vindodeumafamíliadeclassealta,queabrigaoempregadoAlieseu

filhoHassan,amboshazaras.AmireHassansãoamigosebrincamempinandopipas

nasruasdeCabul.Entretanto,umeventocatastróficoossepara;Hassanéviolentadoe

Amir, sem reação, não ajuda o amigo. O romance inicia-se com Amir recebendo a

ligaçãodovelhoamigo,querepresentaumachancederedençãoedeperdão.Aolongo

da história, percorremos a ocupação soviética, a tomada do Talibã e, mais tarde, a

chegada das forças estadunidenses. Há um panorama do Afeganistão nesses três

períodos,passandopordiversosconflitosétnico-políticosnaregião.ComentaBeatriz

Velloso:

AestreiadeKhaledHosseinitemváriosméritos.Atramaéboa,bemconduzida,tocante. As descrições da cultura, das tradições e da vida no Afeganistão sãoextremamente interessantes— carregam o leitor para o cotidiano de um paísque,apesardeestarsemprenonoticiário,éummistérioparaamaioria.“QuasenãoexistemromancespassadosnoAfeganistão”,dizoautor.“Porissofiqueifelizcomosucesso.”(VELLOSO,2005,s/p).

A curiosidade a respeito de uma região pouco conhecida no mundo — ou

conhecidasomentepelaguerratalqualretratadanamídia—parecetersidoumadas

razões principais para o sucesso comercial de O Caçador de Pipas, que colocou o

Afeganistão em lugar de destaque na literatura de massa contemporânea (SIMÕES,

2006,s/p).Atéqueponto,porém,umaobradeficçãocomoessapermitequeoleitor

entre em contato com uma cultura distante é uma questão controversa. A visão

transmitidapodeserparcialdemais,comoargumenta,ainda,Velloso:

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MENEZES,J.P.J.Ocaçadorde... 267

Mas há um problema: em várias passagens Hosseini parece ter uma visãodemasiado benevolente dos EstadosUnidos. Ao imaginar como seria a vida dopersonagemHassancasoele tambémtivesse imigrado,oprotagonistaAmirdizqueoamigoestariavivendonum“paísondeninguémse importacomofatodeele ser um hazara”. Difícil acreditar que um afegão será visto com tamanhatolerância pelos americanos, antes ou depois do 11 de setembro. Mas essadiscussãonãoexisteemOCaçadordePipas.(VELLOSO,2005,s/p).

Paraentenderoporquêdessapossível“visãodemasiadobenevolente”paracom

os Estados Unidos, é preciso saber um pouco sobre a trajetória do autor, que se

inspirouemsuainfânciaaoescreveroromance.DeacordocomTheKhaledHosseini

Foundation(2007),oautornasceuem1965,emCabul.Em1970,mudou-separaoIrã,

quando seu pai foi transferido para a embaixada afegã em Teerã. Após um breve

retornoaCabul,afamíliatransferiu-se,então,paraaFrançaedepoisparaosEstados

Unidos, onde conseguiu asilo. Hosseini só voltaria ao Afeganistão em 2003, ano de

lançamentodeOCaçador dePipas, aos38 anos. Essa trajetória é importantepara a

abordagem da obra, porque possui traços autobiográficos — como é explicado no

prefácioparaaediçãodo10°aniversáriodaobraemlínguainglesa(HOSSEINI,2013).

Pode-seinferir,apartirdisso,umavisãobastantepessoaleatémesmoestrangeiraa

respeitodaculturaafegãporpartedoautor, jáqueelepassouamaiorpartedesua

vidanoexterior.Tambémsepodeentenderoromancecomoumaautoficção, jáque

estabeleceumpactoambíguocomo leitor;aomesmotempoemquenãoseassume

como autobiografia, também não se separa do autor (FAEDRICH, 2015, p. 47). A

seguir,segueexemplodessavisãoemumdiálogoentreHassaneRahimKhan—seu

velho amigo, no qual Rahim encontra-se com uma doença terminal e fala a Hassan

sobreascaracterísticasqueosdiferemeomotivopeloqualserecusaaserajudado:

Peloquevejo,osEstadosUnidos infundiramemvocêootimismoque fezdelesumgrandepaís. Issoéótimo.Nós,osafegãos,somosumpovomelancólico,nãosomos?Quasesempreficamoschafurdandoemghamkhorieautopiedade.Damo-

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MENEZES,J.P.J.Ocaçadorde... 268

nosporvencidosdiantedasperdas,dosofrimento;aceitamostudoissocomoumfatodavidaouchegamosatéaconsiderá-lonecessário.(HOSSEINI,2005,p.203).

OpontodevistaexpressoporHosseinigeracontrovérsiaporquesãopoucasas

oportunidadesdeoleitorocidental—eleitorbrasileiro,especificamente—conhecer

aculturaafegã.Aideiaquesetemdodito“Oriente”,ou“OrienteMédio”,costumaser

distorcidae/oufantasiosa,comodescritoporEdwardSaid(1990,p.13)aocomentar

comoaquelaregiãohabitavaoimaginárioeuropeunadécadade1970:“OOrienteera

quase uma invenção europeia, e fora desde aAntiguidade um lugar de romance, de

seres exóticos, de memórias e paisagens obsessivas, de experiências notáveis”. A

expectativadeexotismoedeumavisão“emprimeiramão”deumaterradistantesão

atrativos para o leitor, mas que pode ser frustrada por uma visão excessivamente

americanizada,comoapontouVelloso(2005),ou,alémdisso,porumgênerobastante

formulático, queWalnice Galvão (2010, p. 75) chama de “romance étnico”, sobre o

qual comenta: “Estes autores escrevem na língua do conquistador, e não nas deles

mesmos”.

De fato, O Caçador de Pipas foi majoritariamente escrito em língua inglesa,

embora apresentedezenasdepalavras estrangeiras entremeadas ao longodo texto.

Foiapresençadessaspalavrasestrangeirasnatraduçãobrasileira—poiselasforam

mantidas—quemotivouapresentepesquisa,partindodasimplescuriosidade:“Aque

línguapertencemessaspalavras?Aumalínguaafegã?Sesim,qual?”.Essefoiopasso

inicialparaumlevantamentodetodososvocábulosestrangeirosnotextobrasileiroe

notextodepartida,eminglês,parachecarseosestrangeirismoshaviamsidomesmo

mantidos.Apartirdaí,otrabalhodesdobrou-seemnovasfases,dasquaisemergiram

ashipótesesdeque(1)nemtodasaspalavrasusadasemlínguaestrangeiranotexto

deHosseiniemantidasemlínguaoriginalnatraduçãodeRouanetpertencemasóum

idioma e (2) o leitor não conhecedor dessas palavras não tem como saber, pelo

contextonarrativo,aqueidioma/culturapertencem.

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Essashipótesesconvidamaumdebatearespeitodaestrangeirização(VENUTI,

1995;2008),quesediferedaquelacomqueestamosacostumadosà luzdosEstudos

da Tradução. Enquanto a estrangeirização pode ser vista como uma maneira de

entreveraculturaexpressanotextodepartidaedemanter“umamisturaheterogênea

dediscursos”2(VENUTI,1995,p.34,traduçãominha),nocasodeOCaçadordePipas,é

possível argumentar que a heterogeneidade de discursos torna a cultura de partida

maisopaca,menosvisível,justamenteporquenãoépossívelentender,exatamente,o

que é estrangeirizado e como: há vocábulos de línguas desconhecidas, mas que

permanecemdesconhecidas,poisoleitornãoconseguedistingui-lasentresi.

Comoimigrante,Hosseiniencontra-senacondiçãodeestrangeiroaoapresentar

uma cultura à qual pertence apenas parcialmente, já que,mesmo tendo nascido em

Cabul,oautorviveumajoritariamentenosEstadosUnidos.Seuempregodediversas

línguasereferênciasculturaisaolongodotextomanifestauminteresseemmostrara

riquezadesuaculturadeorigem,aomesmotempoemquenãoaclarifica,pois,ainda

assim,essaculturaparecealgodistanteeimpalpável—suavisãoétambémadeum

estrangeiroocidental.

É preciso salientar o fato de que o Afeganistão possui ao menos 45 línguas

faladasnaatualidade(TURIN,2005,p.04),eoleitornãotem,aprincípio,comosaber

quallínguaestálendo,nemaqueetniapertence.Issoparececausaroefeitocontrário

ao esperado pela estrangeirização, isto é, em vez de multiplicidade, tem-se uma

espéciedehomogeneização—todasaspalavrasestrangeirascompõemumaespécie

delínguadesconhecidaeexótica,reafirmando,portanto,queaprópriaformacomoo

autorretrataoromanceéamesmadaquelaqueoOcidentepercebeaculturaafegã—

emsuma,umolharestrangeiro.

Para investigar todasessasquestões,eoutrasque foramsurgindoao longode

umexamemaisapuradodo texto, foi realizadaumabuscaminuciosadaorigemdas

2Nooriginal:“aheterogeneousmixofdiscourses”.(VENUTI,1995,p.34).

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palavras contidas emO Caçador de Pipas, tal qual descrita, mais à frente, na seção

Metodologia; a seguir, foram reunidos os resultados, conforme parcialmente3

apresentadosna seção “Palavras estrangeiras emOCaçador dePipas”; por fim, com

basenosresultados,levantou-seumanovahipótese,adequeodesconhecimentodas

palavras e expressões estrangeiras ao longo da narrativa promove, em vez de uma

chancede contato com culturasdesconhecidas, umpossível apagamento cultural—

tal argumento édesenvolvidona seçãoDiscussão, que sebaseianasproposiçõesde

Galvão(2010)eSaid(1990)arespeitodeimperialismoedeLawrenceVenuti(1995;

2008) e Even-Zohar (2013) no que se refere à estrangeirização e aos conceitos de

centro/periferianoâmbitodaliteratura.

2.METODOLOGIA

O presente trabalho foi desenvolvido a partir de um projeto de pesquisa de

IniciaçãoCientífica4, quepartiudeuma indagaçãogeradapela leiturado romanceO

Caçador de Pipas, pois, ao lê-lo, percebeu-se que variados vocábulos e outros

elementosdanarrativapodiamgerardemasiadaconfusãoarespeitoda(s)língua(s)e

daculturadoAfeganistão.Aspalavrasestrangeiras,especificamente,pareciamserde

difícil compreensão. Essa indagação foi a razão pela qual quis-se analisar

minuciosamenteaobraecompreenderousodetaispalavras.Paraisso,foirealizada

umasegundaleitura,maisdetalhada,demodoamapearessas214palavraseformular

a Tabela 1. Depois, foram elaboradas, com base na anterior, as outras tabelas de

análise.

3Nãohaveriaespaço,nesteartigo,paralistartodososresultadosdapesquisa;porissofoifeitaumaseleçãodeachadosconsideradosmaisrelevantes.4 Projetodepesquisa: “Ousodas línguas estrangeirasno romance “O caçadordepipas””.BolsistapeloConselhoNacionaldeDesenvolvimentoCientíficoeTecnológico(CNPQ),noperíodode2019―2020.

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Para a elaboração das duas últimas tabelas, recorreu-se ao uso de dicionários

especializadosemlínguasorientais,aoGoogleTradutor,aositeWikipédia,agrandes

sitesdenotícias internacionais,asitesorientaisdeculináriaedereligião—enfim,a

fontes variadas relacionadas ao Oriente Médio, além do portal oficial do governo

afegão (ISLAMIC REPUBLIC OF AFGHANISTAN), de entrevistas concedidas por

Hosseini (vídeos e reportagens escritas) e de glossários e sites que disponibilizam,

especificamente, as palavras estrangeiras contidas no livro. Em sua maioria, essas

palavras são acompanhadas por autotraduções na própria obra, explícitas ou

implícitasnocorpodotexto.

3.RESULTADOS

ParamapearousodepalavrasestrangeirasnatraduçãobrasileiradeOCaçador

de Pipas, foram feitas três tabelas independentes, mas que se complementam. A

primeiratabela,apresentadaparcialmenteaseguir,teveporobjetivoagrupartodasas

ocorrênciasdepalavrasestrangeirasaolongodolivro.

Termosestrangeiros Página Frequência

Nome+Khan 9 189

Baba 10 436

Allah-u-kbar 14 3

Shi'a 15 5

Bazaar 16 15

Naan 16 16

Babalu 16 11

EXCERTODATABELA1—PALAVRASESTRANGEIRASNATRADUÇÃOBRASILEIRADEOCAÇADOR

DEPIPAS(AAUTORA,2019).

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Ao todo, foram encontradas 214 palavras. Algumas ocorrem apenas uma vez,

enquanto amais utilizada,baba, é repetida 436 vezes ao longo do texto. Após esse

primeiro passo, verificou-se se essas palavras ocorriam da mesma maneira no

romanceeminglês,oqueseconfirmou.

A segunda tabela, por sua vez, foi montada a partir de uma pesquisa mais

aprofundada das palavras encontradas. Foi constituída novamente por todas as

palavras, de forma que pudessem ser categorizadas em: recurso adotado para

pesquisá-la;língua;contextoemqueelaaparecenotexto;seéfamiliarizadaounãono

Ocidente.Porém,comosepodenotaraseguir,emdiversoscasosalínguaouapalavra

nãoforamencontradas,ouosignificadoencontradopareciadivergirdaqueleimplícito

notexto.Houve,ainda,oscasosdepalavrasgrafadasequivocadamente.

Com base nesses dados, foi possível traçar um perfil da origem das palavras

estrangeirasencontradasemOCaçadordePipas.Éimportanteressaltarqueessesnão

são dados definitivos, pois esse tipo de pesquisa depende de diversos recursos—

dicionárioson-line,ferramentasdetraduçãoautomática,comoGoogleTradutor—que

nãoapresentamresultadosirrefutáveis.Assim,atéondesepôdeverificar,hápalavras

dequinzelínguasdiferentes,entreasquaisasmaisfrequentessãopersa(dari/farsi),

árabeeurdu.Combaseemsuaocorrêncianainternet,pode-seinferirqueapenas7%

dessaspalavras são relativamentedisseminadasnoOcidente—casodebazaar, por

exemplo.

Termo Língua Pesquisa ContextoNome+Khan Persa Palavra encontrada no site

Wikipédiacomamesmaacepçãoutilizadanolivro.

Palavra desconhecida noOcidente,refere-seaumtítuloparaumgovernanteoumilitarquedepois passou a significar“senhor”.“Um dia, no verão passado,meu amigo Rahim Khan meligou do Paquistão.”(HOSSEINI,2005,p.09).

Aghasahib ---- Palavra encontrada apenas em Palavra desconhecida no

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sites e glossários referentes aolivrocomamesmaautotraduçãoutilizadapeloautor.

Ocidente refere-se à Aghacomo “Grande Senhor/Nobrecomandante” e Sahib como“Amigo/mestre”.“Baba sempre falava dastravessuras que ambosaprontavam, e Ali balançava acabeça dizendo ‘Mas aghasahib, diga a eles quemarquitetava as travessuras equemeraosimplesexecutor’.”(HOSSEINI,2005,p.32).

Ameen Hebraico Palavra também encontradacomoAmém”,“ámen”ou“âmen”,em diversos sites,principalmente sobre religiãocom a mesma acepção utilizadanolivro.

Palavra relacionada à religiãofamiliarizadanoOcidente.“O mulá conclui suas orações.Ameen.” (HOSSEINI, 2005, p.82).

Kabob Derivadadapalavra“kebap”,doTurco.

Palavra encontrada em sites deculinária e traduzida pelo siteWikipédia como “kebab”; comose fosse nosso “espetinho”brasileiro.Comamesmaacepçãoutilizadanolivro.

PalavrarelacionadaàculináriafamiliarizadanoOcidente.“Depois, fomos comer kabobno Dadkhoda em frente aocinema Park.” (HOSSEINI,2005,p.90).

Khastegar Híndi Palavra encontrada apenas emsitessobrefilmes,quesereferema“Thesuitor”,umfilmeiranianocom o título original de“Khastegar”, que seria “Opretendente”. Surgiu dúvida emrelação à acepção da palavra.Traduzida pela tradutora comacepçãodiferentedaqualestánolivro,por“comedor”emHindi.

Palavra desconhecida noOcidente.“—Peloqueouvidizer,éumamoça decente, trabalhadora emuito gentil. Só que nenhumkhastegar, nenhumpretendenteveiobateràportado general desde então —disse baba com um suspiro.”(HOSSEINI,2005,p.145).

Ahestaboro Dari PalavraencontradanaWikipédiae em outros sites com grafiadiferente daquela que está nolivro: “Ahesta Bero” Refere-se auma composiçãomusical tocadaemcasamentos.

Palavra desconhecida namaneira que encontro naspesquisas.“Assim, casamento vai,casamento vem, e ninguémcantou "Ahesta boro" paraSoraya, ninguém pintou aspalmas das suas mãos comhena, ninguém segurou oCorão acima da sua cabeça...”(HOSSEINI,2005,p.153).

Allah-u-akbar Árabe Palavra encontrada com umagrafia diferente daquela que

Palavra desconhecida, namaneira que encontro nas

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estánolivro:“AllahuAkbar”,coma mesma acepção utilizada nolivro.

pesquisas.“Então, os cachorros fazem afesta e o tédio do diafinalmente termina, e todosgritam “Allah-u-akbar!"’(HOSSEINI,2005,p.247).

Sabagh Árabe Palavra encontrada com grafiadiferente “Sabbagh” e acepçãodiferente no site da Wikipédia,traduzidacomo“jardim”.

Palavra desconhecida noOcidente.“— Está bem — disse eu. —Vamos lhe dar um sabagh,vamos lhe dar uma lição, nãoé?”(HOSSEINI,2005,p.363)

EXCERTODATABELA2—SIGNIFICADODASPALAVRASESTRANGEIRASCONFORMEPESQUISAREALIZADA.(AAUTORA,2019).

Foi constituída, por fim, uma terceira e última tabela sintetizada, reunindo

palavrascujalínguadeorigemnãopôdeseridentificada,palavrascujosignificadonão

foi encontrado e palavras encontradas com acepção divergente daquela que o texto

parecesugerir.

LÍNGUA GRAFIAERRADAACEPÇÃO

DIVERGENTESEMSIGNIFICADO

ACEPÇÃOE

GRAFIA

DIVERGENTE

NÃO

IDENTIFIC

ADA

ShorBazaar Rawsti Kharkharamishnassah Kamyab

Dil-roba Aghasahib Bacheh

Kolchas Moochi Nah-kam

Maghout YaMowlah Nawasa

Chilas Shahbas

Mehmanis TopehChast

Seh-parchaMorghkabo

b

Lawla Haiii/Ha

Kocheh-Morgha Khodega

PERSA YeldaEid-e-Qorban Ahgungbichara Sawl-e-Naumubabrak

Qabuli Khodahaf Pari

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ez

DoghAhestaboro Spassiba

Isfand Masnawi Tar

SamosasShahnam

ah Nang

ÁRABE

Allah-u-akbar Hadj Shari'a Kasseef Sabagh

SalaamAlaykum Raka´ts Qaom

Qawali Surrahs

Alhamdullellah

URDU

Nika Tanhaii Lochak Alahoo Kaka Maghbool

Shalwar-kameezes Watani Kursi

Sherjanji Dil

Bakhshesh

INGLÊS Mueszzin Mast

PACHTO Pashtu Talib

RUSSO Boboresh

HINDI Khastegar

TURCO Qurma

BENGALÊ

S Jai-namaz

CEBUANO Balay

TABELA3—PALAVRASESTRANGEIRASGRAFADASEQUIVOCADAMENTE,PALAVRASCOMACEPÇÃODIVERGENTEDAENCONTRADAOUCUJOSIGNIFICADONÃOFOIIDENTIFICADO.(A

AUTORA,2019).

Como se pode perceber, a maior categoria é a de palavras grafadas

equivocadamente,totalizando29.Logoemseguida,temosaspalavrassemsignificado

claro(21)easpalavrascomacepçãodiferentedaquelasugeridapelotexto(19).

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4.DISCUSSÃO

Combasenosresultadosmostrados,pode-sesuporque,paraoleitorocidental,

amaiorpartedaspalavrasouexpressõesestrangeirascontidasemOCaçadordePipas

é desconhecida, e que é preciso confiar que o autor detenha conhecimento e/ou

domíniodaslínguaseculturasàsquaissãofeitasreferênciasaolongodoromance.

Noentanto,partindodofatodeque50%daspalavrasnãoforamsolucionadas

na presente busca — ou seja, a sua exata origem não foi encontrada, nem o seu

significado (aomenos com a grafia apresentada)— confirma-se um estranhamento

quesópodesercomprovadoapósorecolhimentodessesdados.

Émuitoprovávelqueoautortenhatidoaintençãodetornarvisívelseupaísde

origem, mas, ao recorrer a tantos vocábulos desconhecidos cujos sentidos são

“difíceis”dedecifrar,suaopçãolevantadúvidassobreasuafamiliaridadecomrelação

àculturaafegãecomasoutrasculturasqueaborda,oquepareceocolocaremuma

posiçãodeestrangeirocomrelaçãoàsuaprópriaculturadeorigem.

Observa-se que, em razãodessaposição, caracterizando-se como emigrante, o

autor transfere para alguns de seus personagens esse “entre-lugar”. Parece que ele

próprio entende a posição em que está inserido. No trecho a seguir, há um diálogo

entreAmireFarid—homemresponsávelporajudá-loquandoretornaaoAfeganistão.

Amirestavaespantado,percebendoaformacomoseupaísseencontrava:“Estoume

sentido um turista naminha própria terra”, e é questionado: “Ainda considera esse

lugarsua terra? [...]DepoisdevinteanosvivendonaAmérica...” (HOSSEINI,2005,p.

232).Logoemseguida,Faridcontinuae tentaprovaraAmirqueoqueeleafirmava

nãopossuíafundamento:

Deixe eu tentar imaginar, agha sahib. Você com certeza morava em uma casagrande,dedoisoutrêsandares,comumbeloquintalqueojardineirocobriade

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flores e árvores frutíferas. Tudo cercado por grades, é claro. Seu pai tinha umcarro americano. Vocês tinham empregados, provavelmente hazaras. Seus paiscontratavam operários para decorar a casa por ocasiões das magníficasmehmannis que organizavam para que os amigos viessem beber e conversarsobre as viagensque faziamàEuropaouàAmérica.E apostoosolhosdomeufilho mais velho como esta é a primeira vez na vida em que está usando umpakol.[…]Vocêsemprefoiumturistaporaqui.Sóquenãosabiadisso.(HOSSEINI,2005,p.232).

Comojáfoidiscutidoanteriormente,esenotamaisumaveznotrechoacima,o

romance de Hosseini é carregado de palavras estrangeiras que podem provocar no

leitor, em um primeiro momento, a sensação de que está imergindo cultura afegã

adentro. Já na segunda página do livro, nota-se a palavrababa: “Pensei emHassan.

Penseiembaba.EmAli.EmCabul”(HOSSEINI,2005,p.10)—eéelaqueapresentaa

maiorquantidadederepetições,com436ocorrênciasaolongodetodoolivro.Devido

aocontextoeaalgumconhecimentodemundo,oleitorentendequebabaéamaneira

comoAmirserefereaopai.Outrocasosemelhanteéodapalavrabazaar:“Lembrode

umdia,quandoeu tinhaoitoanos,eAliestavame levandoaobazaarparacomprar

naan”(HOSSEINI,2005,p.16),poisnessecaso,também,entendemosaqueoautorse

refere.

O que não se entende sem o auxílio de paratextos nem uma pesquisa

aprofundadaéaque línguapertencemessaspalavras— jáquediversas línguassão

faladasnoAfeganistão—e se a traduçãoqueo leitor a princípio imagina émesmo

aquelautilizadapeloautor.

Porém,àmedidaqueo leitorsedeparacomtantaspalavras,muitasdelassem

explicação de significado e sem referente cultural para oOcidente, a experiência da

leitura pode ser dificultada, como vemos em: “‘Mas, agha sahib, diga a eles quem

arquitetava as travessuras e quem era o simples executor’.Meu pai ria e passava o

braçonosombrosdeAli”(HOSSEINI,2005,p.32).Essetrechodescrevequandobaba

conta a Amir e Hassan sobre as brincadeiras que ele e Ali (pai de Hassan) faziam

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quandocrianças.Vê-sequeoautorutilizouopardepalavrasmaisde20vezese,em

todas,semexplicação.

Em 35% dos casos, o autor formula sua própria explicação, uma espécie de

autotradução daquilo que está tratando, como, por exemplo: “Enchemos três

caminhonetes. Eu fui junto com baba, Rahim Khan, Kaka Homayoun — meu pai

sempre dizia que as crianças devem chamar todos os homensmais velhos dekaka,

tio…” (HOSSEINI, 2005, p. 88). Assim, nesse caso, só se pode confiar que a

autotradução feita pelo próprio Hosseini seja válida, no entanto, ao pesquisar a

palavra e sua origem, nenhum resultado foi encontrado, nem em sites e glossários

referentesaolivro.

Alémdesse caso, surgiuoutropontoproblemático, odequealgumaspalavras

não possuemomesmo significadodaquele utilizadono livro: “Mais cedo, pedi aAli

quepreparasseokursiparanós—basicamenteumaquecedorelétricoinstaladosob

umamesabaixarecobertacomumedredombemgrosso”(HOSSEINI,2005,p.62).Ao

pesquisá-la,segundoositeWikipédiaeoGoogleTradutor,apalavraparecesereferira

“cadeira”.

As palavras estrangeiras são observadas em diversos temas, como política,

cultura,esporteereligião,comdestaqueparaaculinária,poisHosseinitrazdiversos

exemplosdepratosebebidasestrangeiros,massemexplicações,nemmesmonotasde

rodapé: “Fiquei sabendoqueogeneralpodia serbemranheta, fazendocoisas como,

por exemplo, provar a qurma que a esposa punha à sua frente, dar um suspiro e

empurraroprato”(HOSSEINI,2005,p.179)eem“Sorayaekhala Jamilaforamfalar

comumamulherobesaqueestava fritandobolanideespinafre”(HOSSEINI,2005,p.

359).

De acordo comVenuti, a estrangeirização é “umapressão etno-desviantepara

registraradiferençalinguísticaeculturaldotextoestrangeiro,enviandooleitorpara

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longe”5 (VENUTI, 1995, p. 16-17, tradução minha). Porém, com base nos exemplos

relatados acima, o excesso desse uso não parece, nesse caso, aproximar o leitor da

culturaestrangeira,poisnemmesmoessaculturaestábemdefinida—sesãousadas

várias línguas diferentes (como ficoudemonstradonapesquisa), pode-se supor que

hajaumamultiplicidadeculturalqueperpassatodootexto.

Outroaspectorelevanteéqueo“apagamento”culturalnãodizrespeitosomente

às línguas, mas também às culturas da região como um todo. Em três passagens,

Hosseini aborda um tema cultural relevante em diversos países orientais: a forma

como os homens e as mulheres são vistos e se comportam em sociedade, sob seu

pontodevista,reforçandoaleituradeleenquantoestrangeiro.Serácitadaapenasuma

delas, demaneira a demonstrar como essa visão que perpassa o romance pode ser

superficialaoreforçarestereótipos jámarcadosno imaginárioocidental: “Fiqueium

pouco constrangido com a posição de poder que me cabia simplesmente porque

ganheinaloteriagenéticaquedeterminouomeusexo”(HOSSEINI,2005,p.153).Esse

trechofazreferênciaaumaconversaentrebabaeAmirsobreseucasamento,naqual

Amir afirma que os afegãos, geralmente os de famílias importantes e respeitáveis,

eram pessoas inconstantes e que por qualquer motivo desistiriam de uma

pretendente.Eleestavasequestionandoporqueela(Soraya,suafuturaesposa)ainda

nãohaviasecasado.Amirfalaalgumasvezessobreo“doispesos,duasmedidas”quea

sociedadeimpõeparaoshomenseasmulherese,sobretudo,damaneiracomoseupai

não era um típico afegão, cumprindo com os costumes afegãos apenas quando o

convinha. Percebe-se, assim, que o romance não promove uma desconstrução, nem

mesmoumarelativização,deumestereótipoqueoOcidentejácarregaarespeitodo

OrienteMédiocomoregiãomachistaesempreinjustacomasmulheres.

Pode-se supor que, seHosseini não fosse naturalizado estadunidense, poderia

terescritoseuprimeiroromancenoidiomafarsi,mascertamenteseulivrofoiescrito

5 No original: “an ethnodeviant pressure on those values to register the linguistic and culturaldifferenceoftheforeigntext,sendingthereaderabroad”(VENUTI,1995,p.16-17).

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deliberadamenteeminglêsparaatingirumpúblicoespecífico,oocidental.Salienta-se

queesseéumlivroestadunidensesobreoAfeganistão.Nãosetratadeumanarrativa

direcionadaaoseupaísdeorigem,masaomundoocidental:

[...]apesardeaobratrazerelementoslinguísticos,culturaisegeográficossobreomundooriental,estesnãosefazemsuficientesparaqueproduzamosumefetivoreconhecimento do mundo afegão... Isto é, mesmo que o autor nos apresentealguns vocábulos e fragmentos da cultura afegã, estes não permitem que nosapropriemosdas significações sociais de dadas enunciações. (RÖHRIG, 2010, p.90).

Voltandoàquestãolinguística,quinzelínguasdiferentesforamidentificadasno

romance e são de várias famílias linguísticas distintas. Línguas da família indo-

europeia: do ramo iraniano (pachto e farsi); do ramo indo-ariano (bengalês, hindi,

sânscritoeurdu);doramogermânico(inglêsesueco);doramoromânico(espanhol);

doramoeslavo(russo).Dafamíliaafro-asiática:doramosemítico(árabeehebraico).

Da família austronésia: do ramo malaio-polinésio (cebuano). E, por fim, a família

altaica/turca (turco e cazaque). Observando-se a origem tão distinta de todas essas

línguas,edeseusfalantesespalhadosaoredordomundo,nota-seque,defato,estão

muitolongedeformaremumblocolinguísticohomogêneo,nempoderiampertencera

umamesmacultura.

Além disso, nota-se outra questão no que diz respeito a transliterações, dado

queosvocábulosestrangeirosforammantidosnatraduçãobrasileiradamesmaforma

emqueaparecemnotextofonte,ouseja,constata-sequeelesnãoforamtransliterados

para a língua portuguesa, encontram-se ainda em língua inglesa. Considerando as

diferençasentreessas línguasesuasrespectivaspronúncias,corrobora-sea ideiade

Venuti(1995)dequeatraduçãoestrangeirizantepodealteraraformacomootextoé

lidoeatémesmoproduzido,fatopresenteemtodaaobra.

Olivrofoiumbest-sellereganhounãoapenasum,masdiversosprêmios,tendo

um alcance imenso e, com base nele, muitos leitores formaram uma imagem do

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Afeganistãoedeculturaspresentesnaquelaregião.Nessatentativa,eleatingeoleitor

deformacerteira,poisoenvolvecomumahistóriaemocionantemarcadapordiversos

estrangeirismos,quecausamumafalsailusãodeproximidadeeconhecimentonãosó

daculturaafegã,comotambémislâmicaeárabe.

5.CONSIDERAÇÕESFINAIS

O presente artigo abordou um tipo de ficção relativamente pouco estudado

academicamente—obest-sellercontemporâneo—e,emparticular,umromanceque

retrata culturaspouco conhecidasnoBrasil enoOcidente comoum todo, oque lhe

confere a responsabilidade (intencional ou não) de apresentar minimamente essas

culturasaograndepúblico.

Comfrequência,aorigemafegãdoautorparece legitimaroretratoqueele faz

doAfeganistãoemOCaçadordePipaseemseuslivrossubsequentes,masesseéum

aspectoqueprecisasercolocadoemxeque—nãoapenasporqueHosseinipassoua

maior parte de sua vida nos EstadosUnidos e apenas voltou ao seu país de origem

apósapublicaçãodeseuprimeirolivro,masporqueavisãodeumromanceficcional,

ainda que “autoficcional”, não pode ser considerada fidedigna na maneira como

retrataumadeterminadacultura.Nãohá,defato,umcompromissohistoriográfico.

Comoficoudemonstradopormeiodapesquisaaquiapresentada,queabordou

todososvocábulosestrangeirosnatraduçãobrasileirado livro,nãohá, também,um

compromissolinguístico-cultural:umamultiplicidadedelínguasestrangeiraséusada

aolongodeOCaçadordePipas,mas,amenosqueoleitorjátenhaumconhecimento

prévio,essaslínguaspermanecerãodesconhecidasporeleeindistintasentresi,assim

comoalgumasdasculturasaquepertencem.

Devido ao conhecimento tão restrito da cultura afegã do qual falamos

anteriormente, pretende-se continuar esse tipo de estudo sobre línguas orientais,

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Curitiba,Vol.9,nº16,jan.-jun.2021ISSN:2318-1028REVISTAVERSALETE

MENEZES,J.P.J.Ocaçadorde... 282

especificamentedalínguaárabe,comênfasenahistóriadaTraduçãonoOrienteMédio

(edeobrasprovenientesdelá)edeseumercadoeditorial.Aintençãoqueorientatal

propósito é para que, de alguma forma, seja possível gerar mais conhecimento e

pesquisanoBrasilarespeitodeculturastãoricaseque,atéentão,situavam-seforade

nosso imaginário. Para além da noção das Mil e Uma Noites, a obra árabe mais

reconhecidaeprestigiadanoOcidente,éprecisoquehajaumrealespaçodetroca—

cultural,tradutórioelinguístico—entreosabereasliteraturasmarginalizadas.

REFERÊNCIAS

EVEN-ZOHAR, Itamar. “Teoria dos polissistemas.” Trad. Luís Fernando Marozo, Carlos Rizzon eYannaKarllaCunha.InTranslatio,v.5,PortoAlegre,p.02-21,2013.FAEDRICH, Anna. “O conceito de autoficção: demarcações a partir da literatura brasileiracontemporânea.”InItinerários,Araraquara,n.40,p.45-60,jan./jun.2015.GONÇALVES FILHO, Antonio. “Hosseini, das pipas às burcas.” InEstadão [on-line], 7 de agosto de2014. Disponível em: https://cultura.estadao.com.br/noticias/artes,hosseini-das-pipas-as-burcas,40651.Acessoem:20jun.2020.GALVÃO,WalniceNogueira.“Sobreestratégiasidentitárias.”InTeresa,n.10-11,SãoPaulo,p.68-78,2010.HOSSEINI,Khaled.TheKiteRunner.NewYork:RiverheadBooks,2013._____.OCaçadordePipas.Trad.MariaHelenaRouanet.RiodeJaneiro:NovaFronteira,2005.ISLAMICREPUBLICOFAFGHANISTAN(Afeganistão).IslamicRepublicofAfghanistan.Disponívelem:https://president.gov.af/en/.Acessoem:26jun.2020.KHALED HOSSEINI FOUNDATION (San Jose, CA). 2007. Disponível em:https://www.khaledhosseinifoundation.org/.Acessoem:28jun.2020.RÖHRIG,Adriana.“Asinterfacesdanarrativa:Ocaçadordepipas.”InSignos,ano31,n.1,p.83-92,2010.SAID,EdwardW..Orientalismo:oOrientecomoinvençãodoOcidente.Trad.TomásRosaBueno.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1990.

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Curitiba,Vol.9,nº16,jan.-jun.2021ISSN:2318-1028REVISTAVERSALETE

MENEZES,J.P.J.Ocaçadorde... 283

SIMÕES,Eduardo. “Afeganistãovirabest-sellernoBrasil.” InFolhadeS.Paulo,29de julhode2006.Disponívelem:https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2907200619.htm.Acessoem:20jun.2020.TURIN,Mark.“Linguisticdiversityandthepreservationofendangeredlanguages:AcasestudyfromNepal.”InMountainResearchandDevelopment,v.25,n.1,p.4-9,fev.2005.VELLOSO, Beatriz. “Umdrama afegao: a conturbada historia do paıs e cenario paraO Caçador dePipas, romance de Khaled Hosseini.” In Época [on-line] 10 de outubro de 2005. Disponível em:http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR71896-6011,00.html.Acessoem:20jun.2020.VENUTI,Lawrence.TheTranslator’sInvisibility:ahistoryoftranslation.2nded.LondreseNovaYork:Routledge,2008._____.Thetranslator’sinvisibility:ahistoryoftranslation.LondreseNovaYork:Routledge,1995.Recebidoem:05/03/2021Aceitoem:14/04/2021

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RESENHA

REVIEW

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Curitiba,Vol.9,nº16,jan.-jun.2021ISSN:2318-1028REVISTAVERSALETE

CORREA,T.A.Ocultivode... 285

OCULTIVODEMEMÓRIASANCESTRAISEMBAARAZKAWAU,DE

GUSTAVOCABOCO

THECULTIVATIONOFANCESTRALMEMORIESINBAARAZKAWAU,BY

GUSTAVOCABOCO

ThiagoAlexandreCorrea1

Noano2019,quefoiinstituídopelaUnescocomosendooAnoInternacionaldas

Línguas Indígenas,é lançadaaobraBaarazKawau,domultiartista indígenaGustavo

Caboco (2019), na programação do Abril Indígena realizada no Museu Paranaense

(MUPA,2019)2.Trata-sedeumlivrodeexpressivaoriginalidadeporsuacomposição

estética, que transita entre a linguagem verbal e não verbal, resultando em um

primorosorelatomultissemiótico,escritoemlínguaportuguesaelínguawapichana.

Os textos verbais e não verbais presentes na obra apresentam uma narrativa

envolvendo Caboco, seu tio Casimiro Cadete e foram escritos tendo o lastimável

incêndio do Museu Nacional, acontecido em 2018, como motivação. Pouquíssimos

mesesantesdessatragédia,oautorhaviarealizadoumavisitaaoprédiohistóricoe,em

1Mestrando,UFPR.2InformaçõespublicadasemnotanositedoMuseuParanaense:“Mesa-redondadiscutealiteraturaindígenanoMuseuParanaense”.Disponívelem:http://www.museuparanaense.pr.gov.br/Noticia/Mesa-redonda-discute-literatura-indigena-no-Museu-Paranaense.Acessoem:05mar.2021.

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CORREA,T.A.Ocultivode... 286

umadassalasdeexposições,sedeparoucomumabordunawapichana.Cabocoficou

impressionadonãoapenascomacoincidênciaenvolvendoaidentificaçãodapeça,de

mesmapertençaétnicaqueasua,mastambémcomadatadacriaçãodaobra,muito

próxima ao ano de nascimento de seu tio-avô, 1924 e 1921, respectivamente. Três

mesesapóssuavisita,omuseufoiconsumidopelaschamaseoartista,então,pensana

borduna wapichana que lá estava, e na irrecuperável perda daquele patrimônio

artístico,científico,históricoememorialístico.Nessaconjuntura,sedácontadequena

datadoacidenteaobratinha94anosenquantoseutiofaleceraaos93anos.

Somadastaiscoincidênciasaodesejodecontribuirpelaatualização,permanência

e persistência da memória de seu povo, impulsiona-se a criação dessa valiosa

publicação,maisumadesuassementesdomovimentode#retornoaterra3,projetode

pesquisa e de produção artística voltado ao fortalecimento de suas identidades e

memóriasindígenas,comoopróprioautorrelata:

Aminhatrajetóriaderetornoàorigemindígenaguiaaproduçãonasartesvisuais.Nascinacapitalparanaensenumambienteurbanocomashistóriasdeminhamãe:umaWapichana,daterraindígenaCanauanim,domunicípiodeCantá—BoaVista,Roraima.Lucilenesaiudaaldeiaaos10anosdeidade,em1968,esuashistórias,sementes, que a acompanham, em conjunto com o retorno que realizamos em2001,ondefuiapresentadoàminhaavóefamiliaresindígenas,traçaramomeudestinocomoartista.Encontreinodesenho,notexto,naescuta,nobordado,nosom, formas de dialogar com as atualidades indígenas e minha identidade(CABOCO,2019,s/p)4.

Emlínguawapichana,BaarazKawau significa“ocampoapóso fogo”(BIENAL,

2020). Esse elemento relacionado ao idioma já antecipa uma característica de

indispensávelimportância:ademarcaçãodessavozoriginária,comoatoderesistência

3 O “retorno à terra” é o nome dado ao método e processo de pesquisa do artista. Preferimosmencioná-locomahashtagdemodoafacilitarafiltragemdebuscanasredessociaisparaquemtiverinteresse em conferir seus trabalhos. Informações coletadas no site do artista (CABOCO, 2017):https://caboco.tv/work/retorno-a-terra-ano-7/.Acessoem:05mar.2021.4 O livro foi impresso em serigrafia artesanal pela Editora Listrado e a impressão não contémpaginação.

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CORREA,T.A.Ocultivode... 287

edeenfrentamentoàsestruturasdecolonizaçãoqueporséculosocultaramasvozes

indígenas. Encontramos aqui a demarcação do protagonismo, de que os próprios

indígenas tenham assegurado o direito de narrar suas histórias, protagonismo que,

aliás, é uma das principais reivindicações da literatura indígena brasileira

contemporânea. Além disso, em uma perspectiva simbólica, o campo após o fogo

representaavigorosapersistênciadamemóriacomoumcampofértil,capazderesistir

àschamasdestrutivasdofogo,pois,mesmoemumcampoaparentementeimprodutivo,

temacapacidadedegerminaraindaemmeioàscinzas:“Oscorpos-memóriassãovivos,

mesmoapósacombustão.Nãoapagarãoanossamemória”(CABOCO,2019,s/p).

Arepresentaçãodofogoéexpressanãosomentepelotextoverbal,mastambém

poroutroscódigos,sejapelosdesenhosdaslabaredasoupelacordaspáginasquesão

de vermelho intenso. Um dos desenhos finais, inclusive, representa omuseu sendo

consumido pelas chamas, assim como também encontramos, na página seguinte,

desenhosquemostramabordunasendocarbonizadaaospoucosatéqueresteapenas

umamontoadodecinzas.Cinzasque,noentanto,aindaportamvidaereflorescempela

viadaarte,atravésdaseivaresultantedotalentoecompromissodeCaboco,permitindo

queabordunaserevitalizesimbólicaerepresentativamentenaobraBaarazKawau.

Nãofossepelaatuaçãodoartista,porseucompromissocomamemóriaancestralepor

sua visita aomuseumeses antes da tragédia, é provável que, aí sim, a borduna se

extinguissedefinitivamente.Felizmenteapotênciadaarteeapersistênciadamemória

nãopermitiramqueissoacontecesse.

Acaracterísticacromáticaquecompõeaobratambémpodeprovocarareflexão

sobreahegemoniabrancanosespaçosdepoderoficiais,sendoumdelesouniversoda

literatura.Nessesentido,overmelhodaspáginaspodefazerreferênciaaotomdapele,

deumapelequeporséculos foi silenciada,masquemesmocomtodaaopressãose

recusoua sucumbir e, atualmente, comomecanismode resistência,de reverberação

artística e como estratégia de denúncia, se apropria dessa forma ocidentalizada de

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expressão através das páginas, ou peles de papel, comodiz o xamã yanomamiDavi

Kopenawa(2015).

A atualização dasmemórias, também é representada visualmente. O primeiro

desenho,queencontramosnaguardaefolhadeguardadolivro,apresentaummenino

deitadoemumarede,eaimagemdessaredesemesclasimultaneamentecomodesenho

de uma faca, possivelmente relacionada ao trabalho nas “plantações de mandioca,

milho,arroz,melancia,caju,banana.Muitabanana”(CABOCO,2019,s/p).

Alémdisso,dovigorosopédessepersonagemdespontaumramodebanana,fruto

quetempresençarecorrenteaolongodaspáginasenaproduçãoartísticadeCaboco

comoumtodo. Inclusive,nacontracapa,encontramosa ilustraçãodabrincadeirade

plantarbananeira5,aosevirardepontacabeçacomasmãosnosoloeospésparacima.

Mesmo sendo uma brincadeira tradicional, na criação do artista acaba sendo uma

provocação ao incentivar que as pessoas se vinculem com a terra, ou seja,

metaforicamente,comsuasancestralidades.Outrodetalhedemerecidaatençãoéque

essemeninoseguraumlivronasmãos,eesseobjetopodesugerirasnovasferramentas

quetêmcontribuídoparaovínculocomasancestralidadesnosdiasatuais.Alémdisso,

ocultivodasmemóriasedasidentidadesindígenasnacontemporaneidadeseconstrói

também pela via das tecnologias, conforme reforça Daniel Munduruku, um dos

pioneirosda literatura indígenanoBrasil, aodefenderque “paranós fazermos jusà

ideiadecircularidadedotempo,nóstemosquefazerumcaminhodeatualizaçãodas

nossasmemóriasancestraise,aodominarosequipamentosetecnologias,nósestamos

fazendo exatamente isso, renovando nossa própria ancestralidade” (MUNDURUKU,

2019,s/p).

Vencedordo3ºprêmioseLectdeArteeEducaçãonacategoriaArtista,Caboco

afirma,ementrevistaaositedoprêmio,que“[o]livrofoifeitoparaotioCasimiroepara

5Aimagemdabrincadeiradeplantarbananeiraimpressanacontracapadolivropodeserconferidaneste link (MUPA, 2019): http://www.museuparanaense.pr.gov.br/Noticia/Mesa-redonda-discute-literatura-indigena-no-Museu-Paranaense.Acessoem:05.mar.2021.

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CORREA,T.A.Ocultivode... 289

queaspessoasqueestãodentrodaprópriacomunidadetambémserelacionemcom

essamemória.Éumpontodeencontro” (RAHE,2020)6.Nesse sentido, apublicação

pode ser caracterizada como um relato biográfico por narrar importantes

acontecimentos de Casimiro Cadete, tio do autor e personagem do livro, que

completaria100anosem2021,eenfatizarsuafundamentalcontribuiçãonadefesae

preservação da cultura e memória de seu povo. Além disso, essa obra também se

enquadra nas discussões sobre a expansividade dos meios e suportes artísticos

debatidaspelapesquisadoraargentinaFlorenciaGarramuño:

A expansividade dos meios e suportes artísticos se reconhece em práticascontemporâneasque,comoperações,materiaisesuportesmuitodiferentesentresi,foramdesmantelando,detidaeminuciosamente,todotipodeideiadopróprio,tanto no sentido idêntico a simesmo como no sentido de limpo ou puro,mastambémnosentidodoprópriocomoaquelacaracterísticaquediferencia,porqueseriaprópria,umaespéciedaoutra.Àfiguradoartistamultimídia,aquelequeemsuascriaçõessemovedeumadisciplinaàoutraeascombinanumamesmaprática,sesomaafiguradoartista―muitasvezes,masnãosempre,coincidentecomafigura anterior— que pode, além disso, passar de uma disciplina à outra empráticasdiversas:poetasquetambémsãoartistasvisuais(LauraErber),escritoresquetambémrealizamperformanceseinstalações(MarioBellatin),ouartistasquerecorrem a diversas invenções em torno da linguagem em suas própriasinstalações e que posteriormente realizam com estematerial livros que já nãosimplesmente “documentam” essa prática anterior,mas se tornampor sua veztextoseproduçõescomcertaindependência[...](GARRAMUÑO,2014,p.85-86).

EmdiálogocomasconsideraçõesdeGarramuñoecomadefesadeMunduruku

sobre as tecnologias contribuírem com a atualização de memórias, é pertinente

mencionaroutrorecentetrabalhodeCaboco,de2020,denominadoRecadoaoParente

6 RAHE, Nina. “O livro como ponto de encontro”. Prêmio select. Disponível em: https://premio-select.com.br/o-livro-como-ponto-de-encontro/.2020.Acessoem:05mar.2021.

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(IMS, 2020)7, um dos selecionados para o Programa Convida8, do Instituto Moreira

Salles. Esse trabalho também transita por diversas artes e expressões pluriformes,

germinando-secomomaisumadassementesdoseupercursode#retornoaterra.Além

disso,Cabocoéumdosartistasconvidadosparaamostracoletivada34ªBienaldeSão

Paulo (BIENAL, 2020)9, programada inicialmente para acontecer em 2020,mas que

devidoàpandemiadoCovid-19foiadiadapara2021.

Evidencia-se, portanto, quemotivos para conhecer a produção de Caboco são

fecundosequesuavozeexpressãocriativasãoférteis,potenteseinspiradorasparaque

outrosjovensindígenasenãoindígenassejamprovocadosatambémtraçarsuasrotas

memorialísticas e identitárias. Além disso, a originalidade de sua composição e a

cativante singularidade visual engrandecem ainda mais os espaços de expressão

artística promovendo e fortalecendo a democratização de vozes e a pluralidade no

universodaliteraturaedasdemaisartes.

REFERÊNCIASBIENAL. 34ª Bienal de São Paulo. Gustavo Caboco. 2020. Disponível em:http://34.bienal.org.br/artistas/7863.Acessoem:05mar.2021.CABOCO,Gustavo.BaarazKawau.SãoPaulo:CadernoListrado.2019._____.ORetorno.Disponívelem:https://caboco.tv/work/retorno-a-terra-ano-7/.[2017].Acessoem:05mar.2021.CONVIDA entra na terceira etapa. Instituto Moreira Salles. 16 out. 2020. Disponível em:https://ims.com.br/2020/07/20/programa-convida-etapa-3/.Acessoem:05mar.2021.

7PoemadeCabocopublicadonositedo IMS: “Recadoaoparente: fortificarnossoselos”. InstitutoMoreira Salles. Disponível em: https://ims.com.br/convida/gustavo-caboco/. Acesso em: 05 mar.2021.8DeacordocomoqueencontramosnositedoInstitutoMoreiraSalles,oProgramaConvidafoilançadoem 2020 como resposta aos danos causados pela pandemia. Disponível em:https://ims.com.br/2020/07/20/programa-convida-etapa-3/.Acessoem:05mar.2021.9“GustavoCaboco”.BienaldeSãoPaulo.Disponívelem:http://34.bienal.org.br/artistas/7863.Acessoem:05mar.2021.

Page 291: Número 16 - Revista Versalete

Curitiba,Vol.9,nº16,jan.-jun.2021ISSN:2318-1028REVISTAVERSALETE

CORREA,T.A.Ocultivode... 291

GARRAMUÑO,Florencia.Frutosestranhos:sobreainespecificidadenaestéticacontemporânea.RiodeJaneiro:Rocco,2014.IMS. Instituto Moreira Salles. Gustavo Caboco (PR/RR). 2020. Disponível em:https://ims.com.br/convida/gustavo-caboco/.Acessoem:05mar.2021.KOPENAWA,Davi;ALBERT,Bruce.Aquedadocéu:palavrasdeumxamãyanomami.Trad.BeatrizPerrone-Moisés.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2015.MUNDURUKU,Daniel.Vozesdeorigememfolhasdepapel:aliteraturaindígenacomoativismopolítico,culturaleatualizadordamemória:depoimento.Nonada,02dez.2019.EntrevistaconcedidaaJoyceRocha.Disponívelem:http://www.nonada.com.br/2019/12/vozes-de-origem-em-folhas-de-papel/.Acessoem05mar.2021.MUPA.MuseuParanaense.Mesa-redondadiscutealiteraturaindígenanoMuseuParanaense.22abr.2019. Disponível em: http://www.museuparanaense.pr.gov.br/Noticia/Mesa-redonda-discute-literatura-indigena-no-Museu-Paranaense.Acessoem:05mar.2021.RAHE, Nina.O livro como ponto de encontro. Prêmio Select, 2020 Disponível em: https://premio-select.com.br/o-livro-como-ponto-de-encontro/.Acessoem:13jan.2021.Recebidoem:05/03/2021Aceitoem:05/04/2021

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PROFESSORCONVIDADO

GUESTPROFESSOR

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Curitiba,Vol.9,nº16,jan.-jun.2021ISSN:2318-1028REVISTAVERSALETE

FLORES,G.G..Ética. 293

ÉTICA

ETHICS

GuilhermeGontijoFlores1

1. Ética,dogregoἦθος,

ocaráter,ocostume,

ohábitodealguém.

2. Certamentevinculadaaosânscrito!धा

(svádhā,!hábito”,"costume”,

mastambémum“poderinerente”).

3. Dánaraizhipotéticadoproto-indo-europeu

*swe-dʰh₁-sḱé-ti,

queporsuavezvemdaraiz

dʰeh₁-,comosentidode

“fazer”,“colocar”,“posicionar”.

4. Esseriotemambagesmuitas,tortíssima,

vai,porexemplodaremlatim

noverbosuesco—“terocostume”.

1UFPR.

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FLORES,G.G..Ética. 294

5. Masmelhor,

muitomelhor,

vaidaremsodalis,

queéo“camarada”,

“parceiro”,

"cúmplice”,

“companheiro"emesmoum

"conspirador"

(pensoquemconspira

comoquemrespira

junto,partilha

umalento).

Ora,sodaliséquemcostumaestarjunto,

partilhaerespira.

Eisumbomcostume.

6. Édeliciosocomoἦθος

variatambémemἔθος,

umélongoἦ,trocado

emebreve,ἔ,

umacentotonalcircunflexo,quesobeedesce,

tambémdeslindadonumasósubida.

Quemvemprimeiroimportamenos

queessecostume

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FLORES,G.G..Ética. 295

introjetadoemvariações.

Ocostumevaria,dásuasvoltas.

7. Masesseethosgrego,

aomenosalinovelhoHomero

blindasabat,Homero

naIlíada,canto6,verso511,

quandoaparecenoplural

ἤθεαἵππων,

(cláusulahexamétrica,étheahíppon)

designa“oslugarescostumeirosdoscavalos”,

quepoderiamserseushabitats.

Costume,hábito,habitat.

8. Aquipodemosformularalgo:

éticaéohábitoquehabito.

Maisqueisso—

apartilhadeumarqueconspira.

9. Maséticanãovemdireto

deἦθος

ouἔθος,

palavrastêmseustruques

efeitorios

nuncaseguemretas.

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FLORES,G.G..Ética. 296

Vemdeἠθικός,

oadjetivoquedesigna

amoralidade,oqueérelativo

aumcarátermoral.

(Óqueamoraleaética,nofundoseconfundem).

Evemsemgêneromasculinooufeminino,

vemsemsingularidade,

doadjetivoneutroplural:

10. τάἠθικά,

etambémἐθικά.

Coisasmorais.

Normasdevida.Ação

nojogodapartilha.

11. Masissotudo,emgrandeparte

vocêsestãocansadosdesaber.

Repitoomesmo,ovelho,omesmo,

porqueocostumeéumhábitoemqueinvisto,

enuncaumreiesteveverdadeiramentenu,

senãonaguilhotina.

12.

Outrocaminhotrilhadoéodapolítica.

DisseAristóteles

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FLORES,G.G..Ética. 297

queohomeméumanimalpolítico

πολιτικὸνζῷον

sendoζῷονavida

brutaeneutra

comoogênerodaética

emoposiçãoàvidapolítica

βίοςπολιτικός,

sendoβίοςvida

organizadaemseusentido,

umidealéticodavidapolítica

queninguémsabeondefica.

13. Reparemcomoacoisasederiva.Aética

quandoescrevoapalavrapoéticanumlivro

enganaasetimologias,ποιητικἠnadatem

comἠθικά,quefaltafazummeroθ(theta)

singularpresentenaαἰσθητική(estética),

eaindaassimdistanteporseuαἰ(ai)eη(eta).

E,noentanto,acontrapelodessesétimos,

todapoéticaéumaest-éticaéumapolítica:

avidabrutaabraçasempararavidaorganizada.

14. Etudoaquiconspiraquandoescrevo,

mesmonegandoocerneemmeuestilo,

tudoconspiraeassiméquemeentrego

acontrapelodocostumedado,

etudoqueaquiviveestásagrado,

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Curitiba,Vol.9,nº16,jan.-jun.2021ISSN:2318-1028REVISTAVERSALETE

FLORES,G.G..Ética. 298

etudoqueconspiraétambémsacer

evivenolimitedoprofano

eintocável,oimpuroempuromundo,

etudoqueconvivenoprofano

aquiconspirasacernosagrado,

eaminhaaçãosozinhanestaescrita

estádesditaemtudoqueatravessa,

sodalis,solidárioàsolidão

edizacadadia:aquihabito.

Page 299: Número 16 - Revista Versalete

AUTORCONVIDADO

GUESTAUTHOR

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Curitiba,Vol.9,nº16,jan.-jun.2021ISSN:2318-1028REVISTAVERSALETE

CHACAL.Confissõesdeescritor... 300

CONFISSÕESDEESCRITOR—CHACAL

GUESTAUTHOR

QUESTIONÁRIOPROUSTAInglaterravitorianaadoravajogosdesalão.QuandoMarcelProustconheceuo

JogodasConfidênciasseapaixonouporeleefezsuaprópriaversão.O"QuestionárioProust"jágerouexperiênciasdetodotipo,deentrevistaoficialaconversasde

namorados...Aqui,numanovaversão,adaptadadenovo,eleéusadoparaconfidênciasliterárias.

PROUSTQUESTIONNAIREVictorianEnglandlovedparlourgames.WhenMarcelProustgottoknow

ConfidenceAlbumshefellinlovewiththeideaandcreatedhisownversionofit.The“ProustQuestionnaire”hasalreadyspawnedallkindsofexperiences,fromofficialinterviewstolovers’chat...Here,inanewversion,adaptedonceagain,itisusedfor

literaryconfidences.

Suaprincipalcaracterísticacomoescritor:

souhippieatéhoje.Achoquealevezaeautopia,eucarregueiparaospoemas.

Aqualidadequevocêmaisadmiraemumescritor:

odomínio,ahabilidade,deescreverparaoouvido.SejaUlyssesouGrandeSertão.

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Curitiba,Vol.9,nº16,jan.-jun.2021ISSN:2318-1028REVISTAVERSALETE

CHACAL.Confissõesdeescritor... 301

Aqualidadequevocêmaisadmiraemumleitor:

leremvozalta.

Suaprincipalaspiração,aindanãorealizada,comoescritor:

viverdoqueescrevo.

Suaprincipalaspiração,járealizada,comoescritor:

atravessar70anossemtiraropé.

Sonhodefelicidade,navidadoautor:

serco-pilotodealicenopaísdasmaravilhas.

Amaiorinfelicidade,navidadoautor:

oóculosquebrar,aluzapagarnofinaleletrizantedoromance.

Dividindoaliteraturaemnacionalidades...qualpaíspareceterhojealiteratura

maisinteressante?

Brasileira,aúnicaqueconheço.

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Oquemudaaoselerliteraturaemlínguaestrangeira?

Quase não leio literatura estrangeira. Poesia muito menos ainda. Hoje leio menos

autoresquetradutores.

Umromancepreferido?

GrandeSertão:veredas.

Umpoemaouumlivrodepoemaspreferido?

Tudoprontoparaofimdomundo,BrunoBrum.

NaSaladaJustiçadosescritores...qualoseusuper-herói?

OswalddeAndrade

Personagensmasculinasfavoritasnaficção:

SerafimPonteGrande,LeopoldBloom,PedroOrósio,Batleby.

Personagensfemininasfavoritasnaficção:

MollyBloom,Diadorim,Pentesileia.

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Umlivroquegostariadeterescrito:

Ulysses

Trechopreferidodeumaobra:

Aberto,dolivroOElefante,deChicoAlvim

Aberto(paracacaso)

ÀsvezesoolharcaminhanatramadaluzsemcuriosidadealgumaqualquerdevaneioVaiembuscadotempoeotempo,comoosempre,vaziodetudonãoestálongeestáaqui,agoraOolharsemmemóriasemdestinosedetémnoardoarnaluzdaluz―lugar?

Vocêestáescrevendoagora?

Agoraagoraestou.Preparando“olivrodascapivaras”(subtítulo)eescrevendoàtoa.

Sem tema, sem endereço. Bom para retomar essa conversinha pirilampa entre som e

sentido. Anda um pouquinho, pára, esquece.Mergulha de volta e volta com um peixe.

Conversacomelesobreaguelra,osufocoelevaelenomardenovo.

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Bio-bibliografiaresumida:

Unsquatorzelivrosdepoesia,umaautobiografia,doislivrosdecrônicas,umsobre

oPostoNove.Editei revistas.OCarioca (1995/97), principalmente. Sou cada vezmais

indolente.Infelizmenteoartistatemquefazerbarulhoparaouviremoseusilêncio.Mas

dácerto,dependendodotom.

Conheci alguns países e lá me apresentei. Talvez a melhor parte dessa viagem.

Gostodeestarcomaspessoasemboranuncasaibaoquedizer.Fuiumdosargonautas

doCentrodeExperimentaçãoPoética―CEP20.000,umcovildepoetaseperformers.De

1990a2020,noRio.FizmestradodeLetrasnaPUC (16/19).Boas leituras,desânimo,

cansaço.Difícilnavegarrotasprevisíveis.

Nascertododia.Tenhodoisfilhos,umpardenetos,quemeajudamarejuvelhecer.

Aartedapalavrapedefidelidade...àvida.Valeu.[Ricardo“Chacal”deCarvalhoDuarte]

[I wrote] About fourteen books of poetry, an autobiography, two books of

chronicles,oneaboutPostoNove. Ieditedmagazines.OCarioca (1995/97),mainly. I

havebecomemoreandmoreslothfulUnfortunately,theartistmustmakenoisesothat

othershearhissilence.Butitworks,dependingonthetone.

Igottoknowsomecountriesandperformedthere.Perhapsthebestpartofthis

trip.IenjoybeingwithpeopleeventhoughIneverknowwhattosay.Iwasoneofthe

argonauts of the Poetic Experimentation Center― CEP 20.000, a den of poets and

performers.From1990to2020,inRiodeJaneiro(Brazil).Itookamaster'sdegreein

LiteratureatPUC(16/19).Goodreadings,discouragement,tiredness.It isdifficultto

navigatepredictableroutes

Beingborneveryday.Ihavetwochildren,apairofgrandchildren,whohelpme

rejuvenage. The art of the word calls for fidelity ... [Ricardo “Chacal” de Carvalho

Duarte]